2. Não há dúvida. Necessário se faz colocar-se aos pés do Mestre, contemplar seus gestos e se extasiar diante do amor que se torna cruz, abandono e solidão. Na medida em que deixamos que nosso interior seja perpassado por este tipo de contemplação saímos da dimensão do jurídica, do funcional, do imediato, do formal, do frio... Os que vão se deixando tocar pelo amor do Senhor são discípulos ardorosos.
3. Toda a mística cristã sempre contemplou com imenso carinho e respeito a ferida do peito aberto de Cristo no alto da cruz. Afinal de contas, não podia ser de outra maneira. Nos que fomos arrancados do tétrico universo da solidão e do abandono não cessamos de contemplar essa ferida e a fonte que dela jorra. Nunca seremos suficientemente reconhecidos ao Amor que não é amado. Nunca poderemos pagar esta dívida: o mais belo de todos os filhos dos homens, Deus morando em nosso meio, morrendo de amor. São Columbano (sec. VII) assim escreve: “Oxalá, Senhor, te dignes admitir-me a esta fonte. Deus misericordioso, bom Senhor, onde eu, com os que têm sede de ti, beberei da onda viva da fonte viva da água corrente. Refeito por sua indizível doçura,esteja sempre unido a ela e diga: Quão doce é a fonte de água viva que jorra para a vida eterna”. A água que jorra, no dizer de João, é o Espírito. A água que jorra serve para matar a sede de plenitude que existe em nós e que nunca pode ser saciada. Da fonte saem água e sangue. Em outras palavras jorram rios de amor. Assim, nessa contemplação profunda, cresce o discípulo, dilata-se sem coração e arde dentro dele o senso missionário. Não quer ficar numa beata contemplação, cheia de emoção e de afeto, mas quer fazer de sua vida um hino de serviço amoroso, como Cristo Jesus. Insisto: os que se colocam diante do Coração se tornam ardorosos missionários.
4. Mais adiante São Columbano fala da ferida do amor, da caridade. “Rogo-te, nosso Jesus, inspira os nossos corações com aquela brisa do teu Espírito e fere nossas almas com a tua caridade (...). Desejo, Senhor, que se grave em mim esta ferida. Feliz a alma que assim foi ferida pela caridade; esta busca a fonte, esta bebe e, no entanto, sempre tem sede bebendo e sempre haure desejando aquela que sempre bebe sedenta. Assim sempre busca amando aquela que se cura ferindo”. Sim, ser discípulo não simplesmente colocar meia dúzia de práticas religiosas. Não é repetir as fórmulas do Credo, mas é deixar-se tocar pelo amor, pela caridade. Não há receita mágica para alimentar o amor de esposos. São as coisas de todos os dias que robustecem o coração: atenções, presença, carinho, fidelidade. Os que fomos tocados pelo amor do peito rasgado de Cristo e que aparamos nossas mãos para colher os rios de misericórdia, sentimos com que uma ferida na alma, somos marcados pelos raios e pela reverberação do amor do peito de Cristo que a lança do soldado abriu. Somos assim convidados a contemplar demoradamente. Alimentamo-nos desse amor de modo especial, no banquete do pão e do vinho e no sacramento do perdão. E a ferida aberta em nosso coração nunca fecha.
5. Os que são feridos pela Caridade se encantam com o projeto de Jesus e a ele dão sua generosa adesão. “O projeto de Jesus não tem nada de pequeno e de mesquinho: pelo contrário, somos chamados a um trabalho exigente e emocionante. Num mundo ferido pela violência, escravizado ao consumismo irresponsável, numa sociedade construída sobre a injustiça, Jesus nos impulsiona a viver a fraternidade, a defender os fracos, a construir a paz, valorizando a honestidade e a dignidade humana, sabendo perdoar e partilhar” (Iniciação à Vida Crista, Estudos da CNBB 97, n.21). O mundo está cheio de pessoas feridas, jogadas à beira do caminho. Elas serão atendidas por aqueles que foram feridos pela Caridade do Coração do Redentor. Os devotos da chaga do coração de Cristo não são alienados, mas ardorosos missionários.
Nota bene: As citações de São Columbano foram tiradas da Liturgia das Horas IV, p. 147-148
Nenhum comentário:
Postar um comentário