30 de novembro de 2011

Meditação Diária


“Felicidade é a certeza de que a nossa vida não está se passando inutilmente”.
(Érico Veríssimo)

E a vida, diga lá o que é meu irmão? É sopro do Criador, é sangue, alma e coração! Muito mais do que isso, é desejo intenso de ser “presença”, sentimento, amor e realização. E a vida, diga lá o que é meu irmão? É respiro, é pura vontade que brota da alma que é origem de todo começo e que está nas mãos do Criador e que nos envia num caminho de luz para atingirmos nosso destino maior.

E a certeza que trazemos em nós escorre facilmente pelas mãos se ela não estiver alicerçada num projeto divino. A certeza que podemos dar à vida consiste na nossa capacidade humana de fazer dela algo grandioso, pois ela é um projeto infinito. Faça, pois tudo que está a teu alcance: apaixone, ame, doe, ria, dance e cante sua canção! Afinal a vida é muito grande para ser perdida com coisas pequenas!

Frei Paulo Sérgio de Souza, OFM

28 de novembro de 2011

Advento, tempo de esperança num mundo melhor

“O tempo do Advento é tempo de preparação: preparar o coração para acolher a novidade radical que é o próprio Deus irrompendo no mundo. O que requer de nós uma espera vigilante, uma esperança operosa e uma expectativa ativa. Uma espera que é preparação.”
A reflexão é de André Langer, pesquisador do Cepat, em artigo publicado no jornal Folha Diocesana, da diocese de São José dos Pinhais, PR, edição de novembro de 2011.

André Langer é sociólogo, com mestrado em Ciências Sociais pela Unisinos e doutorado em Sociologia pela UFPR. É também bacharel em Teologia.
Eis o artigo.
“Alegrem-se os céus e a terra,
porque o Senhor nosso Deus virá
e terá compaixão dos pequeninos” (Is 49, 13).

Possivelmente você, eu, outros, já dissemos: “Novamente é Tempo de Advento”, sem muita convicção, como se isso fosse apenas parte de um ciclo do tempo que anualmente se repete. Pelo efeito da repetição, torna-se algo automático, rotineiro, um costume, uma tradição. Ou como se o “advento”, na verdade, caracterizasse uma disposição psicológica para o final do ano, para os tempos de festas, as férias, o verão, o descanso, as viagens... Dessa maneira, o verdadeiro Advento vai sofrendo uma corrosão em seu sentido mais profundo, em sua dimensão de real preparação para o acolhimento do Salvador entre nós.

Uma passagem de São Paulo, na carta aos filipenses (4, 4-6), mostra de modo claro o espírito com que o tempo do Advento deve ser encarado: “Fiquem sempre alegres no Senhor! Repito: fiquem alegres! Que a bondade de vocês seja notada por todos. O Senhor está próximo. Não se inquietem com nada. Apresentem a Deus todas as necessidades de vocês através da oração e da súplica, em ação de graças.”

A alegria faz parte da preparação para o Natal. Já nos sabemos salvos e acolhidos no Senhor. Basta que destravemos o nosso coração, para que se abra à alegria que vem Dele. A verdadeira alegria não é sinônimo de risadas ou gargalhadas, muitas vezes superficiais e enganosas e que disfarçam tristezas interiores.

A verdadeira alegria brota do coração, como dom de Deus, por todas as maravilhas que Ele realiza, inclusive a encarnação de seu Filho Jesus. Assim, uma pessoa alegre, é alegre também quando suporta as adversidades da vida, o sofrimento... Por isso, a alegria é uma graça que podemos pedir ao longo deste Advento.

Alegria que brota da certeza da presença de Deus no meio do seu povo. “Canta de alegria, cidade de Sião; rejubila, povo de Israel! Alegra-te e exulta de todo o coração, cidade de Jerusalém (...). O Senhor, teu Deus, está no meio de ti” (Sf 3, 14.17).

A alegria expulsa o medo. Jesus, em várias ocasiões, precisa reconfortar os seus discípulos, dizendo-lhes: “Não tenham medo” (Jo 6, 20). O medo e a alegria não têm a mesma origem, nem produzem os mesmos frutos em nós. Enquanto o medo vem do espírito do mal e deixa o coração do cristão tímido e calculista, a alegria, vinda de Deus, faz explodir em bondade, generosidade, abertura e criatividade.

O tempo do Advento é, por isso mesmo, tempo de preparação: preparar o coração para acolher a novidade radical que é o próprio Deus irrompendo no mundo. O que requer de nós uma espera vigilante, uma esperança operosa e uma expectativa ativa. Uma espera que é preparação.

Esta preparação requer vigilância. “Cuidado! Ficai atentos, porque não sabeis quando chegará o momento. (...) Vigiai, portanto (...) para que não suceda que, vindo de repente, ele vos encontre dormindo. O que vos digo, digo a todos: Vigiai!” (Mc 13, 33-37). Uma advertência que repousa a nossa atenção sobre a práxis. Um exame de consciência que nos deve fazer retornar às nossas origens, ao nosso primeiro Amor.

Com certeza, descobriremos que reformas deverão ser implementadas: “Abram no deserto um caminho para Javé; na região da terra seca, aplainem uma estrada para o nosso Deus. Que todo vale seja aterrado, e todo monte e colina sejam nivelados; que o terreno acidentado se transforme em planície, e as elevações em lugar plano” (Is 40, 3-4). Séculos depois, Lucas colocará esta passagem na boca de João Batista, aquele que vem preparar o caminho para Jesus (Lc 3, 4b-6).

O Advento é, pois, um tempo forte (kairós) para dispor a nossa vida toda a serviço da vontade de Deus. Um tempo para tirar as amarras e a tibieza do nosso coração. Pode-nos ajudar nessa tarefa olhar para alguns personagens marcantes, que a Igreja nos coloca como modelos dessa preparação: João Batista, José e especialmente Maria. Cada um, a seu modo, preparou-se para acolher Jesus. João Batista, através do chamado à conversão e pelo batismo de conversão; José e Maria, renunciando aos seus projetos de vida para se abrirem ao apelo que Deus, através dos anjos, lhes fez. Maria, aplainando o caminho da sua vida, ao final do processo de discernimento e tomada de decisão, exclamou: “Faça-se em mim segundo a tua vontade” (Lc 1, 38).

Esse é o espírito com o qual o Tempo do Advento deve ser encarado. Algumas atitudes, práticas e gestos podem contribuir para alcançar os frutos desejados pelo Advento. Elencamos algumas práticas:

a) participação atenta e renovada da Eucaristia, com atenção às antífonas, leituras bíblicas, cantos, que expressam esperança e expectativa;

b) participação na Novena em Famílias, meio para aprofundar o espírito do Advento e reforçar os laços de comunhão e fraternidade;

c) mutirões para um Natal sem fome (coleta de alimentos, roupas...), que abrem para a solidariedade com os mais necessitados;

d) presépios que reproduzam o espírito desejado por São Francisco de Assis, na linha da simplicidade e da humildade descrita por São Paulo: “Tenham em vocês os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo: Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens” (Fl 2, 5-7).

e) encontrar meios para se comprometer com as grandes causas do mundo de hoje e que dizem respeito ao “bem viver” de todos na Terra.

Um dos frutos desejados pelo Ciclo do Natal é o compromisso com a transformação do mundo, isto é, proporcionar a todas as pessoas e a cada uma “a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas”, como disse Paulo VI na Encíclica Populorum Progressio, sempre em sintonia com a preservação da vida na Terra.

Esperança é semear, é plantar. A semente germinando espanta a fome e aproxima o dia da colheita, da fartura. Concluindo estas singelas reflexões, remetemos o leitor(a) à mensagem do poeta Thiago de Mello, ao último verso de Madrugada camponesa:
“Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro mas eu canto
porque a manhã vai chegar.”

EXTRAÍDO DE :
http://brasilfranciscano.blogspot.com/2011/11/advento-tempo-de-esperanca-num-mundo.html

24 de novembro de 2011

Meditação Diária


“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.
(Vinícius de Moraes)

Encontros preciosos não são necessariamente os que nos trazem jardins já floridos. São, na maioria das vezes, aqueles que semeiam nossos corações ou nos ofertam mudas... Encontros são possibilidades únicas de mudanças e transformação, pois abre-nos portas, janelas e caminhos. Quando nos dispomos a realizar encontros significa nossa decisão de sair de nossa zona de conforto para irmos na direção da outra pessoa.

Procure criar espaços novos em sua vida. Abra portas e janelas. Permita que a brisa suave do amanhecer refrigere seu coração. É tempo de realizar encontros, de conhecer novas pessoas e criar novos laços de amizade. Viver é um processo! E o que faz desse processo um privilégio é a possibilidade de encontros genuínos, nos quais cada um de nós toca e é tocado pelo outro, naquilo que é mais sagrado...o coração!

Frei Paulo Sérgio de Souza, OFM

23 de novembro de 2011

Por Egidio Picucci - L'Osservatore Romano


As Origens do Texto Atribuído a São Francisco de Assis
É excepcional a difusão da oração simples atribuída a São Francisco de Assis, conhecida em todo o mundo, graças, sobretudo, à sua espontaneidade e à sua referência às expectativas mais humanas. Traduzida em todas as línguas, foi e é recitada no âmbito de numerosíssimos encontros e por eminentes personalidades do mundo eclesiástico, literário e político. Tendo que fazer uma escolha, basta recordar que em 1975 ela foi recitada em Nairobi durante uma reunião do Conselho ecumênico das Igrejas; que em 1986 esteve no centro das orações dos participantes do encontro dos representantes de todas as religiões, organizado por João Paulo II em Assis; que em 1989 em Basileia abriu o Congresso ecumênico europeu.
A oração não deixara de espantar Madre Teresa de Calcutá, que brevemente explicou sua importância, e convidou a recitá-la no dia em que, em Oslo, recebeu o prêmio Nobel da paz (1979), revelando que, em seu instituto, ela era rezada todos os dias, depois da comunhão; Helder Pessoa Câmara, o então Arcebispo de Olinda e Recife (Brasil), a incluiu nas "Páginas do Caminho para as comunidades abramíticas"; Margaret Thatcher recitou uma parte dela em 4 de Maio de 1979, dia da sua nomeação como primeiro ministro; o Bispo anglicano Desmond Tutu (Nobel pela paz em 1984), confessou que "ela fazia parte integrante" de sua devoção; Bill Clinton a inseriu no discurso de saudação a João Paulo II ano aeroporto de Nova York em 1995, acrescentando com mal disfarçada altivez que "muitos americanos, católicos ou não, a tem em seu bolso, na bolsa ou em suas agendas".
O elenco poderia continuar e longamente, mas a nós interessa fazer conhecer somente um aspeto da longa história que circunda a oração, e isto é o papel que teve o “Osservatore Romano" ao fazê-la conhecer do grande público.
Em 1915, no dia seguinte da declaração da primeira guerra mundial, BENTO XV compôs uma oração pela paz, traduzida em francês, inglês, alemão, espanhol, português, russo e polaco, convidando todos os católicos da Europa a recitá-la no domingo, 7 de Janeiro, no mesmo momento em que ele mesmo a teria rezado diante do altar de São Pedro, junto com os Cardeais e com a Cúria pontifícia.
"Na França - afirma Christian Renoux, docente de história na universidade de Orleans - o Governo se opôs a tal recitação, temendo que o Papa convidasse a rezar pela vitória do catolicíssimo império austro-húngaro. Confiscou, pois, todos os folhetos em que a oração fora impressa e censurou os boletins paroquiais que a reproduziam".
Algum tempo antes, o Marquês Stanislas de A Rochethulon, presidente da associação anglo-francesa Souvenir Normand - que se qualificava como "obra de paz e de justiça ideal, inspirada no testamento de Guilherme, o Conquistador, considerado antepassado de todas as famílias reais da Europa, para fazer ressaltar o papel que tiveram a lei e o direito estabelecidos pelos conquistadores normandos" – tinha feito chegar ao Papa duas orações pela paz e um cântico dedicado a Nossa Senhora das Normandias. A primeira oração era uma invocação "à Nossa Senhora dos Normandos e aos seus santos e santas padroeiros”; a segunda, uma "bela oração a recitar durante a Missa", publicada por um certo abbé Bouquerel, redator do semanário católico "A Croix de Orne", retomada no número de Dezembro de 1912 do periódico "La Clochette", um revistinha católica de caráter devocional fundada em Outubro de 1901, e que se qualificava como "boletim da Liga da Santa Missa".
Era a atual Oração Simples – assim a chamou Giuseppe João Lanza del Vasto, e assim é conhecida na Itália - apareceu anônima pela primeira vez na "La Clochette" ("A campainha"), termo claramente designativo da pequena campainha que se toca durante a celebração eucarística. A oração agradou seja ao Papa como ao Cardeal Pietro Gasparri, Secretário de Estado, mesmo porque o Marquês a tinha feito apresentar como "oração ao Sagrado Coração", devoção cara ao Papa, o qual, na oração pela paz de 1915, tinha feito várias vezes referência ao Sagrado Coração.

"A pedido do Papa (e do Cardeal Gasparri) - acrescenta Christian Renoux - a Secretaria de Estado enviou o texto ao "Osservatore Romano" que a publicou na primeira página no dia 20 de Janeiro de 1916, traduzida em italiano, junto com uma breve informação explicativa, intitulada “As orações do Souvenir Normand pela paz" O redator, que fez algumas correções secundárias, não obstante tivesse escrito que a apresentava "textualmente na sua tocante simplicidade", explicava: "O Souvenir Normand" fez chegar ao Santo Padre o texto de algumas orações pela paz. Entre elas nos agrada reportar particularmente aquela dirigida ao Sagrado Coração, inspirada no testamento de Guilherme, o Conquistador".
Foi o lançamento mundial da Oração Simples. No dia 28 de Janeiro sucessivo "La Croix" reportou o artigo do quotidiano da Santa Sé, deixando inalterado seja o título seja as informações incompletas sobre a exata origem do texto. Por escrúpulo o Marquês escreveu ao jornal para completar as informações, mas calando volutamente "La Clochette", a primeira publicação que a tinha reportado: ele queria apenas esclarecer que não tinha sido composta pelo "Souvenir Normand". Passando por cima sobre as vicissitudes ligadas à famosa Oração (traduções, adaptações, títulos); sobre as intermináveis pesquisas de autor (até agora desconhecido); sobre o por que da atribuição a São Francisco, queremos sublinhar que a oração teve aquele sucesso mundial que desejava o Cardeal Gasparri em uma carta de 24 de Janeiro de 1916 ao Marquês Stanislas de A Rochethulon, e desejado pelo Papa, conforme quanto se lê naquele número do jornal do Papa: "O Santo Padre agradou-se sumamente com esta comovente oração que seria de se desejar achasse um eco em todos os corações e fosse a expressão do sentimento universal". T

EXTRAÍDO DE : http://www.reflexoesfranciscanas.com.br/2011/10/verdadeira-historia-da-oracao-de-sao.html

22 de novembro de 2011

Meditação Diária

A verdade não é, de modo algum, aquilo que se demonstra, mas aquilo que se simplifica”.
(Saint-Exupéry)

A verdade, enquanto busca humana, não é algo absoluto, que exclui qualquer outra possibilidade. A verdade (do grego alethéia) significa des-velamento, a capacidade de ver aquilo que está oculto por um véu, descortinar, trazer à luz. A verdade não pode ser demonstrada como um teorema matemático ou num enunciado científico. Ela é algo existencial, racional e emocional. A verdade perpassa os sentidos do humano e se fundamenta na ética e nos valores que constituem o humano.

A verdade é algo que simplifica, que faz ver a vida com alegria e profundidade. A verdade nos impulsiona a ir além dos muros e a não nos conformar com respostas rasas e estreitas. A verdade é dom divino em nós e se faz caminho na busca de construirmos, em nós, a semelhança a Jesus que se fez caminho, verdade e vida... (cf Jo 14,6)

Frei Paulo Sérgio de Souza, OFM

21 de novembro de 2011

Especial - Santa Clara de Assis 800 anos


A PASSAGEM DO CORTEJO
FÚNEBRE DE FRANCISCO POR SÃO DAMIÃO

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Queremos que a passagem dos oitocentos anos do carisma clariano a ser comemorado em 2012 seja um marco para nossa família franciscana e clariana. Gostaríamos de tornar Clara mais conhecida e fazer de sorte que ela pudesse iluminar muitas vidas da Igreja e do mundo. Continuamos a oferecer aos nossos leitores passagens do belo livro de Chiara Giovanna Cresmachi, "Chiara di Assisi. Un silenzio che grida". Desta vez, vamos acompanhar aquilo que ocorreu em São Damião com a passagem do corpo morto de Francisco (p. 106-109).

1. Um pouco antes de morrer, Francisco havia mandado dizer a Clara que ela haveria de vê-lo ainda uma vez. Tal profecia se realizou durante o translado do esquife com o corpo de Francisco para a igreja de São Jorge, quando o cortejo dos frades e do povo parou em São Damião. Verdade que foi um encontro um pouco diferente do que aquele que ela teria querido esperar: Clara devia enxergar para além da aparência, além dessa parede intransponível da morte. A contemplação do corpo morto daquele que foi pai e guia de Clara e de suas irmãs levou à descoberta dos estigmas, motivo de admiração e presságio da glória. Para além dos sentimentos manifestados nesse momento, tomando distância do triunfalismo e ostentação a respeito de fenômenos místicos, Clara nunca aludirá a essa identificação de Francisco com o Cristo. Celano diz que as irmãs puderam ver o corpo de Francisco através da janelinha pela qual elas recebiam a Eucaristia (1Cel 116), enquanto que através de outra coletânea de elementos históricos fomos informados que os frades tomaram o santo corpo da maca e o mantiveram entre os braços perto da janela por grande espaço de tempo (cf. Compilação de Assis, n. 13). Disso se depreende como era delicada a amorosa fraternidade por parte dos irmãos, sabedores que eram do quanto Francisco fora importante para aquelas mulheres.

2. Celano, o biógrafo oficial, quando descreve a passagem por São Damião, no momento em que os despojos estavam sendo levados para dentro dos muros de Assis, se compraz em usar de retórica ao descrever o pranto e as lamentações de Clara e de suas irmãs. Tudo leva a crer que se trata de uma página literária em que elas são apresentadas com as características das carpideiras bíblicas. Importante que fique claro, no entanto, que esse episódio coloca em realce o relacionamento de Francisco com as Senhoras Pobres, tão denso a ponto de reclamar uma parada do cortejo fúnebre com as autoridades civis e o povo. Deve-se dizer que o acontecido se impunha como evidente em si, devido ao fato de que aquelas mulheres pertenciam à fraternitas de Francisco. Mesmo se deixarmos de lado a dramatização literária, aquilo que o biógrafo afirma é verdadeiro: à sororidade de Clara passa a faltar o único sustento humano. Às irmãs é dado apenas o conforto de venerar aquele corpo, que tinha os sinais de nossa salvação “e ver assim, não somente o único penhor seguro da glória do irmão e pai, mas também a representação viva do Crucificado pobre, o único Bem das irmãs na terra”.

3. “Está aí a mensagem silenciosa e eloquente que Francisco deixa para as irmãs e que Clara compreende de modo muito profundo: vossa única posse é Jesus Cristo, por vós morto e ressuscitado, com ele, nele e por ele nada haverá de vos faltar, assim não havereis de temer adversidades e contrariedades. Para além do sofrimento e da incerteza com relação aos que viriam sem Francisco, a mãe das irmãs pobres, sabe com firme esperança que nada poderá fazer com que ela vacile, porque ganhou nova força por meio da passagem pascal de Francisco vivida um pouco antes com sua morte. Nisto consistia sua consolação, sua força e sua alegria”. Clara está disposta a aceitar sacrifício, desprezo, incompreensão, aversão para seguir suas pegadas, naquela pobreza-humildade que o Espirito lhe havia indicado através da palavra e do exemplo do Poverello. Clara se tornou, por assim dizer, “carne de sua carne”. A plantinha de Francisco nada sabe a respeito dos caminhos que haverá de percorrer sozinha. Basta-lhe viver dia após dia com a energia que, apesar de suas frágeis forças físicas, lhe é dada pela gratuita liberalidade do sumo Doador. Nesta profunda solidão, que se tornou mais amena pela proximidade e comunhão com as irmãs, Clara experimenta sempre mais a amorosa ternura do Pai celeste que delas se ocupa como uma mãe se ocupa de seu filho.

4. Trata-se de uma experiência que cresce no ininterrupto diálogo com o Tu divino e pela contínua interiorização do Evangelho, revivendo em si, enquanto possível a uma criatura, o relacionamento do esposo Jesus Cristo com o seu Abba, Pai, que vivencia na dimensão materna, tornando-se cada vez um desses pequenos aos quais pertence o Reino de Deus. A atitude filial, tão enraizada na mãe das irmãs pobres, não a impede de manifestar características humanas que são típicas de sua personalidade. Revela fortaleza de ânimo, clareza de ideia a respeito do carisma de tal forma que não se deixa perturbar por quem quer que seja, unida a uma capacidade singular de caminhar em frente, em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro de modo que os passos nem recolham a poeira, confiante e alegre (cf. 2Carta a Inês 12-13), como escreverá à jovem que vive em terras distantes a mesma situação que ela vivera antes no caminho do seguimento de Jesus, com tenaz perseverança. Tal não se poderia esperar desta frágil mulher doente, incapaz de levantar-se de seu pobre leito.

Extraído de : http://www.franciscanos.org.br/v3/almir/artigos/clara/20.php

19 de novembro de 2011

Meditação Diária


“Nenhum gesto de gentileza, por menor que seja, é perdido”.
(Frase de Esôpo, 620-560 aC)

Nestes tempos de muita preocupação consigo mesmo, e de pouco tempo para o outro, de tempos "sem-tempo", quero chamar a atenção para uma virtude que anda meio esquecida: a gentileza. Gentileza que não quer dizer fraqueza, nem é virtude só para mulheres. Gentileza que significa cortesia, amabilidade, fidalguia, bom tratamento.

A gentileza tem um poder muito grande e tem relação direta com a inteligência bem como denota elevação moral. Seja, pois praticante da gentileza: em casa, no trabalho, no trânsito e até com aqueles que não são gentis, pois o exemplo bondoso e a elegância poderão atingir positivamente as pessoas...

Frei Paulo Sérgio de Souza, OFM

16 de novembro de 2011

Bento XVI : Santa Isabel da Hungria

Santa Isabel da Hungria

Queridos irmãos e irmãs,

Hoje gostaria de vos falar de uma das mulheres da Idade Média que suscitou maior admiração: trata-se de Santa Isabel da Hungria, chamada também Isabel de Turíngia.

Nasceu em 1207; os historiadores debatem sobre o lugar. Seu pai era André II, rico e poderoso rei da Hungria que, para fortalecer os laços políticos, casou com a condessa alemã Gertrudes de Andechs-Merânia, irmã de Santa Edviges, que era esposa do duque da Silésia. Isabel viveu na Corte húngara só os primeiros quatro anos da sua infância, com uma irmã e três irmãos. Gostava dos jogos, da música e da dança; recitava fielmente as suas preces e já prestava atenção especial aos pobres, os quais ajudava com uma boa palavra ou com um gesto carinhoso.

A sua infância feliz foi bruscamente interrompida quando, da longínqua Turíngia, chegaram alguns cavaleiros com a finalidade de a levar para a sua nova sede na Alemanha central. Com efeito, segundo a tradição dessa época seu pai decidiu que Isabel se tornasse princesa da Turíngia. O landgrave ou conde dessa região era um dos soberanos mais ricos e influentes da Europa no início do século XIII, e o seu castelo era centro de magnificência e cultura. Mas por detrás das festas e da aparente glória escondiam-se as ambições dos príncipes feudais, muitas vezes em guerra entre si e em conflito com as autoridades reais e imperiais. Neste contexto, o landgrave Hermann acolheu de bom grado o noivado entre seu filho Ludovico e a princesa húngara. Isabel partiu da sua pátria com um rico dote e um grande séquito, inclusive com as suas servas pessoais, duas das quais foram suas amigas fiéis até ao fim. Foram elas que nos deixaram preciosas informações sobre a infância e a vida da Santa.

Após uma longa viagem, chegaram a Eisenach, para depois subirem à fortaleza de Wartburg, o castelo maciço acima da cidade. Ali celebrou-se o noivado entre Ludovico e Isabel. Nos anos seguintes, enquanto Ludovico aprendia a profissão de cavaleiro, Isabel e as suas companheiras estudavam alemão, francês, latim, música, literatura e bordado. Embora o noivado tenha sido decidido por motivos políticos, entre os dois jovens nasceu um amor sincero, animado pela fé e pelo desejo de cumprir a vontade de Deus. Aos 18 anos, Ludovico, depois da morte do pai, começou a reinar na Turíngia. Mas Isabel tornou-se objecto de murmúrios, porque o seu modo de se comportar não correspondia à vida cortesã. Assim, também a celebração do matrimónio não foi pomposa e as despesas para o banquete foram parcialmente destinadas aos pobres. Na sua profunda sensibilidade, Isabel via as contradições entre a fé professada e a prática cristã. Não suportava os comprometimentos. Certa vez, ao entrar na igreja na solenidade da Assunção, tirou a coroa, depô-la diante da cruz e permaneceu prostrada no chão com o rosto coberto. Quando a sogra a repreendeu por aquele gesto, ela retorquiu: «Como posso eu, criatura miserável, continuar a trazer uma coroa de dignidade terrena, quando vejo o meu Rei Jesus Cristo coroado de espinhos?». Do mesmo modo como se comportava diante de Deus, também o fazia em relação aos súbditos. Entre os Ditos das quatro servas encontramos este testemunho: «Não consumia alimentos se antes não estivesse certa de que provinham das propriedades e dos bens legítimos do marido. Enquanto se abstinha dos bens conquistados ilicitamente, esforçava-se também por indemnizar aqueles que tinham suportado violência» (nn. 25 e 37). Um verdadeiro exemplo para todos aqueles que desempenham funções de guia: o exercício da autoridade, a todos os níveis, deve ser vivido como serviço à justiça e à caridade, na busca constante do bem comum.

Isabel praticava assiduamente as obras de misericórdia: dava de beber e de comer a quem batia à sua porta, oferecia roupas, pagava as dívidas, cuidava dos enfermos e enterrava os mortos. Quando descia do seu castelo, ia muitas vezes com as suas servas às casas dos pobres, levando pão, carne, farinha e outros alimentos. Entregava pessoalmente a comida e controlava com atenção as roupas e os leitos dos pobres. Este comportamento foi referido ao marido, que não só não se lamentou, mas respondeu aos acusadores: «Enquanto ela não vender o meu castelo, estou feliz!». É neste contexto que se insere o milagre do pão transformado em rosas: quando Isabel ia pelo caminho com o seu avental cheio de pão para os pobres, encontrou o marido que lhe perguntou o que estava a levar. Ela abriu o avental e, em vez de pão, apareceram rosas magníficas. Este símbolo de caridade está presente muitas vezes nas representações de Santa Isabel.

O seu matrimónio foi profundamente feliz: Isabel ajudava o cônjuge a elevar as suas qualidades humanas a nível sobrenatural, e ele, em contrapartida, protegia a esposa na sua generosidade aos pobres e nas suas práticas religiosas. Cada vez mais admirado pela grande fé da sua esposa, Ludovico, referindo-se à sua atenção aos pobres, disse-lhe: «Amada Isabel, foi Cristo que lavaste, alimentaste e cuidaste». Um claro testemunho do modo como a fé e o amor a Deus e ao próximo fortalecem a vida familiar e tornam ainda mais profunda a união matrimonial.

O jovem casal encontrou apoio espiritual nos Frades Menores que, a partir de 1222, se difundiram na Turíngia. Entre eles, Isabel escolheu frei Rogério (Rüdiger) como director espiritual. Quando ele lhe narrou a vicissitude da conversão do jovem e rico comerciante Francisco de Assis, Isabel entusiasmou-se ulteriormente no seu caminho de vida cristã. A partir desse momento, decidiu-se ainda mais a seguir Cristo pobre e crucificado, presente nos pobres. Mesmo quando nasceu o primeiro filho, seguido depois por outros dois, a nossa Santa nunca descuidou as suas obras de caridade. Além disso, ajudou os Frades Menores a construir em Halberstadt um convento do qual frei Rogério se tornou superior. Assim, a direcção espiritual de Isabel passou para Conrado de Marburgo.

Uma dura prova foi o adeus ao marido, no final de Junho de 1227, quando Ludovico IV se associou à cruzada do imperador Frederico II, recordando à esposa que se tratava de uma tradição para os soberanos da Turíngia. Isabel respondeu: «Não te impedirei. Entreguei-me totalmente a Deus e agora devo dar-lhe também a ti». Porém, a febre dizimou as tropas e o próprio Ludovico adoeceu e faleceu com 27 anos em Otranto, antes de embarcar, em Setembro de 1227. Quando recebeu a notícia, Isabel ficou tão amargurada que se retirou em solidão, mas depois, fortalecida pela oração e consolada pela esperança de o rever no Céu, recomeçou a interessar-se pelos assuntos do reino. Contudo, outra prova esperava-a: o seu cunhado usurpou o governo da Turíngia, declarando-se autêntico herdeiro de Ludovico e acusando Isabel de ser uma mulher piedosa mas incompetente no governo. A jovem viúva, com os três filhos, foi expulsa do castelo de Wartburg e pôs-se em busca de um lugar onde se refugiar. Só duas servas permaneceram ao seu lado, a acompanharam e confiaram os três filhos aos cuidados dos amigos de Ludovico. Peregrinando pelas aldeias, Isabel trabalhava onde era acolhida, assistia os doentes, fiava e costurava. Durante este calvário suportado com grande fé, com paciência e dedicação a Deus, alguns parentes, que tinham permanecido fiéis a ela e consideravam ilegítimo o governo do cunhado, reabilitaram o seu nome. Assim Isabel, no início de 1228, pôde receber uma renda apropriada para se retirar no castelo de família em Marburgo, onde habitava também o seu director espiritual, frei Conrado. Foi ele que referiu ao Papa Gregório IX o seguinte acontecimento: «Na Sexta-Feira Santa de 1228, pondo as mãos no altar da capela da sua cidade de Eisenach, onde tinha acolhido os Frades Menores, na presença de alguns frades e familiares, Isabel renunciou à própria vontade e a todas as vaidades do mundo. Ela queria renunciar também a todas as posses, mas eu desaconselhei-a por amor aos pobres. Pouco tempo mais tarde, construiu um hospital, recolheu doentes e inválidos e serviu à sua mesa os mais miseráveis e desamparados. Quando a repreendi por estes gestos, Isabel respondeu que dos pobres recebia uma especial graça e humildade» (Epistula magistri Conradi, 14-17).

Podemos entrever nesta afirmação uma certa experiência mística, semelhante à que viveu São Francisco: com efeito, no seu Testamento o Pobrezinho de Assis declarou que, servindo os leprosos, aquilo que antes era amargo se transformou em docilidade da alma e do corpo (cf. Testamentum, 1-3). Isabel transcorreu os últimos três anos no hospital por ela fundado, servindo os doentes e velando sobre os moribundos. Procurava desempenhar sempre os serviços mais humildes e os trabalhos mais repugnantes. Ela tornou-se aquela que poderíamos definir uma mulher consagrada no meio do mundo (soror in saeculo) e, com outras suas amigas vestidas de hábitos cinzentos, formou uma comunidade religiosa. Não é por acaso que é Padroeira da Terceira Ordem Regular de São Francisco e da Ordem Franciscana Secular.

Em Novembro de 1231 foi atingida por uma febre forte. Quando a notícia da sua enfermidade se propagou, muitas pessoas acorreram para a ver. Depois de cerca de dez dias, pediu que as portas fossem fechadas, para permanecer sozinha com Deus. Na noite de 17 de Novembro adormeceu docilmente no Senhor. Os testemunhos sobre a sua santidade foram tão numerosos e tais que, só quatro anos mais tarde, o Papa Gregório IX proclamou-a Santa e, nesse mesmo ano, foi consagrada a bonita igreja construída em sua honra em Marburgo.

Estimados irmãos e irmãs, na figura de Santa Isabel vemos como a fé e a amizade com Cristo criam o sentido da justiça, da igualdade de todos, dos direitos dos outros, e criam o amor e a caridade. E desta caridade nascem inclusive a esperança e a certeza de que somos amados por Cristo, e que o amor de Cristo nos espera, tornando-nos assim capazes de imitar Cristo e de O ver nos outros. Santa Isabel convida-nos a redescobrir Cristo, a amá-lo, a ter fé e deste modo a encontrar a verdadeira justiça e o amor, assim como a alegria de que um dia seremos imersos no Amor divino, na alegria da eternidade com Deus. Obrigado!

Papa Bento XVI

15 de novembro de 2011

Meditação Diária


"Aos que me são queridos, deixo as coisas pequenas. As grandes são para todos”.
(Tagore)

As pequenas coisas são construídas na simplicidade do cotidiano. Quem está na acolhida do coração encontra sempre uma porta aberta, uma varanda acolhedora para chegar e ficar. Quem está na cordialidade encontra sempre uma mesa posta, um café, um chocolate ou um chá para degustar... Espaço para acolhimento da alma, pois os laços foram enraizados na comunhão dos corações...

Procure deixar sinais nos corações das pessoas. Deixe vestígios de transformação, pois assim estarás marcando definitivamente uma existência valiosa. Não morre quem deixou de respirar, mas quem não ficou na lembrança e na saudade daqueles (as) que ficaram. Construa sua felicidade em relacionamentos grandiosos e não esqueça daqueles (as) que fizeram parte da sua jornada...

Frei Paulo Sérgio de Souza, OFM

11 de novembro de 2011

Páginas Franciscanas

UMA FRATERNIDADE
SOCIALMENTE PROFÉTICA

Nossa Página Franciscana deste mês de novembro está na linha de um desdobramento da Leitura Espiritual precedente. Ela descreve a fraternidade franciscana como socialmente profética. Traduzimos este texto do livro "Francesco d’Assisi maestro de spiritualità", de Niklaus Kuster, Ed. Messagero Padova, p. 150-153.

Nobres e sacerdotes foram se associando à Fraternidade do Poverello, renunciando a seus privilégios sóciais e eclesiásticos para serem, como todos os outros, frades menores: os menores da sociedade, a serviço de todos os homens e amigos dos mendigos, dos pobres e dos leprosos. Exatamente, por meio dessa voluntária “descida” na direção dos pequenos, uma vida à margem da sociedade e seu testemunho de serem cordialmente irmãos, uniram na sua nova fraternitas, o que a Igreja e a burguesia citadina de então dividiam em classes e estados: clérigos e leigos; “orantes” e “trabalhadores”; ricos e pobres; cavaleiros e burgueses; citadinos e camponeses .

Tomás de Celano se detém em descrever esta surpreendente novidade quando em 1228, escreve a respeito dos inícios: “... a fama do homem de Deus começou a dilatar-se para mais longe. Naquele tempo São Francisco e seus irmãos tinha realmente alegria muito grande e júbilo especial, quando alguém - quem quer e qualquer que fosse - fiel, rico, pobre, nobre, sem nobreza, desprezado, benquisto, sábio, simples, clérigo, iletrado, leigo no povo cristão, levado pelo espírito de Deus, vinha para receber o hábito da santa religião. Também os seculares tinham com relação a todos grande admiração, e o exemplo da humildade provocava-os à via de uma vida mais correta e à penitência dos pecados” (1Cel 31).

Também Francisco deve ter ficado admirado diante do “milagre social” que “o próprio Senhor” operava à sua volta (Test). A Fraternidade reunia homens de todos os estratos e condições sociais e colocava perto uns dos outros na qualidade de irmãos, os pobres como os ricos, os instruídos como os artesãos, os padres como os leigos. Alegrou-se com a chegada dos primeiros padres, tanto mais que eles não hesitavam em abandonar todos os direitos clericais. Vinham de diferentes lugares com profissões variadas. Externamente nada os distinguia uns dos outros. Todos trabalhavam com os camponeses no cultivo da terra, prestavam serviço nas casas da cidade e mendigavam quando fosse necessário. O ingresso de homens respeitáveis na fraternitas e seu modo humilde de viver entre os pobres comovia os cidadãos às lágrimas e eram uma advertência para todos que poderiam ser vítimas das transformações operadas na cidade.

A opção de Francisco, descendo na escala social, tem tom de profecia. Não se trata de adotar um programa revolucionário. É o Evangelho e o exemplo de Cristo que animam essa “descida” social e a tornar viável seu projeto de vida fraterna ( a palavra frater ocorre 309 vezes nos escritos do santo). A Regra de 1221 faz alusão a um texto chave que motiva evangelicamente a opção pela posição social e voluntária “descida” dos frades: “Jesus falou à multidões e a seus discípulos: os doutores da lei e os fariseus... amarram pesados fardos e os colocam nos ombros dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los nem sequer com um dedo... Gostam de lugar de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas sinagogas. Gostam de ser cumprimentados nas praças públicas e de ser chamados de mestres. Quanto a vós, nunca vos deixeis chamar de mestres.... porque todos vós sois irmãos. Na terra não chameis a ninguém de pai, pois um só é o vosso Pai... e nem de guia. O maior dentre vós é aquele que serve....” (cf, Mateus 23,, 1-10, Regra não bulada XXII).

Francisco deseja exire de saeculo (Test) não como os monges pela distanciamento físico do mundo, mas como radical transformação do pensamento, dos valores e do comportamento. A Fraternidade entra num diálogo crítico e profético com a sociedade citadina. Não mais as normas sociais e os valores burgueses, mas o Evangelho e a vida de Jesus deverão determinar o espírito e o comportamento dos frades. A primeira fraternitas vê em suas fileiras iletrados perto de pessoas cultas, juristas e sacerdotes. Pobreza significa que ninguém se garganteie de sua proveniência ou de seu saber, que renunciando a tudo abracem nu o Crucificado (2Cel194). Francisco lembra que os primeiros frades eram tidos como idiotas. Com isso, ele não quer considerá-los “estúpidos”, mas gente que renuncia a todos os privilégios sociais que a instrução dá. A pobreza é concebida, antes de tudo, como um olhar lançado na direção da kenosis de Cristo, em última análise como renúncia ao próprio “ego” (cf. 2Cel 80). Francisco havia começado a trilhar esse caminho de “abaixamento” como vitória sobre si mesmo no encontro com os leprosos. A pobreza está intimamente ligada, não por acaso, com “sua santa irmã a Humildade” (Louvor das Virtudes).

“O bem-aventurado Francisco, desde o princípio de sua conversão, com a ajuda de Deus, como o homem sábio do Evangelho, fundou-se a si mesmo e fundou a sua casa, isto é, a Ordem, sobre a rocha firme da Altíssima humildade e pobreza do Filho de Deus, pelo que lhe deu o nome de Ordem dos Frades Menores. Sobre a mais profunda humildade: por isso, desde quando começou a aumentar o número dos frades, quis que eles morassem nos hospitais dos leprosos. Nesse tempo, quando chegavam candidatos nobres ou plebeus, era-lhes dito que tinham de servir os leprosos e conviver com eles.. Sobre a altíssima pobreza, assim está escrito na Regra, que os frades devem habitar nas casas onde moram, como estrangeiros e peregrinos, nada mais querendo ter debaixo do céu a não ser a santa pobreza, pela qual o Senhor os nutrirá com o alimento corporal e com a virtude aqui na terra, e obterão na vida futura o céu como herança... Francisco escolheu para si o sólido fundamento da humildade e da pobreza. Embora se tornasse mais notado na Igreja de Deus, queria e procurava sempre ocupar o último lugar, não só na Igreja, mas também entre seus irmãos” (Leg. Per, 103).

A absoluta renúncia ao dinheiro que a Fraternidade se impunha tem dupla motivação. Em primeiro lugar é obediência à ordem de Jesus “de não levar nem ouro, nem prata, nem cobre em vossos cintos” (cf Mt 10,9). Em segundo lugar, o Poverello toma distância da cultura capitalista em germe (ver Regra não Bulada, VIII). A maior insegurança externa e a troca “do trabalho pelo sustento” une os frades com os que são pobres sem querê-los. Sua confiança na Providência de Deus pressupõe e torna possível também a renúncia aos privilégios eclesiásticos e às cartas de recomendação (Test).

Frei Almir Ribeiro Guimarães

http://www.franciscanos.org.br/v3/almir/bau/2011/11/03.php

Meditação Diária


"As coisas boas duram pouco. O suficiente para se tornarem inesquecíveis"
(Autor Desconhecido).

Os momentos bons deixam-nos a sensação que deveriam ser eternos, pois não gostaríamos que terminassem. Tais sentimentos nos fazem continuar, pois o sabor de eternidade que deixam em nós impulsionam-nos, levam-nos adiante, geram energia boa para a jornada. Procure, pois, aproveitar tais momentos: curta-os, ame intensamente, faça as coisas com paixão e não tenha medo de doar-se!

Na jornada da vida encontramos e encontraremos muitos momentos difíceis e desafiadores. Eles também podem ser catapultas, momentos de reclusão para projetar-nos na direção de momentos melhores. A felicidade á assim: é construída em momentos bons e ruins, em derrotas e vitórias. A felicidade não é um momento estanque, mas o todo da vida. Viva, pois, com alegria e intensidade... A vida é maravilhoso dom de Deus!

Frei Paulo Sérgio de Souza, OFM

10 de novembro de 2011

A “FELICIDADE” DESSES QUE CHAMAMOS DE “RELIGIOSOS

Ter sempre o coração voltado
para o Senhor

“Irmãos todos, guardemo-nos muito para que, sob a aparência de alguma recompensa ou de obra ou de ajuda, não percamos ou afastemos do Senhor a nossa mente e o nosso coração”.
(Francisco de Assis, Regra Não-Bulada 22,25).

1. Eles estão espalhados por todas as partes, esses que chamamos de religiosos e de religiosas, entre os quais estão os que designamos de franciscanos. Alguns envergam um hábito exterior. Outros se vestem de roupas comuns, simples, por vezes tendo um crucifixo ou um tau no peito ou na lapela. Outros, precisando circular em espaços solenes, se vestem com solenidade. Mas por detrás desses rostos estão esses que chamamos de religiosos e religiosas, de frades menores e irmãs que se sentem bem respirando a espiritualidade evangélica-franciscano-clariana. Alguns estão ainda nos primeiros tempos da paixão amorosa pelo Senhor e pelos irmãos. Outros estão mais adiantados na caminhada. Nem sempre enxergam claro. Ficam meio perplexos com tantos questionamentos e com tantas transformações. Por vezes, a duras penas, vão construindo sua identidade. essas religiosas contemplativas que, no meio da noite, se levantam para louvar o Senhor. Esses outros, religiosos ou religiosas, percorrem os corredores dos hospitais, dirigem-se às casas das pessoas, ajudam essas mães e esses pais simples a educarem seus filhos, estão fortemente comprometidos com a pastoral da Igreja. Vejo aquela religiosa idosa, sentada na cozinha, descascando batatas ou preparando um doce de abóbora com coco para as irmãs. Antes do almoço, ela vai passar uns instantes na capela rezando um terço. À tardinha vejo chegar os religiosos para a frugal refeição da noite, um momento de colóquio em torno à mesa e depois a volta aos trabalhos. Ou um momento mais prolongado de leitura e de oração. Vidas consagradas a Deus. Seres leves e simples, criaturas com os pés na terra e o coração no Amado. Hoje em dia, em algumas casas, à noite há a leitura orante da Bíblia. Querem ter o coração sempre voltado para o Senhor. Esses que chamamos de religiosos vivem a busca do Deus Altíssimo com infatigável desejo. E, no fundo de seu coração, são pessoas profundamente felizes.

2. “Se, de fato, é verdade que todos os cristãos são chamados à santidade e à perfeição do próprio estado, as pessoas consagradas, graças a uma nova e especial consagração, têm a missão de fazer com que resplandeça a forma de vida de Cristo, por meio do testemunho dos conselhos evangélicos, para sustento da fidelidade de todo o Corpo de Cristo” (Partir de Cristo, Instrução da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, n. 13). Um pouco antes lemos no mesmo documento: “A impressão que se pode ter de uma queda na estima pela vida consagrada, por parte de alguns setores da Igreja, pode ser vivida como um convite a uma purificação libertadora. A vida consagrada não procura louvores nem apreços humanos, ela é recompensada pela alegria de continuar a trabalhar operosamente a serviço do Reino de Deus, para ser germe de vida que cresce em segredo, sem buscar recompensa diferente daquela que, no fim, o Pai nos dará. Ela encontra a sua identidade no chamado do Senhor, no seu seguimento, no amor e serviço incondicionais, capazes de plenificar uma vida e de dar-lhe plenitude de sentido” (ibidem). Esse chamado, a graça da vocação é que dá alegria e felicidade aos religiosos.

3. Não cessam os religiosos de perguntar ao Senhor o que ele deseja de cada um dos membros de sua Fraternidade. Não querem fazer a sua vontade particular e garantir seu cantinho de sobrevivência. Estão sempre com os ouvidos atentos aos textos das Escrituras, às batidas do coração de seus confrades e co-irmãs, sentem-se perto, bem perto de todos esses homens e mulheres para os quais se sentem enviados. Lutam para que sua Província encontre caminhos que coincidam com os caminhos que Deus deseja. São “ledores” obedientes dos sinais dos tempos. Obedecem-se mutuamente numa tentativa de nunca mais girar em torno do eu que é inimigo do Espírito. Nessa obediência, no empenho de não deixar o coração endurecer, os religiosos são “felizes”. Fazem o que o Senhor lhes pede. Não pertencem a si mesmos. São de um Outro.

4. Nessa decisão inabalável de fazer que o Senhor venha ocupar todo o espaço de seu interior e de seu exterior, os religiosos são criaturas revestidas do fogo do amor. Consagram ao Senhor seu corpo e integridade e pureza do interior. São puros de coração e buscam purificar-se. Num mundo hedonista e pansexualista, os religiosos são pessoas que, sem falsos pudores, se tornam esposos e esposas do Senhor. “Rogo a todos os irmãos, tanto aos ministros quanto aos outros, que, removido todo impedimento e todo cuidado e postergada toda preocupação, do melhor modo que puderem, esforcem-se por servir, amar, honrar e adorar o Senhor com o coração limpo e com a mente pura, pois é isso que Ele deseja acima de tudo, e façamos sempre aí uma habitação e um lugar de repouso para Ele que é o Senhor Deus Onipotente, Pai, Filho, Espírito Santo...” (Regra Não-Bulada 22, 26-27). São felizes os que se tornam lugar exclusivo de habitação daquele que busca asilo na intimidade dos que o amam. Uma vida de castidade consagrada viçosa é sinal de que é possível viver a radicalidade do Evangelho na carne humana... e quem puder compreender que compreenda. São felizes os que se tornam esposos e esposas do Senhor .

5. Seres leves... seres com pouca bagagem. Numa sociedade loucamente consumista, os religiosos são seres de um mundo encantado que vai além da aparência, do poder e do ter. Thaddée Matura vê na Admoestação XIV de Francisco o cerne da assim dita Pobreza Franciscana: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus (Mt 5,3). Muitos há que, insistindo em orações e serviços, fazem muitas abstinências e macerações dos seus corpos, mas por causa de uma única palavra que lhes parece ser uma injúria a seu próprio eu ou por causa de alguma coisa que se lhes tire, sempre se escandalizam e se perturbam. Estes não são pobres de espírito, porque quem é verdadeiramente pobre de espirito se odeia a si mesmo e ama quem lhe bate face”.

6. Thaddée Matura lembra alguns aspectos da pobreza franciscana que podem fazer “felizes” seus seguidores. Antes de se manifestar na pobreza material, da qual é como que um sacramento visível, a pobreza se reveste de três características: reconhecer que todos os bens têm sua origem em Deus, que somente nossos são os vícios e os pecados, e que carregaremos todos os dias a cruz de Nosso Senhor, que consiste na submissão a todos, na aceitação da rejeição, da doença e da morte.

7. “O que somos, o que podemos realizar, sobretudo tratando-se de realidades espirituais, deve ser considerado grande e belo. É legítimo alegrarmo-nos com tais dons e experimentarmos um santo orgulho. Mas imiscui-se uma sutil tentação: eu sou isto, eu... eu me basto, sou como Deus. Será preciso escapar da tentação de nos apropriarmos de bens dos quais não somos proprietários. “...esforcem-se... por não se gloriar nem se regozijar consigo mesmo, nem se exaltar interiormente das boas palavras e obras, e, menos ainda, de nenhum bem que Deus muitas vezes faz ou diz e opera neles e por eles ... reconheçamos que são do Senhor” (Regra Não-Bulada 17). Reconhecer o que é bom em nós, é um primeiro passo. Feito isso, será preciso apressar-se em restituir os bens a seu proprietário que é o Senhor Deus, o único bom. A verdadeira e mais profunda pobreza é a de tudo possuir através do dom de Deus, sem nada atribuir a si”.

8. Haveremos de nos gloriar de nossas fraquezas e de carregar todos os dias a cruz de Nosso Senhor. Os frades haverão de se alegrar quando se sentirem submetidos a diversas provações, quando suportarem angústias da alma e do corpo ou tribulações neste mundo por causa da vida eterna (cf. Regra Não-Bulada 17). E esses religiosos, vivendo simplesmente e pobremente com seus irmãos, atuando na pastoral, são pessoas muito próximas do coração de Deus. Pobres desse jeito, os religiosos mostram por sua vida a vida de Cristo e são felizes. Matura conclui sua reflexão sobre a Admoestação 14: “O sofrimento, esse mal-estar do homem, está presente no dia a dia da vida em muitas circunstâncias. O que deseja ser “menor e submisso a toda criatura” há de encontrar a incompreensão, a oposição e até mesmo a perseguição. Pode ser mesmo que, como Francisco, ele se depare com a rejeição, extremamente dolorosa, de seus próximos como aparece relatado no episódio da perfeita alegria. A própria vida vê-se ameaçada pela doença e pela morte, duas companheiras inevitáveis de todo homem, que cedo ou tarde chegam para visitá-lo”. Os que abraçam essa pobreza são capazes de cantar a chegada da irmã morte.

9. Seres leves e pobres, cantores da glória de Deus, submissos uns aos outros no mistério da fraternidade e não deixando o coração endurecer, amantes ardentes do Deus de amor, os religiosos são seres felizes. Felizes também porque vão pelo mundo. São enviados. São missionários. Dizem por palavras e gestos que há uma explosão de felicidade na vida segundo o Evangelho. Experimentam a alegria de serem missionários. Nas paróquias, onde trabalham, nas obras que tocam, a tudo impregnam com a força do Evangelho que não é um livro mas uma pessoa viva chamada Jesus Cristo. Em sua missão respiram sempre a radicalidade do Evangelho que tentam viver. Nunca se apresentam como funcionários de um “status quo”, mas lutam para que sua palavra e sua vida transmitam o fogo do evangelho.

Concluindo

Vidas esplêndidas, luminosamente crucificadas-ressuscitadas. Vidas de dom total ao Senhor e aos irmãos; Vidas sem lamentos e murmurações. Os religiosos vivem em suas casas modestas, simples e alegres, têm encontros marcados com o Senhor, ajudam-se mutuamente, carregam os pesos uns dos outros, buscando juntos o Senhor, juntando suas vozes no canto dos salmos e adestrando seus ouvidos para captar o que Deus diz. Homens e mulheres dependentes uns dos outros, dependentes do sopro do Espírito e sempre dóceis aos que foram colocados à frente como servos da função de guardar a comunidade, os guardiães. Querem levar o rebanho a verdes pastagens. Existem para os outros, para si nada reservam, tudo retribuem ao Senhor, deixam-se consumir pelos outros e pelo Reino (sem discursos, mas através de fatos). São seres leves, vigilantes e ardorosos.

NB. As citações de Thaddée Matura foram tiradas do livro “François d’Assise. Maître de Vie Spirituelle, Éd. Franciscaines , Paris 2000, p. 61-81.

Frei Almir Ribeiro Guimarães

http://www.franciscanos.org.br/v3/almir/bau/2011/11/02.php

9 de novembro de 2011

Basílica de São João de Latrão



Uma solenidade litúrgica especial, no dia 9 de novembro, comemora a dedicação da Basílica de Latrão. Esta é considerada a igreja-mãe de todas as igrejas católicas, por ser a catedral do bispo de Roma, isto é o Papa patriarca do Ocidente. A igreja originária foi construída pelo imperador Constantino, durante o pontificado de papa Melquíades no séc. IV, no terreno doado por Fausta, esposa do Imperador. Nela foram realizados os quatro primeiros Concílios Ecumênicos realizados no Ocidente: em 1123 para resolver a questão das Investiduras, ou seja, provimento em algum cargo eclesiástico por parte do poder civil: em 1139, sobre questões disciplinares; em 1179 para tratar da forma de eleição do Papa; em 1215, sobre várias heresias e a reforma eclesial. Inúmeras verdades lembra esta comemoração. Em primeiro lugar a importância de Roma onde se acha o Chefe visível da Igreja de Jesus.
Santo Inácio de Antioquia, discípulo dos apóstolos, chama a Igreja de Roma de "cabeça da caridade", revelando a posição primacial, da sede romana e, portanto, também a de seu Bispo. E de Santo Ireneu o mais eloqüente testemunho da antigüidade a favor da importância da sede romana. Assim ele se expressou no ano de 180: "A esta Igreja (romana) por sua preeminência mais poderosa, é necessário que se unam todas as Igrejas, isto é, os fiéis de todas as partes, pois nela se conservou sempre a tradição recebida dos apóstolos pelos cristãos de todas as partes". Recorda ainda a referida festa que em todas as sedes episcopais há Igreja Catedral onde se acha a cátedra episcopal.
O Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a Sagrada Liturgia ensina que "todos devem atribuir a maior importância à vida litúrgica da diocese, em redor do bispo, principalmente na Igreja catedral, convencidos de que aí se realiza uma especial manifestação da Igreja pela participação plena e ativa de todo o Povo santo de Deus nas mesmas celebrações litúrgicas, sobretudo na mesma Eucaristia, numa só oração e num único altar, presidido pelo bispo cercado de seu presbitério e ministros (n.41). Na Quinta-feira santa se celebra em todas as Catedrais a Missa do Crisma, quando são bentos os Santos Óleos, depois levados para todas as Paróquias. Pelo que foi dito, a Catedral por excelência é a do Papa em Roma, a Basílica de Latrão "Mãe e Mestra de todas as Igrejas", da urbe romana e do orbe católico. Tudo isto lembra, além disto, a importância do Templo, lugar sagrado no qual se cultua de modo especial a Deus. É nele que se recebem os maiores favores divinos.
No Antigo Testamento o templo de Jerusalém era o sinal da presença do Ser Supremo entre os homens. Centro do culto a Javé para ele convergiam peregrinações de todas as partes para contemplar a face do Todo-Poderoso (Sl. 42,3). A Bíblia ensina que Deus está no céu (Sl 2,4; 103,19; 115,3), mas o templo é como que uma cópia fiel do palácio celeste, que o Onipotente torna presente aqui na terra. Nele se desenrola o culto oficial. No Novo Testamento se tornou viva a doutrina de que cada batizado é o templo vivo da Trindade de acordo com o ensinamento de Jesus: "Se alguém me ama, meu Pai o amará, viremos a ele e faremos nele nossa morada" (Jo 14,23). Paulo de Tarso firmaria esta verdade, argüindo aos Coríntios: "Porventura não sabeis que os vossos membros são templo do Espírito santo, que habita em vós que vos foi dado por Deus e que não pertenceis a vós mesmos" (Cor 6,19).
O verdadeiro católico preza a Catedral do Papa, a Basílica de Latrão; tem carinho especial para com a Catedral de sua Diocese e para com a Igreja Paroquial, Matriz de todas as outras; lembrado sempre de que, sendo o templo vivo de Deus, deve ornamentar esta Casa Santa com as virtudes, cuidando de seu corpo e respeitando a dignidade de cada ser humano, criado à imagem e semelhança do Criador, estimando sobretudo o batizado templo consagrado ao Espírito Santo.


Em 1209, no local onde hoje está a atual Basílica, Francisco e seus onze companheiros receberam a aprovação do papa Inocêncio III para iniciar sua forma de vita.
Antes, conta-nos as legendas, o papa “tinha visto em sonhos que a basílica de Latrão prestes a ruir, mas sendo sustentada por um religioso, homem pequeno e desprezível, que a sustentava com seu ombro para não cair. E disse: ‘Na verdade este é o homem que, por sua obra e por sua doutrina, haverá de sustentar a Igreja’. Foi por isso que aquele senhor acedeu tão facilmente ao seu pedido e, a partir daí, cheio de devoção de Deus, sempre teve especial predileção pelo servo de Cristo” (2Cel 17).

A Basílica de São João de Latrão é uma das quatro Basílicas papais de Roma, ao lado da de São Pedro, Santa Maria Maior e São Paulo Fora dos Muros.
A atual construção data de 1735, e a assistência religiosa na Basílica está confiada aos frades Franciscanos.

Visite a Basílica de São João de Latrão em rotação de 360º - Clique aqui.

7 de novembro de 2011

LEMBRANÇAS E EVOCAÇÕES DO CAPÍTULO GERAL DA ORDEM FRANCISCANA SECULAR

São Paulo, 22 a 29 de novembro de 2011

Não tomem estas linhas como “relatório” do Capítulo. Não constituem elas uma análise detalhada e crítica desse evento importante para a OFS do mundo. São reflexões, talvez um pouco soltas e impressões que precisam ser colocadas por escrito antes que passe muito tempo. Elas misturam impressões deixadas no coração e algumas falas que questionam a significação da OFS para nosso mundo e para a Igreja.

1. As coisas são assim mesmo. Há a preparação, a realização e depois tudo passa. Assim se deu com o XIII Capitulo da Ordem Franciscana Secular. O Conselho da Presidência esteve presente entre nós com a Ministra Geral Encarnación del Pozo e capitulares do mundo inteiro. Trabalho, canseira, preocupações, ausências, presenças, tempo de chuva e sol aberto quase, ônibus com avaria, dias com jeito de verão. Um evento que, certamente, deixará marcas em todos os que participaram como capitulares, como colaboradores ou observadores. A realização do Capítulo é uma exigência das Constituições e dos Estatutos da OFS. Somos um “corpo”. Há alternâncias no serviço. Há decisões que são tomadas em comum. Um Capítulo Geral tem o condão de mostrar que nossa Fraternidade Franciscana Secular está em todo o mundo. Ficamos muito felizes em ver que há sérios empenhos, apesar de todas as dificuldades, de implantação de células franciscanas seculares na China e nos países mais frágeis do mundo. Sentimos também alegria em ver emergir algumas fraternidades na África francofone e lusitanofone. Na sala capitular estavam esses homens simples com o desejo de acertar e de ver suas fraternidades nacionais progredirem. A presença e o depoimento do Conselheiro do Haiti foi comovente.

2. Sentimos, entre os presentes, uma força toda particular nos países que faziam parte da antiga União Soviética. No Capítulo, nota-se uma presença física desses terceiros e também um vigor dos jovens franciscanos. Os jovens provenientes destas partes do mundo parecem mais organizados como grupo, participam das Jornadas Mundiais da Juventude de forma mais regular. Tem-se a impressão que manifestam uma piedade mais intensa do que outros. São fraternidades juvenis com forte dimensão orante. Não houve relatórios e depoimentos de fraternidades nacionais. O tempo, certamente, não permitia. Teria sido bom sentir mais de perto como andam, por exemplo, as fraternidades da Europa. Claro, em seu relatório, a Ministra Geral alude a todas elas.

3. Em sua prestação de contas do triênio passado, a Ministra teceu algumas considerações que devem nos levar à reflexão:

  • Por ocasião das visitas e de presidência de Capítulos, constatou-se que continua a diminuição do número e o envelhecimento na Europa central, ocidental e do sul. Há nessas fraternidades pouco interesse em promover a JUFRA. Parece que a primeira preocupação esteja nas ideologias e na posse (consumismo), no comodismo e não nos valores humanos e evangélicos. Há, no entanto, fraternidades que estão em processo de rejuvenescimento.
  • Estão em fase de crescimento as fraternidades da Europa do Leste. Dá-se um fenômeno curioso. Há a geração do tempo da perseguição comunista e as novas vocações com idade de 25 a 35 anos. Falta uma geração ponte. Em algumas dessas fraternidades estão sendo feitos esforços na criação de grupos de casados. Na medida em que as novas gerações assimilarem a Regra da OFS e os formadores as mantiverem inseridas nas coisas temporais poderá haver florescimento.
  • O desenvolvimento da Ordem no sudeste asiático é estimulante. Merecem ser mencionados esforços na linha da formação inicial e permanente e também iniciativas apostólicas. No Capitulo eram muitos os irmãos e irmãs com os “olhos puxadinhos”.
  • Na América Latina, observa-se um progressivo envelhecimento sem muitas perspectivas de revitalização. Não há muita comunicação entre as fraternidades nacionais e a presidência da OFS. A comunicação se faz somente no momento em que aparecem problemas. Normalmente, as Fraternidades nacionais pedem a visita mas não se preocupam com os custos das viagens. Por vezes observamos que não há o cuidado de acolher as recomendações do visitadores na linha de superar algumas anomalias identitárias. A instabilidade política de alguns países é elemento negativo.

4. Durante a realização do Capítulo ficou evidenciada a necessidade de se encontrar recursos para viagens, formação e ajuda a tantas fraternidades do mundo inteiro. Há necessidade de se compreender que a Ordem é de todos e que há que se fazer um esforço sério face às despesas. Insistiu-se na generosidade e espontaneidade de doações, mormente destinadas às fraternidades emergentes presentes em muitas partes do mundo. Bem no final de seu relatório ao Capitulo, a Ministra falou de dois grandes desafios: a resposta dos conselheiros internacionais (e dos Conselhos Nacionais) de animar e guiar a OFS e questão da comunhão nos bens materiais e espirituais no interior da Ordem.

5. Tomo a liberdade de “pinçar” alguns elementos que aparecem nas conclusões que ainda não foram oficialmente publicadas:

  • Durante os dias do Capítulo foram vividos intensos momentos ao se compartilhar as dores e incríveis experiências de nossos irmãos e irmãs do mundo que sofrem em extrema pobreza, padecem de perseguição religiosa, são vitimas de calamidades naturais, inclusive de genocídios. Tudo deixou em alto de grau de perplexidades nossas consciências, convidando-nos a sair de nossa autocomplacência egoísta para nos aproximar com solidariedade daqueles que sofrem.
  • Nossa Ordem está sendo chamada a renovar-se a partir de seu interior para que os irmãos e as irmãs possam ser instrumentos mais fiéis e generosos do Reino de Deus, uma presença mais eficaz e crível nos assuntos temporais, projetando sobre estes a luz do Evangelho e dirigindo-os segundo os planos de Deus. (À margem do texto acrescento que este é um ponto delicado: tanto a OFS como a Primeira Ordem, em suas concretizações, precisam ser críveis, dignas de crédito.
  • Uma séria formação permanente deverá possibilitar às Fraternidades se abrirem às realidades humanas (família, trabalho, luta comunitária, ecologia. O mundo sofre demais.
  • A OFS quer colocar a família no centro de sua atenção e dar-lhe um lugar mais importante na vida das Fraternidades. O Capítulo exorta as Fraternidades locais a que facilitem o crescimento das famílias no interior das Fraternidades. Os jovens, aos quais preocupa muito, e com razão, o grande tema da sexualidade, precisam de ajuda dos Franciscanos seculares, a começar pelo testemunho de vida. As experiências de casais membros da OFS, maduros e preparados, partilhadas com os jovens da JUFRA em seus encontros ajudá-los-ia a serem verdadeiros profetas e sinais de contradição no mundo.
  • Para fomentar a comunhão entre a OFS e a JUFRA, os Conselhos da OFS incluirão representantes da JUFRA tanto na organização dos encontros comuns bem como sua realização.
  • Os animadores fraternos da JUFRA, no acompanhamento dos jovens, têm que promover conteúdos e métodos que os capacitem a assumir as responsabilidades da vida familiar e social.
  • No bloco de recomendações referentes à presença dos franciscanos seculares no mundo há um pedido de que talentos se coloquem à disposição de muitos: os franciscanos seculares comprometam-se com a proteção da família e de seus direitos sociais e promovam uma educação que permita o desenvolvimento total das crianças e dos jovens, servindo-se dos instrumentos sócio-políticos a seu alcance. Em suas iniciativas precisam reunir e incluir a todos os irmãos e irmãs preparados em diferentes especializações para que ponham à disposição do bem comum os talentos que receberam de Deus (tenho certeza que o amanhã da OFS depende também da ação apostólica e pastoral feita por pessoas santas, é verdade, mas também com “especializações”.

6. Algumas observações de ordem geral:

  • Foi incansável a dedicação dos irmãos e irmãs da OFS do Brasil, de modo especial as Fraternidades de São Paulo, para que esse Capitulo pudesse se realizar. Houve o trabalho físico duro, os plantões esperando retardatários, o estar sempre no seu lugar literalmente à disposição. Houve a presença física no local, a ajuda com recursos financeiros, o cuidado de oferecer pequenos “souvenirs” aos participantes. Enfim, os seculares franciscanos brasileiros souberam ser generosos e hospitaleiros.
  • A casa onde ser realizou o Capítulo, o Centro Santa Fé dos jesuítas, é local aprazível e extremamente agradável. O quadro exterior ajudou também ao bom êxito do Capítulo: jardins, bela capela, amplos corredores, comida bem feita.
  • Dom Odilo Scherer, cardeal de São Paulo, presidiu a abertura do Capítulo com a celebração da Eucaristia na tarde do sábado 22 de novembro. A capela estava belamente enfeitada com antúrios vermelhos e outras flores brancas numa tarde serena e bela. Dom Odilo fez sua homilia em italiano, o que agradou aos italofones. Sua homilia foi extremamente oportuna e com muita propriedade falou da radical importância de Francisco para seu tempo e para nosso tempo. Convidou os capitulares a darem sua contribuição para a renovação evangélica da Igreja como Francisco em seu tempo. Foi um momento muito especial e importante para o Capítulo. É preciso inventar o novo. Estamos de plantão para evangelizar.
  • Houve um momento particularmente importante para os Capitulares: a peregrinação a Aparecida, a missa na luminosa basílica presidida por Dom Caetano Ferrari, que procurou conversar com todos. E lá estavam irmãos e irmãs de várias regiões do país para um encontro com os membros da Presidência do Conselho Internacional... Era uma manhã ensolarada e quente. Havia uma visível alegria desses irmãos e irmãs sentados em cadeiras brancas, olhando para esses que são os gestores da OFS no nível mais elevado. Havia o canto, os aplausos, a satisfação do encontro de pessoas que são muito próximas umas das outras em Francisco e Clara.
  • Em Guaratinguetá, todos fomos, cordial e amavelmente, recebidos no Seminário Frei Galvão: os frades do seminário, os postulantes, os irmãos da Ordem Franciscana Secular das Graças. Uma sala cheíssima, com alegria, fotos, comida simples e boa. Nossa Província foi extremamente carinhosa através dos frades daquela cidade e da comunidade da fraternidade Frei Galvão.
  • Ainda em Guará houve um encontro singelo com clarissas da Fazenda Esperança. Mulheres abertas e alegres... esse sentimento de família veio à tona. Pena que não tenha havido um encontro e um diálogo dos seculares franciscanos do mundo com os jovens recuperandos. Estivemos no território mas não tivemos ocasião de olhar uns nos olhos dos outros. Um momento de partilha naquele quadro teria sido de grande utilidade para todos, de modo particular para os Conselheiros Internacionais da JUFRA.
  • Frei Alberto Beckhäuser e o professor Paulo Machado da Costa e Silva, de Petrópolis, participaram do evento na qualidade de convidados e em sinal de preito de gratidão a tudo o que os dois significam para a Ordem Franciscana Secular. Assinalamos ainda a presença vibrante e animada da Maria Tereza, a mulher do canto, da voz bonita, da simpatia em fazer com que todos cantassem... Sua participação discreta mas eficiente na liturgia não deixou de encantar a todos.
  • Ao longo do Capítulo houve festas e recreios, bem cuidados. Cada grupo linguístico ou geográfico fazia suas “peraltices”. Bela foi a festa brasileira na última noite antes do encerramento. Irmãos e irmãs das fraternidades de São Paulo, mormente Santa Clara, serviam às mesas. Um conjunto de chorinhos animou a noitada numa clima de efusiva alegria. Tenho certeza que os irmãos e irmãs do mundo inteiro não vão esquecer a cordialidade e a alegria brasileiras.

Concluindo:

Não tomem estas linhas como resultados do Capítulo. Elas quiseram apenas evocar aspectos que chamaram minha atenção. Certamente o Senhor deve ter se servido desse evento para colocar mais fogo e mais vigor na vida dos franciscanos.

(*) Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Assistente Nacional da OFS pela OFM e Assistente Regional do Sudeste III

4 de novembro de 2011

1ª sexta-feira do mês -

A LOUCURA DE AMOR DA CRUZ DO SENHOR

1. Muitos de nós temos o costume de consagrar as primeiras sextas-feiras do mês ao Coração do Senhor Jesus. Retribuímos amor com amor e apresentamos nossa reparação. Ficamos sempre extasiados diante de tanta grandeza e tanto sofrimento na hora das horas. Há os que gostam de colocar-se em silêncio orante diante da janela aberta do peito do Salvador. Lá há um coração amou até o fim.

2. Num primeiro momento pode ser que passe por nossa cabeça a ideia de que o Pai se comprazia na morte, na solidão, no abandono de seu Filho. Não podemos imaginar um Deus que tivesse arquitetado tudo para que, através desse sofrimento, sua ira se abrandasse. José Antonio Pagola, refletindo sobre o suplício da cruz, assim se exprime: “O que dá valor redentor ao suplício da cruz é o amor e não o sofrimento. O que salva a humanidade não é algum “misterioso” poder salvador contido no sangue derramado diante de Deus. Por si mesmo o sofrimento é mau, não tem nenhuma força redentora. Não agrada a Deus ver Jesus sofrendo. A única coisa que salva no Calvário é o amor insondável de Deus, encarnado no sofrimento e na morte de seu Filho. Não há nenhuma outra força salvadora a não ser o amor.” (Jesus. Aproximação histórica, Vozes, p 520).

3. O sofrimento é sempre um absurdo. Há muitos tipos de sofrimento: a mulher abandonada pelo marido; o paraplégico que assim ficou depois de um assalto; as dores devido a uma difamação. Conhecemos muitas dores de pessoas boas, profundamente boas. Num primeiro momento somos tentados a nos revoltar diante de tanto sofrimento que vemos à nossa volta ou que nós mesmos vivemos. O sofrimento é um absurdo, um louco absurdo. Jesus, suspenso entre o céu e a terra, viveu agudíssimo sofrimento: sua missão parecia terminar sem êxito, o Pai dava impressão de estar calado; aqueles para os quais havia se dedicado o haviam abandonado, tinha sede e dores no corpo e na alma. Jesus foi reunindo as melhores de suas energias e foi se entregando ao Pai livremente, fazendo uma doação irrestrita de si para os seus e para a transformação do mundo. Nada de masoquismo, nada de passividade, nada de resignação morna. Ele se entrega nas mãos e nos braços do Pai. Morre de amor. Como vive de amor a mulher que se dedica a vida toda a um filho especial, como morre de amor aquele que esquece de si para fazer com que as pessoas cresçam, aqueles que morrem para que outros tenham vida.

4. “Nessa cruz que a nós parece “loucura” encontra-se a “sabedoria” suprema de Deus encontrando um caminho para salvar o mundo. Nesse Cristo crucificado que nos parece “fraqueza” e impotência encerra-se a força salvadora de Deus” ( Pagola, p. 518). “O sofrimento continua sendo mau, mas, precisamente, por isso, transforma-se na experiência humana mais sólida e real para viver e expressar o amor. Por isso, os primeiros cristãos viram em Jesus crucificado a expressão mais realista e extrema do amor incondicional de Deus para com a humanidade, o sinal misterioso e insondável de seu perdão, compaixão e ternura redentora. Somente o amor incrível de Deus pode explicar o que aconteceu na cruz. Somente à sombra luminosa da cruz pôde surgir a transcendental e milagrosa afirmação cristã: “Deus é amor”. É isso que Paulo intui quando escreve comovido: O Filho de Deus me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20, cf. Pagola, p.520).

5. Assim, os devotos do Coração do Redentor não se cansam de apresentar ao Senhor gratidão por tanto amor. Os que contemplam o coração de Jesus aberto pela lança do soldado nada mais fazem do que extasiar-se diante de um amor que precisa ser amado. Na vida não é sofrimento que redime mas o amor com que se vive tudo, também o sofrimento. Os que contemplam o peito aberto do Senhor se tornam discípulos missionáros.

1 de novembro de 2011

Especial Finados: "A irmã morte na espiritualidade franciscana"



Apresentação


“Vocês conhecem São Francisco de Assis. Morreu à tardinha do dia 3 de outubro de 1226. Conhecido como o santo dos passarinhos. Amigo dos animais. Da natureza toda. Padroeiro da ecologia. O santo da paz. O santo fraterno. Da fraternidade universal, humana e cósmica. Reconciliado com tudo e com todos, até mesmo com a morte, à qual ele chama de Irmã”.

Desta forma, Frei José Ariovaldo abre este Especial sobre a celebração do trânsito de São Francisco, o mesmo tema de Frei Nilo Agostini: “E Francisco vai ao seu encontro (da morte) como quem vai abraçar e saudar uma irmã muito querida”.

São Francisco de Assis, segundo texto de Tomas de Celano, chegava a convidar para louvor até a própria morte, que todos temem e abominam. Leia este texto das Fontes Franciscanas.

Como São Francisco de Assis
celebra a sua própria morte


Por Frei José Ariovaldo da Silva, OFM

1. Em Francisco, uma original experiência de Deus
Vocês conhecem São Francisco de Assis. Morreu à tardinha do dia 3 de outubro de 1226. Conhecido como o santo dos passarinhos. Amigo dos animais. Da natureza toda. Padroeiro da ecologia. O santo da paz. O santo fraterno. Da fraternidade universal, humana e cósmica. Reconciliado com tudo e com todos, até mesmo com a morte, à qual ele chama de Irmã. O santo que descobriu e viveu profundamente o Amor. Tudo isso e ainda muito mais, a partir de uma profunda experiência de Deus, atestada pelos seus escritos e os de seus biógrafos (1). Não o Deus fabricado por especulações filosóficas ou teológicas, mas o Deus do Evangelho. O Deus de Jesus Cristo. Foi beijando certa vez um leproso que Francisco sentiu profundamente de que jeito Deus é. Beijando um leproso, ele se lembrou de Jesus pobre, desprezado, sofrido, marginalizado, crucificado, abandonado, só por amor de nós e para nos salvar. Foi beijando um leproso e lembrando do Jesus “que se fez leproso” (2) por nosso amor, que Francisco fez esta grande descoberta: Deus é pobre. Sim, Deus é pobre! E a Pobreza - com “P” maiúsculo, esse modo característico de Deus ser! - passa a ser para ele a grande paixão de sua vida, a sua amada, a dama de sua vida e de suas canções, até a hora derradeira, a morte corporal.

2. Francisco: uma vida em celebração
A partir desta experiência de Deus como Pobre e que por isso é Criador e Salvador, Francisco se tornou um cristão que vivia para celebrar este Deus. Lendo os escritos franciscanos mais antigos, notamos como a vida deste santo é toda pautada pela oração, pelo louvor, pela celebração, por um imenso amor à Eucaristia e por uma intensa vida de fraternidade. E o fazia criativamente, com a singeleza e a simplicidade pura de um pobre cheio de Deus. Adorava celebrar. E de corpo inteiro. Pondo emoção, afeto, coração, paixão, em suas celebrações. Por exemplo, para celebrar o nascimento de Jesus - a divina Pobreza encarnada no Menino pobre de Belém - Francisco inventou o presépio. Foi ele quem inventou o presépio de Natal! E assim, desta maneira, ele encena e torna palpável aos olhos, à mente e ao coração, o Deus que se revelou Pobre para nos libertar de nossas misérias.

3. E celebrando sua própria morte
Vou destacar e comentar brevemente para vocês, aqui, um exemplo típico de celebração litúrgica feita por Francisco. Uma celebração memorial, na sua estrutura, até bem parecida com muitas que são feitas hoje em nossas comunidades. Comporta, basicamente, três partes. Há primeiro uma encenação; depois vem uma leitura do Evangelho; e, por fim, um momento de louvor que se prolonga até...

Vejam como Tomás de Celano, o primeiro biógrafo de São Francisco, nos apresenta esta celebração. Vejam como São Francisco de Assis celebra a sua própria morte:
“Estando os frades a chorar amargamente e a se lamentar sem consolação, o pai santo mandou trazer um pão. Abençoou-o, partiu-o e deu um pedacinho para cada um comer. Também mandou trazer um livro dos Evangelhos e pediu que lessem o Evangelho de São João a partir do trecho que começa: ‘Antes do dia da festa da Páscoa’, etc. Lembrava-se daquela sagrada ceia que foi a última celebrada pelo Senhor com seus discípulos. Fez tudo isso para celebrar sua lembrança demonstrando todo o amor que tinha para com seus frades.

Passou a louvar os poucos dias que ainda restavam até sua morte, ensinando seus filhos muito amados a louvar Cristo em sua companhia. Ele mesmo, quanto lhe permitiam suas forças, entoou o Salmo: ‘Lanço um grande brado ao Senhor, em alta voz imploro o Senhor’, etc. Convidava também todas as criaturas ao louvor de Deus e, usando uma composição que tinha feito em outros tempos, exortava-as ao amor de Deus. Chegava a convidar para o louvor até a própria morte, que todos temem e abominam e, correndo alegre ao seu encontro, convidava-a com hospitalidade: ‘Bem-vinda seja minha irmã, a morte!’ Ao médico disse: ‘Irmão médico, diga com coragem que minha morte está próxima, para mim ela é a porta da vida!’ E aos frades:

‘Quando perceberdes que cheguei ao fim, do jeito que me vistes despido antes de ontem, assim me colocai no chão, e lá me deixai ficar mesmo depois de morto, pelo tempo que alguém levaria para caminhar uma milha, devagar’.

E assim chegou a hora. Tendo completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo, voou feliz para Deus” (3).

4. A morte de São Francisco como celebração memorial (4)
Lá está Francisco, deitado, muito debilitado. À beira da morte. Os frades começam a chorar. E choram amargamente. Desconsolados, lamentam esta triste situação: A perda de um pai; a desgraça da morte.

Vendo os frades neste estado, Francisco, que queria tanto bem a eles, toma a iniciativa de fazer uma celebração. E assim, desta maneira tão humana e divina, ele consola os frades e os encoraja. Como? Transportando-os, no envolvimento desta celebração, para a Última Ceia de Jesus e, em Jesus, para o sentido positivo da própria morte. E ali está: “Uma comunidade eclesial que celebra liturgicamente, com Francisco, a morte deste” (5).

a) O gesto de partir o pão
Francisco manda trazer um pão. Abençoou o pão. Partiu-o e deu um pedacinho para cada um comer.

Através deste gesto, Francisco encena a Última Ceia que Jesus fez com seus discípulos antes de morrer. Assim recorda o imenso ato de amor e de doação total e perene de Jesus à humanidade, perpetuado na Eucaristia que ele reverenciava o máximo, pois o Corpo do Senhor não é senão o Pobre e Humilde que ele descobriu ao beijar o leproso (6).

O gesto se relaciona com a despedida de Jesus a seus discípulos. Os frades, semelhantemente aos discípulos de Jesus, aqui assistem à representação que Francisco faz de “sua” Última Ceia. Deste modo, Francisco celebra também a sua doação total ao Senhor, servindo aos irmãos, na vida e na morte que se aproxima. “Em obediência total a Cristo, seu Mestre e Senhor, põe em ação sua diaconia revivendo a lembrança daquela santíssima noite com uma celebração litúrgica ‘sui-generis’, à qual associa todos os frades ali presentes” (7). Assim ele “leva os frades a suportar a dor de sua morte, para vivenciar a alegria de quem sente e possui a presença do Senhor” (8).

b) Leitura do Evangelho de João
Francisco mandou trazer também o livro dos Evangelhos. Pediu para alguém ler o Evangelho de João, capítulo 13,1-15. É o texto do lava-pés: Jesus, durante a Última Ceia, levantou-se, cingiu-se com uma toalha, e lavou os pés dos discípulos, como exemplo de humildade e serviço a ser seguido por todos.

Portanto, Francisco completa a representação de “sua Última Ceia” integrando nela esta leitura de João. É bom lembrar que, na época, quando alguém estava para morrer, após lhe serem ministrados os santos sacramentos, se lia um texto evangélico da Paixão do Senhor. Geralmente de Marcos. Aqui, no caso de Francisco, ele é original e criativo:
Ele mesmo escolhe o texto; e um texto condizente com o momento que eles estavam vivendo ali. Um texto que traz vivamente presente, neste “clima” de Última Cela, o exemplo de humildade, de minoridade e de serviço do Senhor Jesus, que ele abraçou com toda a paixão.

c) Tudo Isso para se lembrar da Última Cela e por amor aos frades
Assim, como narra Tomás de Celano, Francisco “lembrava-se daquela sagrada ceia que foi a última celebrada pelo Senhor com seus discípulos. Fez tudo Isso para celebrar o amor que tinha para com os seus frades”.

Em outras palavras. Francisco se transporta e transporta os frades para a centralidade do seu ideal, que supera o horror da morte. Esta centralidade é o Senhor, pobre, humilde, menor, servo de todos que, na Eucaristia, assume a forma humilde de pão e de vinho, e na Palavra revela a presença do seu amor-serviço. O amor de Francisco, iluminado pela lembrança da Última Ceia do Senhor nesta celebração, conduz os frades a uma visão positiva da morte. Em vez de chorar, eles devem agora cantar. Devem passar (Páscoa!) do luto para a festa da vida que chega pelas portas da morte.

d) O momento de louvor
Diz Tomás de Celano que Francisco passou então “a louvar os poucos dias que ainda restavam até sua morte”. E não só isso. Ele o fez, “ensinando seus filhos muito amados a louvar Cristo em sua companhia”.

É o momento de louvor, na celebração. Como em tantas celebrações de nossas comunidades... Tem sempre o momento de louvor, que é o momento alto. Francisco louva, porque sente estar próximo o dia de sua passagem para a vida. Graças a Jesus Cristo. Por isso, os frades, que antes estavam tristes, chorando, desconsolados se lamentando, agora podem com seu pai cantar, louvar o imenso amor de Jesus Cristo que nos salvou.

Francisco louva, entoando o Salmo 141. Convida todas as criaturas ao louvor de Deus. Para tanto, usa inclusive o Poema que ele mesmo havia composto, o célebre “Cântico do Irmão Sol”, através do qual também exorta todas as criaturas ao amor de Deus. Chega a convidar para o louvor até a própria morte que se aproximava, à qual dá as boas-vindas, como sua irmã. Louva a Deus pela irmã morte. Louva, porque esta, “que todos temem e abominam’, para Francisco é sentida como “a porta da vida”. Louva, pois ele, a esta altura, estava plenamente identificado com a Fonte da Vida: Deus (9). Assim, em Francisco ainda vivo, no embalo desta celebração, a morte já era percebida como tragada pela Vida. Os frades não precisam mais chorar nem se lamentar: mas sim celebrar o mistério do Amor que ali se fazia presente.

5. Concluindo
Vou concluir com as palavras do meu confrade espanhol. J. Tresserras Basela: Vimos como, pela narração de Tomás de Celano, se destaca “o caráter de celebração-memorial que a morte de Francisco tem”. Vemos aí “o caminho ascendente do Pobrezinho de Assis que se prepara para participar da Ressurreição. E não querendo permanecer só, neste momento, ele envolve nesta celebração os frades e toda a criação para que com ele gozem da plenitude deste momento” (10)

Para nós, para as nossas comunidades e para as equipes de liturgia, fica este exemplo de São Francisco: Uma celebração será boa, isto é, viva, criativa, envolvente, convincente, e produzirá frutos de evangelização, se ela vier carregada de uma mística, se ela vier carregada de uma experiência de Deus, do Deus Pobre que está do lado do pobre.

Texto publicado na Revista Grande Sinal, Revista de Espiritualidade, de propriedade da Província da Imaculada Conceição do Brasil e editada pelo ITF, Petrópolis, 1994, Ano 48.

Morte e Vida de São Francisco de Assis

Por Frei Nilo Agostini, OFM

Todo debilidato, com voz fraca, sumida, entoa Francisco o Salmo 142: Você mea ad Dominum clamavi (“Com minha voz clamei ao Senhor...”). O Salmo vai sendo entoado pouco a pouco, e ao chegar ao versículo Educ de custodia animam meam (“Arranca do cárcere minha alma, pra que vá cantar teu nome, pois me esperam os justos e tu me darás o galardão”). Faz-se grande e profundo silêncio. Acabara de morrer, cantando, Francisco de Assis.

Quem é este que transfigura o trauma da morte em expressão de liberdade tão suprema? Desaparece o sinistro da morte. E Francisco vai ao seu encontro como quem vai abraçar e saudar uma irmã muito querida.

Ano de 1226. Francisco se acha muito debilitado. Seu estômago não aceita mais alimento algum. Chega a vomitar sangue. Admiram-se todos como um corpo tão enfraquecido, já tão morto, ainda não tenha desfalecido. Transportado de Sena para Assis, Francisco ainda encontra forças para exortar os que acorrem a ele. E aos irmãos diz: “Meus irmãos, comecemos a servir ao Senhor, porque até agora bem pouco fizemos”. Ao chegar a Assis, um médico se apresenta e constata que nada mais resta a fazer. Ao que Francisco exclama: “Bem-vinda sejas, irmã minha, a morte!” E convida aos irmãos Ângelo e Leão para cantarem o Cântico do Irmão Sol, ao qual Francisco Acrescenta a última estrofe em louvor a Deus pela morte corporal.

Cria-se uma atmosfera tão jovial e alegre que o Ministro Geral da Ordem, Frei Elias, interpela Francisco para que pare com toda aquela atmosfera, vista como “cantoria”, para que enfim ele morra “convenientemente”, pois poderia escandalizar os moradores de Assis. “Com tudo o que sofro, me sinto tão perto de Deus que não posso senão cantar!” – respondeu-lhe Francisco.

Aproximando-se a hora derradeira, Francisco deseja ser levado para a capelinha de Nossa Senhora dos Anjos, na Porciúncula, onde tudo havia começado. Lá, num gesto de despojamento, de identificação com o Cristo crucificado e de integração com o Pai, pede que o deixem, nu, sobre a terra e diz aos frades: “Fiz o que tinha que fazer. Que Cristo vos ensine o que cabe a vós”. Despede-se de todos os irmãos; abençoa-os; lembra-lhes que “o Santo Evangelho é mais importante que todas as demais instituições”. Ainda deseja que Irmã Jacoba lhe traga alguns daqueles deliciosos biscoitos. Anima o seu médico, dizendo-lhe: Irmão médico, dize com coragem que a minha morte está próxima. Para mim, ela é a porta para a vida!” E, então, canta o Salmo 142. Francisco parte cantando, cortês, hospitaleiro e reconciliado com a morte.

O canto de Francisco está baseado em uma percepção realista da morte: “Nenhum homem pode escapar da morte”. Mas como pode ser irmã aquela que engole a vida, que decepa aquela pulsão arraigada em cada um de nós, fundada em um “desejo” que busca triunfar sobre a morte e viver eternamente? Francisco acolhe fraternalmente a morte. Nele realiza-se, de forma maravilhosa, o encontro entre a vida e a morte, em um processo de integração da morte.

Francisco acolhe a vida assim como ela é, ou seja, em sua exigência de eternidade e em sua mortalidade. Tanto a vida como a morte são um processo que perdura ao longo de toda a vida. A morte faz parte da vida. Como e despertar e o adormecer, assim é a morte para o ser humano. Ela não rouba a vida; dá a esse tipo de vida a possibilidade de outro tipo de vida, eterna e imortal, em Deus.

A morte não é então negação total da vida, não é nossa inimiga, mas é passagem para o modo de vida em Deus, novo e definitivo, imortal e pleno. Francisco capta esta realidade e abriga a morte dentro da vida. Acolhe toda limitação e mostra-se tolerante com a pequenez humana, a sua e a dos outros.

A grandeza espiritual e religiosa de Francisco no saudar e cantar a morte significa que já está para além da própria morte; ela, digna hóspede não lhe é problema; ao contrário, ela é a condição de viver eternamente, de triunfar de modo absoluto, de vencer todo embotamento do pecado que a transforma em tragédia. Francisco soube mergulhar na fonte de toda a vida. “Enquanto Deus é Deus, enquanto Ele é o vivente e a Fonte de toda a vida, eu não morrerei, ainda que corporalmente morra!” (L. Boff).

Morte, drama sagrado,
não uma tragédia.
Morte, bem-vinda,
não uma inimiga.
Morte, uma irmã,
não uma ladra.
Morte, abertura para a plena liberdade,
presença do Reino de Deus, utopia do justos.
“Deus enxugará as lágrimas dos seus olhos, e a morte não existirá mais,
nem haverá mais luto, nem pranto, nem fadiga, porque tudo isso já passou” (Ap 21,4).

“Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã,
a morte corporal, da qual nenhum vivente pode escapar” (São Francisco, Cântico do Irmão Sol).

Sermão proferido por Frei Nilo Agostini, na Festa de São Francisco de Assis, 04/10/1991


Sobre o passamento do santo pai

Capítulo 162 - Como exortou e abençoou os irmãos no fim
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1 No fim do homem - diz o Sábio - suas obras serão desnudadas (cfr. Eclo 11,29).
2 Neste santo vemos que isso se realizou por completo, e gloriosamente. Ele percorreu com alegria da mente o caminho dos mandamentos de Deus, chegou ao alto passando pelos degraus de todas as virtudes e viu o fim de toda consumação como uma obra amoldável, aperfeiçoada pelo martelo das múltiplas tribulações.
3 Quando partiu livre para os céus, pisando as glórias desta vida mortal, resplandeceram mais as suas obras admiráveis, e ficou provado pelo juizo da verdade que tudo que tinha vivido era divino.
4 Achou que viver para o mundo era um opróbrio, amou os seus até o fim e recebeu a morte cantando.
5 Sentindo já próximo seus últimos dias, em que a luz perpétua substituiria a luz que se acaba, demonstrou pelo exemplo de sua virtude que não tinha nada em comum com o mundo.
6 Prostrado pela doença grave que encerrou todos os seus sofrimentos, fez com que o colocassem nu sobre a terra nua, para que, naquela hora extrema em que ainda podia enraivecer o inimigo, estivesse preparado para lutar nu contra o adversário nu.
7 Na verdade esperava intrepidamente o triunfo e já apertava em suas mãos a coroa da justiça.
8 Assim, posto no chão, sem a sua roupa de saco, voltou o rosto para o céu como costumava e, todo concentrado naquela glória, cobriu a chaga do lado direito com a mão esquerda, para que não a vissem.
9 E disse aos frades: “Eu fiz a minha parte; que Cristo vos ensine a cumprir a vossa!”
215
1 Vendo isso, os filhos sucumbiram à dor imensa da compaixão, soltando rios de lágrimas e dando longos suspiros.
2 O seu guardião, contendo os soluços e adivinhando por inspiração divina o que o santo queria, levantou-se, foi correndo buscar uma calça, o hábito de saco e o capuz, e disse ao pai:
3 “Fica sabendo que te empresto, em virtude da obediência, este hábito, as calças e o capuz!
4 Mas para saberes que não tens nenhum direito de propriedade, tiro-te o poder de dá-los a quem quer que seja”.
5 O santo se alegrou e se rejubilou de alegria do coração, vendo que tinha mantido a fidelidade para com a Senhora Pobreza até o fim.
6 Fizera tudo isso por zelo da pobreza, a ponto de não querer ter no fim nem o hábito próprio mas como emprestado por outro.
7 Usara na cabeça o capuz de saco para esconder as cicatrizes da doença dos olhos, quando teria necessidade de um gorro de lã cara, que fosse bem macio.
16
1 Depois disso, o santo levantou as mãos para o céu e louvou a Cristo porque, livre de tudo, já estava indo ao seu encontro.
2 Mas, para demonstrar que era um verdadeiro imitador do Cristo, seu Deus, em todas as coisas, amou até o fim os frades e filhos, a quem amara desde o começo.
3 Pois fez chamar todos os irmãos presentes e, aclamando-os com palavras de consolação, por sua morte, exortou-os com afeto de pai ao amor de Deus.
4 Falou também sobre a observância da paciência e da pobreza, dizendo que o santo Evangelho era mais importante do que todas as instituições.
5 Estando todos os frades sentados ao seu redor, estendeu sobre eles a sua destra e, começando por seu vigário, a impôs sobre a cabeça de cada um.
6 E disse: “Filhos todos, adeus no temor do Senhor! Permanecei sempre nele!
7 E como a tentação e a tribulação estão para chegar, felizes os que perseverarem no que começaram.
8 Eu vou para Deus, a cuja graça recomendo-vos todos”.
9 Nos que estavam presentes, abençoou a todos os frades que estavam por todo o mundo e os que haveriam de vir depois deles, até o fim dos séculos dos séculos.
10 Que ninguém usurpe para si mesmo essa bênção que, nos presentes, deu aos ausentes. Assim como se acha escrita em outro lugar parece ter algo de especial, mas isso é um desvirtuamento.

Capítulo 163 - Sobre a sua morte e o que faz antes de morrer
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1 Enquanto os frades choravam amargamente e se lamentavam inconsoláveis, o pai santo mandou trazer um pão. Abençoou-o, partiu-o e deu um pedacinho para cada um comer.
2 Também mandou trazer um livro dos Evangelhos e pediu que lessem o Evangelho de São João a partir do trecho que começa: “Antes do dia da festa da Páscoa”, etc.
3 Lembrava-se daquela sacratíssima ceia que foi a última celebrada pelo Senhor com seus discípulos.
4 Fez tudo isso para celebrar sua lembrança, demonstrando todo o amor que tinha para com seus frades.
5 Passou em ação de graças os poucos dias que ainda restavam até sua morte, ensinando seus filhos muito amados a louvar Cristo em sua companhia.
6 Ele mesmo, quanto lhe permitiam suas forças, entoou o Salmo: “Lanço um grande brado ao Senhor, em alta voz imploro o Senhor” (Sl 141,2-8), etc.
7 Convidou também todas as criaturas ao louvor de Deus e, usando uma composição que tinha feito em outros tempos, exortou-as ele mesmo ao amor de Deus.
8 Chegou a exortar para o louvor até a própria morte, terrível e aborrecida para todos, e, correndo alegre ao seu encontro, convidou-a com hospitalidade: “Bem-vinda seja a minha irmã morte!”
9 Ao médico disse: “Irmão médico, diga com coragem que minha morte está próxima, para mim ela é a porta da vida!”
10 E aos frades: “Quando perceberdes que cheguei ao fim, do jeito que me vistes despido anteontem, assim me colocai no chão, e lá me deixai ficar mesmo depois de morto, pelo tempo que alguém levaria para caminhar sem pressa uma milha”.
11 E assim chegou a hora. Tendo completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo, voou feliz para Deus.

A irmã morte

Por N.G. Van Doornik

O mistério da vida e da morte é um mistério de pobreza. A vida é de graça. Nada fiz para viver. Os que me deram a vida, com toda sua consciência e bondade, nada sabiam da vida. Não puderam controlar o que deram.

Não puderam segurar a vida terrena deles mesmos.

Nada entendemos da morte, com todo o nosso progresso. Quanto mais o homem progride mais sabe que a morte, como a vida, é um mistério.

Só podemos agradecer. Agradecer pela vida de cada momento, pelo dom de cada momento, e pelos dons da vida dos outros, dos outros seres que a vida nos traz. Só podemos agradecer pelo mistério da vida, que é tão grande que ultrapassa a morte.

Agradecer é viver cada momento intensamente. Agradecer é viver.

Não precisamos ter medo da morte se o Senhor da Vida é Amor e nos prova isso a cada momento. Mas só os agradecidos entendem que Ele é Amor.

É claro que a gente tem um pouco de medo, aquele medo que a gente sempre sente como parte da excitação das experiências muito grandes ou muito novas. É um medo vital, pelo qual também podemos agradecer.Não somos nada, não temos nada, não levamos nada.Mas tudo está ao nosso alcance e tudo pode ser vivido por nós intensamente, a cada momento.

O momento anterior já passou. Teve uma oportunidade única de ser vivido e já se fez passado. Mais assustadora que essa morte que dá a impressão de nos interromper o fluxo da vida é essa outra em que perdemos oportunidades de vida, em que algo passa e não é integrado nem aproveitado.


A celebração da Morte

Por Frei Hugo Baggio

Francisco faz da morte uma celebração, uma liturgia. Por ser ela um fato humano, uma realidade "da qual homem algum pode escapar", ele a convoca para unir-se aos demais elementos vitais do homem: o sol, a lua, a terra com suas flores e frutas, as estrelas e o vento, a água cristalina e cantante.

Não é ela a mensageira de uma fatalidade, embora homem vivente algum dela possa esquivar-se, não é destruidora da tessitura da vida e separadora de corações e dos elementos naturais. Não é uma criatura deformada, repelente, intrusa ou alheia à criação de Deus. Ela é também uma criatura nascida, como todas, da bondade de Deus.

Se para Francisco todas as criaturas são irmãos e irmãs, também a morte é a irmã, aquela que nos toma pela mão e nos conduz por este trecho do caminho, misterioso e sombrio. Misterioso porque não temos dele nenhuma experiência. Tudo o que da morte sabemos é algo exterior a nós, algo que nos chega de fora.

Por isso, não a conscientizamos. E, conseqüentemente, não a incorporamos à nossa história, procurando afastá-la. E como não o podemos fazer biologicamente, fazemo-lo mentalmente: recusamo-nos a pensar nela e dela falar. Rejeitamo-la. Sombrio, porque as civilizações e as culturas encheram este caminho de negrume e sombras assustadoras.

Para Francisco de Assis, esta saudação não é mera exuberância poética, numa hora de bem-estar espiritual, quando nosso ser suporta até os pensamentos aparentemente mais assustadores e desconfortantes. É uma saudação arrancada, no momento de plena consciência da proximidade de sua dissolução, quando o fenômeno morte lhe está próximo, palpável, no tempo e no espaço.

Nem tampouco é um grito nascido de um "cansado da vida", porque sua cosmovisão fazia-o degustar a vida, e amá-la, em suas múltiplas alegrias. É a conformidade profunda, nascida da fé que acredita numa realidade meta-histórica, atingível apenas através da morte.

Se a morte é irmã, isto significa que entre ela e o homem existe um parentesco, portanto não se trata de algo estranho, algo punitivo, algo fatal, algo inimigo. Também aqui aparece uma dimensão diferente: o desapego foi libertando o homem, até desejar apenas a realização no plano eterno de Deus. Portanto, não fala, aqui, a emoção estética, ainda que o belo exercesse tão profundo fascínio em Francisco, mas é uma expressão teológica de aceitação alegre. Tudo é bem. Tudo é dádiva. Tudo é gratuidade. Por isso ele usa a expressão: bem-vinda!

A terra é "irmã" e sobre ela quer seu corpo estendido para nela passar à realidade eterna, pelas mãos de outra "irmã", a Morte. Sempre de novo, na visão de Francisco, aparece a fraternização, que vem marcada pela entrega total. Francisco foi o homem "à disposição" de tudo e de todos, como ensina em suas exortações: o frade está submisso à toda criatura. Mormente à disposição de Deus. Daí a entrega final, generosa e alegre, fraterna e pacificada.

Tinha bem claro que o homem não é um ser-para-a-morte, mas um ser-para-a-vida. Por isso, olha com o mesmo olhar límpido e destemido o sol, a lua, as flores, as águas e a morte, porque em todos eles se manifesta o mesmo mistério do ser e palpita a mesma centelha da vida. Sem dúvida, é resultado de uma longa caminhada. Sobretudo, resultado de um relacionamento equilibrado e iluminado com todos os seres, relacionamento feito de ternura e de amor. O que se ama não se teme, pois os dois termos são excludentes. Esta estrofe não foi um aditamento de última hora, mas um complemento necessário, sem o qual o Cântico das Criaturas ficaria mutilado e incompleto.

O Cântico começa com o SOL e termina com a MORTE sem estabelecer um paradoxo, ou antagonismos, mas é uma continuidade natural, uma decorrência lógica. É o encontro da luz solar com a luz da eternidade. É a explosão da luz. Francisco aproximou o Sol e a Morte, a Vida e a Morte, a Beleza e a Morte, a Alegria e a Morte, dentro de sua simplicidade característica, sem fazer violências a si ou aos outros, mas na aceitação plena de quem sabe que somente quando as folhas da flor caem é que a semente tem possibilidade de tornar-se geradora de uma nova primavera.

Ou somente no apodrecer no seio da terra irrompe a vida do grão. Na tradição franciscana, desde Frei Pacífico, o jogral da corte, dos dias de Francisco até um Alceu Amoroso Lima dos nossos dias, vamos encontrar esta fraterna convivência do homem com a morte, depois de ter exorcizado todos os fantasmas e medos e de ter aceito o parentesco com a Irma Morte.

Por isso, entre a série de elementos com os quais tentamos descrever a riqueza do vocábulo franciscanismo, devemos alinhar, com toda a naturalidade, a concepção da MORTE de Francisco como um dos elementos constitutivos do franciscanismo.

Extraído do livro "São Francisco, vida e ideal", de Frei Hugo Baggio, Vozes.