Saulo de Tarso
“Eu sou judeu, de Tarso da Cilícia, cidadão de
uma cidade de renome (At 21,39), circuncidado ao oitavo dia, da raça de
Israel, da tribo de Benjamim, hebreu, filho de hebreus. Segundo a Lei,
fariseu… Pela justiça da Lei, considerado irrepreensível (Fl 3,5-6).
Esta é a ficha que faz Saulo Paulo de si mesmo.
Como quase todos os judeus que viviam no mundo grego, acrescentara ao
próprio nome judeu – Saulo ou Saul – outro nome grego que, quanto
possível, se lhe assemelhasse foneticamente:
Paulos, ou seja, Paulo.
Tarso era uma cidade culta, mas é de se supor que seus pais, fariseus
recém-emigrados da Palestina, continuaram a estrita observância judia,
abstendo-se de enviar seu filho às escolas gregas. O certo é que, tão
logo completados os quatorze anos, Paulo foi enviado a Jerusalém, para
fazer estudos rabínicos na escola mais ilustre da época
: Aos pés de Gamaliel (At 22,3).
Alguns autores, deixando-se levar por uma fantasia completamente
infundada, supuseram que Paulo, em sua juventude, tenha levado vida
licenciosa e, para isto, aduzem a trágica descrição que, na primeira
pessoa, ele mesmo faz, no capítulo 7 da “Carta aos Romanos”.
Todavia, parece que o que Paulo quer destacar ali não é sua vivência
pessoal e individual, mas a trágica situação do próprio “eu” humano,
envolto na desgraça coletiva de uma pecaminosidade estrutural.
Por outro lado, temos em suas próprias cartas afirmações sinceras e
humildes sobre a conduta irreprovável que o jovem israelita observou
sempre, em sua boa fé. Fariseu desde jovem (At 26, 3-5), observador das
tradições judaicas (Gl 1,14), irrepreensível em sua conduta (Fl 3,6).
O fariseu de direita – Hoje, graças às recentes
descobertas de Qumrân, estamos em melhores condições de enfocar
histórica e ideologicamente os acontecimentos que deram origem ao
surgimento do cristianismo.
Através da numerosa literatura religiosa, encontrada às margens do
Mar Morto, conhecemos o estado religioso daquela interessante época.
A “direita” constituíam-na os fariseus, conservadores das velhas
tradições de Israel, inclusive das mais significativas minúcias rituais.
Eram integristas e se consideravam os expoentes autênticos e
indiscutíveis das mais puras essências religiosas e nacionais. Para
isto, a ordem religiosa se identificava com a situação sociológica. Seu
sistema se podia qualificar de “nacional-judaísmo”.
Não obstante, apesar de seu alardeado nacionalismo, haviam chegado a um
status quo em suas relações com o poder romano, regendo-se por um equilibrado
modus vivendi que lhes permitia certa estabilidade e flexibilidade de movimentos.
Todavia, os fariseus eram somente minoria, ainda que numerosa, do
povo israelita. E é isto que o sensacional achado de Qumrân veio
iluminar.
Completamente à margem da fração farisaica, pululava uma multidão de
seitas, uma das quais denominada, por Flávio Josefo e por Plínio,
“essênia”.
O núcleo central deste tipo de seita era constituído por um grupo de
homens célibes, que se retiravam para o deserto, para se dedicarem à
vida de oração e de estudo da Lei. Eram autênticos monges, cujas regras e
modos de vida influíram, sem dúvida, na própria organização do monacato
cristão, que nasceu exatamente naqueles mesmos desertos palestinos e
egípcios.
Em redor dos mosteiros, e espiritualmente ligados a eles, havia
numerosos assistidos, que bem podiam ser comparados às “ordens
terceiras” de nossas grandes ordens mendicantes ou aos “sócios
benfeitores” de congregações e institutos religiosos. Nem sempre viviam
ali; iam e vinham, fazendo uma espécie de exercícios espirituais, que
vivenciavam no resto do ano.
Pelas descobertas de Qumrãn, sabemos que ali existiu um grande
mosteiro, talvez o mais importante de todos, e do qual encontramos uma
espécie de sucursal em Damasco, constituída por alguns monges fugidos de
Qumrân em época de perseguição.
A espiritualidade “qumrânica” era diferente da farisaica. Sem serem
abertamente cismáticos, afastavam-se do legalismo ritual e estreito do
culto do templo de Jerusalém, sobre o qual se encontram finas e veladas
críticas em suas regras e livros ascéticos.
Diante do orgulho farisaico, professavam uma humildade desconfiada de
si mesmos e fortemente baseada num sentimento de absoluta dependência
do Criador. Finalmente, eram de tendência universalista e aberta aos
demais povos não israelitas.
Saulo militava abertamente na ala extrema do farisaísmo mais estreito
e ortodoxo e, no círculo intelectual hierosolimitano, assistira mais de
uma vez às ásperas críticas que se faziam freqüentemente àqueles
inovadores populares, perigosos para a ortodoxia.
Quando, mais tarde, Saulo volta a Jerusalém e se defronta com o
problema da nascente comunidade judeu-cristã, sua indignação chega ao
paroxismo. Exatamente os judeu-cristãos, procedentes do movimento
“qumrânico”, que, de algum modo, coincidiam com os que Lucas denominava
“helenistas” (At 6,1), foram os que diretamente se converteram em alvo
de suas iras.
Seu chefe era o jovem levita Estêvão. O discurso do protomártir, que
Lucas nos refere (At 7, 2-53), é farto das idéias centrais do
“qumranismo”, sublimadas e superadas numa esplêndida e originalíssima
versão cristã.
Decididamente, Estêvão era um elemento demasiado perigoso e, nas
reuniões conciliares da “direita” farisaica, chegou a tomar a decisão de
que a própria sobrevivência de Israel estava gravemente ameaçada e que,
por conseguinte, era preciso eliminar, pela violência, quem assim
minava sua própria existência.
Definitivamente, Estêvão foi apedrejado: única pena que as
autoridades nacionalistas podiam infligir, quando se tratava de um caso
declarado de “blasfêmia”.
Durante a macabra execução, os apedrejadores, para ficarem mais livres, puseram suas vestes aos pés de
um jovem chamado Saulo (At 7, 58). O próprio Paulo orava, mais tarde,
Senhor enquanto era derramado o sangue de tua testemunha,
Estêvão, eu estava presente, de acordo com eles, e guardava as vestes daqueles que o matavam (At 22,20).
Saulo se converteu na peça-chave da primeira perseguição à Igreja nascente,
persegui de morte esta doutrina, acorrentando e encarcerando homens e mulheres (At
22,4). Isto, naturalmente, produziu uma fuga dos cristãos, sobretudo
dos da “ala esquerda”, que se refugiaram em Damasco, onde haveria,
certamente, cristãos de tipo “qumraniano”. Saulo lutava inteligentemente
e dirigiu seus ataques a Damasco: era preciso impedir decididamente que
rebrotasse aquela semente envenenada. O resto dos judeu-cristãos não
foi molestado e pôde permanecer em Jerusalém.
Caminho de Damasco – O que aconteceu no caminho de Jerusalém a Damasco, conta-o o próprio Paulo, simplesmente assim:
Recebi cartas do Sumo Sacerdote e de todo o colégio
dos anciãos para os irmãos de Damasco, aonde fui com o fim de prender os
que lá se achassem e trazê-los acorrentados para Jerusalém, onde seriam
castigados. Ora, estando eu a caminho e aproximando-me de Damasco, pelo
meio-dia, de repente me cercou uma intensa luz do céu. Caí por terra e
ouvi uma voz, que me dizia: ‘Saulo, Saulo, por que me persegues’?
Respondi: ‘Quem és, Senhor?’E ele me disse: ‘Sou Jesus Nazareno, a quem
persegues’. Os meus companheiros viram a luz, mas não ouviram a voz
daquele que me falava. Eu disse: ‘O que hei de fazer Senhor?’ O Senhor
me disse: ‘Levanta-te e entra em Damasco, que ali te será dito o que
deverás fazer ‘(At 22,5-10).
Saulo obedeceu. Era muito difícil o que se lhe exigia. Convertendo-se
ao cristianismo, teria preferido ser recebido pela “ala direita” da
“seita”, ou seja, por aqueles que ficaram em Jerusalém e foram tolerados
pelo tribunal fariseu de depuração, de que ele era parte principal.
Mas, agora, ordenava-se-lhe receber o ingresso da “seita” naquele
ambiente de Damasco, plenamente solidário com os “helenistas” (At 6,1),
que comandara o odiado Estêvão. A esta dura renúncia se refere, sem
dúvida, quando, depois de fazer sua própria ficha, acrescenta, cheio de
nostalgia pegajosa: Mas tudo isto, que para mim era vantagem, considero
desvantagem por amor de Cristo (FI 3,7).
Esta transformação dolorosa de sua postura mental constitui
indubitavelmente a infra-estrutura psíquica daquela atitude combativa,
às vezes violenta, que teve que adotar, no seio da comunidade cristã,
contra seus antigos correligionários fariseus, que pretendiam manter,
dentro do cristianismo, uma posição integrista, sufocando a novidade
expansiva do Evangelho.
O noviciado do apóstolo – A princípio, Paulo começou
a experimentar sua vocação apostólica pregando a Jesus nas próprias
sinagogas de Damasco. Mas, pouco depois, se retirou para o deserto, para
ali se preparar, na oração, e quem sabe se uniu a algum grupo monástico
judeu-cristão, procedente da “Seita da Aliança”, intimamente aparentada
como movimento “qumrânico”.
Daqueles primeiros anos, narra-nos Lucas alguns fatos cruciais do
novel apóstolo. Ao fim de três anos de conversão, subiu a Jerusalém para
“visitar” o chefe da Igreja, Pedro (GI 1,18).
Dali, voltou a sua cidade natal de Tarso, de onde teve que sair,
finalmente, para se defender de uma conjura, tramada pelos judeus contra
ele.
De Tarso, dirigiu-se Paulo a Antioquia, cuja comunidade florescia,
devido, em parte, à própria perseguição do ex-fariseu. Na verdade, em
conseqüência da rajada de vento anticristã, provocada por Saulo em
Jerusalém, muitos cristãos “helenistas” se dispersaram pela Fenícia,
Chipre e Antioquia. Estes começaram a pregar a fé. Posteriormente, os
apóstolos de Jerusalém enviaram Barnabé, como delegado oficial, e este,
seguindo uma inspiração do Espírito, associou-se a Paulo, em sua tarefa
apostólica. Por um ano inteiro, Paulo colheu uma messe tão abundante que
o fato transcendeu o grande público e este começou a chamar os fiéis
pelo nome de “cristãos”, como eram chamados “pompeanos” ou “cesarianos”
os partidários de algum dos dois rivais do Império.
A carreira apostólica de Paulo chegara a seu ponto culminante e nele
se realizariam os projetos de Deus, manifestados desde o primeiro
momento de sua conversão:
Vai, porque este homem é para mim um instrumento escolhido, a fim de levar meu nome perante as nações, os reis e os israelitas (At 9,15).
Um dia, na assembléia litúrgica de Antioquia, o Espírito falou por meio da mesma comunidade de oração:
Separai-me Barnabé e Saulo, para a obra a que os chamei (At 13,2).
Texto do livro “O Evangelho de Paulo”, de José Maria González Ruiz, publicado pela Editora Vozes.
A conversão de Saulo
Quando Lucas escreveu o livro de Atos dos Apóstolos, já eram passados
mais ou menos 20 anos da morte de Paulo. Muitos cristãos que só
conheceram a fama de Paulo, quiseram saber: o que teria acontecido para
que o grande perseguidor Saulo se transformasse no mais ardoroso
missionário cristão? O que levaria um fariseu rigoroso na observância da
Torá judaica, a ponto de perseguir cristãos, a afirmar depois: “Ninguém
será justificado diante de Deus pela prática da Lei” (Rm 3,20)?
No tempo de Lucas, já circulava entre algumas comunidades, a Carta
aos Gálatas, um escrito do próprio Paulo, em que ele narra sua conversão
(Leia Gl 1,11-24). Ao falar de sua conversão, Paulo é muito sóbrio.
Aliás, ele nem usa o termo “conversão”. Prefere dizer que recebeu uma
visão ou “revelação” de Jesus Cristo (cf. Gl 1,12. Cf. também 1Cor 9,1;
15,8-10).
Paulo dá muita importância a essa revelação. Mas não entra em nenhum
detalhe sobre como se deu aquele acontecimento no caminho de Damasco –
em nenhuma de suas cartas. Paulo está mais interessado em defender seu
apostolado entre os pagãos, afirmando que o evangelho que ele anuncia
brota daquela revelação. A visão que tem de Jesus Cristo é o que o faz
mudar de posição, é o seu chamado. Por essa graça, Paulo se coloca em pé
de igualdade com os outros apóstolos (cf. lCor 15,3-11).
O livro de Atos dos Apóstolos narra três vezes a conversão de Paulo.
Para Lucas, este é o maior de todos os acontecimentos da Igreja dos
primeiros tempos.
Quando quer falar do sucesso que o anúncio cristão está alcançando
por toda parte, Lucas refere-se às conversões em termos quantitativos: 3
mil convertidos (cf. At 2,41), 5 mil (cf. At 4,4), muitas aldeias (cf.
At 8,25), todos os habitantes de uma cidade (cf. At 9,35).
Quando o convertido é alguém ilustre ou especial, Lucas dá um pouco
mais de destaque ao episódio: o mago Simão (cf. At 8, 9-24), um alto
funcionário da rainha da Etiópia (cf. At 8, 26-40), Cornélio, comandante
romano em Cesaréia (cf. At 10), o procônsul da ilha de Chipre (cf. At
13, 6-12).
Quando o convertido é muito especial mesmo, Lucas conta e reconta o
episódio – é o caso de Paulo. De grande perseguidor, Paulo se torna o
maior dos evangelizadores. Isso merece destaque especial.
Para não dar a impressão de mera repetição, Lucas cria uma moldura distinta para cada um dos três relatos. Assim:
• Em At 9,1-30, o evento é contado por um narrador. Com
muita habilidade, Lucas dispõe este primeiro relato antes do trabalho
missionário de Pedro, misturando com outros episódios de conversão de
pagãos, desaguando na grande controvérsia sobre a circuncisão que motiva
o concilio de Jerusalém. À primeira vista, a primeira narrativa da
vocação de Paulo parece estar solta no meio dos outros episódios. Mas há
de fato uma moldura que dá enquadramento a tudo: os diversos sinais que
apontam para o rumo dos pagãos. A conversão de Paulo é, talvez, o mais
importante desses sinais (*).
• A segunda narrativa (At 22,1-21) é colocada na boca do próprio
Paulo, na forma de um discurso dirigido ao povo. A moldura do relato é o
episódio em que Paulo é preso no templo de Jerusalém. Também nesta
segunda narrativa, o sentido para o onde o discurso aponta é a missão de
Paulo: “Vai! É para longe, para os pagãos que vou te enviar” (At
22,21).
• Também a terceira narrativa (At 26) Lucas a escreve na forma de um
discurso de Paulo. No episódio que serve de moldura ao relato, Paulo se
defende diante do rei Agripa, em Cesaréia, das acusações movidas por
judeus. Aqui, Lucas constrói um ligamento entre a esperança judaica
expressa na Lei e nos Profetas e a resposta cristã (cf. 26, 22-23 e 26,
27-28). Também neste relato, há o aceno para o anúncio “ao povo judeu e
às nações pagãs” (At 26,23).
A cada vez que narra a conversão de Paulo, Lucas vai acrescentando e
variando novos detalhes. Assim, na primeira narrativa, Paulo se vê
cercado por uma luz vinda do céu, cai por terra, ouve uma voz. Também
seus companheiros ouvem a voz, ficam mudos de espanto, mas não vêem
ninguém (cf. At 9, 3-9).
Na segunda narrativa, a luz que envolve Paulo é uma grande luz.
Também aqui Paulo cai por terra, ouve uma voz. Quanto aos companheiros
de Paulo, inversamente ao que é dito no primeiro relato, eles vêem a
luz, mas não ouvem a voz (cf. At 22, 6-9). Na terceira narrativa, Lucas
amplia os detalhes sobre a luz: é meio-dia (hora em que a luz do sol é
muito forte) e, no entanto, a luz que Paulo vê é mais brilhante que o
sol, envolvendo também os companheiros de Paulo. Todos caem por terra.
Paulo ouve a voz (cf. At 26,13-14).
Nas duas primeiras narrativas, os companheiros de Paulo o conduzem
pela mão, por causa da cegueira que a luz lhe trouxe (cf. At 9,9;
22,11). O terceiro relato, por sua vez, fala de cegueira, mas não em
relação a Paulo. E também não cita Ananias, que é um discípulo, conforme
At 9,10. Já em At 22, Ananias é apresentado como um homem “piedoso e
fiel à Lei, com boa reputação junto de todos os judeus que ali moravam”
(At 22,12).
Por que tantas diferenças entre uma narrativa e outra? Teria isso algum sentido?
(*) Na segunda seção de Atos (At 6-15,35), a conversão de Paulo é um dos sinais do novo rumo do anúncio cristão.
Texto do livro “Uma Leitura dos Atos dos Apóstolos”, da coleção “Ser Igreja no novo milênio”, da CNBB.
O sentido da conversão de Paulo
Nos relatos sobre a conversão de Paulo, as incoerências entre os
detalhes já são significativas por si mesmas. E a primeira coisa que
significam é que Lucas não está preocupado com pormenores históricos. Se
nem o próprio Paulo entra em detalhes!
Comparando o modo como Lucas narra a conversão de Paulo com aquilo
que o próprio Paulo escreve em suas cartas, podemos observar que há um
ponto fundamental de concordância entre os dois enfoques: a importância
do episódio de Damasco. Se Paulo (nas epístolas) é discreto e não entra
em detalhes é porque deseja ir diretamente à questão que para ele é
fundamental: justificar seu trabalho entre os pagãos. Lucas, por sua
vez, reveste o episódio com muitos detalhes, como uma outra forma de
realçar sua importância. Em relação à importância do acontecimento, os
dois enfoques concordam. Lucas, todavia, imprime à conversão de Paulo um
sentido teológico próprio, de interesse para o momento da Igreja cristã
dos anos 80.
Assim, na Carta aos Gálatas, ao falar da revelação de Jesus Cristo,
Paulo se atribui expressamente o título de apóstolo (cf. GI 2,17); quer
com isso justificar e defender seu ministério entre os pagãos. E que,
nos inícios da Igreja, o movimento dos seguidores de Jesus mais se
parecia com uma “seita” judaica; nesse contexto, abrir-se aos pagãos
significava entrar em choque com a linha judaizante do cristianismo. Por
isso Paulo foi combatido e teve problemas, inclusive com Pedro e Tiago,
líderes da Igreja (cf. 01 2).
Entretanto, quando Lucas escreve Atos dos Apóstolos, os frutos do
trabalho missionário de Paulo já podiam ser percebidos por toda parte. A
dedicação de Paulo ao anúncio da palavra de Deus entre os gentios
tornava sua obra comparável à dos outros apóstolos, talvez até maior que
a de Pedro e Tiago. Não é por acaso que Lucas dedica metade de seus
Atos dos Apóstolos a falar de Paulo. E pelos mesmos motivos que narra
três vezes o episódio da conversão de Paulo.
Para Lucas, este é o maior, o mais importante acontecimento da
história da Igreja primitiva. A repetição do relato sugere isso. Nos
três relatos sobre o assunto, as “incoerências” realçam o que mais
interessa: de grande perseguidor da Igreja, Saulo se torna o maior dos
apóstolos. Não se trata, contudo, da conversão de um perseguidor
qualquer que se transforma num missionário anônimo. Para Lucas é
importante deixar explícito que se trata de um judeu radical, zeloso de
sua fé, que assume de modo também radical o anúncio de Cristo entre
pagãos.
Texto do livro “Uma Leitura dos Atos dos Apóstolos”, da coleção “Ser Igreja no novo milênio”, da CNBB.
Paulo, “pai” do novo Israel
Quando Lucas escreve o livro de Atos, a ruptura entre cristianismo e
judaísmo já está bem demarcada. A posição mais livre do cristianismo
helenístico face à Lei judaica não causa mais tanto escândalo nem tem o
tom de ofensa da época de Paulo. Mesmo escrevendo para cristãos do mundo
grego, Lucas interpreta os acontecimentos fundantes do cristianismo em
estreita ligação com as tradições judaicas. Lucas constrói, com muita
habilidade, uma compreensão do seguimento de Jesus com sua identidade
fundada na fé judaica e, a um só tempo, livre do mesmo judaísmo.
Assim, os relatos que Lucas cria para falar da conversão de Paulo
estão cheios de referências àquelas tradições. No segundo relato da
conversão (At 22), quem abre os olhos de Paulo, Ananias, é apresentado
como um judeu piedoso e querido entre seus concidadãos. Na mesma linha
de compreensão, o terceiro relato (At 26) não fala da cegueira de Paulo;
Lucas usa, no entanto, a mesma imagem, com uma citação do profeta
Isaías, para falar da missão de Paulo ao povo judeu e aos pagãos: “para
que lhes abras os olhos e para que eles se convertam das trevas para a
luz” (At 26,18; cf. Is 35,5;
42,7.16).
No relato de At 26, a obediência de Paulo à visão celeste está em
perfeita concordância com aquilo que a Lei e os Profetas ensinam (cf. At
26,19-23). Ao final do relato, Lucas constrói um diálogo entre Paulo e o
rei Agripa. Mesmo tendo um certo tom de ironia, o diálogo apela para a
fé nos Profetas como fonte do caminho cristão: “Rei Agripa, acreditas
nos Profetas? Aliás, eu sei que acreditas. Então, Agripa disse a Paulo:
Ainda um pouco, e me convences a tornar-me cristão!” (At 26,27-28). Essa
conexão entre fé judaica e fé cristã, Lucas a estabelece até mesmo na
estrutura da narrativa. Com pequenas diferenças entre si, os três
relatos seguem basicamente este esquema:
• Descrição do que Saulo está fazendo e quais são suas
intenções: viagem a Damasco, com autoridade, para prender cristãos (At
9,1-3; 22, 4-5; 26,12);
• Epifania (manifestação) da divindade e êxtase de Paulo (visão da luz,
queda por terra, voz que vem do céu) (At 9,3; 22,6; 26,13);
• Diálogo entre a voz e Saulo. A voz pergunta: Saul, Saul, por que me
persegues? Paulo pergunta: Quem és, Senhor? A voz responde: Eu sou
Jesus, a quem persegues. (At 9, 4-5; 22,7-8; 26,14-15).
• As ordens e a missão dadas a Paulo (At 9,6ss; 22,10ss; 26,l6ss).
Esse esquema básico, Lucas o extrai do Antigo Testamento, daquelas
narrativas sobre a vocação e a missão dos pais e profetas do povo de
Israel. Um exemplo é o da vocação de Moisés (Leia Ex 3,1-17): o relato
começa com a descrição do que Moisés está fazendo; depois, vem a
epifania divina (o anjo de Deus na sarça ardente) com o diálogo: uma voz
chama Moisés pelo nome e se revela; há uma pergunta sobre a identidade
de quem está chamando; no fim, Moisés recebe a missão de libertar e
guiar o povo. São muitos os exemplos. Entre outros: a missão de Jacó (Gn
32,23-33); a vocação de Gedeão (Jz 6,11-24); a vocação de Samuel para
ser profeta (1 Sm 3); a vocação dos profetas Isaías (Is 6,1-13) e
Jeremias (Jr 1,4-10).
O aspecto mais importante da conversão de Paulo é, certamente, sua
missão no meio dos gentios. Lucas compreende que essa missão é resposta a
um chamado divino. Neste sentido, a fé cristã aberta a todos os povos
dá continuidade de modo fiel e legítimo, à religião de Israel. Uma boa
imagem para descrever este fato talvez seja a da árvore nova plantada a
partir de uma estaca de galho da árvore antiga. A planta nova é – e não é
mais – parte daquela que lhe deu origem. Dentro desta compreensão,
Paulo, o apóstolo dos gentios, é pai e profeta do povo de Deus que reúne
agora tanto judeus como pagãos.
Texto do livro “Uma Leitura dos Atos dos Apóstolos”, da coleção “Ser Igreja no novo milênio”, da CNBB.