31 de maio de 2012

Visitação de Nossa Senhora


Maio é o mês dedicado à particular devoção de Nossa Senhora. A Igreja o encerra com a Festa da Visitação da Virgem Maria à santa prima Isabel, que simboliza o cumprimento dos tempos. Antes ocorria em 02 de julho, data do regresso de Maria, uma semana depois do nascimento e do rito da imposição do nome de São João Batista.

A referência mais antiga da invocação de Nossa Senhora da Visitação pertence a Ordem franciscana, que assim a festejavam desde 1263, na Itália. Em 1441, o Papa Urbano VI instituiu esta festa, pois a Igreja do Ocidente necessitava da intercessão de Maria, para recuperar a paz e união do clero dividido pelo grande cisma.

A Bíblia narra que Maria viajou para a casa da família de Zacarias logo após a anunciação do Anjo, que lhe dissera “vossa prima Isabel, também conceberá um filho em sua idade avançada. E este é agora o sexto mês dela, que foi dita estéril; nada é impossível para Deus”. (Lc 1, 26, 37). Já concebida pelo Espírito Santo, a puríssima Virgem foi levar sua ajuda e apoio à parenta genitora do precursor do Messias Salvador.

O encontro das duas Mães é a verdadeira explosão de salvação, de alegria e de louvor ao Criador. Dele resultou a oração da Ave Maria e o cântico do “Magnificat”, rezados e entoados por toda a cristandade aos longos destes mais de dois milênios.

Desde 1412, Nossa Senhora da Visitação é festejada especialmente pelos italianos da Sicília, como a Padroeira da cidade da Enna. Mas nem todo o mundo cristão celebrava esta veneração, por isto foi confirmada no sínodo de Basiléia em 1441.

Os portugueses sempre a celebraram com muita pompa, porque rei D. Manuel I, o Venturoso, que governou entre 1495 e 1521, escolheu Nossa Senhora da Visitação a Padroeira da Casa de Misericórdia de Lisboa, e de todas as outras do reino.

Foi assim que este culto chegou ao Brasil Colônia, primeiro na Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, depois se disseminou por todo território brasileiro. Antigamente os fieis faziam uma enorme procissão até os Hospitais da Misericórdia para levar conforto aos enfermos e suas doações às instituições. Hoje, as paróquias enviam as doações recolhidas com antecedência, para as Pastorais dos enfermos, que atuam com os voluntários junto às Casas de Saúde mais deficitárias. Tudo para perpetuar a verdadeira caridade cristã, iniciada pela Mãe de Deus ao visitar a santa prima levando sua amizade e ajuda quando mais precisava.

Em 1978, a Madre Maria Vincenza Minet foi chamada pelo Senhor para fundar uma congregação de religiosa sob o carisma de Nossa Senhora da Visitação. Com o apoio do Bispo de Assis, nesta cidade da Itália nasceu as Servas da Visitação em 1978, para abrirem missões a fim de atender as necessidades dos mais pobres e marginalizados em todos os continentes. Hoje, além da Itália, atuam na Polônia, Filipinas, África e Brasil.

A Igreja celebra hoje os santos: Câncio, Petronila de Roma e Pascásio.

30 de maio de 2012

O Espírito Santo e Maria

O Espírito Santo e Maria

Frei Clarêncio Neotti, OFM

O mistério de Maria é inseparável do mistério do Espírito Santo. Mais: dele depende. O Apocalipse fala de uma mulher vestida de sol (12,1). Esse sol é o Espírito Santo, que a enriqueceu de todas as graças desde quando o Pai a escolheu para ser a mãe de seu Filho. E quando, cheia de graça, chegada a plenitude dos tempos (Gl 4,4), ela deveria conceber Jesus, é o Espírito Santo que a fecunda, como rezamos no Credo: “O Filho unigênito de Deus … por nós e para nossa salvação desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria”.

Revestida de sol, coberta pelo Espírito Santo, Maria tornou-se, no dizer de São Bernardo, “um abismo de luz, gestando o verdadeiro Deus, Deus e homem ao mesmo tempo” e, diante desse fato, observa ainda São Bernardo, “até o olho angélico fica ofuscado com a potência de tal fulgor”.

Sol e luz são figuras para expressar um fato: Maria, senhora de todas as bênçãos, concebe o Filho de Deus, por obra e graça do Espírito Santo, e é associada para sempre à obra redentora do Cristo e à missão do Espírito Santo Paráclito na história da salvação. Afirma o Evangelista Lucas que, à pergunta de Maria como seria possível conceber, se ela não conhecia homem algum, o anjo lhe garantiu: “O Espírito Santo descerá sobre ti” (Lc 1,15). Comenta o Catecismo: “A missão do Espírito Santo está sempre conjugada e ordenada ao Filho. O Espírito Santo é enviado para santificar o seio da Virgem Maria e fecundá-lo divinamente, ele que é ‘o Senhor que dá a Vida’, fazendo com que ela conceba o Filho Eterno do Pai em uma humanidade proveniente da sua” (484-485).

Para expressar essa unidade de mistérios entre Maria e o Espírito Santo, os teólogos não hesitam em chamar Maria de Esposa do Espírito Santo. Assim, São Francisco, na antífona que compôs para o Ofício da Paixão do Senhor, reza: “Santa Virgem Maria, não há mulher nascida no mundo semelhante a vós, serva do Altíssimo Rei e Pai celestial, Mãe do nosso Santíssimo Senhor Jesus Cristo, Esposa do Espírito Santo”.

A festa litúrgica, que celebra a encarnação de Jesus, chamada “Solenidade da Anunciação do Senhor” (25 de março), une estreitamente Jesus, Maria e o Espírito Santo. Jesus é a razão de ser de todos os privilégios e da própria missão de Maria. O Espírito Santo consagra Maria, fecunda-a e, ao mesmo tempo une-se à missão salvadora de Jesus, tornando-o o Cristo, o Ungido de Deus. Vários momentos da vida terrena de Jesus mostram-no cheio do Espírito Santo (Lc 4,1; Jo 1,33), movido pelo Espírito Santo (Lc 4,18) e tendo o Espírito Santo como testemunha de sua messianidade e de sua doutrina (Lc 12,12; Jo 14,26; 16,13).

Ao dobrarmos os joelhos diante do mistério da encarnação, adoramos a Trindade santa: o Pai que envia o Filho, o Filho que, permanecendo Deus, obedece e assume o corpo humano, o Espírito Santo, que possibilita a concepção imaculada de Jesus. Dentro desse mistério e protagonista dele encontra-se Maria, mulher como todas as mulheres, mas associada misteriosamente, através da maternidade divina, à missão redentora e santificadora do mundo. “Por isso mesmo – escreve o Papa Pio IX na Bula de proclamação do dogma da Imaculada Conceição – Deus a cumulou, de maneira tão admirável, da abundância dos bens celestes do tesouro de sua divindade, mais que a todos os espíritos angelicais e todos os santos, de tal forma que ficaria absolutamente isenta de toda e qualquer mancha de pecado, podendo, assim, toda bela e perfeita, ostentar uma inocência e santidade tão abundantes, quais outras não se conhecem abaixo de Deus, e que pessoa alguma, além de Deus, jamais alcançaria, nem em espírito” (n. 2).

Diante de Maria, envolta pela inaudita graça da maternidade divina, São Francisco, apaixonado pelo mistério da encarnação, prorrompe numa saudação em que, faltando palavras, busca com símbolos e comparações dizer o que lhe vai na mente e no coração: “Salve, Senhora santa, Rainha santíssima, Mãe de Deus, ó Maria, que sois Virgem feita igreja, eleita pelo santíssimo Pai celestial, que vos consagrou por seu santíssimo e dileto Filho e o Espírito Santo Paráclito! Em vós residiu e reside toda a plenitude da graça e todo o bem! Salve, ó palácio do Senhor! Salve, ó tabernáculo do Senhor! Salve, ó morada do Senhor! Salve, ó manto do Senhor! Salve, ó serva do Senhor! Salve ó Mãe do Senhor! Salve vós todas, ó santas virtudes derramadas, pela graça e iluminação do Espírito Santo, nos corações dos fiéis, transformando-os em fiéis servos de Deus”.

Sempre na tentativa de expressar com palavras humanas aquele momento único da encarnação do Senhor, há teólogos que se demoram em comparar a presença dinâmica do Espírito Santo na pessoa de Maria com o início da criação, quando, segundo o Gênesis (1,2) o Espírito de Deus soprava forte sobre as águas, ou seja, separava os elementos, ordenava-os, permitindo o nascimento da vida na terra. Rezamos no Credo: “Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida”. Dar a vida é uma das atribuições do Espírito Santo. Na primeira criação, o Espírito como que fecundou a Natureza. Na segunda criação, inaugurada na Anunciação, o

Espírito Santo não só fecundou Maria que, como mulher, concebeu e deu início a uma vida, mas também tornou-se autor daquele que mais tarde declarou explicitamente: “Eu sou a vida” (Jo 11,25; 14,6).

Dar vida tornou-se sinônimo da missão de Jesus na terra. Por isso mesmo, toda a missão de Jesus está prenhe do Espírito Santo. Jesus foi preciso: “Eu vim para que todos tenham a vida em plenitude” (Jo 10,10). Esta plenitude da vida nos é dada pelo Espírito Santo, ligada ao mistério da Encarnação do Senhor, liga à própria vida do Filho de Deus na terra, obra e graça do Espírito Santo. Plenitude de vida aqui na terra e plenitude de vida na comunhão eterna com Deus. Aqui na terra, na vivência dos dons do Espírito Santo, que Maria recebeu em superabundância, particularmente a fé, a esperança e a caridade, que explodiram no seu “sim” ao plano de Deus e a mantiveram ao lado do Filho em todas as circunstâncias, inclusive ao pé da Cruz. Dos mesmos dons recebemos a coragem e a graça de acompanhar o Senhor Jesus e, na força do Espírito Santo, testemunhá-lo em nossa vida e em nossas ações e sermos pelo Senhor recebidos na morte e transportados à comunhão eterna com a Trindade.

Há um outro momento na história da salvação, fundamental também ele, no qual a Escritura acentua a presença de Maria, envolta no Espírito Santo. Refiro-me a Pentecostes. Na encíclica Redemptoris Mater – sobre o papel de Maria na história e na vida da Igreja – escreveu o Papa João Paulo II: “Na economia redentora da graça, atuada sob a ação do Espírito Santo, existe uma correspondência singular entre o momento da Encarnação do Verbo e o momento do nascimento da Igreja. A pessoa que une estes dois momentos é Maria: Maria em Nazaré e Maria no Cenáculo de Jerusalém. … Assim, aquela que está presente no mistério de

Cristo como Mãe, torna-se – por vontade do Filho e por obra do Espírito Santo – presente no mistério da Igreja” (n. 24).

Quando a Igreja declara que o Espírito Santo é sua alma (Lumen Gentium, 7), está reconhecendo nele a vida que a sustenta, a dinamiza, a santifica e lhe é garantia de fidelidade. Maria é o ícone da Igreja. Cheia do Espírito Santo, por sua obra e graça, ela deu à luz o Filho de Deus. A Igreja, sempre por obra e graça do Espírito Santo, gera os filhos para Deus. Se Maria foi verdadeiramente Mãe do Jesus histórico, concebido em Nazaré, nascido em Belém, crucificado e morto em Jerusalém, ela é também a verdadeira Mãe da Igreja, corpo místico do Cristo ressuscitado, vivo e presente até os confins do mundo e até o fim dos tempos.

Transcrevo uma oração atribuída a Santo Ildefonso (+667): “Ó Virgem Imaculada, aquele que armou sua tenda em Ti, enriqueceu-Te com os sete dons de seu Santo Espírito, como sete pedras preciosas. Primeiro, ornou-Te com o dom da Sabedoria, em força do qual foste divinamente elevada ao Amor dos amores. Depois, deu-Te o dom do Intelecto, pelo qual subiste às culminâncias do esplendor hierárquico. O terceiro dom com que foste agraciada foi o do Conselho, que Te fez virgem prudente, atenta e perspicaz. O dom da Ciência que recebeste foi confirmado pelo próprio magistério de Teu Filho. O quinto dom, o da Fortaleza, o manifestaste na firme perseverança, na constância e no vigor contra as adversidades. O dom da Piedade fez-Te clemente, piedosa, compreensiva, porque tinhas infusa a caridade. Pelo sétimo dom, o Temor de Deus transpareceu na Tua vida simples e respeitosa diante da imensa majestade. Alcança-nos estes dons, ó Virgem três vezes bendita, Tu, que mereceste ser chamada o Sacrário do Espírito Santo. Amém.

29 de maio de 2012




Hoje as discussões em torno do desenvolvimento sustentável, um dos temas centrais da Rio+20, sequestraram a categoria de sustentabilidade. Ela não se reduz ao desenvolvimento realmente existente que possui uma lógica contrária à sustentabilidade. Enquanto aquele se rege pela linearidade, pelo crescimento ilimitado que implica exploração da natureza e criação de profundas desigualdades, a sustentabilidade é circular, envolve a todos os seres com relações de interdependência e de inclusão de sorte que todos podem e devem conviver e coevoluir.

Sustentável é uma realidade que consegue se manter, se reproduzir, conservar-se à altura dos desafios do ambiente e estar sempre bem. E isso resulta do conjunto das relações de interdependência que entretém com todos os demais seres e com seus respectivos habitats. A sustentabilidade funda um paradigma que deve se realizar em todos os âmbitos do real.

Para que a sustentabilidade realmente ocorra, especialmente quando entra o fator humano, capaz de intervir nos processos naturais, não basta o funcionamento mecânico dos processos de interdependência e inclusão. Faz-se mister uma outra realidade a se compor com a sustentabilidade: o cuidado. Ele também funda um novo paradigma.

Antes de mais nada, o cuidado constiui uma constante cosmológica. Se as energiais originárias e os elementos primeiros não fossem regidos por um sutilíssimo cuidado para que tudo mantivesse a sua devida proporção, o universo não teria surgido e nós não estaríamos aqui escrevendo sobre o cuidado. Nós mesmos, somos filhos e filhas do cuidado. Se nossas mães não nos tivessem acolhido com infinito cuidado, não teríamos como descer do berço e ir buscar o nosso alimento. O cuidado é aquela condição prévia que permite um ser vir à existência. É o orientador antecipado de nossas ações para que sejam construitivas e não destrutivas.

Em tudo o que fazemos, entra o cuidado. Cuidamos do que amamos. Amamos do que cuidamos. Hoje pelos conhecimentos que possuimos acerca dos riscos que pesam sobre a Terra e a vida, se não cuidarmos, surge a ameaça de nosso desaparecimento como espécie, enquanto a Terra, empobrecido, seguirá, pelos séculos afora, seu curso pelo cosmos. Até, quem sabe, que surja um outro ser dotado de alta complexidade e cuidado, capaz de suportar o espírito e a consciência.

Resumimos os vários significados de cuidado construídos a partir de muitas fontes que não cabe aqui referir mas que vem da mais alta antiguiadade, dos gregos, dos romanos, passando por Santo Agostinho e culminando em Martin Heidegger que vêem no cuidado a essência mesma do ser humano, no mundo, junto com os outros e voltado ao futuro. Identificamos quatro grandes sentidos, todos mutuamente implicados.

Primeiro: Cuidado é uma atitude de relação amorosa, suave, amigável, harmoniosa e protetora para com a realidade, pessoal, social e ambiental.

Metaforicamente podemos dizer que o cuidado é a mão aberta que se estende para a carícia essencial, para o aperto das mãos, com os dedos que se entrelaçam com outros dedos para formar uma aliança de cooperação e a união de forças. Ele se opõe à mão fechada e ao punho cerrado para submeter e dominar o outro.

Segundo: Cuidado é todo tipo de preocupação, inquietação, desassossego, incômodo, estresse, temor e até medo face a pessoas e a realidades com as quais estamos afetivamente envolvidos e por isso nos são preciosas.

Esse tipo de cuidado, acompanha-nos em cada momento e em cada fase de nossa vida. É o envolvimento com pessoas que nos são queridas ou com situações que nos são caras. Elas nos trazem cuidados e nos fazem viver o cuidado existencial.

Terceiro: Cuidado é a vivência da relação entre a necessidade de sercuidado e a vontade e a predisposição de cuidar, criando um conjunto de apoios e proteções (holding) que torna posível esta relação indissociável, em nivel pessoal, social e com todos os seres viventes.

O cuidado-amoroso, o cuidado-preocupação e o cuidado-proteção-apoio são existenciais, vale dizer, dados objetivos da estrutura de nosso ser no tempo, no espaço e na história, como no-lo tem mostrado Winnicott. São prévios a qualquer outro ato e subjazem a tudo o que empreendermos. Por isso pertence à essência do humano.

Quarto: Cuidado-precaução e cuidado-prevenção constituem aquelas atitudes e comportamentos que devem ser evitados por causa das consequências danosas previsíveis (prevenção) e aquelas imprevisíveis pelo insegurança dos dados científicos e pela imprevisibilidade dos efeitos prejudicais ao sistema-vida e a sistema-Terra(precaução).

O cuidado-prevenção e precaução nascem de nossa missão de cuidadores de todo o ser. Somos seres éticos e responsáveis, quer dizer, nos damos conta das consequências benéficas ou maléficas de nossos atos, atitudes e comportamentos.

Como se deduz, o cuidado está ligado a questões vitais que podem significar a destruição de nosso futuro ou a manutenção de nossa vida sobre esse pequeno e belo planeta. Só vivendo radicalmente o cuidado garantiremos a sustentabilidade necessária à nossa Casa Comum e à nossa vida.

*Leonardo Boff é autor de O cuidado necessário a sair em julho de 2012 pela Editora Vozes.

(Texto publicado em leonardoboff.wordpress.com – no dia 18/05/2012)

28 de maio de 2012

Mês de Maria, Mãe do Redentor -Mãe de Deus


A tradição da Igreja se debruça sobre a história dessa mulher e a venera como mistério de fé. O culto àquela que a fé cristã chama de Nossa Senhora reside e se expressa, fundamentalmente, nos nomes com os quais a Igreja a aclama e cultua: Mãe de Deus, Virgem, Imaculada e Assunta aos Céus. Cada um destes títulos, revelando algo de Maria, tem o que dizer à mulher sobre sua identidade e sua missão.

Proclamar que Maria é Mãe de Deus significa trazer à luz toda a grandeza do mistério da mulher. Mistério de abertura, de fonte e proteção da vida. Em toda a Bíblia, desde o relato da Criação, a mulher está ligada à geração da vida: conhece as condições do seu lento germinar, de suas demoras, do paulatino desabrochar de sua fecundidade. Mãe de Jesus – o Filho de Deus e Deus mesmo – Maria com sua maternidade vive esta aliança com a vida até o seu ponto máximo e coloca a mulher no centro do mistério maior da fé cristã: o mistério da Encarnação.

No ventre da mulher Maria, onde é gerado o homem Jesus, o Deus vivo se encarna, toma carne humana, carne de homem e de mulher. E assim fazendo, consagra para sempre a condição humana como caminho para Deus e para a verdadeira vida e confirma a mulher como guardiã da esperança e da fé na vida, vencendo os sinais da morte e da esterilidade.

Venerar Maria como Virgem é também afirmar algo sobre a própria essência da mulher. A mulher é, fundamentalmente, aquela que Deus fez aberta, como espaço de liberdade para acolher, proteger, nutrir e abrigar o mistério: espaço disponível, virgem, pronto a hospedar todas as possibilidades, todos os horizontes, prestes a ser transpassada pela força do Altíssimo e impregnada pelo Verbo da Vida. Assim sendo, a mulher acena para aquilo que toda criatura humana é chamada a ser.

A virgindade de Maria abre perspectivas novas para a vocação de todo ser humano, chamado a ser tábua de carne disponível para as inscrições do Espírito Santo, espaço irrestrito e ilimitado onde o Espírito de Deus possa fazer maravilhas. Venerar Maria como Imaculada e cheia de graça significa dizer algo de suma importância sobre a mulher, incluindo sua corporeidade. A mulher, que o livro do Gênesis denunciava, em Eva, como causa do pecado original, colocando sobre todo o sexo feminino um fardo difícil de carregar, em Maria é proclamada bem-aventurada, imaculada, sem pecado.

Na pessoa de Maria de Nazaré, Deus fez a plenitude de suas maravilhas. É na carne e na pessoa de uma mulher que a humanidade pode ver, então, sua vocação e seu destino levados a bom termo, a criação chegada à sua meta.
Finalmente, crer e proclamar a Assunção de Maria aos céus em corpo e alma é trazer para a mulher um novo e promissor futuro.

O fato de pertencer ao depósito da fé, a afirmação de que uma mulher participa – integral e plenamente – da glória de Deus vivo, significa resgatar o corpo feminino de toda a humilhação que sobre ela fez pesar a civilização judaico-cristã. A Assunção de Maria restaura e reintegra essa corporeidade feminina no seio do mistério do próprio Deus.

A partir de Maria, a mulher tem a dignidade de sua condição reconhecida e assegurada pelo Criador dessa mesma corporeidade, definitivamente participante da glória do mistério trinitário.

(Texto extraído do Manual da Campanha da Fraternidade de 1990, com o tema “A Fraternidade e a Mulher”)

Orações:


1. Saudação à Mãe de Deus
Salve, ó Senhora santa, Rainha santíssima,
Mãe de Deus, ó Maria, que sois Virgem feita igreja,
eleita pelo santíssimo Pai celestial,
que vos consagrou por seu santíssimo
e dileto Filho e o Espírito Santo Paráclito!
Em vós residiu e reside toda a plenitude
da graça e todo o bem!
Salve, ó palácio do Senhor! Salve,
ó tabernáculo do Senhor!
Salve, ó morada do Senhor!
Salve, ó manto do Senhor!
Salve, ó serva do Senhor!
Salve, ó Mãe do Senhor,
e salve vós todas, ó santas virtudes
derramadas, pela graça e iluminação
do Espírito Santo,
nos corações dos fiéis
transformando-os de infiéis
em servos fiéis de Deus!

2. Oração a Nossa Senhora
1 – Ó Senhora, Mãe do belo amor e da santa esperança,
instruí-nos na prática das boas obras.
2 – Ao vosso patrocínio recorremos, não desprezeis
as nossas súplicas e amparai-nos em perigos.
3 – Afastai-nos, ó mãe, de todo contágio do mal,
para que irradiemos a vossa pureza.
4 – Sejamos generosos na doação e fervorosos na oração.
Rogai por nós, santa Mãe de Deus.

3. Saudação à Virgem
Ó Maria, Virgem Santíssima,
não há outra semelhante,
nascida neste mundo,
entre as mulheres;
filha e serva do Rei altíssimo,
o Pai celeste; mãe de Jesus Cristo Nosso Senhor;
esposa do Espírito Santo.

4.Salve Regina
Salve Regina, Mater misericordiae,
vita, dulcedo et spes nostra, salve.
Ad te clamamus, exsules, filii Hevae.
Ad te suspiramus, gementes et flentes,
in hac lacrimarum valle.
Eia ergo, advocata nostra,
illos tuos misericordes óculos ad nos converte.
Et Jesum, benedictum fructum ventris tui,
nobis post hoc exsilium ostende.
O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria.

5. Oração da Noite
Já chegou ao fim do dia,
a noite à terra desce;
nos passos de Maria
a alma humana cresce.
Senhora, Mãe do Céu,
salvai-nos da desgraça.
Os sonhos vãos se apagam
à luz de vossa graça.

Ao vir o fim do dia,
eis-nos já preparados:
no mesmo amor unidos,
a mesma graça ornados.

Estes vossos filhos
de Cristo os irmãos,
que tanto vos amam,
por serem cristãos.

Ó Rainha dos Santos,
guiai-nos pela mão,
para que nesta noite
nos venha a Salvação.

Felizes repousemos
do cansaço e da dor;
e amanhã levantemos
com renovado amor.

6. Magnificat
Minha alma glorifica ao Senhor
e meu espírito exulta de alegria
em Deus, meu Salvador,
porque Ele fixou os olhos na
humildade de sua serva.
De hoje em diante todas as
gerações me chamarão de
bem-aventurada,
porque grandes coisas fez em
mim o Todo-Poderoso.
Santo é seu nome.
E sua misericórdia se estende
de geração em geração sobre
todos os que o temem.
Manifestou o poder de seu
braço e dissipou
os soberbos de coração.
Derrubou do trono os
Poderosos, e elevou os humildes
Encheu de bens os famintos
e despediu de mãos vazias os ricos.
Trouxe a salvação a Israel
Seu servo lembrado de sua misericórdia.
Assim como prometera a nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência para sempre!

7. Oração de Maio

Por Frei Neylor Tonin, ofm

Senhor Deus, grande e bom, nós vos louvamos por Maria, nossa mãe, e por todas as mães e vos agradecemos porque deixastes no coração delas a batida do vosso próprio coração. Quando nos amam, sentimo-nos amados por vós que sois a fonte de todo amor. Gostaríamos tanto, Senhor Deus, que nossas mães fossem felizes, muito felizes. Oxalá nenhum filho magoe o coração de sua mãe, mas o beije agradecido e o proteja com todo o afeto. Até vós quisestes que Jesus tivesse uma mãe que o estreitasse nos braços. Prometemo-vos nunca abandonar nossas mães, porque sabemos que elas, como Maria, nunca nos abandonarão. Pedimos para elas a vossa bênção e a elas que nos abençoem. Amém.

24 de maio de 2012

O Espírito Santo na mística franciscana - Ensaio de uma leitura antropológica


Frei Celso Márcio Teixeira, OFM

Introdução

Bastante comum entre os que estudam São Francisco é a tendência de interpretar o pensamento dele segundo a mais avançada teologia ou segundo as mais recentes conquistas dos estudos exegéticos ou da teologia bíblica. Sem dúvida, Francisco teve intuições profundas na maneira de ler e interpretar a Sagrada Escritura, mas é necessária uma certa cautela nas afirmações sobre a “teologia” dele para não lhe colocar na cabeça o que ele não pensou nem tampouco elaborou. Encontramos em Francisco, fora de dúvida, pistas que coincidem com uma visão atualizada da teologia. Afirmar mais do que isto seria tirar uma conclusão maior do que as premissas nos permitem.

O mesmo vale para uma “leitura antropológica” de Francisco. Talvez nem se possa dizer que Francisco tivesse uma “antropologia”. De fato, ele não elaborou tratados de espécie alguma. Mais conforme com a verdade, no caso, seria dizer: “fragmentos de uma antropologia”. Embo¬ra ele não tenha elaborado uma antropologia, no entanto, em seus escritos transparecem muitos elementos que constituem a sua visão do homem. Nossa tarefa seria, então, ajuntar os fragmentos mais signifi¬cativos que comporiam a linha-mestra de sua “antropologia”.

Ao tentarmos fazer uma leitura antropológica, estamos conscientes de que isto significa uma riqueza e um limite ao mesmo tempo. Riqueza, porque é tentativa de uma visão diferente, de uma interpretação nova do texto de Francisco; limite, porque toda ótica é uma limitação do campo visivo da realidade. Uma leitura antropológica de um texto é sempre um ponto de vista, como também são diferentes pontos de vista a leitura teológica, a sociológica, a histórica, a filosófica, a psicológica, etc. Qualquer tentativa de leitura ou interpretação marca, portanto, um limite de seu campo visivo.

Limitado também será o nosso campo de análise. Fixar-nos-emos na expressão usada por São Francisco: o espírito do Senhor. Não procuraremos aí a “teologia” dele, mas tentaremos colher alguns elementos de sua “antropologia”. Descobriremos, no entanto, que esta é profundamente teológica, ou melhor, se move a partir de uma concepção teológica do homem.

Não pretendemos estender o estudo a toda a visão que Francisco tem do homem. Isto requereria um estudo mais exaustivo que analisasse a compreensão que ele tem de corpo, de mundo, da vida, de espaço, de tempo, etc. E isto foge do escopo singelo do presente estudo que é ater-nos à expressão “espírito do Senhor”.

Colocados estes prolegômenos, resta-nos colocar a pergunta, objeto deste estudo: O que significa para Francisco o espírito do Senhor? Que implicações tem o espírito do Senhor para a sua visão do homem?

1. Análise do termo “espírito”

Este termo, “espírito”, é usado para designar a terceira Pessoa da Santíssima Trindade, no nome Espírito Santo, para designar o espírito que, com o corpo, é elemento constitutivo do homem, e para designar os anjos e até mesmo os demônios. E há ainda a expressão, usada por Francisco, “espírito do Senhor” (1).

Como se pode constatar em um primeiro contato com o termo “espírito”, este não tem um sentido unívoco. Falar simplesmente “espírito” ainda não diz nada. É necessário colhê-lo no seu contexto ou pelo menos junto com o adjetivo que o qualifica.

Em algumas expressões em que é empregado o termo “espírito”, o significado é evidente. Quando Francisco fala de espírito imundo (2), não resta qualquer dúvida de que esteja falando do demônio, ainda mais que ele usa esta expressão, citando literalmente o Evangelho de Mateus (cf. Mt 12,43). Ao falar dos coros dos espíritos beatos (3), refere-se evidentemente aos coros dos anjos, pois o contexto mesmo, enumerando os serafins, os querubins etc., indica o sentido que tem o termo “espíritos”. E o nome “Espírito Santo” tem um sentido e conteúdo claros: trata-se da terceira Pessoa da Santíssima Trindade.

2. O que os autores dizem sobre o espírito do Senhor

Mas a expressão “espírito do Senhor” não tem a mesma clareza. O que significa “espírito do Senhor”? Qual sua importância no conjunto do pensamento de Francisco? Concordamos com K. Esser e E. Grau quando afirmam que a doutrina sobre o espírito do Senhor constitui o núcleo do pensamento de Francisco (4). É importante procurar aprofundar este aspecto, pois estamos diante de um pensamento, se não original, pelo menos muito característico de Francisco.

Quanto ao conteúdo da expressão “espírito do Senhor”, Francisco não é muito explícito; ele não explicou o que queria dizer com tal expressão. Resta, então, aos estudiosos a tarefa de tentar compreender e interpretar, tendo como moldura de fundo o conjunto dos Escritos de Francisco, o sentido desta expressão. E as interpretações dos autores divergem. Alguns, por exemplo, identificam o “espírito do Senhor” simplesmente com o Espírito Santo ou com a sua ação (5). A tendência de muitos autores, de fato, é identificar o “espírito do Senhor” com a terceira Pessoa da Santíssima Trindade. A nosso ver, esta identificação é indevida, não só por se tratar de uma interpretação teologizante, mas porque Francisco, quando quer referir-se à terceira Pessoa da Santíssima Trindade, a nomeia sempre como Espírito Santo. Por exemplo, no texto que segue:

“Santa Virgem Maria, não há mulher nascida no mundo semelhante a vós, filha e serva do altíssimo Rei e Pai celestial, Mãe de nosso santíssimo Senhor Jesus Cristo, esposa do Espírito Santo”(6).

Francisco não chama Maria de esposa do espírito do Senhor. Em nenhum momento dos Escritos de Francisco, o espírito do Senhor vem considerado como pessoa. E todas as vezes em que vem nomeado o Espírito Santo, ele é compreendido como pessoa, mais precisamente, a terceira Pessoa da Trindade.

Há autores que interpretam o “espírito do Senhor” preferivelmente “como o estado da fé e do amor, como o estado de graça que é fruto da salvação”(7). Há quem o interprete como o espírito de Cristo (8).

O. van Asseldonck, um dos que mais têm escrito sobre o tema, interpreta-o como o próprio espírito de Cristo, tendendo, porém, para uma interpretação mais “antropológica”: “Este espírito do Senhor é o Espírito do mesmo Cristo, Filho de Deus, que se comunica ao homem na medida em que segue as pegadas de Jesus pobre, humilde, crucificado e eucarístico. Refere-se ao mesmo e único Espírito que nós chamamos de espírito de oração e devoção, de pobreza, de penitência, obediência e caridade, em uma palavra: o espírito de toda a vida evangélica dos irmãos menores. Este é o Espírito desejável sobre todas as coisas, sendo como o espírito e a vida dos irmãos” (9).

Diante do que dizem os autores, a pergunta continua: o espírito do senhor é o Espírito Santo? É o espírito de pobreza, de oração, etc.? É o estado de amor e de fé? É o estado de graça?

3. O espírito e a semelhança de Deus

“Considera, ó homem, a que excelência te elevou o Senhor, criando-te e formando-te segundo o corpo à imagem do seu dileto Filho e, segundo o espírito, à sua própria semelhança. Entretanto, as criaturas todas que estão debaixo do céu, a seu modo, servem e conhecem e obedecem ao seu Criador melhor do que tu” (10).

Este texto é de fundamental importância para uma imagem que Francisco tem do homem. O homem foi criado por Deus e colocado em posição de excelência em relação às demais criaturas. A excelência consiste nisso: o homem é constituído de corpo e espírito; quanto à corporalidade, foi criado à imagem do Filho (11), quanto ao espírito, foi criado à semelhança de Deus.

O espírito é, por assim dizer, algo de Deus que há no homem. Quando Deus criou o homem, infundiu nele algo de seu, sua marca, seu selo: o espírito. A Bíblia fala que Deus soprou nas narinas do homem, feito de barro, e o homem se tornou um ser vivente (cf. Gn 2,7). O espírito é esse sopro de Deus que dá vida ao homem. O espírito ou o sopro de Deus torna-se no homem espírito encarnado, realidade humana, elemento constituinte do ser humano, juntamente com o corpo.

Ser espírito é o modo de ser de Deus. Por isso, é no espírito do homem que reside a semelhança de Deus (12). E esta semelhança é algo humano, pois faz parte constituinte do homem. Por assim dizer, o homem tem em si, como elemento constituinte, uma faísca do modo de ser de Deus. Esta figura não dista muito da usada por São Paulo: “O Senhor é espírito, e onde está o espírito do Senhor, aí há liberdade. Todos nós … refletimos como num espelho a glória do Senhor, e nós nos vemos transformados nesta mesma imagem, sempre mais resplandecente pela ação do espírito do Senhor” (2Cor 3,17-18).

As demais criaturas, pelo simples fato de existirem, já prestam seu louvor e glória a Deus: “a seu modo, servem, conhecem e obedecem ao Criador”. Ao homem, porém, não basta existir, não basta que tenha o espírito ou a semelhança de Deus como elemento constituinte de seu ser. O ser do homem, constituído também de espírito, implica uma tarefa: a de viver de acordo com o espírito que há nele, que é a marca e semelhança de Deus imanente nele. O ser do homem, portanto, exatamente por ser espírito, é um devir, um vir-a-ser, uma busca de tornar-se cada vez mais semelhante a Deus. Somente assim, ele estará ocupando seu lugar de excelência entre as demais criaturas. A busca de viver esta semelhança de Deus (o devir) será também o seu modo de render louvor e glória ao Criador.

O viver em vícios e pecados é o contrário da semelhança com Deus. Por isso, Francisco continua o texto da Admoestação da seguinte forma: “Não foram tampouco os espíritos malignos que o crucificaram, mas tu em aliança com eles o crucificaste e o crucificas ainda, quando te deleitas em vícios e pecados”(13).

Deleitar-se em vícios e pecados é ofuscar o brilho da semelhança de Deus, é encobrir a marca de Deus. Contrariamente, para Francisco, o viver em penitência (14) significa deixar brilhar sempre mais o espírito, a semelhança de Deus.

4. O espírito do Senhor e a vida de penitência

“E todos os homens e mulheres que assim agirem e perseverarem até o fim verão ‘repousar sobre si o espírito do Senhor’ (Is 11,2), e ele fará neles sua morada permanente (Jo 14,23), e eles serão filhos do Pai celestial (Mt 5,45), cujas obras fazem. E eles são esposos, irmãos e mães de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Mt 12,48-50). Somos esposos, quando a alma crente está unida a Jesus Cristo pelo Espírito Santo. Somos seus irmãos, quando fazemos a vontade de seu Pai, que está nos céus (Mt 12,50). Somos suas mães, se com amor e consciência pura e sincera o trazemos em nosso coração e nosso seio e o damos à luz por obras santas que sirvam de luminoso exemplo aos outros (cf. Mt 5,16)” (15).

Observe-se, neste texto, que o espírito do Senhor não é anterior, mas resultado do viver a penitência: à medida que os homens e mulheres vivem a penitência e nela perseveram, pouco a pouco vão ficando plenificados do espírito do Senhor: “verão repousar sobre si o espírito do Senhor”. Isto é, os que vivem segundo o espírito, segundo a semelhança de Deus que é imanente neles, verão desabrochar cada vez mais em si a semelhança de Deus. Surge, então, a pergunta: trata-se de um outro espírito ou é o mesmo espírito que é semelhança de Deus visto na análise do primeiro texto?

A nosso ver, trata-se do mesmo espírito (modo de ser de Deus ou semelhança de Deus presente no homem). Somente que, quando o homem procura viver segundo a semelhança de Deus, o espírito brilha mais intensamente nele, a semelhança de Deus se torna mais reflexo de Deus. O homem que vive segundo este modo de ser de Deus torna-se – o homem é um devir – “homo spiritualis” (16). Mas para que o homem permaneça “homo spiritualis” é necessário que o espírito do Senhor seja nele uma presença habitual. A presença habitual do espírito do Senhor no homem é dita por expressões como “o espírito repousa sobre ele (ou habita nele)”, “possuir o espírito do Senhor” ou “ser possuído pelo espírito do Senhor”.

Embora seja muito comum a interpretação que identifica o espírito do Senhor deste texto com o Espírito Santo, terceira Pessoa da Santíssima Trindade, julgamos que não seria o caso de estabelecer esta identificação. A nosso ver, possuir o espírito do Senhor, ou melhor, ser possuído pelo espírito do Senhor, é ter o mesmo modo de ser, de viver, de ver, de sentir, de querer, de pensar, de agir de Deus, na medida da frágil capacidade humana, certamente inspirada por Deus e sustentada por sua graça. Este modo de ser de Deus (ou o espírito do Senhor) torna-se realidade humana na pessoa. Para utilizar a linguagem da teologia da Idade Média, o espírito do Senhor no homem é uma “res creata”(17) (uma realidade criada).

Portanto, o espírito do Senhor não precisa ser interpretado simplesmente como o Espírito Santo. Além do mais, no texto citado, existe uma distinção entre o espírito do Senhor e o Espírito Santo. Ser possuído ou habitado pelo espírito do Senhor, esse modo de ser de Deus que se torna humano em nós, torna possível e estabelece o nosso relacionamento de filhos com o Pai celestial, de irmãos, esposos e mães de Jesus Cristo, com a ação específica do Espírito Santo. O espírito do Senhor, encarnado humanamente no nosso ser “homo spiritualis”, permite-nos viver como filhos do Pai celestial e familiares de Cristo, na união do Espírito Santo.

Possuir o espírito do Senhor (ou ser possuído ou habitado pelo espírito do Senhor) implica mais ainda: implica em fazer as obras (a vontade) do Pai, dar à luz a Cristo através de santa operação. Todo o viver do “homo spiritualis” é “viver espiritualmente”, e todas as suas atitudes são “espirituais”, porque ele possui habitualmente o “espírito do Senhor”. Portanto, o espírito do Senhor constitui não somente o ser do “homo spiritualis”, mas também o seu agir, o seu viver e o seu comportar-se.

5. O espírito do Senhor e o espírito da carne

“Por isso, vamos nós, irmãos todos, acautelar-nos de toda vanglória e soberba. Guardemo-nos da sabedoria deste mundo e da prudência da carne. Pois o espírito da carne tem grande interesse em fazer muito em palavras e pouco em obras, nem procura a piedade e santidade interior do espírito, mas antes visa e deseja uma piedade e santidade que apareça por fora diante dos homens. E é de tais que diz o Senhor: Em verdade vos digo que estes já receberam sua recompensa” (Mt 6,2). O espírito do Senhor, porém, exige que a nossa carne seja mortificada e desprezada, vil, abjeta e desprezível; e ele procura a humildade e a paciência e a pura, simples e verdadeira paz do espírito; e acima de tudo deseja sempre o temor de Deus, a sabedoria de Deus e o divino amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo”(18).

Para Francisco, na linha paulina de Rm 8,5-8, o espírito do Senhor em seu santo modo de operar, isto é, no seu agir, opõe-se ao “espírito da carne”. O presente texto em estudo apresenta esta oposição. Para uma melhor compreensão desta oposição, convém lançar um breve olhar sobre a expressão “espírito da carne”.

Os termos “carne” (“corpo”) e “mundo” (“século”) nos Escritos de São Francisco não indicam sempre a realidade visível e física. Indicam freqüentemente a realidade inimiga de Deus. Também no Evangelho de S. João se encontram os dois sentidos para estes termos. “Carne” e “mundo”, na segunda frase do texto, são empregados para indicar esta realidade contrária aos desígnios de Deus. E em outra passagem, porque são inimigos de Deus, Francisco os considera verdadeiros inimigos do homem:

“Reparai, ó cegos, iludidos por nossos inimigos – isto é, pela carne, pelo mundo e pelo demônio - que é agradável ao corpo praticar o pecado, e amargo servir a Deus”(19).

Embora indiquem a realidade inimiga de Deus e dos homens, “mundo” e “carne” não podem ser tomados como sinônimos. Expressões como “irmão carnal”, “viver carnalmente”, “caminhar carnalmente”(20) (Francisco, de fato, não usa nunca expressões como “irmão mundano” ou “viver, andar mundanamente”) fazem pensar que “carne” pretende sublinhar o aspecto pessoal da realidade inimiga de Deus, enquanto “mundo” significa a estrutura ou conjunto de circunstâncias exteriores que constituem a realidade inimiga de Deus. Esta distinção entre “mundo” e “carne”, por exemplo, se pode entrever no seguinte texto:

“Mas todos aqueles que não vivem em penitência … e servem corporalmente o mundo com desejos carnais … sao cegos…”(21).

A expressão “servir o mundo” sugere que “mundo” seja uma realidade exterior ao homem; “corporalmente” e “com desejos carnais” são expressões que indicam antes a atitude pessoal ou interior com que o homem serve o mundo inimigo de Deus.

Em outro lugar, Francisco considera o corpo (aí sinônimo de “carne”) como o inimigo mais próximo do homem:

“Há muitos que, pecando ou recebendo alguma injúria, costumam lançar a culpa sobre o inimigo ou sobre o próximo. Mas assim não é na realidade, porquanto cada um tem sob seu domínio o inimigo, isto é, o próprio corpo, por meio do qual ele peca”.

Francisco chama o operar o pecado ou o agir da carne (realidade inimiga de Deus) de “espírito da carne”. A partir do conceito de “espírito da carne”, ele concebe o “homo carnalis” (homem carnal). Sinteticamente, ele descreve em que consiste o “homo carnalis”:

“Mas todos aqueles que não vivem em espírito de penitência, nem recebem o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que praticam vícios e cometem pecados, e que vivem segundo suas más concupiscências e desejos perversos, e que não cumprem o que prometeram e com seu corpo servem corporalmente o mundo com desejos carnais, cuidados e solicitudes deste mundo, ludibriados pelo demônio, cujos filhos são e cujas obras praticam: cegos são eles, porque não são capazes de enxergar a verdadeira luz, Nosso Senhor Jesus Cristo” (23).

O “homo carnalis” é aquele que “pratica vícios e comete pecados”; é aquele que “serve o mundo com seus desejos carnais”; este é chamado filho do demônio, porque faz as obras do demônio. O “homo carnalis” age e vive “carnaliter” (24). Ao praticar vícios e cometer pecados, o homem carnal encarna, no seu agir, o modo de agir do “espírito da carne”; assume as características do espírito da carne. O pecado, portanto, vem de dentro dele, não de fora: todos os vícios e pecados procedem do coração do homem (Mt 15,19) (25). É ele próprio o responsável pelo seu pecado e não um inimigo exterior. O “homo carnalis” está, deste modo, em irreconciliável oposição ao “homo spiritualis”.

A oposição entre “homo spiritualis” e “homo carnalis”, no entanto, não pode ser interpretada no sentido maniqueístico. Francisco, quando descreve o “homo spiritualis” e o “homo carnalis”, não tem a pretensão de dividir maniqueisticamente o mundo em homens espirituais de uma parte e homens carnais de outra parte. Para Francisco, cada homem é “homo spiritualis” e “homo carnalis”; é “homo spiritualis”, à medida que age e vive como filho de Deus, realizando as obras e a vontade do Pai; é “homo carnalis”, à medida que age e vive como filho do demônio, praticando vícios e pecados e realizando as obras do demônio.

Portanto, é no próprio homem que se concretiza a oposição “homo spiritualis” – “homo carnalis”; é no próprio interior do homem que se dá a oposição entre o espírito do Senhor e o espírito da carne como dois modos contraditórios de ser (26) (ser filho de Deus ou filho do demônio) e de agir (realizar as obras do Pai ou realizar as obras do demônio).

É digno de nota o fato que Francisco estabeleça uma conexão entre o agir e o ser. Fazer as obras do Pai é a manifestação concreta do ser filho do Pai; fazer as obras do demônio é a manifestação concreta do ser ou tornar-se filho do demônio.

No texto em estudo, ao “espírito da carne”, que opera o pecado, Francisco opõe a operação ou o modo de agir do “espírito do Senhor”. O texto mostra como se processa a operação do “espírito do Senhor”. A primeira operação é a de vencer o “espírito da carne”: “O espírito do Senhor quer que a carne seja mortificada e desprezada, vil e desprezível”. Depois que é vencido o “espírito da carne”, o “espírito do Senhor” torna o homem capaz de desejar as virtudes (humildade, paciência, etc.), que têm como ponto culminante o relacionamento de temor, de sabedoria e de amor para com a Trindade: “e acima de tudo deseja sempre o temor de Deus, a sabedoria de Deus e o divino amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.

6. O Espírito do Senhor e seu santo modo de operar

“Entretanto, admoesto e exorto em Jesus Cristo, Nosso Senhor, que os irmãos se preservem de toda soberba, vanglória, inveja, avareza, cuidado e solicitude deste mundo, detração e murmuração; e os que não têm estudos não os procurem adquirir, mas cuidem que, antes de tudo, devem desejar o espírito do Senhor e seu santo modo de operar: rezar sempre a Deus com coração puro; ser humilde e paciente nas perseguições e enfermidades; amar aqueles que nos perseguem, censuram e atacam” (27).

Esta admoestação contém duas partes distintas: a primeira, iniciada por “os irmãos se preservem”, descreve com toda clareza, mesmo se Francisco não o nomeie, o “espírito da carne” com as suas operações: soberba, vanglória, inveja, avareza, etc.; a segunda parte, iniciada por “cuidem que”, descreve o “espírito do Senhor” com as suas operações: rezar ao Senhor, ter humildade, paciência, etc.

Mas o que é importante neste texto não é tanto conhecer a lista das operações do “espírito do Senhor”, mas compreender o que quer significar ou sugerir a expressão “espírito do Senhor e seu santo modo de operar”.

A idéia de “operação” ligada ao “espírito do Senhor” não é casual, mas constitui o sentido mesmo da concepção do modo de agir do “espírito do Senhor”. O homem, possuído pelo espírito do Senhor, age segundo a maneira de agir de Deus. E este agir está sempre orientado para o bem. Trata-se de um agir que é fazer a obra do Pai celestial, conforme o segundo texto analisado neste estudo. É este espírito do Senhor, que se torna humano no homem, que permite a este fazer a obra do Pai.

Este modo de operar do “espírito do Senhor” não é, porém, uma vaga inspiração a alguma obra boa ou a um indefinido sentimento em direção ao bem; não se identifica também com um conceito abstrato de graça. O “espírito do Senhor” é presença habitual no homem do modo de ser, de pensar, de querer e de agir de Deus, presença que o identifica como filho do Pai celeste e como esposo, irmão e mãe de Jesus Cristo na união do Espírito Sant0 (28). Possuindo o “espírito do Senhor”, o homem, identificado como filho do Pai celeste, realiza também as obras do Pai; identificado como irmão de Cristo, como Cristo busca em tudo fazer a vontade do Pai celeste; e com a ação específica do Espírito Santo que une a alma fiel a Jesus Cristo, o homem que possui o “espírito do Senhor” se dispõe à “sancta operatio” (santo modo de operar), isto é, procura, como mãe de Cristo, trazer Cristo em sua vida e dá-lo à luz através de santo modo de operar (29).

Segundo nossa interpretação, encontram plena explicação na operação do “espírito do Senhor” as expressões “frater spiritualis” (irmão espiritual), “spiritualiter conversari” (conviver espiritualmente), “spiritualiter ambulare” (caminhar espiritualmente) e semelhantes (30). Quem possui o “espírito do Senhor” vai vencendo pouco a pouco o “espírito da carne” até tornar-se uma criatura nova, um “homo spiritualis”; quem possui o “espírito do Senhor” sente-se impulsionado a “viver (caminhar) espiritualmente”. Se este homem é um frade menor, o “espírito do Senhor” fará dele um irmão espiritual (“frater spiritualis”) capaz de amar os irmãos com amor maior do que o amor maternp (31) e de viver espiritualmente a vida religiosa (“spiritualiter conversari”) e de tratar os outros espiritualmente (“spiritualiter monere, spiritualiter honorare”, etc.).

Portanto, o agir do homem é santo modo de operar à medida que encarna o modo de agir do espírito do Senhor; assim, o santo modo de operar, que é uma característica do espírito do Senhor, se torna característica habitual do agir do homem espiritual.

7. Como se reconhece o espírito do Senhor

“Eis o meio de reconhecer se o servo de Deus tem o espírito do Senhor. Se Deus por meio dele operar algum bem, e sua carne não se exaltar por causa disso, pois a carne é sempre contrária a todo bem, mas antes considerar como mais insignificante e se julgar menor que todos os outros homens”(32).

Constata-se, no supracitado texto da décima segunda Admoestação, que o “espírito do Senhor” está ligado à idéia de reconhecimento de Deus como aquele que opera o bem. Para Francisco, é fundamental a imagem de Deus como origem e autor de todo bem. A oração e exortação ao louvor ao Deus Sumo Bem, que se encontra na Regra Não-bulada, afirma-o de maneira cristalina:

“Atribuamos ao Senhor Deus altíssimo todos os bens; reconheçamos que todos os bens são dele; demos-lhe graças por tudo, pois dele procedem todos os bens. E ele, o altíssimo e soberano, o único e verdadeiro Deus, os possua. E a ele se dêem, e ele receba toda honra e reverência, todo louvor e exaltação, toda ação de graças e toda a glória, ele de quem é todo o bem, e que só ele é bom”.

Citando o texto de Mt 19,17 (“só Deus é bom”), Francisco atribui a Deus a exclusividade no bem. Todos os bens são de Deus, procedem de Deus, têm Deus como autor. Esta exclusividade no bem se compara à exclusividade no amor que São João atribui a Deus. Para São João, Deus é amor, e onde há amor, Deus aí está. Para Francisco, Deus é o Sumo Bem, e onde há o bem, Deus aí está como origem e como autor.

Num trecho da mesma Regra Não-bulada, Francisco parece, à primeira vista, ter uma visão extremamente negativa do homem e negar-lhe qualquer possibilidade de fazer o bem. Seria esta uma maneira de expressar a exclusividade de Deus como origem e autor de todo bem? É necessária uma análise do texto antes de tirar esta conclusão. O texto é o que segue:

“E odiemos o nosso corpo com os seus vícios e pecados, porque, vivendo carnalmente, quer privar-nos assim do amor de Nosso Senhor Jesus Cristo e da vida eterna e consigo arrastar a todos para o inferno. Pois por nossa culpa somos asquerosos, míseros, e contrários ao bem, mas dispostos e prontos para o mal“(33).

Estaria o homem impedido de fazer o bem? Seria o homem, para Francisco, realmente um ser contrário ao bem?

As expressões “corpo com seus vícios e pecados” e “vivendo carnalmente” mostram, sem qualquer resquício de dúvida, que Francisco está pensando no espírito da carne. E o espírito da carne é esta realidade antagônica no homem que o induz ao pecado, que o conduz na direção oposta ao espírito do Senhor. O homem só é contrário ao bem, quando se deixa arrastar pelo espírito da carne. Não é contrário ao bem por impossibilidade de praticá-lo, mas é por própria culpa que o homem se torna contrário ao bem. Se fosse uma impossibilidade, não teriam qualquer sentido as inúmeras exortações aos frades e aos fiéis para fazerem o bem e para realizarem as obras do Pai celeste.

Voltando ao texto da décima segunda Admoestação, para Francisco, o espírito da carne é cheio de contradições. Este é contrário a todo o bem; e mesmo assim, procura gloriar-se pelo bem que não lhe pertence. Quem vive segundo o espírito da carne faz, desta maneira, uma indébita apropriação do bem que pertence a Deus.

Ao invés, quem possui o espírito do Senhor não se exalta, não atribui a si próprio ou ao seu próprio eu (34) o bem que Deus opera através dele, não se apropria do bem do Senhor, mas é humilde, reconhecendo-se desprezível e o menor dentre todos.

8. O espírito do Senhor e a possibilidade humana de fazer o bem

“Por isso, é o espírito do Senhor, que habita nos fiéis, que recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor (cf. Jo 6,62). Todos aqueles que não participam do mesmo espírito e ousam recebê-lo, comem e bebem a sua condenação (1Cor 11,29)” (35).

Ao afirmar que é o espírito do Senhor que recebe o corpo e sangue do Cristo na eucaristia, Francisco, muito provavelmente, tem como substrato o texto da Carta de São Paulo aos Romanos: “o espírito intercede por nós com gemidos inefáveis” (8,26). Exatamente no mesmo capítulo, nos versículos 5-8, São Paulo mostra a oposição existente entre viver segundo a carne e viver segundo o espírito (36). Para ele, o viver segundo a carne é espírito de escravidão, enquanto o viver segundo o espírito é espírito de adoção: “Pois não recebestes um espírito de escravidão, para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Aba, Pai!” (Rm 8,15).

Francisco se move neste mesmo campo de idéias, ou seja, no campo da oposição entre o espírito da carne e o espírito do Senhor. Receber indignamente o corpo e sangue de Cristo significa uma obra do espírito da carne. Recebê-los dignamente significa o espírito do Senhor.

Entender o espírito do Senhor como uma realidade que não seja o próprio homem, por exemplo o Espírito Santo, implicaria num dualismo que não se encontra em Francisco. O dualismo consistiria nisso: não seria o homem a receber a eucaristia, mas o Espírito Santo; o homem receberia a condenação. Segundo este dualismo, o homem estaria impossibilitado de fazer o bem. Mas como Francisco não quer culpar o inimigo externo pelo pecado do homem, igualmente não quererá privar o homem da honra de receber a visita do Senhor na eucaristia. Outras exortações, na verdade, mostram que Francisco quer que os fiéisrecebam o corpo e sangue de Cristo, como se percebe no texto seguinte:

“E recebamos … o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quem não comer a sua carne e não beber o seu sangue (cf. Jo 6,55.57) não pode entrar no reino de Deus (Jo 3,5). No entanto, que se coma e se beba dignamente, pois quem o recebe indignamente, come e bebe sua própria condenação”(37).

Este texto, tendo o homem como sujeito do verbo “receber”, mostra com toda a clareza que é o homem quem recebe o sacramento da eucaristia. Isto nos leva à conclusão de que, para Francisco, quando ele afirma que é o espírito do Senhor que recebe a eucaristia, ele pensa no homem que vive segundo o espírito do Senhor e não segundo o espírito da carne. O espírito do Senhor é a própria possibilidade que o homem tem de praticar o bem.

Conclusão

A leitura dos textos de Francisco que tratam do espírito do Senhor permitem que apontemos algumas breves conclusões. São conclusões simples, nada grandiosas; apenas, de alguma maneira, diferentes, porque consideradas sob uma ótica diferente.

Todos os textos examinados são passíveis de uma interpretação mais antropológica do que teológica. Esta afirmação não pretende jamais desmerecer nem diminuir a interpretação teológica; apenas, ao conceber o espírito do Senhor como uma realidade humana, coloca em relevo a excelência dada a essa realidade humana acima das demais criaturas, pois vê nela a imagem do Filho e a semelhança do próprio Deus.

O espírito do Senhor é compreendido como o modo de ser, de pensar, de querer, de sentir, de agir, de viver de Deus ou segundo Deus. Este modo de ser, de pensar, de agir, etc. torna-se realidade humana, encarnada na pessoa, e deve ser compreendido como um devir ou vir-a-ser, pois inclui uma tarefa, a de tornar-se sempre mais semelhança de Deus, reflexo da glória do Pai.

A vida de penitência tem como finalidade adquirir, ou melhor, ser possuído pelo espírito do Senhor, o que levará as pessoas a terem em mais plenitude a semelhança de Deus, a serem filhos do Pai celeste, irmãos, esposos e mães de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a especial ação do Espírito Santo.

Quem é possuído pelo espírito do Senhor torna-se homem espiritual. A presença habitual do espírito do Senhor permite aos fiéis viverem espiritualmente, agirem sempre espiritualmente, conviverem espiritualmente. O homem só pode fazer o bem, possuindo o espírito do Senhor. O espírito do Senhor é concebido, portanto, como a possibilidade humana de alguém praticar o bem.

Ao espírito do Senhor, que visa sempre ao bem, opõe-se o espírito da carne que procura e deseja praticar os vícios e cometer pecados. O homem possuído pelo espírito da carne é o homem carnal, torna-se filho do demônio.

Por isso, nosso Pai São Francisco está constantemente exortando¬nos a “desejar possuir acima de tudo o espírito do Senhor e seu santo modo de operar”.

20 de maio de 2012

ASCENSÃO DO SENHOR -O movimento de Jesus Ressuscitado de subir para a casa do Pai e permanecer na comunidade de fé – a Igreja




ASCENSÃO DO SENHOR (20 de maio)
Dia mundial das comunicações

Por Frei Jacir de Freitas Faria, OFM (*)

I. INTRODUÇÃO GERAL

Celebramos hoje a ascensão de Jesus. Ascensão tem a ver com a ressurreição e tempo da igreja. Jesus volta para a casa do Pai, a morada eterna, onde todos nós esperamos estar, após nossa morte. Jesus viveu no meio de nós como um ser humano e agora volta para Deus. Somos privados de sua presença física e chamados a eternizá-lo na vida da igreja, representada, primeiramente, pela comunidade de Jerusalém. Ao mesmo tempo, nos tornamos participantes da divindade do mestre Jesus de Nazaré. O sentido último de nossa vida é Deus, autor e doador da vida plena. O humano Jesus leva consigo a natureza humana para a glória de Deus. Jesus ressuscitado permanece no meio de nós, na vida de fé da comunidade e no anúncio do reino.

II. COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (At 1,1-11): Ascensão: Jesus não foi embora, Ele está vivo em Jerusalém, a igreja

A primeira leitura de hoje, tirada de Atos dos Apóstolos, tem sua ligação com o evangelho de Lucas, duas obras que se entrelaçam, pois elas teriam saído da pena do mesmo escritor ou comunidade. O evangelho não termina, mas continua com a ação da comunidade de Jerusalém, Antioquia, Samaria, etc. Na introdução de toda a obra, Lucas se propõe a escrever uma narração ordenada dos fatos que se cumpririam entre eles. Ele dedica a sua obra a Teófilo (Lc 1,1-4) – nome grego que significa o amigo de Deus. No fim do Evangelho, Jesus promete o Espírito Santo e convoca os seus seguidores a permanecerem em Jerusalém para a realização das promessas (Lc 24, 49). Já no início de Atos, a nossa leitura de hoje, os discípulos perguntam a Jesus: “é agora que vais restabelecer o Reino de Israel?” (At 1,6). Jesus responde, dizendo que eles não devem se preocupar com a data, pois essa compete ao Pai (At 1,7). O Espírito Santo continuará a realização do prometido (1, 8a), o qual não é a restauração de Israel, mas o ser sua testemunha em Jerusalém, Judeia, Samaria e confins do mundo (At 1,8b).

Um acréscimo ao Evangelho de Lucas (24,50-53) narra a ascensão de Jesus e a volta dos discípulos para Jerusalém. Outro acréscimo em Atos resume o evangelho (1,1-2) e experiências da comunidade com Jesus ressuscitado (1,3-5).

A ascensão em At 1,9-11 é narrada para mostrar que Jesus não foi embora, mas continua vivo entre e dentro de cada apóstolo (a) que testemunha o ressuscitado. Jesus não foi embora. Só assim podemos falar teológica e historicamente de “Igrejas” de Jerusalém. Tivemos, na origem, como resultado da ação do Espírito Santo, vários núcleos do seguimento de Jesus, embora Lucas tenha, em Atos, idealizado e privilegiado a comunidade de Jerusalém.

A ascensão somente tem sentido a partir de sua relação estreita com a comunidade de Jerusalém, que passará a ser o símbolo da igreja, que se expandirá, na sequência, para os estados da Judeia, Samaria e Galileia e daí, para os confins do mundo, isto é, o centro do mundo daquele então, Roma.

Segundo o relato de Atos, depois da ascensão, os discípulos e discípulas de Jesus voltam do monte das Oliveiras para Jerusalém. O livro dos Atos dos Apóstolos usa dois termos para falar da cidade de Jerusalém: o nome bíblico e sagrado Jerusalém (36 vezes) e o nome grego como designação geográfica Jerosolyma (23 vezes). At 1,12 fala de voltar para Jerusalém, o que significa, então, voltar para o lugar sagrado do judaísmo, para o lugar da missão, da salvação. É como um católico dizer: “vou a Aparecida do Norte”. Na cabeça de quem escreve Atos estaria, com certeza, o sonho da nova Jerusalém, pois a Jerusalém cidade já tinha sido destruída pelos romanos, quando Atos foi escrito.

A comunidade de Jerusalém é judaica de origem e, por isso, fiel observante da Torá (lei, conduta, caminho, modo de vida baseada no Decálogo); ela celebra a eucaristia como memória do martírio redentor e profético de Jesus (At 2,42-46); partilha os bens (At 2,44-45), como expressão de uma espiritualidade comprometida com a justiça; está em conflito com as autoridades locais (At 3,114,22); está centrada e unida em torno aos doze apóstolos (At 2,42; 4,23-31); tem conflitos (At 5, 1-11); opera prodígios e milagres (At 3,1-10).

Nessas características encontramos o rosto, às vezes, idealizado da comunidade de Jerusalém. Esse modo de viver a fé na comunidade de Jerusalém foi o jeito que os primeiros cristãos encontraram para exprimir a utopia do Reino de Deus anunciado e vivido por Jesus na sua integralidade e com a sua ascensão. A ascensão de Jesus no monte das Oliveiras teria sido a sua glorificação e a certeza da sua presença definitiva na comunidade de Jerusalém de forma histórica (presente), escatológica (futuro) e pneumática (plena do Espírito Santo). Tendo Jerusalém como referência e origem da comunidade judaico-cristã, os discípulos devem partir em missão até os confins do mundo, anunciando que Jesus ressuscitou e não morreu. Este foi o grande segredo do cristianismo, caso contrário, teria se perdido, como tantas religiões do mundo antigo.

2. Evangelho (Mc 16,15-20): Ascensão: atitudes que nos põem no caminho do anúncio da Boa Notícia: Jesus ressuscitou

O evangelho de hoje nos mostra o movimento de Jesus ressuscitado, aparecendo aos onze discípulos, enquanto comiam, e o seu desaparecimento em forma de ascensão, após os instruírem na evangelização. O trecho é considerado um acréscimo ao evangelho. Jesus foi levado ao céu e sentou-se à direita de Deus. Sentar-se numa cadeira é sinal de poder. Daí que um professor torna-se catedrático. O bispo tem a sua catedral e profere sua homilia, normalmente, sentado. O poder de Jesus é transferido aos discípulos, os quais devem se colocar de pé e sair mundo afora, anunciando a sua ressurreição em movimento de ascensão, de subida, assim como um elevador, que em outras línguas latinas mantém a raiz de ascensão: ascensore, em italiano; ascensor, em espanhol.

A ação de ascensão, isto é, de movimento de permanência de Jesus, consiste em sete atitudes: 1) anunciar a Boa Nova para toda a humanidade; 2) batizar; 3) salvar; 4) condenar; 5) expulsar demônios em nome de Jesus; 6) falar novas línguas; 7) impor as mãos para curar doentes. Essas atitudes vêm acompanhadas da certeza de que nem serpentes e venenos serão causas de morte para os discípulos. Anunciar, crer e salvar se interagem num crescente na ação ascensional dos discípulos. É a nova língua, não se trata de um novo idioma, mas de um modo de comunicar a libertação, a vida nova do reino. Trata-se da linguagem da evangelização, não obstante as tantas línguas (idiomas) presentes. Quem caminha visando ao alto, isto é, às coisas do reino, vai se deparar com venenos e serpentes, e deles não deverá ter medo. Assim como Jesus venceu a morte, os seus discípulos serão amparados pela vida que não morre mais, a de Jesus ressuscitado, quem os acompanharia por todo o sempre. Amém!

3. II leitura (Ef 1,17-23): Ascensão: Igreja e Reino se identificam no movimento de fé e constante conversão da comunidade

Paulo ficou sabendo que a comunidade de Efésios estava sendo fiel a Deus na fé, no testemunho e na resistência às adversidades da evangelização. Na perspectiva da ascensão, Paulo reconhece que “Deus colocou tudo debaixo dos pés de Cristo e o colocou acima de todas as coisas, como cabeça da Igreja, a qual é o corpo, a plenitude daquele que plenifica tudo em todas as coisas” (v. 23). A teologia paulina reforça a caminhada da igreja, sinal do reino em movimento de conversão contínua e testemunho de fé em Jesus ressuscitado.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Levar a comunidade a perceber que ascensão é um movimento de ação transformadora do mundo a partir de nossa fé em Jesus ressuscitado e na ação libertadora da igreja.

Viver a ascensão significa não ficar olhando para o alto, esperando Jesus partir, mas colocar-se a caminho, no anúncio do reino, na evangelização. É tornar-se um bem-aventurado.

Evangelizar é falar a mesma linguagem, o mesmo modo de conceber o reino, e não a mesma língua (idioma). É expulsar demônios e não ter medo de serpentes e venenos, que nos impedem de caminhar.

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM é Padre franciscano, escritor, mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico, de Roma, especialista em evangelhos apócrifos, professor de exegese bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA, em Belo Horizonte e em cursos de Teologia para leigos. Autor de uma centena de artigos. Autor e coautor de quinze livros, sendo o último: Infância apócrifa do menino Jesus. Histórias de ternura e travessura. Petrópolis: Vozes, 2010. Diretor Geral e Pedagógico dos Colégios Santo Antônio e Frei Orlando, ambos em Belo Horizonte.
Veja mais: www.bibliaeapocrifos.com.br

18 de maio de 2012

REFLEXÃO : "Mansidão"


“Tenhamos um coração manso, e um olhar corajoso para mirar o futuro com esperança".

Mansidão é uma das bem-aventuranças que Jesus nos apresenta. A mansidão não significa descompromisso ou aceitação da situação sem atitude, sem posicionamento, descompromissada. Mansidão é a capacidade de acolher a realidade, as pessoas e a própria vida no sentido de encontrar saídas, sem julgar, sem agredir, sem desesperançar. A mansidão é uma virtude de pessoas fortes que foram formadas na escola do amor.

Quem cultiva a mansidão consegue ter uma visão positiva do futuro, pois constrói relacionamentos fundamentados na bondade e na compaixão. A mansidão retira do coração o ódio, a amargura e o ressentimento. A mansidão fortalece nossa busca e anima nossa caminhada na prática e vivência amorosa do Evangelho que deve ser nossa forma de vida…

Tenha um abençoado e repousante fim de semana.

Frei Paulo Sérgio, ofm ( http://www.franciscanos.org.br/n/)


16 de maio de 2012

Francisco se encontra com o crucificado


Francisco, o homem de Assis, foi tocado pelo mistério de Deus e pelo esplendor de Cristo despojado e pobre. Sentiu-se chamado a um seguimento intenso do Senhor Jesus. Nada estava claro no começo do apelo divino. Aos poucos, Francisco foi discernindo a vontade de Deus a seu respeito. Houve um encontro particularmente importante em sua vida. Este se deu na igrejinha de São Damião. Francisco teve nitidíssima certeza de que o Crucifixo bizantino daquela capela lhe dizia alguma: “Francisco vai e repara a minha igreja que, como vês está em ruínas”. Será que a vocação de Francisco poderia ser descrita como a de um pedreiro que reconstruiria as igrejinhas em ruína? Ou se deveria pensar maior?



1. Nós, franciscanos, temos um carinho todo especial por uma capelinha consagrada a São Damião que ficava fora dos muros da antiga cidade de Assis. Muitos acontecimentos queridos de nossa história franciscana ali se deram. O mais importante de todos, sem dúvida, foi que ali viveram Clara e suas irmãs uma aventura espiritual esplendorosa. Falar em São Damião, para a alma franciscana, é deixar que o coração fale e se deliciar com tudo aquilo que ali se passou. Nessa capelinha, em ruínas, dedicada a São Damião, companheiro de São Cosme, havia um crucifixo bizantino dos olhos negros e profundos que hoje se encontra proto-mosteiro de Santa Clara, dentro dos muros da cidade. A capela, com efeito, estava em ruínas. Francisco, neste momento, já estava vivendo uma transformação. Passa a usar uma roupa diferente. Vai discernindo a vontade de Deus. Os biógrafos assim descrevem o episódio que se passou na igrejinha de São Damião. “Transcorridos poucos dias, estando ele a andar nas proximidades da igreja de São Damião foi-lhe dito em espírito que entrasse na mesma para a oração. Entrou nela e começou a rezar com fervor diante de uma imagem do Crucificado que piedosa e benignamente lhe falou, dizendo: ‘Francisco não vês que minha casa está destruída? Vai, portanto, e restaura para mim’. Tremendo e admirando-se, ele diz: “Vou fazê-lo de boa vontade, Senhor”. Ele entendeu que lhe fora dito daquela igreja que por causa de sua extrema antiguidade, ameaçava uma ruína próxima. Por causa desta palavra que lhe fora dita, ficou repleto de tanto júbilo e iluminado de tanta luz que na sua alma sentiu verdadeiramente que fora o Crucificado quem lhe falara” (Três Companheiros 13, 6-10).

2. Francisco estava nos arredores e entra na capelinha. De fato, estava em ruínas. Havia poeira, falta de limpeza. Lá no fundo o Crucificado com seu olhar sereno e negro e Francisco alguém que estava buscando clarear o seu caminho. O Poverello é um ser em trabalhos de parto para saber o que Deus quer efetivamente dele. A oração que Francisco faz só pode ser essa: “Iluminai as trevas de minha alma, dai-me um fé íntegra uma esperança firme e uma caridade perfeita para que eu possa conhecer a vossa vontade”. Francisco deve, pois, ter se sentado no chão e passou a contemplar aquela imagem de Cristo diferente de outras. Era um Cristo cheio de paz, como que descansando, de pé, na cruz, aqueles olhos profundos e perto da coxa um galinho que lembrava o galo que cantou três vezes por ocasião da negação de Pedro. Francisco, por um tempo, mergulha na oração. Há essa mensagem que lhe chega: “Francisco, vai e restaura a minha igreja que, como tu vês, está caindo as pedaços”.

3. Durante um tempo, Francisco leva vida de pedreiro. Pede ajuda. Sobe a um muro e diz que um dia, no futuro, naquele lugar, haveriam de morar mulheres santas que honrariam a Igreja. Fazia ele a profecia da instalação naqueles espaços, mais tarde, de Clara e de suas irmãs, das irmãs pobres de São Damião. Francisco leva vida de pedreiro e apressa-se em dar ao padre do lugar uma igrejinha, refeita e bonita.

4. Quando vemos Francisco ali, aos pés do belo Crucificado, vemos o amante procurando o amado. O homem buscando o Cristo, nessa vontade de comunhão, de agradecimento sem limites pela cruz, pela morte de cruz, pelo dom. Francisco amará o Senhor do presépio simples e chegando à cruz despojada, passando pela Eucaristia tão rica de simplicidade. Francisco vai crescendo no amor desse Cristo que vai ocupar todo o espaço de seu coração, de sua vida, de suas preocupações. Pe. Fernando Felix Lopes escreve a respeito dos expedientes de Francisco para conseguir pedras para a restauração de São Damião. “Foi-se, pois, à cidade e pelas praças e ruas e começou a cantar os louvores de Deus, ébrio que andava do espírito do Senhor. E, ao fim, lembrava a pequenina igreja de São Damião precisada de restauro, e rematava a cantilena devota com o estribilho: “Quem me der uma pedra, terá uma recompensa; quem me der duas, duas terá também; e quem me der três, outras tantas recompensas há de ter”. E em palavras singelas desfiava o seu pedido. Ser simples e escolher a Deus, em todas as circunstâncias se apresentaria simples. Houve ainda quem dele se mofasse e o tratasse de doido; mas outros ao pensar na vida em que fora criado com tantos mimos e luxos, enterneciam-se até às lágrimas, ao vê-lo assim feito pobre em tanta embriaguez de amor divino” ( O Poverello, p.65).

5. Aos poucos, Francisco e seus primeiros irmãos compreenderam, com toda humildade, sem soberba, que se tratava de reformar a grande Igreja, que andava meio abandonada. O clero não tinha muita instrução. Os fiéis andavam meio desorientados. Faltava-lhe a força do Evangelho, a seiva do Evangelho. Surgiam aqui e ali movimentos evangélicos de cunho penitencial e sentia-se a esposa de Cristo, a Igreja, se vestia de roupas novas. Francisco e os seus foram compreendendo que não se tratava de serem pedreiros, mas reconstrutores da grande Igreja por meio de uma vida evangélica, profundamente fraterna, ocupando-se dos mais abandonados… Mas isso vem mais tarde. Agora, nesse momento preciso tratava-se de restaurar esta igreja e ainda outras, como seria o caso da Porciúncula. Por enquanto, eles podiam tentar absorver o espírito das bem-aventuranças, viver sem complicação, pessoas que não se consideram superioras aos outros. Os franciscanos sabem disto: levando a sério sua opção ajudam a construir uma Igreja forte. Foi esse o pedido do Crucifixo de São Damião a Francisco e aos que desejam ser irmãos de Francisco.

Para continuar a reflexão

2Celano 10 : O Crucificado fala a Francisco

Para reflexão em grupo

1. O que mais chama sua atenção nesse texto de estudo?

2. O que significa restaurar a Igreja hoje?

Frei Almir Ribeiro Guimarães

14 de maio de 2012

REFLEXÃO : "O Amor"

“Bem lá no fundo você sabe que só existe uma única mágica, um único poder, uma única salvação, e que ela se chama amor.”
Hermann Hesse

Nada é pequeno no amor. Quem espera somente as grandes ocasiões para demonstrar a sua ternura não sabe amar. O amor é algo vivencial e deve ser demonstrado no cotidiano da vida. O amor cria raízes na cordialidade, na sensibilidade, na cortesia, no sorriso, na acolhida… Jesus apresenta o verdadeiro amor no serviço, no lava-pés, na doação da vida…

Amar é algo que se aprende na relação intensa com a mãe desde a gestação e se afirma na maturidade. Amamos quando desejamos o bem às pessoas, quando somos capazes de orar até por aqueles que nos perseguem… Amar é acreditar na vida e na capacidade de evolução das pessoas. Quem ama não se prende aos erros das pessoas, mas potencializa os erros para seu próprio crescimento…

Que Deus te conceda uma semana amorosa e repleta de bênçãos.

Frei Paulo Sérgio


13 de maio de 2012

Teologia do amor de Deus no Dia das mães!




5º DOMINGO DA PÁSCOA (13 de maio)

Por Frei Jacir de Freitas Faria, OFM (*)

I. INTRODUÇÃO GERAL

Hoje, dia das mães, é dia de falar do amor; amor de Deus e amor de mãe. As leituras de hoje nos oferecem pistas para a vivência do amor fraterno, divino, maternal e solidário. O amor existe somente em função do outro. Pedro, judeu e seguidor de Jesus, entende que o amor salvífico de Deus é também para os pagãos. Já Jesus declara amor pelo seu Pai, Deus, quem nos criou e nos convoca a amar uns aos outros, sendo Ele o amor. Tudo isso veremos nas leituras de hoje.

Amor não é questão abstrata, mas experiência de vida que vem de Deus, de Jesus e de nossas mães. O amor de Deus por nós se concretizou na presença de seu Filho encarnado. Já “o amor de mãe envolve muitos sentimentos. A mãe está no filho que chora, ri, briga, apanha, vence, sonha, perde, se frustra… A mãe está em todas as fases de sua vida. Ser mãe é viver a vida em etapas, nas etapas da vida do filho. O filho é quase uma extensão da mãe” (Cf. Faria, Jacir de Freitas, História de Maria, mãe e apóstola do seu filho, nos evangelhos apócrifos, 2. ed., Petrópolis: Vozes, 2006, p. 11).

II. COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS

I leitura (Atos 10,25-26.34-35.44-48): Pedro toma consciência de que a salvação não é somente para os judeus. O judeu é chamado a amar o seu próximo.

Lucas, relatando, em Atos dos Apóstolos, a visita de Pedro ao centurião da corte itálica, em Cesareia, descreve um passo decisivo na conversão de Pedro, quem defendia zelosamente a adaptação dos valores da fé judaica ao cristianismo. Pedro defendia que o não judeu, ao abraçar a fé cristã, teria que fazer a circuncisão. Cornélio, o pagão que se tornara um temente a Deus, simpatizante do judaísmo, homem de oração e de esmola, pediu a Pedro que fosse à sua casa. O encontro dos dois foi marcado pela prostração de Cornélio diante de Pedro, gesto que evidenciou, na pessoa de Pedro, a presença de Deus. Pedro refuta tal atitude, afirmando que ele era apenas um homem. Cornélio e sua casa, representantes da gentilidade, se encontram com Pedro. Nesse momento, ocorre a declaração pública de Pedro de sua conversão: “Dou-me conta, em verdade, de que Deus não faz acepção de pessoas, mas que, em qualquer nação, que o teme e pratica a justiça, lhe é agradável” (v.34-35). Numa via de mão dupla, a família de Cornélio se deixa catequizar por Pedro e o catequista Pedro se deixa catequizar pelos seus catequizandos.

A visão que Pedro teve em Jope (At 10,9-16) e o encontro com Cornélio selaram, definitivamente, a sua mudança de posição. Nesse contexto de aproximação dos gentios e mudança de mentalidade de Pedro, o Espírito Santo desce sobre todos os presentes, na maioria, não judeus. Esses começam a falar em línguas e a louvar a Deus. Pedro, não tendo dúvida dos fatos, pede que pagãos fossem batizados em nome de Jesus.

Os fatos ocorridos acima demonstraram a sabedoria dos apóstolos em levar a fé em Jesus a todos os povos. Para além das mesquinharias da fé judaica, o cristianismo de Jesus ressuscitado ganhou novos adeptos e se expandiu mundo afora. Caso Pedro tivesse se mantido nos preconceitos de raça, religião e pureza ritual de seu povo, o cristianismo teria se tornado uma dentre as tantas religiões que já sucumbiram na história da humanidade.

Evangelho (João 15,9-17): Jesus nos escolheu para Nele permanecer no amor

O evangelho de hoje é a continuidade do domingo anterior, a parábola da videira e seus ramos. Amar é a chave de interpretação de Jo 15,9-17. Jesus ama sua comunidade, assim como Deus o amou. A comunidade é chamada a permanecer no amor, guardar os mandamentos, amar uns aos outros. Jesus deu a vida por amor e isso devia ser o combustível que haveria de mover a comunidade. Nada menos que nove vezes aparecem amar e amor no texto, o que prova a centralidade dessa temática.

O verbo amar e seu substantivo amor são largamente utilizados no cotidiano de nossas vidas. Muitas vezes, eles chegam a ser banalizados. Quantos casais iniciam sua vida conjugal chamando o(a) parceiro(a) de ‘meu amor’, bem como de seu correlato, ‘meu bem’. Amor/amar é um bem precioso que poucos de nós conseguimos vivenciar de forma eficaz. Na relação marital, o que vemos, infelizmente, é que, com o passar dos anos, a máxima ‘meu bem’ se transforma em ‘bem longe’. ‘Meu amor’ em ‘meu pesadelo’. Toda relação, se não for refeita sempre, acabará perdendo o seu encantamento. Amar é um caminho sempre aberto, apesar de a estrada ser sempre a mesma e, por mais batida que ela seja, ela precisa ser reaberta sempre. A arte de amar no casamento consiste em acreditar sempre, perdoar sempre, encantar-se sempre com o projeto de vida selado. De um casal é dito também que eles são cônjuges, termo que deriva de canga, instrumento utilizado no mundo agrário para atrelar os bois no serviço do arado. Em outras palavras: quando duas pessoas diferentes resolvem unir-se em matrimônio, elas colocam sobre seus pescoços uma canga. É como se dissessem: vamos caminhar juntos no mesmo projeto, apesar das nossas diferenças. O amor é exigente, quase como uma canga.

Fazendo uso do simbolismo do casamento, entendamos o que Jesus, no evangelho de hoje, tem a nos dizer sobre o amor eterno que foi estabelecido entre ele, o Pai e a comunidade. Vários pontos são estabelecidos nessa relação amorosa: a) observar os mandamentos de Deus que Jesus mesmo havia seguido. Esses mandamentos são todos aqueles que possibilitam uma relação justa entre as pessoas, concretizadas em obras libertadoras. Ninguém é escravo de ninguém. Deus não nos criou para sermos explorados. É assim na relação matrimonial e na sociedade. Quando o parceiro oprime e trai o outro, a amor deixa de existir; b) viver na alegria. Solidariedade e respeito na vida comunitária nos dão frutos de alegria; c) observar o mandamento. Antes, no texto, mandamento foi usado no plural, agora é expresso no singular para ressaltar a sua importância: amar uns aos outros. A consequência dessa opção nos leva a sacrificar, a dar a vida por quem amamos. Ademais, nos tornamos amigos, confidentes e parceiros em um único projeto. A morte de Jesus na cruz foi o testemunho claro dessa sua fala. A comunidade que nasce dessa relação amorosa com Jesus não se torna o seu servo, agindo por comandos e ordens, mas é amiga e colaboradora no projeto do reino. A vida familiar também é assim: um projeto de vida comunitário. Jesus escolhe a comunidade para ser sua amiga e parceira (v.16).

Duas conclusões se impõem da relação entre Jesus e a comunidade: produção de frutos e o recebimento de Deus de todos os pedidos feitos. “Amai-vos uns aos outros”, essa é chave de leitura da vida amorosa, ensinada por Jesus.

II leitura (II João 4,7-10): Deus nos amou enviando seu Filho e nos convidando a viver o amor solidário

A primeira carta de João nos apresenta, na leitura de hoje, uma raridade teológica do amor divino. Ela se liga ao evangelho e ao dia das mães. Mãe é sinal de amor. Deus é amor e, também, pai e mãe de todos nós. Ele nos deu a vida e um Filho que, qual uma mãe, doou a sua vida por todos nós. Tudo em nossa vida depende do amor. Sem amor, sem Deus, sem mãe, nenhum de nós existiria. Mãe e Deus não se dão a conhecer teoricamente, mas pela prática do amor. “Amar é entregar-se, como a mãe, em tantas noites mal dormidas, para acalentar o filho e fazê-lo crescer. Ser mãe não é padecer no paraíso, mas é amar e aceitar os limites da vida. É viver no paraíso da vida, aqui e ainda não, no mistério de Deus que se encarnou no meio de nós no seio de uma mulher, Maria-Mãe, que reverenciamos nesse mês de maio. Ser mãe é não ter armas para atirar contra o filho, pois o amor a desarma sempre. Mãe é aquela que impõe limites ao filho, pois a sua experiência lhe ensinou que o mundo tem limites. O filho tem que aprender a lição cedo, pois senão o mundo o devorará violentamente. E quantas mães sofrem por saber que, apesar de terem ensinado esta lição ao filho, a droga do mundo o tragou” (Cf. Faria, Jacir de Freitas, História de Maria, mãe e apóstola do seu filho, nos evangelhos apócrifos, 2. ed., Petrópolis: Vozes, 2006, p12).

Ser como Deus-Mãe, que nos carrega na palma de sua mão, é vivenciar o amor solidário com o outro, nas suas angústias e nas lutas por melhores dias, por justiça social. Portanto, sigamos o eterno conselho da comunidade joanina: “amemo-nos uns aos outros, pois o amor é de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus” (v.7).

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Demonstrar as dificuldades da igreja do passado, que acabou vestindo a casaca do judaísmo, dos preceitos e dos ritos. Igreja que ainda hoje se vê mergulhada em preconceitos, moralismo e regras, o que impede a expansão das propostas do reino. Ligar essa questão com a catequese que Pedro realizou na casa de Cornélio, a qual possibilitou a todos o entendimento e o crescimento na nova religião abraçada por eles. Nessa mesma linha, perguntar pelo modo como a catequese é aplicada na comunidade.

Perguntar pela experiência de amor vivida pela comunidade e pelo exemplo das mães. Fazer uma correlação do amor de Deus, da comunidade e o das mães.

Demonstrar que o amor solidário/social exige de nós o compartilhar com os que nada têm e a lutar pelo fim das injustiças sociais.

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM

12 de maio de 2012

Essas mulheres chamadas mães


Nossa “janela” de maio se escancara para as mães, mães de todos os jeitos, mães que enfeitam a face da terra. Maio é o mês das mães. Maio em que pensamos em nossas mães.

a) Ação de graças pelas mães

Senhor Deus,

Colocamos diante de teu amor previdente e providente a vida de nossas mães.

Que nesse tempo de maio possa chegar até teu coração esse hino de agradecimento que brota de nossos corações de filhos.

Graças te damos pelo seio que designaste que seria o espaço do começo de nossa vida.

Ali estivemos escondidos durante meses.

Fomos alimentados com o sangue, o ar, o leite, o carinho dessas mulheres que aprendemos a chamar de mães, matrizes, fontes de vida.

Nós te damos graças pelos cuidados que nos foram dispensados na infância, na adolescência e na juventude: pela roupa lavada e cheirosa, pelo purê de batata, pelo macarrão com queijo e molho de tomate, pelo suco de laranja, pela mousse de maracujá e pela cuca de banana.

Nós te damos graças pelas conversas que tivemos com a mãe, quando saíamos com ela, quando nos levava ao pediatra, ao “barbeiro”, ou simplesmente para um passeio no parque, quando ela nos fazia visitar a igreja, nossa paróquia, quando nos levava a visitar os avós e os tios.

Nós te damos pelas histórias que a mãe contava respeito da família, de sua infância, das coisas que ela viveu e tinha no coração, do cinema mudo, dos bailes, da banda que tocava no coreto da praça.

Sim, nós te damos graças de modo muito especial por essas conversas no tempo da adolescência e da juventude e pela xícara de café com leite que ela nos preparava quando voltávamos da escola, alguns dias o café se fazia acompanhar de uma broa de fubá ou de um bolo de chocolate.

Nós te damos graças pela presença da mãe no dia da formatura com seu vestido azul com bolinhas brancas, seus sapatos de salto, sua bolsa azul marinho.

Nós nos lembramos com carinho da figura da mãe nos dias de Natal, nas comemorações dos aniversário, na festa de nosso casamento, nas conversar que tivemos para “salvar” nosso casamento. Nós te damos graças, Senhor, pela trajetória e pela história dessa mulher única da vida de cada um.

E, Senhor Deus, perdoa se temos no fundo do coração uma tristeza, a tristeza de não termos mais, perto de nós, porque tu levaste a mãe que tivemos e que agora está assentada à mesa do banquete celeste diante de teus olhos.

Que ela interceda por nós junto a ti, por nos que temos uma imensa saudade dela.

b) A mãe do traficante

Dona Rosa, mãe de um homem de trinta anos, há 3 anos preso e tendo mais dois para cumprir, dizia mais ou menos o seguinte:

“Meu nome é Rosa. Nasci a 23 de agosto, dia de Santa Rosa de Lima. Por isso ganhei esse nome tão bonito e que me orgulho de portar. Foi minha mãe que o escolheu. Sou conhecida na vizinhança como Rosinha. Nos últimos tempos, bem nos últimos anos, as pessoas referindo-se a mim simplesmente dizem: “mãe do traficante”.

De um lado as pessoas me evitam… sem motivo… de outro lado, sinto que sou objeto de piedade e de compaixão. “Coitada da Rosinha…”.

Vivo há dez anos o pesadelo de ter um filho envolvido na questão do consumo e do tráfico de drogas. Agora está na cadeia. Andou roubando muito e fazendo outras loucuras. Cumpre uma longa pena. O que me incomoda e me faz sofrer é que seus “colegas” ou “comparsas” estão soltos… Alguns sumiram do mapa. Parece que dois ou três deles, nossos antigos vizinhos, tentaram entrar no presídio disfarçados de bombeiros hidráulicos para soltar meus filhos… mas já de longe foram espantados pelos seguranças e desapareceram no meio do mato… Soube isso pelo radinho de pilha que tenho…

Meu Deus, como tudo isso é triste! Lembro-me do tempo da gravidez do meu menino, do seu nascimento, meu menino esperto, bonito demais com olhos grandes e esverdeados. Chamava a atenção de todos. Era a cara do avô, meu pai. Esse meu filho que hoje é simplesmente chamado de traficante tinha bochechas coradas, cabelos encaracolados feito um Menino Jesus de presépio, menino cheio de graça e boniteza. Era uma graça quando ia dormir. Fechava os olhos, dizia uma oração, pedia água benta para fazer o sinal da cruz, me dava um beijo estalado e molhado e ia dormir e eu chorava de alegria só de ver meu bonito menino. Quando saímos, ele pedia moedinhas para dar aos pobres que fosse encontrando… Perguntava a cada o nome e onde morava… uma doçura de criança.

Um dia a ventania começou a soprar… um dia… uma porção de dias, colegas, desculpem, uma porção de homens maus, de colegas que não eram colegas, uma porção de homens de motocicletas e carros estranhos foram fazendo a cabeça de meu filho quando ele tinha entre quinze e dezesseis anos… Ai começou o inferno. Poucos anos depois foi procurado pela polícia, preso e condenado. Hoje, o meu filho, que tinha os cabelos parecidos com os cabelos do Menino Jesus, é o preso traficante e eu sou a mãe do traficante. Meu nome é Rosa, mas quase todos me chamam de Rosinha. Hoje quase todos dizem “a mãe do traficante”.

Frei Almir Ribeiro Guimarães