10 de novembro de 2011

A “FELICIDADE” DESSES QUE CHAMAMOS DE “RELIGIOSOS

Ter sempre o coração voltado
para o Senhor

“Irmãos todos, guardemo-nos muito para que, sob a aparência de alguma recompensa ou de obra ou de ajuda, não percamos ou afastemos do Senhor a nossa mente e o nosso coração”.
(Francisco de Assis, Regra Não-Bulada 22,25).

1. Eles estão espalhados por todas as partes, esses que chamamos de religiosos e de religiosas, entre os quais estão os que designamos de franciscanos. Alguns envergam um hábito exterior. Outros se vestem de roupas comuns, simples, por vezes tendo um crucifixo ou um tau no peito ou na lapela. Outros, precisando circular em espaços solenes, se vestem com solenidade. Mas por detrás desses rostos estão esses que chamamos de religiosos e religiosas, de frades menores e irmãs que se sentem bem respirando a espiritualidade evangélica-franciscano-clariana. Alguns estão ainda nos primeiros tempos da paixão amorosa pelo Senhor e pelos irmãos. Outros estão mais adiantados na caminhada. Nem sempre enxergam claro. Ficam meio perplexos com tantos questionamentos e com tantas transformações. Por vezes, a duras penas, vão construindo sua identidade. essas religiosas contemplativas que, no meio da noite, se levantam para louvar o Senhor. Esses outros, religiosos ou religiosas, percorrem os corredores dos hospitais, dirigem-se às casas das pessoas, ajudam essas mães e esses pais simples a educarem seus filhos, estão fortemente comprometidos com a pastoral da Igreja. Vejo aquela religiosa idosa, sentada na cozinha, descascando batatas ou preparando um doce de abóbora com coco para as irmãs. Antes do almoço, ela vai passar uns instantes na capela rezando um terço. À tardinha vejo chegar os religiosos para a frugal refeição da noite, um momento de colóquio em torno à mesa e depois a volta aos trabalhos. Ou um momento mais prolongado de leitura e de oração. Vidas consagradas a Deus. Seres leves e simples, criaturas com os pés na terra e o coração no Amado. Hoje em dia, em algumas casas, à noite há a leitura orante da Bíblia. Querem ter o coração sempre voltado para o Senhor. Esses que chamamos de religiosos vivem a busca do Deus Altíssimo com infatigável desejo. E, no fundo de seu coração, são pessoas profundamente felizes.

2. “Se, de fato, é verdade que todos os cristãos são chamados à santidade e à perfeição do próprio estado, as pessoas consagradas, graças a uma nova e especial consagração, têm a missão de fazer com que resplandeça a forma de vida de Cristo, por meio do testemunho dos conselhos evangélicos, para sustento da fidelidade de todo o Corpo de Cristo” (Partir de Cristo, Instrução da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, n. 13). Um pouco antes lemos no mesmo documento: “A impressão que se pode ter de uma queda na estima pela vida consagrada, por parte de alguns setores da Igreja, pode ser vivida como um convite a uma purificação libertadora. A vida consagrada não procura louvores nem apreços humanos, ela é recompensada pela alegria de continuar a trabalhar operosamente a serviço do Reino de Deus, para ser germe de vida que cresce em segredo, sem buscar recompensa diferente daquela que, no fim, o Pai nos dará. Ela encontra a sua identidade no chamado do Senhor, no seu seguimento, no amor e serviço incondicionais, capazes de plenificar uma vida e de dar-lhe plenitude de sentido” (ibidem). Esse chamado, a graça da vocação é que dá alegria e felicidade aos religiosos.

3. Não cessam os religiosos de perguntar ao Senhor o que ele deseja de cada um dos membros de sua Fraternidade. Não querem fazer a sua vontade particular e garantir seu cantinho de sobrevivência. Estão sempre com os ouvidos atentos aos textos das Escrituras, às batidas do coração de seus confrades e co-irmãs, sentem-se perto, bem perto de todos esses homens e mulheres para os quais se sentem enviados. Lutam para que sua Província encontre caminhos que coincidam com os caminhos que Deus deseja. São “ledores” obedientes dos sinais dos tempos. Obedecem-se mutuamente numa tentativa de nunca mais girar em torno do eu que é inimigo do Espírito. Nessa obediência, no empenho de não deixar o coração endurecer, os religiosos são “felizes”. Fazem o que o Senhor lhes pede. Não pertencem a si mesmos. São de um Outro.

4. Nessa decisão inabalável de fazer que o Senhor venha ocupar todo o espaço de seu interior e de seu exterior, os religiosos são criaturas revestidas do fogo do amor. Consagram ao Senhor seu corpo e integridade e pureza do interior. São puros de coração e buscam purificar-se. Num mundo hedonista e pansexualista, os religiosos são pessoas que, sem falsos pudores, se tornam esposos e esposas do Senhor. “Rogo a todos os irmãos, tanto aos ministros quanto aos outros, que, removido todo impedimento e todo cuidado e postergada toda preocupação, do melhor modo que puderem, esforcem-se por servir, amar, honrar e adorar o Senhor com o coração limpo e com a mente pura, pois é isso que Ele deseja acima de tudo, e façamos sempre aí uma habitação e um lugar de repouso para Ele que é o Senhor Deus Onipotente, Pai, Filho, Espírito Santo...” (Regra Não-Bulada 22, 26-27). São felizes os que se tornam lugar exclusivo de habitação daquele que busca asilo na intimidade dos que o amam. Uma vida de castidade consagrada viçosa é sinal de que é possível viver a radicalidade do Evangelho na carne humana... e quem puder compreender que compreenda. São felizes os que se tornam esposos e esposas do Senhor .

5. Seres leves... seres com pouca bagagem. Numa sociedade loucamente consumista, os religiosos são seres de um mundo encantado que vai além da aparência, do poder e do ter. Thaddée Matura vê na Admoestação XIV de Francisco o cerne da assim dita Pobreza Franciscana: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus (Mt 5,3). Muitos há que, insistindo em orações e serviços, fazem muitas abstinências e macerações dos seus corpos, mas por causa de uma única palavra que lhes parece ser uma injúria a seu próprio eu ou por causa de alguma coisa que se lhes tire, sempre se escandalizam e se perturbam. Estes não são pobres de espírito, porque quem é verdadeiramente pobre de espirito se odeia a si mesmo e ama quem lhe bate face”.

6. Thaddée Matura lembra alguns aspectos da pobreza franciscana que podem fazer “felizes” seus seguidores. Antes de se manifestar na pobreza material, da qual é como que um sacramento visível, a pobreza se reveste de três características: reconhecer que todos os bens têm sua origem em Deus, que somente nossos são os vícios e os pecados, e que carregaremos todos os dias a cruz de Nosso Senhor, que consiste na submissão a todos, na aceitação da rejeição, da doença e da morte.

7. “O que somos, o que podemos realizar, sobretudo tratando-se de realidades espirituais, deve ser considerado grande e belo. É legítimo alegrarmo-nos com tais dons e experimentarmos um santo orgulho. Mas imiscui-se uma sutil tentação: eu sou isto, eu... eu me basto, sou como Deus. Será preciso escapar da tentação de nos apropriarmos de bens dos quais não somos proprietários. “...esforcem-se... por não se gloriar nem se regozijar consigo mesmo, nem se exaltar interiormente das boas palavras e obras, e, menos ainda, de nenhum bem que Deus muitas vezes faz ou diz e opera neles e por eles ... reconheçamos que são do Senhor” (Regra Não-Bulada 17). Reconhecer o que é bom em nós, é um primeiro passo. Feito isso, será preciso apressar-se em restituir os bens a seu proprietário que é o Senhor Deus, o único bom. A verdadeira e mais profunda pobreza é a de tudo possuir através do dom de Deus, sem nada atribuir a si”.

8. Haveremos de nos gloriar de nossas fraquezas e de carregar todos os dias a cruz de Nosso Senhor. Os frades haverão de se alegrar quando se sentirem submetidos a diversas provações, quando suportarem angústias da alma e do corpo ou tribulações neste mundo por causa da vida eterna (cf. Regra Não-Bulada 17). E esses religiosos, vivendo simplesmente e pobremente com seus irmãos, atuando na pastoral, são pessoas muito próximas do coração de Deus. Pobres desse jeito, os religiosos mostram por sua vida a vida de Cristo e são felizes. Matura conclui sua reflexão sobre a Admoestação 14: “O sofrimento, esse mal-estar do homem, está presente no dia a dia da vida em muitas circunstâncias. O que deseja ser “menor e submisso a toda criatura” há de encontrar a incompreensão, a oposição e até mesmo a perseguição. Pode ser mesmo que, como Francisco, ele se depare com a rejeição, extremamente dolorosa, de seus próximos como aparece relatado no episódio da perfeita alegria. A própria vida vê-se ameaçada pela doença e pela morte, duas companheiras inevitáveis de todo homem, que cedo ou tarde chegam para visitá-lo”. Os que abraçam essa pobreza são capazes de cantar a chegada da irmã morte.

9. Seres leves e pobres, cantores da glória de Deus, submissos uns aos outros no mistério da fraternidade e não deixando o coração endurecer, amantes ardentes do Deus de amor, os religiosos são seres felizes. Felizes também porque vão pelo mundo. São enviados. São missionários. Dizem por palavras e gestos que há uma explosão de felicidade na vida segundo o Evangelho. Experimentam a alegria de serem missionários. Nas paróquias, onde trabalham, nas obras que tocam, a tudo impregnam com a força do Evangelho que não é um livro mas uma pessoa viva chamada Jesus Cristo. Em sua missão respiram sempre a radicalidade do Evangelho que tentam viver. Nunca se apresentam como funcionários de um “status quo”, mas lutam para que sua palavra e sua vida transmitam o fogo do evangelho.

Concluindo

Vidas esplêndidas, luminosamente crucificadas-ressuscitadas. Vidas de dom total ao Senhor e aos irmãos; Vidas sem lamentos e murmurações. Os religiosos vivem em suas casas modestas, simples e alegres, têm encontros marcados com o Senhor, ajudam-se mutuamente, carregam os pesos uns dos outros, buscando juntos o Senhor, juntando suas vozes no canto dos salmos e adestrando seus ouvidos para captar o que Deus diz. Homens e mulheres dependentes uns dos outros, dependentes do sopro do Espírito e sempre dóceis aos que foram colocados à frente como servos da função de guardar a comunidade, os guardiães. Querem levar o rebanho a verdes pastagens. Existem para os outros, para si nada reservam, tudo retribuem ao Senhor, deixam-se consumir pelos outros e pelo Reino (sem discursos, mas através de fatos). São seres leves, vigilantes e ardorosos.

NB. As citações de Thaddée Matura foram tiradas do livro “François d’Assise. Maître de Vie Spirituelle, Éd. Franciscaines , Paris 2000, p. 61-81.

Frei Almir Ribeiro Guimarães

http://www.franciscanos.org.br/v3/almir/bau/2011/11/02.php

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