30 de agosto de 2012

Novo Conselho da OFS é eleito em Brasília

A Ordem Franciscana Secular do Brasil realizou de24 a26 de agosto de 2012 – em Brasília (DF), o seu 34º Capítulo Nacional Ordinário e o 12º Eletivo. Durante a realização do Capítulo estiveram presentes, a delegada da Ministra Geral, Conselheira da Presidência do CIOFS para os países de Língua Espanhola, Maria Consuelo Queremel de Nuñes (Chelito); Assistente Internacional para os CIOFS, Fr. Amando Trujillo Cano, TOR; Presidente da Conferência Nacional dos Assistentes Espirituais, Frei Manuel José Farias Lopes, TOR; Secretário Fraterno Nacional da JUFRA, Alex Sandro Bastos Ferreira; Representantes da FFB (Família Franciscana do Brasil), Ir. Renata Lopes de Farias, da Congregação das Irmãs Franciscanas de Dillingen; Ministro do Regional Centro, anfitrião, Nivaldo Moreira da Silva e a Assistente Espiritual do Regional Centro, Ir. Sandra Regina Ferreira, da Congregação franciscana da Divina Misericórdia.

Na abertura do Capítulo, o Ministro Nacional da OFS, Antônio Benedito Bitencourt, saudou os presentes, em especial o Regional Centro pela acolhida e empenho para receber todos os capitulares. No decorrer das atividades, foram escolhidos os secretários, escrutinadores e membros da Comissão de Redação do Capítulo.

A representante da Presidência do CIOFS saudou os capitulares e leu a mensagem especialmente enviada pela Ministra Geral, Encarnación del Pozo, que trata sobre o serviço aos irmãos, tendo como palavra-chave a conversão. A Moderadora Joana D’Arc leu outra mensagem enviada pela Conselheira da Presidência do CIOFS para os países de Língua Portuguesa, Maria Aparecida Crepaldi.

O ministro anfitrião do Regional Centro, Nivaldo Moreira da Silva, desejou boas vindas a todos e ressaltou que tudo foi preparado com muito carinho e com o apoio das fraternidades locais. O ministro nacional apresentou o relatório do triênio e os representantes dos regionais se reuniram para avaliar as prioridades definidas no último Capítulo para que novas propostas fossem apresentadas para definir as prioridades do próximo triênio.

Antônio Benedito Bitencourt (PA), Ministro Nacional

A novidade do Capítulo ficou por conta da utilização do sistema de votação eletrônica que, inclusive, foi utilizado em Congressos da Juventude Franciscana (JUFRA). Os primeiros capitulares que votaram dessa nova forma foram, pela lista em ordem alfabética, Alex Sandro Ferreira (SP), Anderson Moura (RJ), Antônio Benedito Bitencourt (PA) e Arion Silva (RJ).

A eleição foi presidida pela Conselheira da Presidência do CIOFS, Maria Consuelo (Chelito) Nuñez, da Venezuela, delegada da Ministra Geral da OFS, acompanhada do Assistente Geral, Frei Amando Trujillo Cano, TOR, do México. Conforme estabelecido, os cargos para o novo triênio foram votados um a um pelos quarenta e quatro capitulares que elegeram o novo Conselho Nacional que passa a ter a seguinte composição:

- Antônio Benedito Bitencourt (PA) foi reeleito Ministro Nacional.
- Vanderlei Suélio (GO) foi reeleito vice-ministro.
- Maria Bernadette Mesquita (SP) foi eleita Coordenadora de Formação
- Wigna de Lira (RN) foi eleita Secretária.
- Aluisio Victal (SP) foi eleito Tesoureiro.
- Marúcia Conceição Conte (PA) foi eleita Conselheira Nacional para a Área Norte.
- Zilmar Uchôa (MA) foi reeleita Conselheira Nacional para a Área Nordeste A.
- Edmilson Brito (SE) foi eleito Conselheiro Nacional para a Área Nordeste B.
- Edvaldo Dias (MS) foi reeleito Conselheiro Nacional para a Área Centro-Oeste.
- Helio Gouvêa (RJ) foi eleito Conselheiro Nacional para a Área Sudeste.
- Izabel Teixeira (RS) foi eleita Conselheira Nacional para a Área Sul.
- Paulo Machado (RJ) foi eleito Assessor Jurídico.

Também foram eleitos como conselheiros fiscais efetivos os irmãos Edivaldo Rogério de Oliveira (RJ), Maria José Coelho (MS) e Nivaldo Moreira (GO); e como suplentes do Conselho Fiscal os irmãos Paulo Gomes (CE), Ubiraci Nascimento (PE) e Cláudio Luiz Lima (RJ).

Que o Senhor sempre ilumine esses irmãos e irmãs que no triênio que se inaugura assumiram com disponibilidade e responsabilidade esse nobre serviço em favor de toda a fraternidade nacional e do carisma franciscano secular.

Reflexões como preparação ao Capítulo da Fraternidade
Mensagem da delegada da Ministra Geral lida na abertura do Capítulo

Chelito Núñez, ofs

Ao preparar-nos para celebrar seriamente um Capítulo Eletivo, devemos refletir sobre o que significa um Capítulo, e como cada um de nós é responsável para levá-lo a feliz término.

Antes de tudo devemos recordar que para Francisco de Assis o Capítulo como Assembléia era a ocasião onde todos os irmãos tinham direito de participar, opinar e deliberar, constituindo-o assim como uma experiência de democracia muito adiantada para sua época. Desta maneira, tendo como seu maior guia o Espírito Santo, punha nas mãos de todos os seus frades o futuro da Ordem.

É assim que nossas Constituições nos referem (Art.49) no Capítulo que trata dos assuntos que interessam à vida e à organização da fraternidade. Palavra chave INTERESSAM, que poderíamos dizer que estes assuntos que se tratam no Capítulo, os tratam irmãos que AMAM a sua fraternidade e, portanto buscam o MELHOR para sua vida e organização. Portanto, não é uma assembléia qualquer.

Poderíamos começar dizendo o que todos sabemos, que confiamos ao Espírito Santo as decisões, as eleições e os resultados de nosso Capítulo. Mas, será que por acaso a ação do Espírito se faz evidente e eficaz APESAR de nossa disposição? Poderíamos dizer que sim, que o Senhor nos manifestou sua grandeza e sua gloria, e nos concede sua graça que se faz tangívelem nosso Batismo, nos sacramentos e com renovado compromisso de nossa parte na Profissão que fazemos na OFS, mais além de nossos méritos.

MAS, sucede que nem sempre temos a disposição pessoal que necessitamos para que esta ação do Espírito se faça vida em cada um de nós, porque pomos barreiras e obstáculos ao Espírito Santo; como são os interesses pessoais, os interesses ocultos, os egoísmos, a inveja, “os cargos” que se assumem na fraternidade, vistos mais como símbolo de poder em lugar de um modo de serviço aos irmãos”.

Ou seja, a partir do ponto de vista de Deus, Ele está disposto e temos a garantia de sua graça, o que está por se ver é “nossa disposição pessoal”.

Assim entramos no terreno individual do compromisso assumido, pelo que devemos deter-nos a pensar, como estamos assumindo em nossa vida o compromisso de nossa profissão na OFS, se é que estamos verdadeiramente abertos à ação do Espírito? Ou se é que de nossa parte estamos paralisados, ainda examinando o que é que o Senhor quer de nós. E perguntar-nos que estamos fazendo cada um de nós com os dons que recebemos. O Senhor SIM fará seu trabalho, SIM nos dará sua graça. Nosso trabalho, nossa postura, é ser os melhores instrumentos de sua vontade.

Neste caminho de conversão pessoal, não estamos sós, porque esta profissão na Ordem nos insere numa Fraternidade, a qual devemos amar como a nossa própria família, com todas as consequências que isto implica.

Assim que sentindo-nos comprometidos com nossa Fraternidade, nossa disposição pessoal influi diretamente em nossa fraternidade, de forma positiva ou de forma negativa. Alcançamos logo que cada um de nós vive um autêntico compromisso. Para isto, é fundamental a pureza de intenção que tenhamos em nossos corações, (“Amem e vivam a pureza de coração, fonte da verdadeira fraternidade”, Regra Art.15,4).

E não somente devemos ter a melhor disposição pessoal senão saber-nos unidos a nossa fraternidade e como tal obrigados a realizar um “discernimento comunitario” que nos obriga todos juntos a encontrar-nos espiritualmente abertos à ação do Espírito.

É por isto que um local privilegiado é o que encontramos ao reunir-nos em Capítulo, porque ali todos discernimos juntos e podemos sair ao encontro de Deus, com respostas corajosas, criativas, em atitude de conversão e abertura. Isto também forma parte do processo de conversão que deve invadir o âmbito de nossa fraternidade. Porque é óbvio que quando estamos num processo de “discernimento comunitário”, mas não há consciência de fraternidade, senão de nossa parte pessoas com interesses particulares, com uma paralisia em sua própria conversão, com um egoísmo exagerado, com uma grande falta de sinceridade, sem o devido INTERESSE pela fraternidade, e por isto sem um verdadeiro AMOR pela mesma, assim é impossível que se tenha a disposição devida para que a ação do Espírito atue.

É importante que ao encontrar-nos estejamos dispostos a realizar um discernimento como fraternidade, para avaliar nossas realidades, com a devida liberdade interior e abertura, com uma clara consciência do conceito de irmãos.

Nossa fraternidade é onde celebramos o Mistério da Salvação e onde nos encontramos unidos espiritualmente com todo o povo de Deus, segundo o confirma o nosso Ritual. É vital para isto o “sentido de pertença” que é a base fundamental de nosso itinerário como franciscanos seculares.

Senhor, ilumina as trevas de nosso coração,
Dá-nos fé reta
Caridade perfeita
Sentido e conhecimento Senhor
Para cumprir teu santo e veraz mandamento.

25 de agosto de 2012

REFLEXÃO : "Caráter e valor"


“Não se mede o valor de um homem pelas suas roupas ou pelos bens que possui. O verdadeiro valor do homem é o seu caráter, suas ideias e a nobreza dos seus ideais” Charlie Chaplin.

Depois da revolução industrial e da revolução tecnológica entramos na era do capital intelectual, onde o valor dos colaboradores está na sua capacidade criativa, inventiva e na também na sua facilidade em liderar pessoas e trabalhar em equipe. Isso sugere que as pessoas devem ser valorizadas por aquilo que são, por suas possibilidades e pela educação que construíram ao longo de suas vidas.

Caráter e valor parecem coisas em desuso, porém são elas que fundamentam as pessoas. Perde-se tudo na vida, menos o caráter, a alma, os valores que cada um traz dentro de si. Perder os bens, a riqueza e as posses não é tudo, pois tudo isso pode ser reconquistado. Perder o caráter e honra é perder tudo, pois significa não se reconhecer mais como humano. Então, continue investindo em você mesmo e colocando seus dons para o crescimento da sociedade humana…


Frei Paulo Sérgio

24 de agosto de 2012

Os Carceri


Francisco é, para muitos de nós, mais de que uma lembrança do passado. É alguém cujo espírito palpita junto com nossos corações desejosos de viver a vida segundo o Evangelho. Nesta rubrica vamos dar a voz a Julien Green que escreveu uma inteligente biografia do santo (São Francisco de Assis, Livr. Francisco Alves, Rio, 1988). O texto descreve o eremitério dos Carceri. Esta descrição permite ao autor e a nós abordar e refletir sobre essa tensão que precisa existir na alma franciscana: contemplação e ação.



“Um pouco mais tarde, no verão, Francisco recebeu ainda uma doação de seus amigos beneditinos. Eles lhe ofereceram os Carceri (as prisões), essas cavernas, onde nos primeiros tempos de sua conversão Francisco tinha vindo procurar a solidão, protegido por seu misterioso amigo. Eram covas de grande verdor escondidas nos bosques, nos flancos onde o silêncio só era perturbado pelo barulho de uma torrente. Bernardo e Silvestre foram os primeiros contemplativos franciscanos a se refugiar nessas prisões a partir dos quais a alma se evadia. Depois os irmãos construíram ali um pequeno eremitério.

Desde o começo houve duas correntes distintas de espiritualidade franciscana: vida ativa e vida contemplativa. A vida ativa se situava entre as obras de apostolado, a pregação, é claro, a caridade sob todas as suas formas: trazer de volta uma população propensa frequentemente a voltar ao paganismo e socorrer os infelizes.

A vida contemplativa é quase impossível de se resumir em algumas frases. Que se pense nas inúmeras obras que tratam desse assunto. Sem risco de perder-se em explicações confusas, pode-se pelo menos propor isto: a contemplação pede que o ser se deixe a si mesmo para dar lugar a Deus e ser para Ele. Tanto quanto possamos nos dar conta disso, não se trata somente de abandonar um gênero de vida que cria obstáculo à vida interior, mas na solidão e no silêncio, separar-se das preocupações do mundo, afastar a lembrança daquilo que o século XVII chamaria de “divertissement” sob todas as suas formas, tudo o que os olhos podem ver, os ouvidos escutar, tudo o que os sentidos podem experimentar. Isso não passa de um começo: obter o silêncio interior absoluto, fazer calar o tumulto de nossos pensamentos, expulsar todas as nossas ideias, sobretudo aquelas que formamos de Deus que são quase invariavelmente falsas. Nessa nudez do espírito, a alma fiel terá as melhores oportunidades de ir em direção Àquele que a criou. Para tanto haverá de se partir da humanidade de Cristo para se elevar até o mistério da Trindade…

Das alturas do Subásio, por escapadelas ao meio dos pinheiros e faias, contemplar toda a planície e, mais alto ainda, acima da floresta escura o monte exibe seu crâneo tonsurado. Compreendemos melhor o que procuravam homens como Silvestre e Bernardo em suas cavernas onde os barulhos do mundo não chegavam: “Olhem lá meus cavaleiros da Távola Redonda”, dizia Francisco, “os irmãos que se escondem nos lugares desertos para se entregar com mais fervor à meditação… Sua santidade era conhecida de Deus, mas frequentemente ignorada pelos irmãos e homens. E quando suas almas forem apresentadas pelos Anjos ao Senhor, o Senhor lhes revelará a recompensa de suas penas, a multidão de almas salvas por suas preces. E ele lhes dirá: ‘Meus filhos, vejam as almas salvas pelas preces de vocês; já que vocês foram Linkfiéis nas pequenas coisas. Eu vos confiarei as grandes’”. É a linguagem dos grandes místicos. Quanto ao próprio Francisco, ele mesmo mergulhava à noite naquele abismo da procura de Deus e, de dia, participava da vida de sua comunidade, mas tinha as graças particulares e indispensáveis para pratica um e outro modos de vida”.

Frei Almir Ribeiro Guimarães

Extraído de : http://www.franciscanos.org.br/?p=21056

22 de agosto de 2012

REFLEXÃO : "Erros e acertos"

“Se fechar a porta a todos os erros, a verdade ficará lá fora”.
Rabindranath Tagore.

A vida é feita de erros e também de acertos. Todos nós, sem exceção absolutamente nenhuma, erramos diversas vezes ao longo da nossa vida. Mas é exatamente isso que significa viver, errar e aprender com os erros…. A vida é uma aprendizagem constante e incessante, estamos sempre a aprender tanto com o que erramos como com o resto.

Mas é exatamente para isso que servem os erros, para aprendermos com eles e corrigirmos aquilo em que estávamos a errar. Passamos a vida a cometer erros em todos os campos da nossa vida. Então, aprendamos com nossos erros para construirmos nossas verdades, lembrando sempre que essas são passageiros e precisam ser refeitas a cada dia, a cada experiência…

Frei Paulo Sérgio


21 de agosto de 2012

CLARA DE ASSIS ENTRE O CLAUSTRO E A ITINERÂNCIA



Por Frei Celso Márcio Teixeira, OFM*

Petrópolis - RJ

Introdução
As pesquisas sobre as fontes do franciscanismo tiveram grande impulso a partir do final do século XIX, intensificando-se na segunda metade do século XX diante do apelo do Concílio Vaticano II, que convocava os diversos grupos de vida consagrada a um retorno vivificador às origens de sua própria espiritualidade. As pesquisas específicas sobre as fontes referentes a Santa Clara, iniciadas na segunda década do século XX, tiveram, porém, impulso menos intenso, talvez devido ao fato de os pesquisadores dedicarem-se com mais empenho à solução dos nós problemáticos que as fontes referentes a São Francisco apresentavam. Deste modo, ainda hoje, apesar de algumas conquistas definitivas, muita coisa sobre Santa Clara está como que sob um véu, na penumbra, o que permite aos estudiosos não muito mais do que moverem-se num campo povoado de opiniões e hipóteses.

O presente trabalho coloca-se também nesta perspectiva. Expressa tão somente algumas opiniões e tenta fundamentar as viabilidades delas, sem pretensão de prová-las ou de torná-las resultados definitivos, mas apenas contribuir para o debate que, muitas vezes, se tem contentado com afirmações não resultantes de uma leitura mais crítica das fontes e da história.

A questão focalizada neste trabalho é se Clara quis uma vida no claustro ou levar uma vida idêntica à de São Francisco, isto é, andando pelo mundo como uma pregadora itinerante; em outros termos, se ela foi obrigada a trilhar o tradicional caminho da vida consagrada, devendo, por isso, sufocar seu anseio por algo realmente novo, como o apresentado por Francisco.

A abordagem desta questão, porém, depara-se com uma dificuldade e procura evitar uma tentação. A dificuldade consiste no fato de que é praticamente impossível saber o que uma pessoa pensou ou quis na Idade Média, a não ser que ela se tenha pronunciado explicitamente sobre o assunto ou, pelo menos, o tenha deixado transparecer nas entrelinhas; e a tentação é a de, na falta de documentação mais decisiva, a argumentação não ultrapassar o puro subjetivismo, projetando na Idade Média desejos e sentimentos de hoje, construindo a história como gostaria que ela tivesse sido. Ora, Clara não se pronunciou sobre o tema, e o que se pode colher nas entrelinhas é muito limitado e extremamente vago.

Conscientes de todas estas limitações, abordamos inicialmente quatro argumentos que comumente se apresentam para justificar que Clara teria preferido a itinerância à vida do claustro e tentamos tecer algumas ponderações a respeito de cada um deles. Feitas estas ponderações, respaldando-nos em experiências no campo religioso feminino que surgiam exatamente naquele contexto de inícios do século XIII, esboçamos uma interpretação – embora não totalmente nova – na tentativa de uma aproximação daquele que teria sido o estilo de vida de Clara e de suas irmãs, pelo menos em sua fase inicial.

1. Argumentos e considerações
a) A opinião de que Clara teria preferido a vida itinerante procura justificar-se na declaração de algumas irmãs no Processo de Canonização. Mais explícita, a sexta testemunha, Irmã Cecília, filha de Messer Gualtieri Cacciaguerra de Spello, disse em seu depoimento

“que dona Clara tinha tanto fervor de espírito que gostaria de enfrentar o martírio por amor do Senhor. Demonstrou isso, quando ouviu contar que alguns frades tinham sido martirizados em Marrocos, e disse que queria ir para lá” (Processo de Canonização [=PC] 6,6).

Anton Rotzetter sugere que, com o desejo do martírio, Clara teria também o desejo de levar uma vida itinerante, à maneira dos frades menores (1). Aliás, em outra parte, ele afirma que os frades menores e as irmãs de Santa Clara constituíam uma única Ordem (2). E, ao lembrar os grupos de mulheres itinerantes surgidos em 1241, doze anos antes da morte de Clara, as quais se denominavam de irmãs menores, reafirma que teria sido este o desejo de Clara, embora não se saiba se ela tivesse conhecimento desses casos (3).

Uma primeira consideração diz respeito à interpretação do testemunho de Ir. Cecília. A rigor, não se pode do desejo do martírio deduzir o desejo de vida itinerante. Clara poderia muito bem querer fundar um mosteiro em terras dos sarracenos sem forçosamente pretender dedicar-se à pregação itinerante, como, de fato, mais tarde fundou mosteiros pela Itália sem que as irmãs se dedicassem à pregação itinerante.

Uma segunda consideração é que as três Ordens fundadas por São Francisco podem constituir um movimento espiritual único, mas a história e a documentação de que dispomos não nos possibilita afirmar que frades menores e irmãs de Santa Clara constituíam uma única Ordem, uma espécie de Ordem mista de mulheres e homens. Das fontes externas à Ordem, apenas dois cronistas parecem fazer alusão às irmãs de Clara, a saber, Jacques de Vitry e o autor da Vida de Gregório IX.

O primeiro, em carta escrita em 1216, relata que viu nas proximidades de Perúgia pessoas de ambos os sexos que deixaram tudo por Cristo. Assim descreve a vida dos homens:

“De dia, entram nas cidades e vilas, dedicando-se ao trabalho pela ação; de noite, voltam ao eremitério ou lugares solitários, dedicando-se à contemplação... Depois disso [do Capítulo], dispersam-se por todo o ano pela Lombardia, Toscana, Apúlia e Sicília”.

Já a descrição da vida das mulheres mostra que se trata de um estilo de vida totalmente diferente:

“As mulheres, porém, vivem juntas em diversas hospedarias perto das cidades, nada recebem, mas vivem do trabalho de suas mãos” (4).

O cronista percebeu um movimento religioso que atingia homens e mulheres, mas não afirma que se tratasse de uma única Ordem. Aliás, ao dizer que as mulheres “vivem juntas em diversas hospedarias perto das cidades”, o autor da carta parece não falar exclusivamente de Clara e de suas irmãs, pois em 1216 não havia outros mosteiros de clarissas, a não ser somente o de São Damião (5).

O segundo cronista, na Vida de Gregório IX, em arroubos de entusiasmo, atribui ao Cardeal Hugolino (depois Gregório IX) a fundação da Ordem dos Irmãos Penitentes (Ordem Terceira) e a das Senhoras Reclusas (estaria referindo-se exclusivamente às irmãs de Santa Clara?). Aos frades menores Hugolino teria dado somente nova regra. Nem este cronista sugere que se tratasse de uma Ordem mista de homens e mulheres.

Pelo contrário, outra fonte externa à Ordem, a Crônica de Burcardo de Ursperg, ao mencionar certas “práticas repreensíveis” dos pobres de Lião, entre as quais a de homens e mulheres “andarem juntos pelos caminhos e morarem quase sempre na mesma casa”, afirma que o senhor papa confirmou a Ordem dos frades menores que rejeitavam “estas práticas repreensíveis” (6). Além do mais, se se tratasse de uma Ordem mista, a regra franciscana deveria de algum modo deixar transparecer essa realidade, pois a regra é uma codificação da experiência e da vida do grupo.

Portanto, das fontes disponíveis é impossível deduzir que Clara tivesse preferido a vida itinerante e que os frades menores e as irmãs de Santa Clara constituíssem uma única Ordem.

b) Outra argumentação tenta justificar que Clara somente não assumiu a pregação itinerante, porque teria sido forçada pela hierarquia da Igreja a uma vida claustral.

Esta argumentação é totalmente despojada de consistência. Se levarmos em consideração a personalidade desta mulher, diríamos que ela nunca foi forçada a assumir uma vida que fosse contrária ao seu propósito e desejo. Quando, por exemplo, ela percebeu, após o Concílio IV de Latrão, em 1215, que novidades poderiam advir que descaracterizassem seu propósito, ela se adiantou ao papa, pedindo o privilégio da pobreza (Legenda de Santa Clara [= LSC] 14); quando o papa Gregório IX quis permitir que Clara aceitasse propriedade, ela o recusou com a máxima firmeza (PC 1,13; 2,22; 3,14; LSC 14); quando o papa quis tirar os frades da assistência espiritual das irmãs, ela reagiu veementemente, negando também a assistência material (esmolas) dos frades (LSC 37); quando Inocêncio IV escreveu novas constituições para Clara e suas irmãs, ela reagiu com tanta determinação que o papa se viu na obrigação de voltar atrás em sua proposta.

O único elemento que poderia dar alguma margem a este argumento é o do testemunho de Irmã Pacífica de Guelfúccio de Assis:

“A testemunha também disse que, três anos depois que a sobredita dona Clara entrou na religião, recebeu o regimento e o governo das Irmãs, a pedido e por insistência de São Francisco, que praticamente a obrigou” (PC 1,6; LSC 12).

Ora, São Francisco obrigou-a a aceitar o cargo de abadessa, como mais tarde também a obrigou a abrandar seus rigorosíssimos jejuns, prescrevendo-lhe inclusive uma dieta alimentar. Nesse segundo caso, parece que Clara não queria seguir o abrandamento proposto por Francisco, motivo pelo qual Francisco procurou o respaldo do bispo de Assis (cf. PC 1,8). Mas nada disso implica que alguém da hierarquia (ou mesmo Francisco) tenha obrigado Clara a viver contrariamente àquele que teria sido o seu propósito. O que se percebe é que, quando se trata de algo que atinge ou possa comprometer o essencial de seu propósito, ela reage com todo o vigor. Ao contrário, quando se trata de aspecto simplesmente organizativo (aceitar o governo das irmãs) ou de bom senso (moderar o jejum), ela é capaz de acolher com humildade.

c) Outro argumento alega que as circunstâncias históricas proibiam Clara de levar uma vida diferente da vida monacal, visto que socialmente se impunha à mulher a proibição de andar pelo mundo. Portanto, a única chance de vida religiosa possível para ela era a monacal.
Este argumento não leva em consideração um elemento importante daquela época: alguns movimentos de penitentes conheciam o fenômeno de mulheres que levavam vida itinerante. E a partir da segunda metade do século XII, com o surgimento das Beguinas na Bélgica, intensifica-se a participação das mulheres na busca de novos modelos de vida religiosa (7). Embora o movimento não tivesse sido uniforme em todos os lugares, alguns grupos reivindicavam a pregação itinerante.
É claro que, apesar de no século XIII as beguinas contarem com o apoio da Igreja, ainda pairava sobre elas a suspeita de heresia. O cronista acima citado, Burcardo de Ursperg, já se referia ao fenômeno de mulheres itinerantes, elencando-o entre as “práticas repreensíveis”, possivelmente porque a prática da itinerância, de maneira geral, estivesse muito próxima da heresia. Mas, se tivesse sido este o propósito de Clara, ela poderia tê-la adotado e, exatamente como Francisco, dado a ela um novo perfil, tirando dela a suspeita e acusação de “prática repreensível”.

A partir de sua personalidade corajosa, capaz de enfrentar os familiares que não hesitavam em adotar medidas violentas (cf. LSC 9, 25-26), torna-se difícil admitir que a simples possibilidade de ser mal vista pela sociedade pudesse abalar os propósitos de Clara. Mesmo que a fama pública (8) a chamasse de louca – como chamaram a Francisco e aos seus primeiros companheiros – é difícil acreditar que Clara não estivesse disposta a tudo suportar por aquilo que teria constituído a alma de propósito.

d) Um último argumento, próximo ao anterior, afirma que ela não teria conhecido outra maneira de viver a vida religiosa, a não ser a monacal. Por isso, não teve escolha.

Se retomarmos com atenção o episódio da fuga de Clara da casa paterna, verificaremos que ela se refugiou primeiramente num mosteiro de beneditinas (São Paulo de Bastia), nos arredores de Assis. Depois de uma semana, ela foi transferida para Santo Ângelo de Panzo, ainda em Assis. Aí, vivia uma comunidade de irmãs que seguiam o caminho da penitência e experimentavam uma nova forma de vida religiosa (9). Era algo diferente da vida monacal. E Santo Ângelo de Panzo, em 1211-1212 (quando se deu a transferência de Clara), não era um mosteiro, mas uma igreja dependente da catedral de São Rufino. Só vem nomeado como mosteiro em 1232-1233 e, cinco anos mais tarde, aparece como um dos mosteiros da Ordem de São Damião (10).

Clara encontrou em Santo Ângelo mulheres que queriam viver intensa vida de caridade, de oração e de penitência, vivendo de esmolas dos passantes, e buscavam vida religiosa além dos canais tradicionais da vida monástica e acabaram promovendo novas experiências (11). Possivelmente, elas nem professassem uma regra reconhecida oficialmente.

Em todo caso, após este contato com aquela comunidade – mesmo que tenha sido por breve tempo –, torna-se particularmente difícil sustentar que Clara não conhecesse alternativas e que não estivesse a par de novas formas de vida religiosa feminina que eram buscadas e experimentadas exatamente naquele tempo e tão proximamente a ela.

2. O fenômeno do eremitismo urbano

A experiência de Clara em Santo Ângelo de Panzo não pode ser minimizada e deve ser considerada em um contexto histórico mais amplo. M. Bartoli chama a atenção para um fenômeno novo na época de Clara, o do eremitismo urbano, praticado por mulieres religiosae, como genericamente eram chamadas. Estas mulheres escolhiam viver como reclusas “dentro da cidade ou em lugares isolados, mas sempre próximos de um centro habitado” (12). Este fenômeno assumia proporções notáveis na Itália Central, sobretudo na Úmbria (13), região onde se situa a cidade de Assis, portanto, muito próximo de Clara. M. Bartoli assim descreve a transformação pela qual estava passando o ideal de perfeição evangélica nos inícios do século XIII:

“A transformação do ideal de perfeição evangélica proposto aos homens, a qual se havia dado naqueles anos, era evidente: não mais comunidades fechadas em si mesmas..., mas grupos itinerantes de homens preocupados em pregar e dialogar com os habitantes da cidade. Menos conhecida é a transformação de ideal proposto às mulheres que, sobretudo na Itália, foram fazendo aparecer novas formas de religiosidade urbana, uma religiosidade que não pretendia opor-se à cidade nem oferecer uma alternativa com relação à cidade, mas plenamente inserida nela” (14).

Em seguida, M. Bartoli descreve o estilo de vida levado por estas mulheres:

“O mais das vezes, estas mulieres religiosae... optavam por uma vida em comum em suas casas, castamente, trabalhando com as próprias mãos e dedicando-se às obras de misericórdia... A nova religiosidade feminina, porém, não se limitou a descobrir novas formas de vida ativa, mas foi elaborando também uma nova espiritualidade, através da qual encontrou novas formas de vida de oração: deu-se o surgimento do eremitismo urbano... Estas mulheres, muitas vezes sozinhas, mas também com uma ou mais companheiras, viviam em estreita relação com o ambiente circunstante: recebiam assistência espiritual de algum clérigo, normalmente designado pelo bispo, e assistência material através de ofertas dos vizinhos ou dos que passavam” (15).

Esta efervescência religiosa atingiu as mulheres da Toscana. O desejo delas era o de realizar uma vida em comum, “fugindo das seduções e riquezas do mundo”. Elas fizeram nítida opção pela pobreza, renunciavam às posses pessoais. Geralmente, eram provenientes de famílias nobres ou abastadas. Por isso, recebiam o título de dominae (= senhoras): pauperes dominae reclusae. E a reclusão era uma das características de sua vida, uma reclusão de tipo urbano, inserido no tecido social e espiritual da cidade toscana do século XIII (16).

3. A novidade da vida de Clara
Dentro deste quadro, a vida de Clara e de suas primeiras irmãs ganha um novo colorido, adquire sabor de novidade: Clara não se insere na vida tradicional, monástica, mas opta pelo eremitismo urbano. Concordamos com M. Bartoli em suas inequívocas afirmações:

“A vida em São Damião, nem é preciso sublinhá-lo, era uma vida eremítica... A comunidade de São Damião foi, desde o início, uma comunidade eremítica, formada por mulheres que seguiam à letra o preceito evangélico de ‘procurar em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça’ e que queriam viver sua vida de oração no isolamento e na separação do mundo...; a comunidade, de fato, foi eremítica desde o começo”(17) .

E a própria estrutura arquitetônica de São Damião não nos permite dizer que se tratasse de um mosteiro. Era uma igrejinha marcadamente rural, fora dos muros da cidade, mas não muito distante, semelhante aos eremitérios dos primeiros frades, tais como a Porciúncula, Carceri, Rivotorto e outros. Com o tempo é que se fizeram adaptações mais amplas para abrigar um número maior de irmãs. Todas estas semelhanças com o eremitismo urbano faziam com que Clara e suas irmãs estivessem mais próximas das pauperes dominae reclusae do que daquelas que abraçaram a vida monástica tradicional.

Inicialmente, nem todos os grupos das dominae reclusae tinham uma regra. Quanto a Clara e suas irmãs, desde o início, elas se regiam por uma forma vitae dada por São Francisco, segundo notícia dada pela própria Clara no capítulo VI da sua regra. Não se conhece o conteúdo todo desta “forma de vida”. Aquelas poucas palavras de São Francisco transmitidas por Clara na sua regra não constituem propriamente uma “forma de vida”. Soam mais como uma introdução. A. Rotzetter esboça uma hipótese bastante viável: Clara teria pautado sua vida segundo a Regra para os eremitérios, escrita por São Francisco (18).

A nosso ver, se não foi a mesma regra para os eremitérios, de São Francisco, deveria ter sido muito parecida, pelo menos em suas linhas fundamentais.

A partir de 1219, porém, todos os grupos das dominae reclusae (que se propunham viver o eremitismo urbano) estavam sob a proteção e guia do Cardeal Hugolino, que lhes escreveu as constituições, baseadas nas constituições cistercienses, com forte acento na clausura. O grupo de São Damião não ficou isento destas constituições. A vida das damianitas, porém, fundamentalmente continuava sempre pautada pela forma de vida dada por São Francisco. E, onde houvesse contradição entre a forma de vida e as constituições hugolinianas, prevalecia a disposição da forma de vida. Somente no fim da vida, Clara resolveu elaborar sua própria regra, baseando-se primariamente na regra franciscana, mas levando em conta também alguns aspectos organizativos das constituições hugolinianas. E, evidentemente, sua regra codificava aquilo que era o modo de vida daquele grupo.

Alguns exemplos nos ajudarão a perceber a impostação diferente de Clara com relação às constituições hugolinianas:
a) Clausura – No que concerne à clausura, embora esta constituísse um elemento característico do eremitismo urbano, a de São Damião, contrariamente às constituições hugolinianas, nunca significou um fechamento às pessoas e ao mundo. Na clausura de São Damião – o que parece uma contradição – as pessoas eram constantemente acolhidas. Os numerosos frades que chegavam a Assis em peregrinação visitavam também São Damião (19). E a movimentação de frades, em determinado período, tornou-se tão intensa que Francisco se sentiu na obrigação de impor normas restritivas. Outras pessoas também visitavam as Senhoras Pobres de São Damião. Numerosas eram as pessoas que levavam a Clara os doentes para que ela lhes impusesse as mãos ou lhes fizessem um sinal da cruz (cf. LSC 27; 32-33).

Quanto à possibilidade de uma reclusa sair do claustro, as constituições hugolinianas estabeleciam clausura perpétua, isto é, a reclusa só podia sair para fundar outro eremitério. A prática de São Damião deixava espaço para que as irmãs saíssem por “motivo útil, razoável, manifesto e aprovado” (cf. RSC 2,12).
b) Silêncio – Clara nunca aceitou a proibição de falar que consta nas constituições de Hugolino, mas fez do diálogo espiritual e da pregação pontos centrais da vida de sua comunidade (20). O silêncio proposto pelas constituições de Hugolino era perpétuo. A prática de São Damião, codificada na regra de Clara, estabelece como tempo de silêncio o espaço que vai das Completas até Terça, isto é, durante a noite. O silêncio absoluto de Clara vale somente para a igreja, o dormitório e o refeitório. Na enfermaria, as irmãs podem falar discretamente para distrair as doentes e cuidar delas; mas podem insinuar o que for necessário sempre e em toda parte (grifo nosso), brevemente e em voz baixa (cf. RSC 5,3-4). E as irmãs enfermas, quando visitadas por quem entra no mosteiro (portanto, por pessoas de fora), podem responder, cada uma por si (sem intermediários) aos que lhes falarem (cf. RSC 8,19).
c) As grades e as cortinas ­– Clara mantém a disposição das grades no parlatório e na igreja e, na parte de dentro destas, de cortinas. A função das cortinas nas constituições hugolinianas era a de impedir que as irmãs vissem as pessoas e que fossem vistas. Mas, para Clara, esta disposição tem um valor extremamente relativo. Imediatamente após esta disposição, ela estabelece quando a cortina deve ser removida: quando é pregada a palavra de Deus às irmãs e quando alguma irmã estiver falando com alguém (cf. RSC 5,10). A função da cortina é minimizada a ponto de praticamente perder seu sentido.
d) Serviço fora do claustro – O capítulo IX da regra de Clara trata, entre outras coisas, das irmãs que prestam serviço fora do claustro (cf. RSC 9,12). A pergunta que naturalmente brota é: que tipo de serviço seria este? Constituiria este serviço o “motivo útil” que permite que a irmã deixe a clausura, como se falou pouco acima?

A. Rotzetter identifica esse serviço com o pedir esmolas (21). Na mesma linha de interpretação se coloca P. Dinzelbacher que, ao aproximar o modo de vida de Clara do das beguinas, levanta a hipótese de que Clara e suas irmãs saíam pela cidade e pelos arredores, pedindo esmolas, exatamente como faziam as beguinas (22).

A Legenda de Santa Clara, porém, apresenta-nos um quadro diferente. Os responsáveis pelas esmolas eram os frades menores (cf. LSC 16). E, a deduzir do depoimento da primeira testemunha do Processo de canonização, Ir. Pacífica de Guelfuccio, dois anos após o início da experiência em São Damião, as irmãs já contavam com o frade esmoler (cf. PC 1,15). E, no capítulo VIII de sua regra, onde se aborda o tema da pobreza – portanto, no fim da vida de Clara –, ela diz: “mandem pedir esmolas” (RSC 8,2). Conclui-se, então, que pedir esmolas não era tarefa das irmãs, embora esta conclusão não exclua que talvez em algum momento de sua vida em São Damião elas tivessem sido esmoleres.

Ora, o fato de sugerir na regra que esmolar não é tarefa das irmãs e de falar do serviço das irmãs fora do claustro leva-nos à dedução de que este serviço não pode ser identificado com o pedir esmola. Com J. C. Pedroso (23), sustentamos como muito provável a hipótese de que o serviço prestado fora do mosteiro pelas Senhoras Pobres de São Damião pudesse ser uma assistência aos pobres (talvez aos leprosos). E M. Bartoli, apontando a semelhança entre a prática de São Damião com a do mosteiro de Praga, corrobora a viabilidade de nossa interpretação. Afirma o autor:

“Aliás, Inês vivia num mosteiro em Praga que tinha, contígua, uma hospedaria onde as sorores prestavam serviços, levando assim uma vida ativa. Certamente, Clara estava a par do estilo de vida das sorores de Praga, que devia lhe parecer perfeitamente semelhante ao seu, e nunca passou por sua cabeça fazer alguma intervenção ou tecer alguma crítica sobre o assunto” (24).

Ousaríamos especificar: se as irmãs de Praga levavam um estilo de vida “perfeitamente semelhante” ao de São Damião, é porque o de Praga, de certo modo, procurava adequar-se ao de São Damião. O que não causaria nenhuma estranheza, se considerarmos que foram enviadas cinco irmãs de São Damião para a fundação do mosteiro de Praga (25).

Estes detalhes são, a nosso ver, suficientemente eloquentes e reveladores da maneira como Clara concebe sua vida eremítica, levando-nos a concordar com M. Bartoli em que a espiritualidade da clausura proposta pelas constituições de Hugolino nunca foi vivida em São Damião (26). Em outras palavras, apesar de juridicamente estarem sujeitas às constituições hugolinianas, Clara e suas irmãs sempre pautaram sua vida segundo a forma de vida dada por São Francisco.

Conclusão

Após estas simples considerações, chegamos a umas poucas conclusões, embora não definitivas: a) Dificilmente se pode sustentar, a partir das fontes, que Clara tivesse preferido a vida itinerante à vida do claustro, a não ser que se descubram novos documentos que sejam mais explícitos. b) De outro lado, resulta claro que ela não quis aderir à vida religiosa monástica tradicional, caso contrário, ela teria entrado simplesmente em qualquer mosteiro de monjas beneditinas. c) Soa-nos como mais provável que Clara tenha optado por um caminho novo. Do mesmo modo que Francisco optou pela itinerância como estilo de vida, elemento característico dos movimentos religiosos masculinos, Clara abraçou o eremitismo urbano, a novidade que surgia no horizonte da religiosidade feminina, abrindo às mulheres perspectivas de vida religiosa além das formas tradicionais.

A novidade de Francisco e de Clara parece ter vindo ao encontro das expectativas da época, a julgar pela rápida expansão tanto do movimento dos frades como do das damianitas. Ambos traduziram em formas concretas, cada um a seu modo e unidos por uma mesma espiritualidade, o novo anseio de vida evangélica.

Se posteriormente as duas Ordens foram se acomodando às formas tradicionais de vida religiosa, foi porque os seguidores e seguidoras de Francisco e Clara não conseguiram fazer prevalecer o caráter de novidade. A tentação do caminho mais fácil – isto é, de adaptar-se ao já existente, ao tradicional, ao modo antigo, experimentado com certo sucesso durante séculos – sempre existiu e permanece nos dias de hoje.

(1) Rotzetter A., Clara de Assis, a primeira mulher franciscana, Petrópolis, Vozes-Cefepal, 1994, p. 162.

(2) Rotzetter A., Clara de Assis..., p. 90.

(3) Cf. Rotzetter A., Clara de Assis..., p. 255-256; estas mulheres itinerantes se tornam conhecidas sob diversos nomes: discalceatae, chordulariae, minoretae, sorores minores, sorores fratrum minorum; foram proibidas pelo papa por desacreditarem os frades menores e a Ordem se São Damião.

(4) Fontes Franciscanas e Clarianas (= FFC), Petrópolis, Vozes-FFB, 2004, p. 1422-1423.

(5) A respeito da fundação dos primeiros mosteiros das Senhoras Pobres de São Damião, cf. Benvenuti A., La fortuna del movimento damianita in Italia (séc. XIII): propositi per un censimento da fare, em Chiara di Assisi, Atti del XX Convegno Internazionale – Assisi, 15-17 ottobre 1992, 57-106.

(6) Cf. FFC, p. 1433-1434.

(7) Cf. a respeito do movimento religioso feminino o bom trabalho de Brunelli D., Ele se fez caminho e espelho. O seguimento de Jesus Cristo em Clara de Assis, Petrópolis, Vozes-FFB, 1998, especialmente p. 43-63.

(8) A respeito da fama pública, cf. Teixeira C.M., “Francisco de Assis: o homem e seu mundo”, em Moreira A.S. (org.), São Francisco e as Fontes Franciscanas, Bragança Paulista, Editora Universitária São Francisco, 2007, 13-50, p. 20.

(9) Cf. Rotzetter A., Clara de Assis..., p. 77.

(10) Cf. Bartoli M., Clara de Assis, Roma, Istituto Storico dei Cappuccini, 1989, p. 70.

(11) Bartoli M., Clara de Assis, p. 80.

(12) Bartoli M., Clara de Assis, p. 92; cf. Benvenuti A., La fortuna del movimento..., p. 66.

(13) Bartoli M., Clara de Assis, p. 70.

(14) Bartoli M., Clara de Assis, p. 91-92.

(15) Bartoli M., Clara de Assis, p. 92.

(16) Cf. Bartoli M., Clara de Assis, p. 93-94.

(17) Bartoli M., Clara de Assis, p. 101.

(18) Cf. Rotzetter A., Clara de Assis..., p. 91.

(19) Cf. Bártoli M., Clara de Assis..., p. 104.

(20) Cf. Bartoli M., Clara de Assis, p. 104.

(21) Cf. Rotzetter A., Clara de Assis..., p. 92; 93; 94.

(22) Dinzelbacher P., Movimento religioso femminile e santità mistica nello specchio della “Legenda santae Clarae”, em Chiara di Assisi, Atti del XX Convegno Internazionale – Assisi, 15-17 ottobre 1992, 3-31, p. 9-10.

(23) Cf. Pedroso J.C., Fontes Clarianas, Piracicaba, Centro Franciscano de Espiritualidade, 2004, p. 32, nota 36.

(24) Bartoli M., Clara de Assis, p. 108.

(25) Cf. Chronica de Nicolau Glassberger (AF II, Quaracchi, 1887, p. 57), citada por Bartoli M., Clara de Assis, p. 108, nota 68.

(26) Cf. Bartoli M., Clara de Assis, p. 101.

*Frei Celso Márcio Teixeira é da Ordem dos Frades Menores, doutor em Espiritualidade atualmente leciona Teologia Espiritual e Espiritualidade Franciscana na Faculdade de Teologia - ITF.







20 de agosto de 2012

REFLEXÃO : "Encontros"

“Qualquer coisa que você possa fazer ou sonhar, você pode começar. A coragem contém em si mesma, o poder, o gênio e a magia”
Johann Goethe.


No momento em que nos comprometemos, a providência divina também se põe em movimento. Todo um fluir de acontecimentos surge ao nosso favor. Como resultado da atitude, seguem todas as formas imprevistas de “coincidências”, encontros e ajuda, que nenhum ser humano jamais poderia ter sonhado encontrar. E tais coincidências nada mais são que o poder da confiança transformado em conexões diversas.

Então, tudo começa com nosso desejar, nosso querer, com nossa dis-posição. A partir daí a energia catalisada vai abrindo caminhos e permitindo conexões para que o objetivo seja alcançado. E quando caminhos se abrem, seguimos em frente com a certeza que é possível fazer, transformar, evoluir… Para quem quer voar não há limites. . o que há mesmo é o voo, o ir além, o transcender!

Tenha uma abençoada e iluminada semana. Que Deus te abençoe e te proteja!

Frei Paulo Sérgio

19 de agosto de 2012

Pai, decidi voltar e lançar-me em teus braços!


Nossa janela se abre, de alguma forma, para a cena da parábola encantadora do Pai das Misericórdias ou do Filho Pródigo. Esta é nossa história e a história da humanidade. Na realidade, nossa vida espiritual é a vida de pessoas de coração contrito que estão sempre em processo de retorno à casa do Pai, esse Pai que tem saudade de nosso abraço. O autor desta bela prece é o franciscano Michel Hubaut que foi publicada na Revista Prier, n. 55, p. 17.



Filho pródigo, filho ingrato,
rompi o relacionamento contigo, meu Pai!
Quis fazer minha vida sozinho!
Inventar minha felicidade longe de Ti!
Não havia compreendido a gratuidade de Teu amor
que era minha casa, minha riqueza, minha vida.
Reclamei a minha parte na herança,
imediatamente e unicamente para mim.
Apossei-me de teus dons, como se eu tivesse direito,
cego e inconsciente que estava.

Não me impediste de partir.
Nada disseste.
Deixaste que eu me dirigisse para o distante país de minhas fantasias.
lá onde gastei todos os teus bens.
Esta parcela de vida, esta parcela de amor, dilapidei-as egoisticamente, sofregamente, tolamente.
E quando tudo havia gasto
houve terrível fome em meu coração.
O pecado é o país da fome e do enfado,
do desgosto e da privação.
Decepcionado, insatisfeito estive diante do vazio.
Entrei em mim mesmo,
tive sede de outras coisas,
lembrei-me de tua Casa,
resolvi me levantar e voltar…

Tu me percebes de longe:
há muito tempo me espreitas nas encruzilhadas de meus caminhos.
Corres na minha direção.
Tu me apertas entre teus grande ombros.
Estás mais emocionado do que eu.
Não fazes perguntas a respeito de meu passado.
Tu conheces o que se passa.
Sabes que teu filho está sofrendo,
conheces bem a amarga experiência que fiz.
Mandas que me tragam veste nova e sandálias novas
Colocas um talher a mais na mesa da família.
Dizes: Comamos, façamos a festa, meu filho voltou.
Obrigado Pai, minha Casa, meu Amor, minha Vida,
nunca haverei de me esquecer:
não queres a humilhação de teu filho, mas que viva!

Extraído de : http://www.franciscanos.org.br/

16 de agosto de 2012

REFLEXÃO : "Caminho"


“O caminho para cima e o caminho para baixo são um único caminho”
Heráclito de Éfeso.


A Vida é um caminho longo onde tudo depende de nós. Cada um tem o seu caminho a descobrir, a perseguir. E esse per-curso se dá na busca intensa de si mesmo, de construir uma existência que seja grandiosa, que seja plena de sentido. Que valha a pena arriscar até mesmo pelo não saber do fim. E este não saber constrói um saber que não se explica, mas que se sente, que se vislumbra pelo ocular da alma.

O caminho para cima se faz no peregrinar pelo chão da terra, pelo contato dos pés com a estrada que abrimos, pelos sonhos que buscamos. E nesse caminho encontramos pessoas com a mesma busca, ávidas também de compartilhar seus sonhos e esperanças. E nesse caminhar, vestígios vão ficando no chão da vida e no chão dos corações…

Frei Paulo Sérgio

15 de agosto de 2012

Quando o Senhor ocupa o espaço todo de uma vida

Centralidade da fé e conversão do coração (II)

Continuamos as considerações do número anterior nesta nossa Leitura espiritual. Sempre de novo estamos refletindo sobre a vida no Espírito. Centralidade da experiência da fé, sequela de Cristo e dinâmica da conversão fazem parte do que chamamos de vida espiritual. Ressoam sempre aos nossos ouvidos os últimos capítulos da Regra Não Bulada de Francisco. Sempre o Senhor no centro, esse Senhor qualificado de forma superlativa, sempre o Tudo, o Absoluto, o Belíssimo. Até que ponto, pessoal e comunitariamente, envidamos todos os esforços para que o Senhor ocupe o espaço todo?

11. Os discípulos seguem o Mestre. Felizes aqueles que são chamados a acompanhar bem de perto esse que é caminho, verdade e vida. A vida espiritual é dinamismo. Tem seus modestos começos e pode fazer com que nela se embrenham cheguem à mais alta contemplação e conformação com Cristo. Comporta esse locomover-se. Não se trata apenas de um deslocamento físico. Há, sobretudo, o movimento interior. Somos peregrinos e forasteiros em quaisquer circunstâncias. O discípulo não está tão preocupado em entender intelectualmente discursos e ditos do Mestre, mas antes de tudo desejam acolhê-los com disponibilidade, como boa terra e se põem a caminho. Ubaldo Terrinoni (Projeto de pedagogia evangélica, p 59): “O discípulo deve aprender a entregar-se, lentamente à ação discreta e implacavelmente penetrante da palavra, a fim de deixar-se permear em todas as fibras do próprio ser; deve aprender a estabelecer um contato contínuo com a palavra, uma assimilação lenta e progressiva, para deixar-se transformar em criatura nova”. Essa tarefa dura toda a vida. Nunca estamos quites.

12. O seguimento é expressão de conversão permanente a Jesus Cristo. Segui-lo ou não é uma decisão que estrutura e caracteriza radicalmente o destino dos indivíduos e das comunidades. “A admiração pela pessoa de Jesus, seu chamado, seu olhar de amor despertam uma resposta consciente e livre desde o mais íntimo do coração do discípulo, uma adesão a toda a sua pessoa, ao saber que Cristo o chama pelo nome (cf. Jo 10,3). É um sim que compromete radicalmente a liberdade do discípulo e a se entregar a Jesus, Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14,6). É uma resposta de amor a quem amou primeiro “até o extremo” (cf. Jo 13,1). A resposta do discípulo amadurece neste amor de Jesus: “Eu te seguirei onde quer tu vás” (Lc 9,57)” ( Doc.de Aparecida, n. 136). O discípulo se centra no Senhor. Sabe-se incondicionalmente amado por ele. Tem os olhos fixos nele. Assim sendo pode aceitar suas exigências de seguimento marcadas pelo radicalismo. O discípulo viverá unicamente ligado a ele, renunciando a tudo o que tira o esplendor de tal seguimento. A preferência a Cristo pedirá rompimentos familiares, perda de bens, troca das coisas certinhas pelo risco da fé. Vida espiritual cristã é vida de seguimento.

13. Francisco de Assis fala do seguimento das pegadas de Cristo: “Atendamos, irmãos todos, ao que diz o Senhor: Amai os vossos inimigos e fazei o bem àqueles que vos odeiam (cf. Mt 5,44) porque nosso Senhor Jesus Cristo cujas pegadas devemos (cf. 1Pd 2,21), chamou amigo a seu traidor e ofereceu-se espontaneamente aos que o crucificavam. Amigos nossos, portanto, são todos aqueles que injustamente nos causam tribulações e angústias, vergonha e injúrias, dores e tormentos, tribulações e angústias, vergonha e injúrias, dores e tormentos, martírio e morte, a estes devemos amar muito, porque, a partir disto que nos causam, temos a vida eterna” (Regra Não Bulada, 22). O tema da sequela Christi é caro a Francisco. Diz-se mesmo que ele caracteriza a espiritualidade franciscana. Será verdade se colocarmos nesta expressão um conteúdo justo. O tema tomado de 1Pd 2,21 não alude aos fatos e gestos da vida pública de Jesus que deveriam ser reproduzidos pelo discípulo. Trata-se, antes de tudo, de um convite a que ele entre, com serenidade e paciência, no mistério da bem-aventurada paixão do Senhor e desta forma poder participar de seu destino doloroso e glorioso. Mais do que uma mística da pobreza, entendida do ponto de visto sociológico, a “sequela” é mística da Paixão, desembocando, na esteira do Senhor, na glória. Caminhar nas pegadas do Senhor, é viver conforme todas as exigências do Evangelho, incluindo sofrimento e morte e abrir-se às promessas proclamadas pelo Evangelho.

14. Paulo lembra que nossa vida está escondida com Cristo em Deus( Cl 3,3). Nossa vida é a própria vida de Jesus. A vida do cristão consiste em ter os mesmos pensamentos e sentimentos de Cristo Jesus, comportar-se como ele se comportou, permanecer no mundo fazendo o bem aos irmãos, viver e morrer como ele viveu e morreu. A vida espiritual consistirá em viver a existência humana como Jesus viveu em perfeita obediência ao Pai, em extrema fidelidade à terra, quer dizer, num amor sem limites e sem condições. A vida espiritual não é uma outra vida, não exige o sair do mundo, nem esquecer a carne de homem. Ela é, no entanto, viver a vida humana como uma obra de arte.

15. “Seria necessário insistir hoje que a existência humana de Jesus foi uma existência boa, uma existência vivida em plenitude, em suma, uma existência feliz, na qual o amor tornou-se um canto de comunhão, a esperança uma convicção até o fim, a fé uma adesão dia após dia a seu próprio ser de criatura diante do Criador. O seguimento de Jesus comporta também o olhar o céu, tentar ler os sinais, amar as flores dos campos, sentar-se à mesa alegre dos amigos e dos que sabem acolher, viver com outros uma aventura de amizade na busca de um projeto comum. Não há dúvida que, no horizonte do seguimento de Jesus está a cruz. Esta será vista a partir daquele que nela subiu. Ela não é uma fatalidade inglória. É Jesus, que na cruz, revela a autêntica glória: quer dizer a humildade de Deus, seu incontido amor por nós, sua capacidade de sofrer por nõs” (Enzo Bianchi, La vie spirituelle chrétienne, in Vie Consacrée 2000/1, p.47).

16. Nunca esqueceremos que o seguimento do Senhor se vive à luz do mistério pascal. Somente assim pode se realizar. Podemos nos inspirar em determinadas ações que Jesus colocou em sua existência, mas nosso ato de fé pode encontrar seu fundamento somente na ressurreição. Uma vida espiritual deve cuidar de não ser apenas uma imitação de situações humanas. Correríamos o risco, no dizer de Enzo Bianchi, de procurar entre os mortos aquele que vive. Hoje temos a ver com Cristo ressuscitado. O Espírito Santo que esteve presente ao longo da vida de Cristo desde a sua concepção até o último suspiro na cruz é aquele que nos acompanha no conhecimento de Cristo e no seu seguimento, não somente recordando palavras, atos e acontecimentos de Jesus, mas permitindo que vivamos com ele de sorte que Cristo se forme em nós e viva em nós.

17 Francisco de Assis no seguimento de Cristo vai se apropriar dos aspectos mais despojados e desapropriados. Ele vai ter em seus olhos e em seus coração a atenção voltada para os traços do Cristo pobre e despojado. Clara de Assis. por sua vez, pedirá que Inês de Praga mire o espelho e lá veja Cristo pobre e dilacerado. E Clara se apaixonará pelo Cristo esposo pobre. Por ai vai sua identificação com Cristo, segui-lo “assimilando-o”.

18. Os que se preocupam em colocar seus pés nos pés do Senhor, em seguir o Senhor, vão operando a conversão. Este é um dos aspectos fundamentais vida espiritual: uma vida de transformação interior que se exprime num estado de conversão. Terminamos estas reflexões com textos de Michel Hubaut descrevendo o que seria a conversão. Logo que começou a anunciar publicamente a Boa Nova, Jesus se declarou o instaurador de um mundo novo e pedia que seus ouvintes que se convertessem:

• “Converter-se é acolher na fé a iniciativa gratuita, imprevisível de Deus que decidiu, em Jesus, nos visitar pessoalmente para nos salvar, para nos fazer entrar numa felicidade sem fim. Converter-se é aceitar de ser salvo gratuitamente e colocar sua vida em consonância com este acontecimento.

• Conversão e fé participam do mesmo movimento. Converter-se é mudar a direção de sua vida, é ter bastante fé para renunciar a se considerar centro absoluto e autossuficiente. Ter fé para orientar nossa vida, nosso futuro, nossa busca de felicidade em Jesus que nos chama a segui-lo”.

• Converter-se não é em primeiro lugar passar do vício para a virtude, mas viver a mudança radical: aceitar de nunca mais querer construir a vida sozinho, com teimosia, mas acolher em Jesus a iniciativa de Deus, a gratuidade de seu amor, de seu apelo e de seus dons. No começo de tudo não há mais o eu, o homem, mas o Amor de Deus” (Chemins d’interiorité avec Sains François, p. 24-25).

11 de agosto de 2012

Clara, "Plantinha" do Seráfico Pai?


Frei Inácio Dellazari, OFM

Introdução

O título representa a palavra de Santa Clara. O ponto de interrogação é a nossa pergunta. Trata-se de verificar o significado desta autoproclamação de Santa Clara. Sabemos que tanto São Francisco como Santa Clara foram duas personalidades fortes que abriram, à luz do Evangelho, caminhos novos para a Igreja de seu tempo. O Evangelho é a mesma fonte e representa o elo de união entre estes dois santos. A criatividade do amor representa a diversidade que se visibiliza em duas Ordens. Esses dois santos cresceram juntos e espelham a mesma grandeza do Evangelho de duas formas diferentes.

Para este estudo servi-me, para os escritos de Clara, do texto crítico de Bocalli, I.M., Concordantiae Verbales Opusculorum Sancti Francisci et Clarae Assisiensium, Santa Mariae Angelorum, Assisii, 1976; e para os escritos de São Francisco, Esser K, Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, Grottaferrata, Roma, 1978. Usei também as versões CEFEPAL, Escritos de Santa Clara, Vozes, Petrópolis, 1984 e AA.VV., Fonti Francescane, Ed. Messaggero, Padova, 1977.

Para as siglas e abreviações: FF = Fonti Francescane; LegCla = Legenda de Santa Clara; ClaReg = Regra de Santa Clara; ClaTest = Testamento de Santa Clara, Test = Testamento de São Francisco.

1. Clara e Francisco de Assis

A história de Assis é marcada pela vida extraordinária dessas duas pessoas. São Francisco nasceu no ano de 1182/3. Clara nasceu em 1193/4. Clara tinha, portanto, onze anos a menos que Francisco. Quando aconteceu a cena de renúncia de São Francisco diante do pai Pedro de Bernardone e do bispo de Assis, na praça onde se localizava a casa de Santa Clara, ela devia ter mais ou menos uns 13 anos de idade. Já era suficientemente grande para admirar, estranhar, ouvir as opiniões e repercussões de um fato desses, numa pequena cidade como era o caso de Assis. Tudo deve ter sido comentado entre todos, inclusive na própria casa de Clara. Um jovem de Assis, com todas as chances de adquirir títulos de glória, abandona tudo e prefere a companhia de leprosos e mendigos de rua. Como isso tudo deve ter repercutido na vida de Clara!
Pouco tempo depois de Francisco retornar de Roma com o primitivo grupo, e com a aprovação do Papa Inocêncio III de seu projeto de vida (1209/10), entra Rufino no grupo de Francisco, um dos primos de Clara (1).

Com isso, a vida de Francisco repercute na própria família de Clara. O próprio Rufino poderia ter talvez confidenciado a Francisco algo sobre o que intencionava Clara.

Clara, como São Francisco, já antes de sua conversão, era uma pessoa dotada de uma sensibilidade muito grande para com as necessidades dos outros, principalmente dos pobres e necessitados. Segundo a Legenda de Clara, "às escondidas enviava alimentos aos órfãos"(2). Segundo Pacífica de Guelfuccio, Clara "amava muito os pobres" e "gostava de visitar os pobres" e era tida "com grande veneração pelos cidadãos”(3). Parece que a sua personalidade se identificava muito com a de São Francisco. Por isso talvez não seja nada estranho que essas duas pessoas tivessem uma afinidade e compreensão muito grande de uma para com a outra.

Clara, "ouvindo falar neste tempo de Francisco, cujo nome já era famoso e que como homem novo renovava com novas virtudes o caminho da perfeição esquecido no mundo, logo quis ouvir e ver”(4). São Francisco, por sua vez, "sabendo da ótima fama de tão agraciada jovem (talvez Rufino tenha falado), não é nele menor o anseio de encontrá-la e falar-lhe"(5). A legenda deixa claro que há um interesse de ambos em conversar e se encontrar. Começam então os encontros. Parece que a primeira vez, foi Francisco a visitar Clara. Clara, porém, visitou mais vezes Francisco. Desses encontros nasceu, aos poucos, uma profunda amizade entre os dois na comunhão do mesmo ideal de vida evangélica.

Conta também a legenda que esses encontros se realizavam às escondidas, sem que ninguém soubesse. Não eram mais freqüentes "para que essa amizade não fosse percebida pelas pessoas, nem fosse denegrida pela opinião pública"(6). Para evitar qualquer suspeita, Francisco se fazia acompanhar de Frei Filipe Longo, e Clara, de Bona de Guelfuccio (7). Clara "confia-se inteiramente à prudência de Francisco, escolhendo-o, após Deus, para mestre de sua direção"(8).

Nesses encontros foi amadurecendo em Clara o ideal de vida que buscava e foi também preparada a sua fuga da casa paterna. Na noite de Domingo de Ramos de 1212, juntamente com Pacífica de Guelfuccio, Clara foge de casa e se dirige à Porciúncula, onde Francisco e os frades a aguardavam para a celebração da consagração de sua vida ao "Altíssimo Pai Celestial". Os frades a aguardaram em vigí1ia, com tochas acesas, ao pé do altar da bem-aventurada Virgem Maria. Segundo a legenda, foi o "lugar onde a nova milícia dos pobres, conduzida por Francisco, teve seu início feliz, para que ficasse patente que a Mãe de misericórdia, na sua habitação, desse à luz ambas as famílias religiosas" (9).

E de fato, não poderia ter sido outro, o lugar escolhido do que o lugar onde moram os pobres. Fora dos muros da cidade de Assis, em meio às inseguranças do mundo dos pobres, na igrejinha que São Francisco recebeu por ser a mais pobre, é somente aí que poderia nascer uma fraternidade universal, sem exclusão. Foi a partir do lugar do pobre que Santa Clara e São Francisco conheceram a possibilidade da fraternidade e onde eles mesmos puderam fazer a experiência de fraternidade. Foi ali que São Francisco deixou de ser filho de Pedro Bernardone e Clara de Favarone, e tornaram-se irmãos.

Despojados da ambição dos comerciantes e nobres, que disputavam a hegemonia em Assis, entre os menores sociais e a partir deles nasceram duas fraternidades de menores evangélicos.

Clara foi acolhida por Francisco e pelos frades no mesmo lugar que para Francisco e para a comunidade primitiva franciscana representa o centro de reunião e de irradiação da vida do Evangelho.

A legenda distingue bem quando fala de ambas as famílias religiosas, mas geradas pela mesma "Mãe de misericórdia". Há algo em comum e algo que distingue. Giacomo da Vitry, na carta escrita em outubro de 1216, enxergava um mesmo movimento, de "ambos os sexos, que, despojando-se de qualquer propriedade, abandonam o mundo. Chamam-se frades menores e irmãs menores". A distinção que é feita refere-se ao modo de vida. Os frades dedicam-se ao apostolado durante o dia e se recolhem à contemplação à noite; enquanto que as mulheres "convivem em alguns hospícios não distantes das cidades; não aceitam doações, mas vivem com o trabalho de suas mãos"(10). Segundo Vitry, há uma identificação nos "menores" e uma distinção no concretizar a mesma vocação.

A presença de São Francisco continuou na procura de um lugar para Clara até que por "vontade do Senhor e de São Francisco" foram morar junto à igreja de São Damião, onde, em pouco tempo, cresceram em número (11). Depois de se estabelecerem em São Damião, São Francisco continuou a acompanhá-las através de exortações escritas. Segundo Clara, São Francisco durante a sua vida deixou "vários escritos" (plura scripta) (12), além de auxiliá-las através da palavra e do exemplo.

Santa Clara, em seu Testamento, recomenda as irmãs aos cuidados do sucessor de São Francisco: "E como ele durante toda a sua vida mostrou tanto cuidado em palavras e obras para tratar e cuidar de nós, suas plantinhas, assim também recomendo agora as minhas irmãs, presentes e futuras, aos cuidados do sucessor de nosso Pai São Francisco e de toda a sua Ordem, para que eles nos ajudem a crescer sempre no serviço de Deus e especialmente na melhor observância da santa pobreza"(l3)

2. "Depois que o Altíssimo Pai Celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar meu coração, comecei a viver em penitência ... "(14)

Embora Clara se considere e insista em proclamar-se "plantinha de São Francisco", ela reconhece na sua vocação a iniciativa de Deus. O começo, o início da mudança em sua vida deve-se à misericórdia do Altíssimo que se dignou iluminar o seu coração. A vocação, segundo Clara, não foi plantada por Francisco, mas pelo Pai Celestial. Clara, então, começa a viver em penitência por causa de uma semente semeada por Deus em sua vida.

A chegada das irmãs é compreendida por Clara da mesma forma: "Se alguém, por inspiração divina, vier ter conosco, querendo abraçar esta vida" (15); "e juntamente com as poucas irmãs que o Senhor me tinha dado ... "(l6). Não somente em si mesma Clara reconhece a iniciativa de Deus, mas também nas irmãs que "por inspiração divina" até ela chegam, dando início a uma nova fraternidade. Clara não atribui a si mesma a sua conversão, nem a das outras irmãs. Aí há uma perfeita sintonia com São Francisco que também não se apropriava daquilo que pertence ao Senhor. Vejamos isso em São Francisco.

São Francisco, no Testamento, no final de sua vida, descreve assim o início de sua vida de penitência: "Foi assim que o Senhor me concedeu a mim, Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência: como estivesse em pecado, parecia-me amargo olhar para leprosos, mas o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia para com eles. E ao afastar-me deles, o que antes me parecia amargo se me converteu em doçura da alma e do corpo. E depois de bem pouco tempo abandonei o mundo"(17).

São Francisco reconhece que foi o Senhor que lhe concedeu iniciar a vida de penitência. Tanto Francisco como Clara não atribuem a si próprios, nem um ao outro, o "início da vida de penitência", mas ao Senhor, ao Altíssimo.

Uma diferença entre São Francisco e Santa Clara aparece no segundo momento. São Francisco, quando se trata de mostrar como o Senhor concedeu o início dessa vida, coloca a figura do irmão leproso. A sua conversão, a mudança em sua vida é mediada pela presença do leproso. São Francisco separa em si mesmo dois tempos: aquele em que era amargo olhar para a figura do leproso e aquele em que olhar para o leproso se tornou doçura da alma e do corpo. O critério para verificar a sua conversão é a capacidade de olhar para a figura do irmão leproso. Santa Clara escreve que começou a "viver em penitência conforme o ensinamento e o exemplo de nosso Pai São Francisco, pouco depois de sua conversão". O Altíssimo Pai Celestial se dignou iluminar o coração de Clara mediante o ensinamento e exemplo de São Francisco. Pelos "ensinamentos e pela vida admirável (laudabilem)" de Francisco, Santa Clara experimentou a luz e a graça do Altíssimo Pai Celestial.

O Senhor concede a Francisco iniciar o processo de conversão mediante o encontro com o leproso; o Senhor concede a Santa Clara iniciar o processo de conversão mediante o encontro com o irmão Francisco. Tanto a conversão de Clara como a de Francisco passaram pela mediação do irmão. A graça do Senhor passa pela presença do irmão. Tanto Francisco como Clara fizeram esta profunda experiência de encontro com o Senhor. É a mesma inspiração, o mesmo Evangelho, o mesmo Senhor que concede. Fica mais claro ainda quando Clara escreve: "O Filho de Deus se fez para nós caminho. E foi este caminho que nosso Pai São Francisco, seu autêntico apaixonado e imitador (amator et imitator) nos mostrou e nos ensinou pela palavra e pelo exemplo" (18); como também: "Devemos, pois, queridas irmãs, contemplar os imensos benefícios que Deus nos concedeu, de modo especial aqueles que ele se dignou realizar em nós por seu dileto servo, nosso Pai São Francisco”(19). São Francisco é para Clara aquele que mostrou o caminho de Jesus Cristo, aquele, através do qual, Deus concedeu imensos benefícios.

3. “Escreveu para nós uma forma de vida”

Santa Clara inseriu a forma de vida que São Francisco escreveu no capítulo VI de sua Regra: "Desde que, por inspiração divina, vos fizestes filhas e servas do Altíssimo e Sumo Rei, o Pai Celestial, e desposastes o Espírito Santo, escolhendo uma vida conforme com a perfeição do santo Evangelho, quero eu, o que prometo por mim pessoalmente e por meus irmãos, nutrir sempre, a bem de vós, o mesmo e diligente cuidado e solicitude como por eles”(20). Nessa forma de vida, como é próprio de São Francisco, a inspiração divina está na origem da vocação de Clara. São Francisco promete por ele pessoalmente, e por seus irmãos, ter um igual cuidado e solicitude para com as irmãs como a tem para com seus irmãos. E a razão desse compromisso é: desde que vos fizestes filhas e servas do Altíssimo e Sumo Rei ... , escolhendo uma vida conforme a perfeição do santo Evangelho. Francisco se sente responsável a partir do momento em que Clara e suas irmãs escolhem a mesma vida que ele e os frades escolheram: a perfeição do Evangelho. A fraternidade que nasceu ao redor de Francisco e de Clara tem o mesmo projeto de vida. E Clara acrescenta no final da forma de vida escrita por Francisco: "E ele cumpriu fielmente esta promessa todo o tempo de sua vida e quis também que seus irmãos a cumprissem". Clara pede que o mesmo cuidado e solicitude de Francisco se perpetue com os seus seguidores para com elas. Através de Francisco lhe foi mostrado o caminho do Evangelho. Preocupada na perseverança deste ideal, quer que os irmãos de Francisco continuem auxiliando no seguimento do Evangelho. E o próprio Francisco, na Última vontade manifestada a Santa Clara, escreveu: "Eu, Frei Francisco, o menor de todos, quero seguir a vida e a pobreza do nosso Altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua Santíssima Mãe e nela perseverar até o fim. Rogo-vos, senhoras minhas, e dou-vos o conselho de viverdes sempre esta santíssima pobreza. Guardai-vos cuidadosamente de vos afastardes dela pelos ensinamentos ou conselhos de quem quer que seja”(21). Francisco está aqui se dirigindo às irmãs da mesma forma que se dirige aos irmãos. Ele se coloca como o menor de todos; ele mesmo promete primeiro cumprir aquilo que pede para ser cumprido; e com a terminologia característica: "rogo-vos", "guardai-vos cuidadosamente". São Francisco revela-se um pai espiritual para Santa Clara da mesma forma que o foi para os frades. Se Clara enxergava em Francisco um pai, Francisco, por sua vez, manifesta uma paternal afeição e zelo para com as damas de São Damião. Afinal, ele foi cúmplice na santa fuga de Clara, ele participou da preparação de todos os momentos até culminar naquela noite de Domingo de Ramos na Porciúncula. Não deveria ele se preocupar com a perseverança desse grupo reunido ao redor de Santa Clara? É isso que Santa Clara pede com insistência. A atitude de Santa Clara parece-me ser a mesma de Frei Leão que pede ajuda e recebe um bilhete de São Francisco; é a mesma atitude do ministro que escreve uma carta a São Francisco, pedindo para abandonar a fraternidade e ir para um eremitério. Aos dois, e a muitos outros, a presença de Francisco foi sempre uma ajuda no sentido de zelar pela fidelidade ao projeto do Evangelho. Para Frei Leão, São Francisco se revela como alguém que respeita profundamente a individualidade de cada irmão: "Do modo que melhor te parecer agradar ao Senhor Deus, e seguir seus passos e sua pobreza, assim farás com a bênção do Senhor Deus e a minha obediência". E mais: "E se, por motivo de tua alma ou de outra tua consolação, precisares e quiseres vir ter comigo, ó Leão, vem". É Frei Leão quem vai ter que descobrir o jeito de agradar ao Senhor Deus. São Francisco não tira a liberdade dos irmãos de serem criativos na resposta ao Evangelho. Com Santa Clara, me parece que acontece o mesmo. São Francisco não moldou Santa Clara, mas ao mesmo tempo demonstrou sempre uma preocupação muito grande em zelar pelo projeto do Senhor como escreve na Carta aos Fiéis II, 2-3: "Como o servo de todos, a todos tenho a obrigação de servir e ministrar as palavras de meu Senhor, cheias de suave perfume. E considerando comigo que, devido às enfermidades e fraquezas do meu corpo, me é impossível visitar pessoalmente a cada um de vós, resolvi comunicar-vos por meio desta carta e de mensageiros as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é o Verbo do Pai, e as palavras do Espírito Santo, que são espírito e vida".

4. "A forma de vida da Ordem das pobres irmãs que o bem-aventurado Francisco fundou é esta ... "

Santa Clara, no início de sua Regra, atribui a fundação da Ordem das pobres Irmãs a São Francisco: "A forma de vida da Ordem que o bem-aventurado Francisco fundou (instituit) ...”(22). Logo em seguida promete "obediência e reverência ao senhor Papa Inocêncio" e declara que "no início de sua vida prometeu obediência, juntamente com suas irmãs, ao bem-aventurado Francisco, assim também promete obedecer firmemente aos seus sucessores". São muitas as vezes em que Clara revela essa ligação com Francisco por uma promessa de obediência (23). São Francisco, por sua vez, promete zelar pela vida das irmãs que escolheram viver conforme a perfeição do Evangelho. Parece claro que não se trata daquela obediência à qual Francisco se refere na RNB XII, onde São Francisco proíbe que alguma mulher seja recebida por algum irmão à obediência. Santa Clara não foi admitida, naquela noite de Domingo de Ramos, à fraternidade de Francisco. São Francisco, inclusive, ajudou a providenciar um lugar onde Clara pudesse ficar. Mas o que chama a atenção é que Clara "promete obediência somente a Francisco, ignorando qualquer outra hierarquia de qualquer espécie"(24). Que tipo de relacionamento se estabelece entre São Francisco e Santa Clara? Como entender a insistência de Clara em prometer obediência a Francisco e a obrigação das irmãs em obedecerem ao sucessor de Francisco?

Que Santa Clara não se considera fundadora, não pensa o Papa Alexandre IV. Na bula de canonização de Santa Clara, Alexandre IV não proclama São Francisco o fundador, mas a própria Clara como o "primeiro estável fundamento dessa grande Ordem" e como a "pedra angular desse sublime edifício". São Francisco, na mesma bula, é aquele que teve uma presença marcante no início da conversão de Clara: "Ouvindo da sua boa fama, começou logo a exortá-la, induzindo-a a servir a Cristo com toda a perfeição". Santa Clara responde como aquela que "prontamente atendeu a seus santos conselhos”(25). Clara atende a Francisco, fazendo aquilo que também os frades deviam fazer: "Distribuiu os bens que possuía aos pobres", para colocar-se no caminho de Jesus Cristo.

São Francisco, na bula de canonização de Santa Clara, é aquele que ajuda Santa Clara a chegar até São Damião, onde começou a "insigne e sagrada Ordem de São Damião". A mesma bula deixa entender que Santa Clara não queria encarregar-se do governo do convento e das irmãs, mas por insistência de São Francisco ela o aceitou: "E passados alguns anos, a própria bem-aventurada Clara, cedendo aos insistentes apelos de São Francisco, se encarregou do governo do convento e das irmãs" (26).

Na sua continuação, a bula põe toda a atenção somente em Clara, revelando os seus méritos: "Ela foi a árvore ... que, plantada no campo da Igreja, produziu o doce fruto do fervor", proporcionando "nova fonte de água viva para saciar as pessoas"; essa fonte "regou as sementeiras da vida religiosa"; "ela foi porta-estandarte dos pobres, guia dos humildes, mestra dos mortificados e abadessa dos penitentes"; "sua vida era uma doutrina e ensino para os demais, que no livro de sua conduta aprenderam a regra de vida".

A figura de Clara que emerge da Bula de canonização, que representa o reconhecimento da Igreja, é a de uma mulher que renova a vida evangélica na Igreja. Essa acontece mediante sua personalidade enérgica, corajosa e austera. Uma pessoa extremamente amável com as irmãs, mas muito austera consigo mesma.

5. A imagem de São Francisco para Santa Clara

Buscando olhar para Francisco com o olhar de Santa Clara, vamos tentar colher a imagem de Francisco segundo a visão de Clara. Isso nos ajudará a compreender o relacionamento humano-espiritual entre esses dois santos e, principalmente, o que São Francisco significava para aquela que se considerava sua "plantinha".
A imagem mais forte de Francisco para Clara me parece ser a de Exemplo. Em São Francisco é encontrado por Clara um exemplo de como seguir a Jesus Cristo. Através do seu jeito de viver o Evangelho, Clara encontrou uma resposta para sua aspiração de vida. Isso é confirmado de uma forma clara no Testamento: "O Filho de Deus se fez caminho. E foi esse caminho que nosso Pai São Francisco ... nos mostrou e nos ensinou pela palavra e pelo exemplo”(27). Santa Clara começa a fazer penitência "conforme o ensinamento e o exemplo de São Francisco”(28). Esse exemplo foi dado pelo Senhor: "Pois o Senhor nos deu um exemplo, um modelo e um espelho, não apenas para os outros, mas também para nossas irmãs"(29). O Pai Celestial "gerou este rebanho em sua santa Igreja pela palavra e pelo exemplo do nosso Pai São Francisco ..."(30).

São Francisco é a testemunha de profissão religiosa de Santa Clara. Foi diante dele e de uma pequena fraternidade que Clara, diante do altar da Virgem Maria, prometeu observar o Evangelho. A promessa de observar a santa pobreza ao Senhor e a Francisco foi mais tarde confirmada pela Igreja. Mas, no início, Francisco foi a testemunha: "E para maior certeza, a fim de que mais tarde não nos desviássemos dela, tive a preocupação de adquirir por meio de privilégios do Papa Inocêncio, sob cujo pontificado começamos, e dos seus sucessores, a confirmação desta santa pobreza que prometemos na nossa profissão ao nosso pai”(31). Essa promessa feita a Deus e ao nosso Pai Francisco é recordada por Santa Clara e repetida em seus escritos muitíssimas vezes, principalmente no seu Testamento.

Santa Clara vê em Francisco alguém dado pelo Senhor como "fundador, plantador e auxílio no serviço de Cristo" (fundatorem, plantatorem et adiutorem). A presença de Francisco na vida de Clara, principalmente no início de sua conversão, foi muito significativa, humana e espiritualmente. A experiência da ruptura com a família, o jogar-se na insegurança fora dos muros da cidade de Assis, a insegurança fora dos muros do castelo, na vida de pobreza e trabalho, essa experiência foi muito dura para Clara. O único apoio foi o de Francisco e seus irmãos que a acolheram. Clara encontrou alguém que já tinha passado por essa experiência e, por isso, com todas as condições de ajudá-la. Santa Clara vê em Francisco o "apoio depois de Deus, nossa única consolação e refúgio". Durante a sua vida, Francisco acompanhou a comunidade de Clara com exortações escritas e orais. O que permaneceu desses escritos foram apenas a Forma de vida e a Última vontade. Como esse auxílio de Francisco no serviço a Cristo representou para Clara um auxílio na perseverança daquilo que prometeu ao Senhor, recomenda as irmãs "presentes e futuras aos cuidados do sucessor do Pai Francisco e de toda a Ordem”(32). Aqui Santa Clara olha para o futuro e quer que se perpetue, assim como ela experimentou, esse relacionamento de ajuda entre as duas Ordens. No capítulo VI da Regra, Santa Clara recorda a promessa feita por São Francisco de nutrir sempre o mesmo diligente cuidado para com elas como o teve para com seus irmãos e quis que seus irmãos fizessem o mesmo. Santa Clara entende que a sua fraternidade deve caminhar junto com a de Francisco e espera a continuidade de sua presença através da presença dos irmãos de Francisco.

Para Clara, Francisco é alguém que vibra e se alegra com a firmeza e decisão com que ela e as outras irmãs abraçaram o ideal evangélico de vida: "Francisco então ficou cheio de alegria no Senhor quando percebeu que nós, embora corporalmente fracas e sem força, não receávamos a pobreza, o trabalho, a tribulação ... segundo o exemplo dos santos e dos irmãos de Francisco, como ele mesmo e os seus irmãos experimentaram”(33). Aqui, Clara está colocando a sua fraternidade em relação de igualdade com a fraternidade de Francisco. Clara revela que elas experimentam as mesmas exigências evangélicas que São Francisco e seus irmãos experimentam. Não é uma situação de inferioridade. E isso além de se colocarem numa situação de "corporalmente fracas e sem força". Volta novamente a questão da identidade comum das duas fraternidades no Evangelho. E Clara continua depois dizendo: "Movido de amor para conosco, aceitou para si e para sua Ordem a obrigação de ter sempre de nós o mesmo cuidado e atenção especial como de seus próprios irmãos". A preocupação de Clara é a de não se afastar do ideal do Evangelho. Por isso, insiste em não ser abandonada pela fraternidade daquele, através de quem as duas Ordens tiveram início.

Considerações finais

Um estudo sobre Santa Clara leva à percepção de que Clara não se compreende independentemente de Francisco. São Francisco foi para Santa Clara um instrumento de conversão. Nos seus escritos, o nome de São Francisco é citado 31 vezes. Enquanto que nos Escritos de São Francisco não aparece o nome de Clara uma só vez. O relacionamento de Clara com Francisco é muito mais conhecido através dos escritos de Clara. A Forma de vida escrita por São Francisco, a Última vontade de São Francisco foram inseridos por Clara em seus escritos. Todo o amor e dedicação de São Francisco pela fraternidade de São Damião, a sua atenção para com aquele pequeno rebanho nos é conhecido através de Clara. Chega, então, até nós a imagem de Francisco vista por Santa Clara. Seria, então, Clara alguém que nos ajuda apenas a conhecer melhor São Francisco? Creio que não se pode fazer essa afirmação. O silêncio de São Francisco em seus escritos sobre Santa Clara reflete aquele respeito à individualidade e à originalidade que ele também tinha para com cada irmão. Ao redor de São Francisco cada irmão podia ser ele mesmo. O Evangelho era a fonte comum. Todos bebiam da mesma água. Ligados à mesma fonte, todos respondiam criativamente segundo a própria originalidade. A fisionomia da fraternidade era dada por Deus através do Evangelho. Não era Francisco quem moldava os irmãos. Por isso, nasceu uma fraternidade original. O relacionamento de Francisco com Santa Clara se deu da mesma forma. Santa Clara pode ser ela mesma. A sua Fraternidade não foi uma cópia da Fraternidade de São Francisco. O que ela aprendeu de São Francisco foi a pedagogia evangélica. E, segundo a bula de canonização, São Francisco teria insistido para que ela assumisse o governo do convento e das irmãs de São Damião. Isso revela que São Francisco ajudou Santa Clara a ser ela mesma e assim enriquecer a família franciscana com a sua resposta individual de mulher.

Santa Clara, na sua humildade, não seria capaz de atribuir alguma coisa a si mesma. Ela reconhece que todos os dons têm sua origem na única fonte do Bem, aquele que é o Sumo Bem. Quando suas irmãs falam do processo de canonização, aí emerge todo o esplendor de alguém que plantou a semente da santidade no coração das companheiras. Quando a Igreja fala na figura do Papa Alexandre IV, na bula de canonização, há todo o reconhecimento de uma vida que "iluminou pelas suas obras luminosas", "escondia-se num mosteiro apertado, mas espalhava-se amplamente pelo mundo afora"; "vivia oculta na cela, mas era conhecida nas cidades".