30 de janeiro de 2013

Reflexão - Caminhar

“É bom olhos que sorriem, gestos que se desculpam, toques que falam… e silêncios que se declaram”.
 Machado de Assis.


É muito bom atravessar a vida na certeza de que não estamos sozinhos, que existem pessoas que compartilham conosco os mesmos dramas e os mesmos sonhos. Construímos pontes quando somos capazes de ir além das aparências e edificar relacionamentos no espaço mais sagrado das pessoas. É muito bom caminhar de mãos dadas, mesmo sabendo que há momentos de solidão, onde só podemos contar com a proteção divina e a anergia do amor para nos guiar…

Procure olhar as pessoas nos seus olhos e toquem-nas no coração com palavras e gestos poderosos: capazes de erguer, de criar vínculos, de convidar para um caminho novo. A vida é bela na sua pujança e no seu esplendor: cabe a nós fazer bem nossa parte, vivenciar a ética e os valores, iluminar nossas ações com a luz da fé. Deus é Pai de todos e se alegra quando somos capazes de vivenciar a fraternidade e ungir nossas ações pelo amor sagrado que d’Ele recebemos…

Frei Paulo Sérgio, ofm

28 de janeiro de 2013

Casamento e Família: A construção do casal

 A OFS  do Brasil,  por ocasião de seu Capítulo Nacional realizado em Brasília (agosto de 2012),   escolheu  como uma das prioridades do triênio  2012-2015, no campo da formação,  o tema da família.  Nossas fraternidades concretas desejam estudar a  problemática que  envolve  esta pequena célula do mundo e da Igreja. Hoje queremos refletir sobre a realidade do casal  e sua construção.



Pensamento de abertura

Um amigo disse no aniversário de sua mulher uma das coisas mais bonitas que ouvi:  Todos os dias de nosso casamento (de uns 40 anos)  eu te escolhi de novo como minha mulher.   O casal mais feliz haveria de ser aquele que não desiste de correr atrás do sonho de que, apesar dos pesares,  a gente cada dia se olharia, como da primeira vez,  se enxergaria e se escolheria novamente  (Lya Luft, in Perdas e Ganhos, Record, p.77).

Por Frei Almir Ribeiro Guimarães, Ofm

1. Uma das realidades mais importantes da vida de cada um de nós é a família: a  família de que proviemos,  a família em que vivemos, a família que gostaríamos que nossos filhos constituíssem.  Não se pode viver sem pertença a uma precisa família, que chamamos de nossa família. Ela constitui nossa identidade e diz a quem pertencemos. É uma realidade camaleoa: uma coisa é a  família antes da chegada dos filhos, outra com  filhos pequenos, diferente da família com adolescentes e jovens, depois a  casa vazia quando  os filhos partem para estudar ou se casam,  casal sozinho, tempo da viuvez, tempo dos netos, famílias  desfeitas e refeitas.  Família que é comunhão de vida e de amor, lugar de encontro, espaço de crescimento como pessoa e como seguidor de Cristo conhece também sombras:  fragilidade do vínculo,  multiplicação das uniões consensuais,  fenômeno do mãe/e/ou/pai, solteirismo, desemprego, questões ligadas à sexualidade do casal e dos filhos, drogas, dificuldade de  formação de personalidades maduras e cristãs.   Por detrás de tudo o que acabamos de elencar está o casal. E é sobre ele que queremos nos debruçar neste tema.  O casal não acontece sem empenho. Lya Luft  fala que o casal feliz é aquele em que ele e ela se escolheriam novamente, cada dia.  Somos obrigados a reconhecer que um sem número de casados   viveram e vivem como que justapostos sem serem efetivamente casais, na realidade casais solteiros.  Um dos maiores benefícios que a Pastoral Familiar pode prestar aos homens e mulheres é o de ajudar os casais a serem casais de fato casais.

2. O mistério do casal – O livro do Gênesis, nas suas primeiras páginas, fala da criação do mundo, do homem e da mulher. Adão percorre com o olhar tudo o que o Senhor colocara diante dele.  Experimenta uma sombra de tristeza meio melancólica.  Não encontra ninguém igual a ele.  Não acha auxiliar que lhe correspondesse . “Então o  Senhor  Deus  fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois da costela que tirara do homem, o Senhor modelou uma mulher e  a trouxe ao homem.  Então o homem exclamou:  Esta sim, é osso de meus ossos e carne da minha carne!  Ela será chamada mulher, porque foi tirada do homem.   Por isso o homem deixa seu pai e sua mãe,  se  une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne”  (Gn 2, 21).  Homem e mulher são iguais e diferentes.  Entre os dois há uma fortíssima atração.  Dois numa carne.  Assim,  homem e mulher se buscam, se complementam, sentem que são feitos um para o outro.  Há essa peregrinação do masculino para o feminino.  E ao longo de um tempo nada curto  os dois vão construir seu nós conjugal.  Leva tempo para construir o casal!

3. Homem  e mulher, no casamento, passam a ser companheiros de caminhada.  O casamento é fruto de um enamoramento e de uma escolha livre.  Normal que  as pessoas se casem para serem amadas.  Não é tão fácil surpreender o momento em que começa, efetivamente, a existir o laço amoroso para além do mero sentimento amoroso.  Nos primeiros tempos e antes do casamento parece predominar esse sentimento amoroso forte e difuso, sensível, quase epidérmico.  Antes do envolvimento dos  corpos há o tempo do conhecimento. Antes do casamento  deveria haver  um tempo de noivado, como sempre houve no passado.  Vai sendo desenhado  um projeto familiar  Há o tempo  das conversas, das clarificações.  A impressão que têm os que se amam é que o amor é  um descentrar-se para centrar no outro.  Uma moça e um rapaz fazem a experiência de  terem sido escolhidos  por alguém de fora do círculo familiar e   de uma forma forte e única.  Querem e precisam  deixar pai e mãe e seu universo.  Insisto na dimensão de companheirismo.  Duas finalidades  do casamento:  expressão do amor mútuo de um homem e de uma mulher e a procriação. Há essas manifestações carinhosas entre os esposos e, de outro lado, marido e mulher assumem a belíssima missão de serem  colaboradores da obra da criação.  São os gestores da vida.   Para nós, cristãos, tudo ganha uma dimensão de beleza e nobreza do sacramento dos casados: o matrimônio.

4. Nos últimos  cinquenta anos verificou-se  a redescoberta do casal.   Tempos houve em que a atenção era dirigida somente para a  família.  A impressão que se tinha é que o tempo do namoro e os primeiros tempos de casamento antes da chegada dos filhos eram o único tempo do casal.  Ai o casal se olhava, se degustava. Depois vinham os filhos, serões, trabalhos,  mamadeira, um, dois, três, muitos filhos.  Fraldas, vacinas, filhos com deficiências sérias.  O casal não tinha tempo de se olhar.  Não tinha tempo de se construir casal como casal,  e  não dois seres apenas um ao lado do outro.  Marido e mulher  se “perdiam” na vida familiar:  cozinha, trabalho, ganhar dinheiro, construir a casa, cuidar dos pais  e sogros idosos.  Aos poucos os filhos iam embora e o casal tinha esquecido de se amar como casal.  Agora nada têm a se dizer.   Não tiveram tempo de cuidar do casamento.  As pessoas ficavam velhas antes da hora.  O importante eram os filhos e depois os netos. A  sexualidade do casal, ou seja, a qualidade desse envolvimento não era levada em consideração.  As mais das vezes era mesmo descuidada. Não se ousava falar do tema. Os homens conversavam sobre o tema com seus  colegas, meio  pornograficamente.  As mulheres não ousavam abordar.  Poderiam ser vistas como mulheres menos nobres, mulheres da vida. E assim o casal não tinha uma bela vida sexual.


5. Conhecemos um tempo de valorização do casal como  casal. Assistimos a uma valorização da mulher e tentativa de eliminação de todo machismo. Discute-se a relação.  Deseja-se construir o casal e o casamento. A construção requer tempo e dedicação.  Nunca se falou tanto em diálogo conjugal. Os casais não aceitam colocar todas as fichas nos filhos que vivem fora de casa e precisam aprender a voar com as próprias asas.  Com a profissionalização da mulher  nem sempre os filhos são suficientemente atendidos, nem o casal tem tempo para se construir.  Há um estresse também no envolvimento do casal. Mas fica a convicção de que o casal será construído.  Foram surgindo movimentos conjugais que ajudam a construir o laço conjugal.  Marie Noël afirmava: “O amor é trabalho que leva tempo”.

 6.  No momento atual  estamos conhecendo mudança de mentalidade na questão do casamento, mudanças que ainda levarão tempo para deitar raízes mais profundas.  A vida conjugal se compreende  como encontro  e relação pessoal, íntima e responsável entre um homem e uma mulher.  O casamento  não é apenas um estado de vida, mas um projeto que se vai construindo.  Parte de uma escolha livre.  É tarefa e desenvolvimento contínuo  baseado na recíproca interação.  Com o casamento   começa o tempo de realização das promessas. O amor dos noivos, emotivo e romântico,  vai se convertendo num amor conjugal, realista e racional.  O “sim”  vai acontecendo no cotidiano. A aliança de amor se apresenta como um vocação de amor na convivência.

7. O relacionamento conjugal se especifica  pela vida e pelo afeto. Depende de decisões livres tomadas com coragem para que o vínculo não se rompa, para que os laços se tornem fortes.  O sucesso de um casamento se mensura pelo fato de ele poder dar aos dois sentido de vida, alegria existencial,  companheirismo  conjugal  extremamente  delicado.  Não basta estar um  lado do outro. É preciso uma qualidade do estar junto.  Ninguém se casa para ser feliz, mas para viver a aventura do amor.  Cada um terá reservas interiores tais que, aos poucos, sintam que entre os dois se criou uma realidade invisível que é o  laço conjugal.  Nada está garantido.  Tudo está em movimento.  Por isso  será fundamental  construir o casamento.

8. “O processo do encontro matrimonial  é lento e ambíguo. Precisa superar  o comodismo, as feridas,  cansaço, a dificuldade de aprender  com a própria experiência.  O casamento  traz felicidade somente quando é conquista progressiva e aquisição crescente.  O casamento é sólido e forte quando é satisfatório para os cônjuges, mesmo à custa de luta e de esforço”  (Bonifácio  Fernández).  O amor conjugal se insere  num projeto de convivência.  Belíssimo quando o casal chega às bodas de ouro de mãos dadas, tendo feito a experiência de viverem juntos o amor conjugal, paternidade, maternidade.  Belo quando como casal  participaram da vida da Igreja, belo quando se tornaram um só corpo e um só coração.  A base de uma família  sólida é um casal que seja casal.

9. Cria-se uma família a partir do amor de um casal.   Para haver uma família se faz mister “construir um casal”.  Casais frágeis não são bom fundamento para a família.  Quanto mais solido o casal, mais chances de êxito. O amor é fundamento do casal e fundamento da família.  “O amor é uma apelo para sairmos de nós mesmos ao encontro  do outro: isso se concretizou em nossas vidas no dia em que ficamos apaixonados. Ficar apaixonado é, antes de tudo, um dom de Deus (…) A  solidão e a incerteza do futuro desaparecem porque uma pessoa nos escolheu, nos amou e nos deu a segurança de que tínhamos necessidade para enfrentar a vida, para curar o passado. Isso nos levou a nos examinarmos em profundidade  com o desejo de oferecer nossa verdade ao outro. O outro, por sua vez,  nos ofereceu seu tempo, seus pensamentos e essa correspondência de amor parece um dom imerecido. O mundo encheu-se  de significado  e nossa vida se unificou  (…). No decorrer dessa caminhada, passamos talvez por crises conjugais às quais se juntaram, quem sabe, problemas  causados pela adolescência e pela puberdade dos filhos; tivemos também problemas de saúde. Depois veio o tempo da dispersão dos filhos: às vezes a casa se enche de filhos e netos, às vezes ela fica vazia. O círculo se fecha e voltamos a ser o casal que éramos no começo, mas com uma bagagem de amor maior, com uma noção mais positiva do sofrimento, com um conhecimento mais fundo do mundo”

(Ser família hoje na Igreja e no mundo,  Equipes de Nossa Senhora,  Vozes  1993, p. 48-49).
Concluindo sem concluir
Dissertamos sobre muitos aspectos do tema do casal, mas ainda faltam elementos fundamentais. Continuaremos  a refletir sobre  a construção da conjugalidade  no próximo tema neste site  dos franciscanos  abordando:   Elementos práticos para a construção do casal em nossos dias.

Questionamentos

1. O que mais chama sua atenção na leitura deste tema?   Por quê?
2. Quais os motivos pelos quais alguém se casa com alguém?
3. O que significa para o casal  “escolher-se a cada dia”?
4. Como um casal pode crescer cristãmente como casal?
5. Por que quando os filhos deixam a casa muitos casais nada têm a se dizer?

Frei Almir Ribeiro Guimarães, Ofm

25 de janeiro de 2013

25/01 - Conversão de São Paulo

 

 Saulo de Tarso

“Eu sou judeu, de Tarso da Cilícia, cidadão de uma cidade de renome (At 21,39), circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu, filho de hebreus. Segundo a Lei, fariseu… Pela justiça da Lei, considerado irrepreensível (Fl 3,5-6).
Esta é a ficha que faz Saulo Paulo de si mesmo.
Como quase todos os judeus que viviam no mundo grego, acrescentara ao próprio nome judeu – Saulo ou Saul – outro nome grego que, quanto possível, se lhe assemelhasse foneticamente: Paulos, ou seja, Paulo.
Tarso era uma cidade culta, mas é de se supor que seus pais, fariseus recém-emigrados da Palestina, continuaram a estrita observância judia, abstendo-se de enviar seu filho às escolas gregas. O certo é que, tão logo completados os quatorze anos, Paulo foi enviado a Jerusalém, para fazer estudos rabínicos na escola mais ilustre da época: Aos pés de Gamaliel (At 22,3).
Alguns autores, deixando-se levar por uma fantasia completamente infundada, supuseram que Paulo, em sua juventude, tenha levado vida licenciosa e, para isto, aduzem a trágica descrição que, na primeira pessoa, ele mesmo faz, no capítulo 7 da “Carta aos Romanos”.
Todavia, parece que o que Paulo quer destacar ali não é sua vivência pessoal e individual, mas a trágica situação do próprio “eu” humano, envolto na desgraça coletiva de uma pecaminosidade estrutural.
Por outro lado, temos em suas próprias cartas afirmações sinceras e humildes sobre a conduta irreprovável que o jovem israelita observou sempre, em sua boa fé. Fariseu desde jovem (At 26, 3-5), observador das tradições judaicas (Gl 1,14), irrepreensível em sua conduta (Fl 3,6).
O fariseu de direita – Hoje, graças às recentes descobertas de Qumrân, estamos em melhores condições de enfocar histórica e ideologicamente os acontecimentos que deram origem ao surgimento do cristianismo.
Através da numerosa literatura religiosa, encontrada às margens do Mar Morto, conhecemos o estado religioso daquela interessante época.
A “direita” constituíam-na os fariseus, conservadores das velhas tradições de Israel, inclusive das mais significativas minúcias rituais. Eram integristas e se consideravam os expoentes autênticos e indiscutíveis das mais puras essências religiosas e nacionais. Para isto, a ordem religiosa se identificava com a situação sociológica. Seu sistema se podia qualificar de “nacional-judaísmo”.
Não obstante, apesar de seu alardeado nacionalismo, haviam chegado a um status quo em suas relações com o poder romano, regendo-se por um equilibrado modus vivendi que lhes permitia certa estabilidade e flexibilidade de movimentos.
Todavia, os fariseus eram somente minoria, ainda que numerosa, do povo israelita. E é isto que o sensacional achado de Qumrân veio iluminar.
Completamente à margem da fração farisaica, pululava uma multidão de seitas, uma das quais denominada, por Flávio Josefo e por Plínio, “essênia”.
O núcleo central deste tipo de seita era constituído por um grupo de homens célibes, que se retiravam para o deserto, para se dedicarem à vida de oração e de estudo da Lei. Eram autênticos monges, cujas regras e modos de vida influíram, sem dúvida, na própria organização do monacato cristão, que nasceu exatamente naqueles mesmos desertos palestinos e egípcios.
Em redor dos mosteiros, e espiritualmente ligados a eles, havia numerosos assistidos, que bem podiam ser comparados às “ordens terceiras” de nossas grandes ordens mendicantes ou aos “sócios benfeitores” de congregações e institutos religiosos. Nem sempre viviam ali; iam e vinham, fazendo uma espécie de exercícios espirituais, que vivenciavam no resto do ano.
Pelas descobertas de Qumrãn, sabemos que ali existiu um grande mosteiro, talvez o mais importante de todos, e do qual encontramos uma espécie de sucursal em Damasco, constituída por alguns monges fugidos de Qumrân em época de perseguição.
A espiritualidade “qumrânica” era diferente da farisaica. Sem serem abertamente cismáticos, afastavam-se do legalismo ritual e estreito do culto do templo de Jerusalém, sobre o qual se encontram finas e veladas críticas em suas regras e livros ascéticos.
Diante do orgulho farisaico, professavam uma humildade desconfiada de si mesmos e fortemente baseada num sentimento de absoluta dependência do Criador. Finalmente, eram de tendência universalista e aberta aos demais povos não israelitas.
Saulo militava abertamente na ala extrema do farisaísmo mais estreito e ortodoxo e, no círculo intelectual hierosolimitano, assistira mais de uma vez às ásperas críticas que se faziam freqüentemente àqueles inovadores populares, perigosos para a ortodoxia.
Quando, mais tarde, Saulo volta a Jerusalém e se defronta com o problema da nascente comunidade judeu-cristã, sua indignação chega ao paroxismo. Exatamente os judeu-cristãos, procedentes do movimento “qumrânico”, que, de algum modo, coincidiam com os que Lucas denominava “helenistas” (At 6,1), foram os que diretamente se converteram em alvo de suas iras.
Seu chefe era o jovem levita Estêvão. O discurso do protomártir, que Lucas nos refere (At 7, 2-53), é farto das idéias centrais do “qumranismo”, sublimadas e superadas numa esplêndida e originalíssima versão cristã.
Decididamente, Estêvão era um elemento demasiado perigoso e, nas reuniões conciliares da “direita” farisaica, chegou a tomar a decisão de que a própria sobrevivência de Israel estava gravemente ameaçada e que, por conseguinte, era preciso eliminar, pela violência, quem assim minava sua própria existência.
Definitivamente, Estêvão foi apedrejado: única pena que as autoridades nacionalistas podiam infligir, quando se tratava de um caso declarado de “blasfêmia”.
Durante a macabra execução, os apedrejadores, para ficarem mais livres, puseram suas vestes aos pés de um jovem chamado Saulo (At 7, 58). O próprio Paulo orava, mais tarde,
Senhor enquanto era derramado o sangue de tua testemunha,
Estêvão, eu estava presente, de acordo com eles, e guardava as vestes daqueles que o matavam (At 22,20).
Saulo se converteu na peça-chave da primeira perseguição à Igreja nascente, persegui de morte esta doutrina, acorrentando e encarcerando homens e mulheres (At 22,4). Isto, naturalmente, produziu uma fuga dos cristãos, sobretudo dos da “ala esquerda”, que se refugiaram em Damasco, onde haveria, certamente, cristãos de tipo “qumraniano”. Saulo lutava inteligentemente e dirigiu seus ataques a Damasco: era preciso impedir decididamente que rebrotasse aquela semente envenenada. O resto dos judeu-cristãos não foi molestado e pôde permanecer em Jerusalém.
Caminho de Damasco – O que aconteceu no caminho de Jerusalém a Damasco, conta-o o próprio Paulo, simplesmente assim:
Recebi cartas do Sumo Sacerdote e de todo o colégio dos anciãos para os irmãos de Damasco, aonde fui com o fim de prender os que lá se achassem e trazê-los acorrentados para Jerusalém, onde seriam castigados. Ora, estando eu a caminho e aproximando-me de Damasco, pelo meio-dia, de repente me cercou uma intensa luz do céu. Caí por terra e ouvi uma voz, que me dizia: ‘Saulo, Saulo, por que me persegues’? Respondi: ‘Quem és, Senhor?’E ele me disse: ‘Sou Jesus Nazareno, a quem persegues’. Os meus companheiros viram a luz, mas não ouviram a voz daquele que me falava. Eu disse: ‘O que hei de fazer Senhor?’ O Senhor me disse: ‘Levanta-te e entra em Damasco, que ali te será dito o que deverás fazer ‘(At 22,5-10).
Saulo obedeceu. Era muito difícil o que se lhe exigia. Convertendo-se ao cristianismo, teria preferido ser recebido pela “ala direita” da “seita”, ou seja, por aqueles que ficaram em Jerusalém e foram tolerados pelo tribunal fariseu de depuração, de que ele era parte principal. Mas, agora, ordenava-se-lhe receber o ingresso da “seita” naquele ambiente de Damasco, plenamente solidário com os “helenistas” (At 6,1), que comandara o odiado Estêvão. A esta dura renúncia se refere, sem dúvida, quando, depois de fazer sua própria ficha, acrescenta, cheio de nostalgia pegajosa: Mas tudo isto, que para mim era vantagem, considero desvantagem por amor de Cristo (FI 3,7).
Esta transformação dolorosa de sua postura mental constitui indubitavelmente a infra-estrutura psíquica daquela atitude combativa, às vezes violenta, que teve que adotar, no seio da comunidade cristã, contra seus antigos correligionários fariseus, que pretendiam manter, dentro do cristianismo, uma posição integrista, sufocando a novidade expansiva do Evangelho.
O noviciado do apóstolo – A princípio, Paulo começou a experimentar sua vocação apostólica pregando a Jesus nas próprias sinagogas de Damasco. Mas, pouco depois, se retirou para o deserto, para ali se preparar, na oração, e quem sabe se uniu a algum grupo monástico judeu-cristão, procedente da “Seita da Aliança”, intimamente aparentada como movimento “qumrânico”.
Daqueles primeiros anos, narra-nos Lucas alguns fatos cruciais do novel apóstolo. Ao fim de três anos de conversão, subiu a Jerusalém para “visitar” o chefe da Igreja, Pedro (GI 1,18).
Dali, voltou a sua cidade natal de Tarso, de onde teve que sair, finalmente, para se defender de uma conjura, tramada pelos judeus contra ele.
De Tarso, dirigiu-se Paulo a Antioquia, cuja comunidade florescia, devido, em parte, à própria perseguição do ex-fariseu. Na verdade, em conseqüência da rajada de vento anticristã, provocada por Saulo em Jerusalém, muitos cristãos “helenistas” se dispersaram pela Fenícia, Chipre e Antioquia. Estes começaram a pregar a fé. Posteriormente, os apóstolos de Jerusalém enviaram Barnabé, como delegado oficial, e este, seguindo uma inspiração do Espírito, associou-se a Paulo, em sua tarefa apostólica. Por um ano inteiro, Paulo colheu uma messe tão abundante que o fato transcendeu o grande público e este começou a chamar os fiéis pelo nome de “cristãos”, como eram chamados “pompeanos” ou “cesarianos” os partidários de algum dos dois rivais do Império.
A carreira apostólica de Paulo chegara a seu ponto culminante e nele se realizariam os projetos de Deus, manifestados desde o primeiro momento de sua conversão: Vai, porque este homem é para mim um instrumento escolhido, a fim de levar meu nome perante as nações, os reis e os israelitas (At 9,15).
Um dia, na assembléia litúrgica de Antioquia, o Espírito falou por meio da mesma comunidade de oração: Separai-me Barnabé e Saulo, para a obra a que os chamei (At 13,2).

Texto do livro “O Evangelho de Paulo”, de José Maria González Ruiz, publicado pela Editora Vozes.


A conversão de Saulo

 

Quando Lucas escreveu o livro de Atos dos Apóstolos, já eram passados mais ou menos 20 anos da morte de Paulo. Muitos cristãos que só conheceram a fama de Paulo, quiseram saber: o que teria acontecido para que o grande perseguidor Saulo se transformasse no mais ardoroso missionário cristão? O que levaria um fariseu rigoroso na observância da Torá judaica, a ponto de perseguir cristãos, a afirmar depois: “Ninguém será justificado diante de Deus pela prática da Lei” (Rm 3,20)?
No tempo de Lucas, já circulava entre algumas comunidades, a Carta aos Gálatas, um escrito do próprio Paulo, em que ele narra sua conversão (Leia Gl 1,11-24). Ao falar de sua conversão, Paulo é muito sóbrio. Aliás, ele nem usa o termo “conversão”. Prefere dizer que recebeu uma visão ou “revelação” de Jesus Cristo (cf. Gl 1,12. Cf. também 1Cor 9,1; 15,8-10).
Paulo dá muita importância a essa revelação. Mas não entra em nenhum detalhe sobre como se deu aquele acontecimento no caminho de Damasco – em nenhuma de suas cartas. Paulo está mais interessado em defender seu apostolado entre os pagãos, afirmando que o evangelho que ele anuncia brota daquela revelação. A visão que tem de Jesus Cristo é o que o faz mudar de posição, é o seu chamado. Por essa graça, Paulo se coloca em pé de igualdade com os outros apóstolos (cf. lCor 15,3-11).
O livro de Atos dos Apóstolos narra três vezes a conversão de Paulo. Para Lucas, este é o maior de todos os acontecimentos da Igreja dos primeiros tempos.
Quando quer falar do sucesso que o anúncio cristão está alcançando por toda parte, Lucas refere-se às conversões em termos quantitativos: 3 mil convertidos (cf. At 2,41), 5 mil (cf. At 4,4), muitas aldeias (cf. At 8,25), todos os habitantes de uma cidade (cf. At 9,35).
Quando o convertido é alguém ilustre ou especial, Lucas dá um pouco mais de destaque ao episódio: o mago Simão (cf. At 8, 9-24), um alto funcionário da rainha da Etiópia (cf. At 8, 26-40), Cornélio, comandante romano em Cesaréia (cf. At 10), o procônsul da ilha de Chipre (cf. At 13, 6-12).
Quando o convertido é muito especial mesmo, Lucas conta e reconta o episódio – é o caso de Paulo. De grande perseguidor, Paulo se torna o maior dos evangelizadores. Isso merece destaque especial.
Para não dar a impressão de mera repetição, Lucas cria uma moldura distinta para cada um dos três relatos. Assim:
• Em At 9,1-30, o evento é contado por um narrador. Com muita habilidade, Lucas dispõe este primeiro relato antes do trabalho missionário de Pedro, misturando com outros episódios de conversão de pagãos, desaguando na grande controvérsia sobre a circuncisão que motiva o concilio de Jerusalém. À primeira vista, a primeira narrativa da vocação de Paulo parece estar solta no meio dos outros episódios. Mas há de fato uma moldura que dá enquadramento a tudo: os diversos sinais que apontam para o rumo dos pagãos. A conversão de Paulo é, talvez, o mais importante desses sinais (*).
• A segunda narrativa (At 22,1-21) é colocada na boca do próprio Paulo, na forma de um discurso dirigido ao povo. A moldura do relato é o episódio em que Paulo é preso no templo de Jerusalém. Também nesta segunda narrativa, o sentido para o onde o discurso aponta é a missão de Paulo: “Vai! É para longe, para os pagãos que vou te enviar” (At 22,21).
• Também a terceira narrativa (At 26) Lucas a escreve na forma de um discurso de Paulo. No episódio que serve de moldura ao relato, Paulo se defende diante do rei Agripa, em Cesaréia, das acusações movidas por judeus. Aqui, Lucas constrói um ligamento entre a esperança judaica expressa na Lei e nos Profetas e a resposta cristã (cf. 26, 22-23 e 26, 27-28). Também neste relato, há o aceno para o anúncio “ao povo judeu e às nações pagãs” (At 26,23).
A cada vez que narra a conversão de Paulo, Lucas vai acrescentando e variando novos detalhes. Assim, na primeira narrativa, Paulo se vê cercado por uma luz vinda do céu, cai por terra, ouve uma voz. Também seus companheiros ouvem a voz, ficam mudos de espanto, mas não vêem ninguém (cf. At 9, 3-9).
Na segunda narrativa, a luz que envolve Paulo é uma grande luz. Também aqui Paulo cai por terra, ouve uma voz. Quanto aos companheiros de Paulo, inversamente ao que é dito no primeiro relato, eles vêem a luz, mas não ouvem a voz (cf. At 22, 6-9). Na terceira narrativa, Lucas amplia os detalhes sobre a luz: é meio-dia (hora em que a luz do sol é muito forte) e, no entanto, a luz que Paulo vê é mais brilhante que o sol, envolvendo também os companheiros de Paulo. Todos caem por terra. Paulo ouve a voz (cf. At 26,13-14).
Nas duas primeiras narrativas, os companheiros de Paulo o conduzem pela mão, por causa da cegueira que a luz lhe trouxe (cf. At 9,9; 22,11). O terceiro relato, por sua vez, fala de cegueira, mas não em relação a Paulo. E também não cita Ananias, que é um discípulo, conforme At 9,10. Já em At 22, Ananias é apresentado como um homem “piedoso e fiel à Lei, com boa reputação junto de todos os judeus que ali moravam” (At 22,12).
Por que tantas diferenças entre uma narrativa e outra? Teria isso algum sentido?

(*) Na segunda seção de Atos (At 6-15,35), a conversão de Paulo é um dos sinais do novo rumo do anúncio cristão.

Texto do livro “Uma Leitura dos Atos dos Apóstolos”, da coleção “Ser Igreja no novo milênio”, da CNBB.

 

O sentido da conversão de Paulo

 

Nos relatos sobre a conversão de Paulo, as incoerências entre os detalhes já são significativas por si mesmas. E a primeira coisa que significam é que Lucas não está preocupado com pormenores históricos. Se nem o próprio Paulo entra em detalhes!
Comparando o modo como Lucas narra a conversão de Paulo com aquilo que o próprio Paulo escreve em suas cartas, podemos observar que há um ponto fundamental de concordância entre os dois enfoques: a importância do episódio de Damasco. Se Paulo (nas epístolas) é discreto e não entra em detalhes é porque deseja ir diretamente à questão que para ele é fundamental: justificar seu trabalho entre os pagãos. Lucas, por sua vez, reveste o episódio com muitos detalhes, como uma outra forma de realçar sua importância. Em relação à importância do acontecimento, os dois enfoques concordam. Lucas, todavia, imprime à conversão de Paulo um sentido teológico próprio, de interesse para o momento da Igreja cristã dos anos 80.
Assim, na Carta aos Gálatas, ao falar da revelação de Jesus Cristo, Paulo se atribui expressamente o título de apóstolo (cf. GI 2,17); quer com isso justificar e defender seu ministério entre os pagãos. E que, nos inícios da Igreja, o movimento dos seguidores de Jesus mais se parecia com uma “seita” judaica; nesse contexto, abrir-se aos pagãos significava entrar em choque com a linha judaizante do cristianismo. Por isso Paulo foi combatido e teve problemas, inclusive com Pedro e Tiago, líderes da Igreja (cf. 01 2).
Entretanto, quando Lucas escreve Atos dos Apóstolos, os frutos do trabalho missionário de Paulo já podiam ser percebidos por toda parte. A dedicação de Paulo ao anúncio da palavra de Deus entre os gentios tornava sua obra comparável à dos outros apóstolos, talvez até maior que a de Pedro e Tiago. Não é por acaso que Lucas dedica metade de seus Atos dos Apóstolos a falar de Paulo. E pelos mesmos motivos que narra três vezes o episódio da conversão de Paulo.
Para Lucas, este é o maior, o mais importante acontecimento da história da Igreja primitiva. A repetição do relato sugere isso. Nos três relatos sobre o assunto, as “incoerências” realçam o que mais interessa: de grande perseguidor da Igreja, Saulo se torna o maior dos apóstolos. Não se trata, contudo, da conversão de um perseguidor qualquer que se transforma num missionário anônimo. Para Lucas é importante deixar explícito que se trata de um judeu radical, zeloso de sua fé, que assume de modo também radical o anúncio de Cristo entre pagãos.

Texto do livro “Uma Leitura dos Atos dos Apóstolos”, da coleção “Ser Igreja no novo milênio”, da CNBB.

 

Paulo, “pai” do novo Israel

 

Quando Lucas escreve o livro de Atos, a ruptura entre cristianismo e judaísmo já está bem demarcada. A posição mais livre do cristianismo helenístico face à Lei judaica não causa mais tanto escândalo nem tem o tom de ofensa da época de Paulo. Mesmo escrevendo para cristãos do mundo grego, Lucas interpreta os acontecimentos fundantes do cristianismo em estreita ligação com as tradições judaicas. Lucas constrói, com muita habilidade, uma compreensão do seguimento de Jesus com sua identidade fundada na fé judaica e, a um só tempo, livre do mesmo judaísmo.
Assim, os relatos que Lucas cria para falar da conversão de Paulo estão cheios de referências àquelas tradições. No segundo relato da conversão (At 22), quem abre os olhos de Paulo, Ananias, é apresentado como um judeu piedoso e querido entre seus concidadãos. Na mesma linha de compreensão, o terceiro relato (At 26) não fala da cegueira de Paulo; Lucas usa, no entanto, a mesma imagem, com uma citação do profeta Isaías, para falar da missão de Paulo ao povo judeu e aos pagãos: “para que lhes abras os olhos e para que eles se convertam das trevas para a luz” (At 26,18; cf. Is 35,5;
42,7.16).
No relato de At 26, a obediência de Paulo à visão celeste está em perfeita concordância com aquilo que a Lei e os Profetas ensinam (cf. At 26,19-23). Ao final do relato, Lucas constrói um diálogo entre Paulo e o rei Agripa. Mesmo tendo um certo tom de ironia, o diálogo apela para a fé nos Profetas como fonte do caminho cristão: “Rei Agripa, acreditas nos Profetas? Aliás, eu sei que acreditas. Então, Agripa disse a Paulo: Ainda um pouco, e me convences a tornar-me cristão!” (At 26,27-28). Essa conexão entre fé judaica e fé cristã, Lucas a estabelece até mesmo na estrutura da narrativa. Com pequenas diferenças entre si, os três relatos seguem basicamente este esquema:
• Descrição do que Saulo está fazendo e quais são suas intenções: viagem a Damasco, com autoridade, para prender cristãos (At 9,1-3; 22, 4-5; 26,12);
• Epifania (manifestação) da divindade e êxtase de Paulo (visão da luz, queda por terra, voz que vem do céu) (At 9,3; 22,6; 26,13);
• Diálogo entre a voz e Saulo. A voz pergunta: Saul, Saul, por que me persegues? Paulo pergunta: Quem és, Senhor? A voz responde: Eu sou Jesus, a quem persegues. (At 9, 4-5; 22,7-8; 26,14-15).
• As ordens e a missão dadas a Paulo (At 9,6ss; 22,10ss; 26,l6ss).
Esse esquema básico, Lucas o extrai do Antigo Testamento, daquelas narrativas sobre a vocação e a missão dos pais e profetas do povo de Israel. Um exemplo é o da vocação de Moisés (Leia Ex 3,1-17): o relato começa com a descrição do que Moisés está fazendo; depois, vem a epifania divina (o anjo de Deus na sarça ardente) com o diálogo: uma voz chama Moisés pelo nome e se revela; há uma pergunta sobre a identidade de quem está chamando; no fim, Moisés recebe a missão de libertar e guiar o povo. São muitos os exemplos. Entre outros: a missão de Jacó (Gn 32,23-33); a vocação de Gedeão (Jz 6,11-24); a vocação de Samuel para ser profeta (1 Sm 3); a vocação dos profetas Isaías (Is 6,1-13) e Jeremias (Jr 1,4-10).
O aspecto mais importante da conversão de Paulo é, certamente, sua missão no meio dos gentios. Lucas compreende que essa missão é resposta a um chamado divino. Neste sentido, a fé cristã aberta a todos os povos dá continuidade de modo fiel e legítimo, à religião de Israel. Uma boa imagem para descrever este fato talvez seja a da árvore nova plantada a partir de uma estaca de galho da árvore antiga. A planta nova é – e não é mais – parte daquela que lhe deu origem. Dentro desta compreensão, Paulo, o apóstolo dos gentios, é pai e profeta do povo de Deus que reúne agora tanto judeus como pagãos.

Texto do livro “Uma Leitura dos Atos dos Apóstolos”, da coleção “Ser Igreja no novo milênio”, da CNBB.

 

24 de janeiro de 2013

Reflexão - Sabedoria


“Quem quiser levar a rosa para sua vida, terá de saber que com elas vão inúmeros espinhos. Não se preocupe a beleza da rosa vale o incômodo dos espinhos…”.
Padre Fábio de Melo

A vida tem seus opostos e eles se complementam: a noite recolhe no seu silêncio tudo aquilo que foi semeado no dia. Ela permite nascer a semente e desabrochar a flor. E ela não precisa receber o reconhecimento: ela deixa isso ao dia, à luz, ao calor! Assim também acontece em nossas vidas: experimentamos alegria e tristeza; o encontro e a separação; o abraço do reencontro e as lágrimas da despedida…

É preciso sabedoria para entender que os opostos se atraem e se complementam. É preciso paciência e amor para esperar o tempo da colheita: nela ninguém se lembrará do sofrimento do plantio e nem do trabalho da capina… É nos opostos que vamos experimentando a síntese que vamos fazendo em cada experiência, em cada fase da própria vida. Então, meu caro, prepare bem a terra de sues canteiros, semeie com alegria, cultive com esperança… os frutos logo virão!

Frei Paulo Sérgio, ofm

23 de janeiro de 2013

Clara de Assis, vida de serviço e amor fraterno




Por Frei Almir Ribeiro Guimarães
Somos membros da grande Família Franciscana. Temos muita alegria em poder nos deixar formar e modelar pelo espírito  de Clara de Assis. Hoje queremos prestar atenção em seus gestos fraternos e nos serviços que prestava às irmãs e à Ordem de São Francisco. Temos diante dos olhos o texto  Nourrir… chérir… prendre soin, escrito por uma religiosa clarissa e publicado na  revista  Évangile d’Aurjourd’hui, n. 233. Não aparece o nome completo da autora. Simplesmente se diz Irmã Clara de Chamalières (França).
1. O pano de fundo da presente reflexão é constituído por alguns versículos da Regra de Santa Clara que transcrevemos: “Porque todas devem prover e servir  suas irmãs enfermas, como gostariam de ser servidas, se tivessem alguma doença. Manifeste com segurança uma à outra, sua necessidade. E se uma mãe ama e nutre sua filha (1Ts 2,7) carnal, quanto mais diligentemente deve uma irmã amar e nutrir  sua irmã espiritual?” Com toda evidência está por detrás destas linhas, Clara que ama, alimenta e serve.
2. Durante muito tempo a Ordem de Santa Clara teve a reputação de ser uma Ordem muito austera: privações, jejuns, toda sorte de mortificação, extrema pobreza, tanto pessoal quanto comunitária.  Certos costumeiros da Ordem no início do século XX ainda insistem muito nesse estilo extremamente duro de vida ascética.  Inegavelmente muitas clarissas chegaram  a uma altíssima santidade  através de numerosas mortificações. A redescoberta das fontes clarianas, o estudo comparativo das diversas formas monásticas do século XIII, a reconstituição paciente da forma de Vida das Irmãs Pobres aprovada no final de vida da santa nos obrigam a reconsiderar o projeto  fundamental da Mulher de Assis. Queremos aqui destacar  duas grandes preocupações dela: a luta de toda uma vida para conseguir a aprovação do Privilégio da Pobreza (o privilégio de viver sem privilégio no dizer de  M. Bartoli) e o vínculo material e espiritual  com a Ordem dos  Frades Menores.
3. Talvez um aspecto que até então não tinha ainda fica tão nítido foi a grande novidade do tipo de relações fraternas que Clara queria instaurar deliberadamente em São Damião, na esteira de Francisco.  Temos a chance de poder contar com depoimentos das irmãs e de alguns leigos no Processo de Canonização da santa. Apoiando-se nesse documento, Tomás de Celano escreveu a Vida de Santa Clara a pedido do Papa. Não se pode esquecer que, na Idade Média, a hagiografia era  uma obra teológica: personagem principal  não era o santo, mas Deus atuando em sua vida. Celano procura ser fiel às Fontes sempre fazendo com que a santidade de Clara fosse  conforme a ideia da santidade monacal da época. O biógrafo é particularmente sensível aos aspectos da vida fraterna em São  Damião. Perscrutar os fatos aqui e ali narrados, interpretá-los, comparar com a  Regra de Clara  (1253),   às sucessivas legislações a que forma submetidas as irmãs antes que  a fundadora resolvesse ela própria  escrever  a forma de vida  faz com que encontremos uma forma original de laços e   liames fraternos.
4. Antes de seu ingresso em São Damiao Clara já demonstrava atenções para com os pobres.  Encontramos na Legenda uma observação que pode ser mero clichê para as biografias oficiais: “Estendia a mão com prazer para os pobres (cf. Pr  31,20) e da abundância de suas riquezas supria a indigência”  (Legenda, 2). Há, no entanto, logo em seguida, um detalhe pessoal: “… privava seu próprio corpinho dos alimentos mais delicados” para socorrer pessoas indigentes, manifestando desta sorte empatia que viria a ser um traços característicos de sua personalidade. Adolescente, toma uma iniciativa  que  manifesta determinação,  perspicácia e generosidade: envia importância em dinheiro a Francisco e seus irmãos que estão restaurando Nossa Senhora dos Anjos, para que comprassem carne(Processo  17,7).
5. Antes mesmo de ter deixado a casa paterna, Clara já estava  impregnada dos ensinamentos de Francisco. Sentia que este a olhava com solicitude pensando naquilo que ela poderia vir a ser. Entre  os dois  houve sempre respeitosa reserva.  Francisco, de modo especial nos começos, dedicava muita atenção a São  Damião. Chegava mesmo a se preocupar com o regime alimentar da comunidade.  Sabe-se pelo Processo que pediu que moderassem o drástico jejum  determinado pela jovem fundadora. Fez mesmo com que o bispo interviesse sobre o tema. Na Terceira Carta a Inês de Praga Clara toca na questão do jejum e das orientações de Francisco a esse respeito: as  irmãs  não são obrigadas ao jejum  no tempo pascal, nas festas de Nossa Senhora e dos apóstolos, nem às quintas feiras… normas  não rigorosas para a época.  No  Audite Poverelle,  Francisco pede as irmãs utilizem as esmolas sem excessivo escrúpulo. Que se preste atenção nas irmãs doentes ou mais frágeis.
6. Em seu  Testamento  Clara se considera a “plantinha  de Francisco”.  Designa sua comunidade de plantação do bem-aventurado Pai que e cultivou e fez crescer,  como fundador  e plantador (jardineiro). Com estas imagens da horticultura  sentimos como Clara via em Francisco um “cuidador” das irmãs. Francisco, efetivamente, tinha afeto e ternura para com elas. Este cuidado atencioso era fruto de admiração respeitosa. Quando o pão era pouco, a metade que se tinha ia para os frades que moravam junto do mosteiro.
7. Quando  Francisco tem dúvidas  a respeito de sua orientação de vida, ou seja, vida eremítica  ou de pregação itinerante,  recorre a  Clara (também a frei Silvestre).  Gravemente doente ele vem descansar em São Damião  por cinquenta dias e é ali que ele compõe  o Cântico do Sol.  Quando ele fala de lua, estrelas claras, preciosas e belas, irmã água pura e casta  não podemos deixar de pensar que Clara esteja por detrás de tais imagens.
8. Francisco já havia escrito em seu Testamento: “Ninguém me mostrou o que devia fazer, mas o  próprio Altíssimo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo Evangelho”. Clara, no coração de sua Regra,  transcreve o embrião do texto normativo que ele havia composto para as irmãs de São Damião, texto em que se nota a identidade comum de sua vocação evangélica: “Visto que por inspiração divina,  vos fizestes filhas e servas do altíssimo e sumo Rei, o Pai celeste e desposaste  o Espírito,  Santo escolhendo viver segundo a perfeição do Santo Evangelho, quero e  prometo por mim e por meus irmãos ter sempre por vós diligente cuidado e especial  solicitude como tenho por eles…” (Regra de Santa Clara, Cap.VI).
9. Estudos recentes afirmam que, quando Clara se dispõe a escrever  uma Regra não tem a intenção de estabelecer normas a serem rigorosamente observadas em vista de se atingir um ideal de perfeição como as Regras  de Hugolino e Inocêncio  -  mas de definir uma vocação, um encontro com  uma pessoa viva, o Senhor Jesus Cristo.  Estudos recentes assinalam que no modelo de vida proposto por  Francisco e Clara  “somos irmãos e irmãs porque  filhos  do Único Pai e irmãos do Único Irmão”. Como caracterizar a novidade desta vida fraterna  segundo o Evangelho?
10. Fundamentalmente, sem dúvida, trata-se qualidade do olhar dirigido  às pessoas: olhar de confiança, de esperança, de respeito, de maravilhamento, como olhar da mãe para com os filhos, como o olhar do jardineiro sobre as plantas que crescem. Este não sabe como se dá o crescimento  mesmo tendo ele sido o plantador.
11. Em seguida, uma atenção concreta para com as pessoas.  Em São Damião havia muitas irmãs doentes. Em sua Regra, Clara alude ao fato em quase todos os capítulos: faz-se necessário providenciar roupas, alimentação, medicamentos, velar pelo repouso. As irmãs partilharão esses cuidados com a abadessa. Na enfermaria será sempre possível falar com discrição para distrair as irmãs… quando pessoas vêm visitá-las poderão dizer palavras edificantes, o que em outras Regras é formalmente proibido. Com as orientações da Regra de Clara estamos longe das Constituições de Hugolino  sugerindo na medida do possível  que as doentes tivessem um lugar afastado. Lá estariam separadas das irmãs de boa saúde para não causar desordem nem perturbação nas atividades da casa ou no descanso das irmãs…  Vale observar que a maioria dos milagres operados por Clara, durante sua vida e depois de sua morte, visavam doentes e enfermos. Clara é toda compaixão. O Processo de Canonização, a Vita de Celano nos mostram Clara muito próxima de irmãs atormentadas: se uma ou outra fosse presa do desgosto e da tentação, Clara chamava-a à parte e chorava com ela… colocava-se de joelhos diante das irmãs que sofriam e lhes prodigalizava carinhos maternos…
12. Uma vida segundo o Evangelho supunha, no pensamento de Clara,  grande liberdade entre as irmãs.  Em sua Regra, a maior parte das determinações  se acham acrescidas de observações como estas:  “se  acharem bom..”… “se julgarem oportuno”…  Quando, de outro lado,  há uma  fórmula do gênero : “que sejam firmemente obrigadas”… refere-se  à abadessa que deverá pedir o consentimento de todas as irmãs…”.  Entre as irmãs, Clara  vê igualdade total. Ela se comporta como mãe, irmã e serva de todas. Deseja também que as irmãs desempenhem esses papéis. Por isso, ela retoma textualmente  no capítulo  VIII de sua Regra o que Francisco que havia escrito:  “E onde estão e onde quer que se encontrarem os irmãos, mostrem-se mutuamente familiares entre si. E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, porque se a mãe nutre a  seu filho  carnal, quanto mais diligentemente  não deve cada  um amar e nutrir a seu irmão espiritual”. Antes deste texto, para seus irmãos itinerantes,  Francisco havia observado: “Em todos os lugares em que se encontrarem os irmãos,  mostrem-se da mesma família uns para com os outros, o que implica simplicidade, familiaridade, tomada de consideração da vida cotidiana. Clara, por sua vez, mesmo num ambiente fechado  como era o mosteiro de São  Damião,  pede que as irmãs se encontrem, se estimem,  se “nutram” espiritualmente:  “Porque todas devem prover e servir  suas irmãs enfermas, como gostariam de ser servidas, se tivessem alguma doença. Manifeste com sua segurança, uma à outra,  sua necessidade. E se uma mãe ama e nutre sua filha carnal, quanto mais diligentemente  deve uma irmã amar e nutrir  sua irmã espiritual?” (cap. VIII).  Clara não tem medo da ternura e de suas manifestações. Em seu Testamento tem ela uma exortação cheia de brilho: “E amando-vos umas  às outras com a caridade de Cristo, demonstrai por fora, por meio de boas obras, o amor que tendes dentro para que provocadas por este exemplo, as irmãs cresçam sempre  no amor de Deus na mútua caridade.
13. Esta mesma dimensão de amor compaixão Clara manifesta para com a cidade de Assis (duas vezes sitiada) e para pessoas de fora do mosteiro:  doentes, deficientes, infelizes acorrem a São Damião para buscar cura.  Somos obrigados a relativizar a afirmação de Celano: “… elas adquiriram especial graça de abstinência e do silêncio a ponto de absolutamente não precisarem esforçar-se por coibir o apetite e a frear a língua; e algumas delas estavam tão desacostumadas a conversas que quando a necessidade exige que elas falem, mal se recordam de formar palavras como convém (1Celano 20). “Clara unificou profundamente sua vida e seu olhar para ir além  das aparências: na contemplação do Cristo pobre e crucificado de São Damião, Clara  compreende o sofrimento  indizível do homem Deus e por ele abraça todos aqueles pelos quais ele morreu. Recebem elas seus irmãos e os filhos dos homens como seus filhos espirituais os quais ale nutre e ama  como uma mãe ama seu filho, manifestando-lhes afeto por ato sua ternura .

 Frei Almir Ribeiro Guimarães

Extraído de: http://www.franciscanos.org.br/?p=31873

22 de janeiro de 2013

Reflexão - Disposição


“Cultivar estados mentais positivos como a generosidade e a compaixão decididamente conduz a melhor saúde mental e a felicidade”. 
Dalai Lama.

 Pensar, desejar, querer são ações anteriores ao fazer e ao realizar. Quando dispomos nossa mente de maneira positiva estamos abrindo nossa vontade à força maior do universo. É como se você estivesse dizendo: estou pronto (a) a receber toda força e todo poder do cosmos para que eu possa atingir essa meta, alcançar esse objetivo. Você cria uma dis-posição imensa para o poder do amor envolver suas ações e suas buscas.
Então, evite toda forma de pensamento negativo e tudo aquilo que possa derrubar sua auto estima. Você traz dentro de você mesmo o amor de Deus e a luz divina. Pense, deseje, queira, aja na direção da luz! Somente você pode mudar sua vida e libertar-se de amarras que o (a) impede de lançar-se no voo da felicidade. Então, começa agora positivando sua mente com frases poderosas: eu quero, eu posso, eu sou capaz, eu trabalho, eu sou feliz!

Frei Paulo Sérgio, ofm ( http://www.franciscanos.org.br/ )

21 de janeiro de 2013

Uma visão franciscana da economia



Por Frei Celso Márcio Teixeira

Introdução

À primeira vista, tendo-se presente que a pobreza se tornou ao longo da história quase que uma carteira de identidade dos franciscanos, o título desta reflexão parece conter um paradoxo ou talvez causar a expectativa de uma visão radicalmente negativa da economia. Pode o franciscano pelo menos pensar em economia, já que o próprio Francisco proíbe severa e terminantemente que os frades recebam dinheiro, comparando-o a uma pedra ou ao pó que se calca com os pés (cf. RnB 8,4.6)(1)? Haveria algum espaço para se falar em economia, quando se defende a pobreza radical do nada possuir (cf. RB 6,1)? Embora as aparências possam sugerir uma irreconciliável contradição entre espiritualidade franciscana e economia, ousamos afirmar que o próprio Francisco de Assis nos deixou o que poderíamos chamar de “modelo econômico alternativo”. E os franciscanos, ao longo da história, não somente elaboraram um pensamento sobre a economia, mas propuseram novos modelos econômicos na tentativa de diminuir a distância existente entre ricos e pobres.

1. Conceito de economia no pensamento e na práxis de São Francisco

Evidentemente, não vamos encontrar nos escritos de Francisco nem no conjunto todo das Fontes Franciscanas um conceito definido de economia. Mas vamos descobri-lo nas entrelinhas do que está escrito e na práxis de Francisco e de seus companheiros.
É necessário, antes de tudo, não identificar economia com possuir, acumular bens (dinheiro, propriedades) e gerir capital. Pelo menos não é este o conceito que ele tem de economia. Mas, se lermos atentamente as fontes franciscanas, verificaremos que, para ele, a economia consiste em gerir as necessidades vitais dos irmãos (gerir a vida). De fato, a grande preocupação dele com relação aos frades é cuidar deles em suas necessidades vitais. Embora a proposta franciscana seja de uma vida sóbria – devemos estar contentes, quando temos com que nos cobrir e com que nos alimentar (cf. RnB 9,1b) – no entanto, a economia que deve reger a vida dos frades será pautada pelo cuidado dos irmãos em suas necessidades, um princípio explícito na Regra Bulada:

Os ministros e custódios exerçam diligente cuidado, através de amigos espirituais, para com as necessidades dos enfermos e para vestir os demais irmãos de acordo com os lugares, tempos e regiões frias, como virem que seja conveniente à necessidade; salvo sempre que, como foi dito, não recebam moedas ou dinheiro (RB 4,3-4).

O conceito que ele tem de economia, portanto, não se situa no nível do possuir, do acumular ou gerir bens, mas no nível do cuidar das necessidades vitais e de gerir a vida.

2. Modelo econômico alternativo

Partindo do conceito de economia como cuidado dos irmãos em suas necessidades vitais, nós nos perguntamos se, de fato, se criou um modelo econômico para fazer frente a essas necessidades. Nossa busca neste sentido aponta para uma resposta afirmativa. Alguns elementos são bastante evidentes, permitindo-nos concluir categoricamente que se criou realmente um modelo alternativo.

a) Um modelo baseado no trabalho

O trabalho como base da economia franciscana já estava explícito na Regra não Bulada:

E os irmãos que sabem trabalhar trabalhem e exerçam a mesma arte que conhecerem… Pois diz o profeta: “Comerás do trabalho de tuas mãos”… E pelo trabalho possam receber todas as coisas necessárias, exceto dinheiro (RnB 7,3.4.7).

Pode-se dizer que o trabalho constitui o primeiro artigo do estatuto da economia franciscana. O meio de suprir as necessidades vitais dos frades, portanto, não consiste em rendas fixas nem na acumulação e capitalização de bens, mas no trabalho.

Este artigo contém um parágrafo: “E, quando for necessário, vão pedir esmola como os outros pobres” (RnB 7,8). Este parágrafo, no entanto, não significa que o meio normal de suprir as necessidades seja a esmola, como posteriormente na história foi interpretado, especialmente quando foi concedido aos frades menores poderem viver das esmolas dos fiéis e quando eles ficaram conhecidos com outros grupos como mendicantes. O parágrafo não vem substituir o artigo, mas apenas acrescentar uma cláusula para um caso especial, como o próprio Francisco chega a precisar no Testamento: “E quando não nos for dado o salário, recorramos à mesa do Senhor, pedindo esmolas de porta em porta” (Test 20b.21a.22).

b) A socialização dos bens pela partilha

Outro elemento que, a nosso ver, constituía um artigo importante do modelo econômico de Francisco é a partilha dos bens adquiridos pelo trabalho. A Regra é inequivocamente clara: “Quanto ao salário do trabalho, recebam para si e para seus irmãos as coisas necessárias ao corpo, exceto moedas e dinheiro” (RB 5,4).

Os bens adquiridos pelo trabalho são sempre “as coisas necessárias”. E a repetida proibição de que se receba dinheiro mostra com muita evidência que o modelo econômico proposto como alternativo não se baseia no dinheiro. Este artigo, porém, evidencia que os bens adquiridos não pertencem nem são destinados unicamente a quem trabalhou, mas ao conjunto dos irmãos: “para si e para seus irmãos”.

Infelizmente, ao longo da história, as intermináveis discussões sobre a pobreza nunca deram valor a este elemento que, a nosso ver, mostra o verdadeiro significado da pobreza franciscana: a pobreza significa não apenas não acumular, mas antes de tudo partilhar o pouco que se tem ou se adquire (2). Tudo em vista do cuidado (bem comum) da fraternidade. Este cuidado, princípio fundamental de todo o estatuto, por sua vez, dá a cada frade a liberdade de manifestar ao outro suas necessidades: “E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade” (RB 6,9).

c) Além da lei do supérfluo

Chamamos aqui “lei do supérfluo” aquela frase incandescente de São Basílio Magno em uma de suas homilias:

Pertence ao faminto o pão que tu reténs. Ao que está nu pertence o manto que guardas. Ao descalço, o calçado que irá apodrecer em tua casa. É do necessitado o dinheiro que tens enterrado (3).

Resumindo numa máxima a exortação de São Basílio: o supérfluo pertence aos pobres.

Embora Francisco não tenha escrito sobre a partilha com os demais pobres, sua práxis é profusamente atestada pelos hagiógrafos. Ele queria que os frades partilhassem com os necessitados não apenas o que lhes era supérfluo, mas também o que estava destinado às suas próprias necessidades. Ao encontrar alguém mais necessitado do que ele, não tendo supérfluo, dava aquilo que lhe era absolutamente necessário. Dizia:

Recebemo-lo de empréstimo até acontecer que encontremos alguém mais pobre… Não quero ser ladrão; ser-nos-ia imputado como furto, se não o dermos ao mais necessitado (2Cel 87; CA 32).

Exemplos claros disso são as várias vezes em que ele deu seu próprio manto a algum pobre (cf. 2Cel 86; 87; 88; 92) ou, quando já não tinha o manto, cortava um pedaço do próprio hábito (cf. 2Cel 90) ou dava como esmola os ornamentos do altar (cf. 2Cel 67) e até mesmo o livro do Evangelho usado na liturgia (cf. 2Cel 91).
Resumindo o pensamento de Francisco sobre economia, pode-se dizer que, tendo como princípio o cuidado dos irmãos, ele realmente desenvolve um modelo econômico alternativo, baseado no trabalho, na partilha entre os irmãos e na partilha (não só do supérfluo) com os demais pobres.

3. O conceito de propriedade privada no pensamento franciscano

A tese comum defendida na Idade Média, inclusive por teólogos do porte de Santo Tomás de Aquino (4), era a da justificação da propriedade privada pela lei natural. Na linha aristotélica, Tomás de Aquino defende que odominium (o termo indica poder de uns sobre os outros e propriedade sobre as coisas) remonta ao estado original, não é consequência do pecado.

A escola franciscana, possivelmente influenciada por uma compreensão evangélica da pobreza (Cristo quis ser e fez-se pobre), elaborou um pensamento alternativo. Teólogos franciscanos que abordaram o tema: Alexandre de Hales, Boaventura, Mateus de Aquasparta, Pedro João Olivi, Duns Scotus e Ockham. Já com Alexandre de Hales (5), passando por Boaventura (6), a formulação adquire uma clareza incontestável. Segundo Alexandre de Hales, deve-se distinguir entre status innocentiae (o estado do ser humano antes do pecado) e status naturae lapsae (estado depois do pecado). Em seu estado de inocência foi dada ao ser humano a lex naturae simpliciter; em seu estado de natureza caída, foi-lhe dada a lex positiva, esta última com a finalidade de coibir a vontade dos mais fortes de submeter e explorar os mais fracos. Deste modo, em seu estado original, havia apotestas utendi, o commune solatium rerum (provisão ou uso comum das coisas). Com o pecado, irrompem a avareza, a tendência à apropriação, a separação entre o meu e o teu, a concupiscência da posse e da acumulação. Por isso, a necessidade de uma lei positiva (lei da sociedade), que, no entanto, não deve ser absolutizada nem divinizada como se fosse o projeto eterno de Deus. Ela mostra apenas a precariedade e a fragilidade da condição em que se encontra o ser humano caído. Se ela estabelece normas para proteger a propriedade particular, é porque o ser humano perdeu o senso do uso comum das coisas, que era próprio de seu estado primeiro.

Igualmente, para Duns Scotus, o ser humano não é proprietário por natureza. Como bem comenta Todisco, “os dominia não fazem parte dostatus innocentiae, quando tudo era comum e o uso dos bens respondia somente à lógica da necessidade de cada um. O atual desenfreamento do instinto concupiscente faz parte de nossa história, não de nossa natureza… Assim, a partir do estado de comunhão de bens se passou ao estado de distinção dos dominia para propiciar uma convivência pacífica. Nem o direito natural ou ius naturae nem o divino ou ius divinum se podem tomar legitimamente como argumento a favor da propriedade, como se esta expressasse a índole originária da natureza humana” (7) .
E Guilherme de Ockham sublinha que, depois do pecado, o ser humano não está em condições de gozar os bens em comum, motivo pelo qual precisa regular o poder de apropriar-se das coisas, de acordo com a condição humana atual (8).

4. O modelo econômico dos Montepios

A crescente monetarização acontecida já na época de São Francisco despertou muitos homens ricos à prática da usura. Devido aos seus lucros exorbitantes e à espoliação dos pobres causada pelos juros altos dos usurários, esta prática, comparada em gravidade à simonia e à avareza, era severamente condenada pela teologia moral. Santo Antônio de Lisboa, por exemplo, tornou-se um grande pregador contra a usura, pelo fato de esta prática miserar muitas famílias já pobres. Com comparações contundentes, ele clamava:

Um povo maldito de usurários, forte e inumerável, cresceu sobre a terra. Os seus dentes são como os dentes de leão… seus dentes cheiram mal, por motivo de existir sempre na sua boca o estrume da pecúnia e o esterco da usura. Os seus queixais são como leõezinhos, porque arrebatam, mastigam e devoram os bens dos pobres, dos órfãos e das viúvas” (9).

Com o passar do tempo, os frades menores, compreendendo que o uso do dinheiro fazia parte da vida cotidiana do povo, perceberam que não bastava anatematizar o dinheiro. A usura ainda dizimava muitas vidas e dignidades. Participando das angústias dos cidadãos, especialmente dos mais pobres, e conscientes da força do capital que movia a sociedade – sem deixar de arruinar muitas vidas –, os frades começaram a refletir também sobre esta realidade de maneira realista, chegando a elaborar um pensamento sobre economia. Exemplos disso são os tratados de Pedro João Olivi, intituladosTractatus de emptione et venditione e Tractatus de contractibus usurariis et de restitutionibus. Este teólogo trilha o caminho do preço justo dos bens produzidos, levando em conta não apenas o trabalho do artesão, mas também as dificuldades e trabalho do mercador, as situações de escassez e de abundância, etc., que acabam incidindo legitimamente na valorização da mercadoria. Posteriormente, Bernardino de Sena estabelecerá os elementos a serem levados em conta no preço dos bens produzidos: o valor natural da coisa produzida (realis bonitas naturae) e a utilidade (utilitas rei, pois o uso acrescenta valor à coisa); acrescentem-se a estes a virtuositas (qualidade), araritas (escassez) e a complacibilitas (a satisfação que o produto dá ao que o compra) (10).

A contribuição franciscana em assuntos de economia, porém, não ficou no nível do pensamento. A iniciativa dos montepios foi a maneira concreta encontrada para levar a sociedade ao bom uso do dinheiro, isto é, a produzir bens de consumo sem produzir miséria. Bernardino de Sena (1380-1444) e Bernardino de Feltre (1439-1494), entre muitos outros pregadores, foram os incentivadores deste modelo de economia. O sistema consistia em levar os ricos a substituírem as esmolas por empréstimo a juros baixos para os que não tinham um capital e eram capazes de produzir bens de consumo. Deste modo, o pobre se sentiria valorizado em sua dignidade de poder produzir, de colaborar com a construção da vida social. Uma frase de Bernardino de Feltre, que mostra a natureza dos montepios, reza assim:

Não retenhas o supérfluo, que o supérfluo rompe a cesta… quando és rico e tens a barriga cheia e o pobre te pede emprestado e tu podes ajudar, se não o ajudas, pecas mortalmente. Portanto, se estás obrigado a dar esmola e ser generoso, quanto mais estás obrigado a dar ajuda daquilo que receberás com juro? (11).

O primeiro montepio foi fundado em 1462, em Perúgia, mas a iniciativa estendeu-se com muita rapidez pelas cidades da Itália e da Europa.

Conclusão

Quando os frades menores se põem a pensar a economia e a criar modelos econômicos alternativos, onde fica a pobreza? Estariam eles distanciando-se do carisma do fundador, afastando-se da pobreza radical? Não subsistiria, no fundo, a contradição à proposta original de Francisco?

Pelo contrário, vemos aí exatamente a superação da suposta contradição e uma até mesmo apologia da pobreza. Aos que consideravam a pobreza uma violação dos direitos fundamentais da natureza humana (entre estes o chamado direito natural à posse), a renúncia à posse dos bens mostra que a pobreza radical, pensada neste contexto, não vai contra a natureza humana, mas contra a natureza atual (caída) que se tornou egoísta. A pobreza radical (renúncia a qualquer domínio) aponta, portanto, para o status innocentiae, não viola absolutamente nenhum direito natural (lex naturae), como pretendiam os que se inspiravam numa concepção naturalista pagã, mas restaura a condição primeira. Esta visão dá ao indivíduo o pleno direito (liberdade) a renunciar a todos os direitos, e nisso consiste a radicalidade máxima da pobreza.

De outro lado, os frades não propõem o dinheiro como objeto de culto e de cobiça. Sua preocupação principal é livrar os pobres de uma pobreza que indignifica e envergonha o ser humano: a miséria. E a proposta subjacente ao modelo econômico dos montepios não era a de enriquecer os pobres, mas de permitir que eles, mesmo pobres, continuassem humanos, co-participantes da vida e da construção da cidade dos homens.


Extraído de: http://www.itf.org.br/

1 Os hagiógrafos são ainda mais radicais, ao atribuírem a Francisco a comparação do dinheiro com o esterco; cf. 2Cel 65,3; 66,2; CA 27,3; LTC 45,4.
2 Quem recentemente fez uma abordagem da pobreza do ponto de vista da economia foi D. Flood em seu livro Frei Francisco e o movimento franciscano, Vozes-Cefepal, Petrópolis, 1986, onde ele fala da “base econômica” (p. 42, 54, 55, 58), de “sistema econômico” (p. 49), de “organização econômica” (p. 67, 71) da vida dos frades, caracterizando-a como “economia fraterna” (p. 71), apontando, inclusive, a esmola não por razões de pobreza, mas por razões simplesmente econômicas (p. 55-56).
3 Basílio Magno, Homilia in Lc 12,16, em PG 31, c. 1752.
4 STh., I, q. 96, a. 4.
5 SH, II, q. 3, c. 2.
6 Boaventura, II Sent., d. 44, q. 2, a. 2.
7 Todisco O., “Ética e Economia”, em Merino J.A.; Fresneda F.M. (org.),Manual de Filosofia Franciscana, Petrópolis, Vozes-FFB, 2006, 261-332, p. 267; cf. Duns Scotus, Ordinatio IV, d. 15, q. 2, n. 5; sobre a questão da propriedade em Duns Scotus, cf. Bottin F., “G.D. Scoto sull’origine della proprietà”, em Rivista di Storia della Filosofia 52 (1997) 47-59.
8 Cf. Todisco O., o. c. 267.
9 Sermão da Sexagésima.
10 Bernardino de Sena, II, Sermo XXX, c. 1; obra citada por Todisco O., o. c. 324.
11 Citado por Todisco O., o. c. 327.

18 de janeiro de 2013

Reflexão - Vida


“Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata” (Carlos Drummond de Andrade).


Estar cheio de vida é respirar profundamente, mover-se livremente e sentir com intensidade. E tal ação delimita um tempo de respiração e inspiração, de recolhimento e expansão, de doação e de recebimento. Assim é a vida na sua intensidade: requer vários momentos, várias estações, dias e noites, chuvas, sol e luar… A vida, meu caro, é uma explosão de alegria; ela é sopro que vem do Criador e faz-nos sentir que participamos de uma ciranda de amor, pois é pulsação do eterno!


Então, não fique se lamentando e nem se feche em si mesmo, dando espaço para a depressão e para a tristeza. Cante a sua canção, permita-se alguns momentos diferentes e fora do padrão: dance e cante na chuva, mergulhe numa cachoeira, ajunte pedrinhas na beira de uma riacho, faça castelos de areia na praia com seus filhos… Faça da sua vida algo grandioso e terás muitos motivos para louvar e bendizer o Criador!
Frei Paulo Sérgio, ofm

8 de janeiro de 2013

Francisco de Assis, homem de fé

Michel Hubaut, franciscano francês, fala de Francisco fundamentalmente como homem da fé, mais do que amante da pobreza. Vivendo o Ano da Fé  com a Igreja, sentimo-nos filhos de um homem de profunda fé.
O homem sempre tem receio de renunciar a seus projetos imediatos para entrar no futuro de Deus. Francisco haverá de penetrar  na fé da mesma forma como se cava um poço no deserto, como se revira um campo para encontrar um tesouro. A fé é, antes de tudo, uma interrogação. O  Espírito faz com que ele se sinta insatisfeito consigo mesmo:

“Possuído por um espírito novo e singular, Francisco rezava ao Pai  que escuta no segredo (…). Estava como que tomado de uma grande paixão em seu espírito, e enquanto não conseguia executar o plano que havia concebido, não havia meios de encontrar  repouso.  Pensamentos variados se sucediam dentro  dele e a persistência desses o atormentava duramente” (1Celano 6).
Como, na verdade, acolher a gratuidade dos dons de Deus e ao mesmo tempo  deixar cair de nossas mãos nossas falsas riquezas? O oposto do medo será precisamente a fé. Ter a coragem de arriscar tudo. Renunciar ao desejo de apropriar a própria vida, seus dons e seus bens, de conduzir a vida sozinho e entrar no projeto do amor de Deus por nós. Francisco corre esse risco. Nada compreenderemos de sua vida se não levarmos em conta  esse fundamento inicial. Sua conversão consiste no desejo do homem que se abre ao desejo de Deus.
Basta que nos lembremos da cena em que ele se despoja de suas vestes diante do  bispo de Assis e de seu pai, dizendo:  “Até agora te chamei de pai sobre a terra, a partir de agora posso dizer com segurança:  Pai nosso que estais nos céus  (Mt 6,9), junto   a quem guardei todo o meu tesouro e coloquei toda fé e esperança”  (LM  2,4).
O carisma de Francisco não é a pobreza, mas a fé através da qual  ele joga seu presente e  seu futuro em Deus.
“Portanto,  nada mais desejemos, nada mais queiramos, nada mais nos agrade ou deleite a não ser o nosso Criador, Redentor e Salvador, único  Deus verdadeiro, que é o bem pleno, todo o bem, o bem total (…).  Assim, pois, nada nos impeça, nada nos separe, nada se interponha entre nós, em qualquer parte, em todo lugar, a toda hora, em todo o tempo, diária e continuamente, creiamos todos nós de verdade e humildemente e o tenhamos no coração, e amemos, honremos e adoremos…”  (Regra não bulada, XXIII, 9-10).
Ao longo de toda a sua vida, Francisco haverá de cultivar uma fé viva e vigilante, disponível ao apelo de Deus e ao  Espírito do  Senhor. Desobstruir nossas fontes interiores; escutar a Deus; procurar Deus; deixar-se amar e modelar-se por Deus; deixar-se guiar durante a noite pela esperança que se apresentou no rosto de Jesus Cristo; despertar de nosso torpor espiritual. Esse é o projeto evangélico de Francisco que lança suas raízes na fé. Fé daquele que descobre que Deus é dinamismo de amor que não ameaça nossa liberdade mas a estrutura, força que nos constrói e nos plenifica.  Ao longo de sua longa  busca pela luz, muitas vezes Francisco recitou esta oração:
“Ó  Deus, alto e glorioso, ilumina as trevas de meu coração. Dá-me uma fé reta, uma esperança certa e uma caridade perfeita, o senso do conhecimento, Senhor, para que eu abrace teu santo e verdadeiro mandamento”.
Michel Hubaut,  Chemins d’intériorité  avec Saint François,  Ed. Fraciscaines, Paris, 2012,p. 28-31)

7 de janeiro de 2013

Reflexão - Semeador da paz

“Não se pode manter a paz pela força, mas sim pela concórdia”.
 Albert Einstein.
 
 

A paz é uma dádiva divina: é Deus que nos inspira a desejá-la, a buscá-la, a permanecer em nossos corações.
A paz nasce dentro de nós e nos impele a levá-la também aos corações das pessoas. Daí que é preciso começar a semeá-la em nossas casas, em nossas famílias. Comece valorizando aquilo que as pessoas tem de melhor, fazendo elogios a seus progressos, positivando-as com palavras ben-ditas! Seja você hoje um semeador da paz! Procure orar a Deus no principio deste dia: peça a Ele o dom da paz e coloque esta paz dentro de você. Dirija de maneira educada e não se irrite com aqueles que parecem com pressa demais… Dê espaço a quem tenta sair de uma garagem… No seu trabalho, acolha sua equipe com alegria e satisfação. Faça uma oração com todos e seja sinal de unidade. Assim terás um dia de paz, alegria e realizações!

Frei Paulo Sérgio, ofm

5 de janeiro de 2013

Reflexão - Erros





“Mesmo desacreditado e ignorado por todos, não posso desistir, pois para mim, vencer é nunca desistir”.  Albert Einstein.

Diante deste novo tempo, somos mais uma vez desafiados pela vida a darmos passos, a crescer diante daquilo que o futuro nos interpõe. É preciso vigor e coragem para tomar as decisões, mesmo que venhamos a nos arrepender. Os erros nos fazem crescer, pois nos trazem experiências, possibilitam caminhos não trilhados. O erros são as oportunidades para os acertos, para as vitórias maiores e mais significativas.

Então não tenha medo de errar: planeje, estabeleça metas e prioridades! Permita o aprendizado da própria jornada. Procure acreditar mais em você mesmo, nos seus dons e capacidades. Você é uma pessoa única e, como tal, um verdadeiro dom para a humanidade. Não desperdice seus talentos: faça-os crescer e colabore para o crescimento de muitas pessoas que caminham com você…

Frei Paulo Sérgio, ofm

4 de janeiro de 2013

O lado de um cura o lado do outro.

 

O lado de Jesus e o lado de Adão


Este é o meu Filho amadoTem fome e alimenta multidões inumeráveis; afadiga-se a alivia os fatigados;  não tem onde reclinar a cabeça e tudo sustenta com suas mãos;  sofre e dá remédio a todos os sofrimentos;  é esbofeteado e dá liberdade ao mundo; traspassaram o seu lado e ele cura o de Adão. Prestai-me toda atenção:  quero acorrer ao manancial da vida e contemplar a fonte de onde jorram os remédios da salvação (Do  Sermão  sobre a Santa Teofania, atribuído a Santo Hipólito de Roma, presbítero).

1. O tempo alegre do Natal se fecha e culmina com a festa do Batismo do Senhor. O servo santo e imaculado entra nas águas do Jordão. Associa-se ao cortejo dos pecadores. Caminha com passos decididos em direção de João. Lucas assim  descreve o momento do batismo do Senhor:  “Enquanto ele rezava, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre  Jesus  em forma visível como  pomba. E o céu veio uma voz: Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem querer” (Lc 3,  22). Temos diante de nossos olhos a figura  adorável do amado Filho do Pai.  Toda a vida do discípulo não consistirá em outra coisa senão de ouvir a voz do  Filho amado e a ela ser fiel.  Em seu  Batismo, Jesus se associa ao cortejo dos pecadores.  Se faz pecador conosco.
2. Jesus é, com efeito, um paradoxo.  É tudo e é nada. É grande e pequeno. É grande na pequenez. Tem fome,  mas monta a mesa de seu corpo para alimentar os  famintos. Tão cansado e tão exausto ele chama a si os desanimados e fracos e os recompõe e  restaura. Sofre toda sorte de desconforto e dá remédio aos sofrimentos. Em sua fragilidade se torna força.  A força de Deus está na fraqueza do Filho amado.  Seu peito rasgado pela lança cura o lado do homem.
3. O Jesus que entra nas águas do Jordão, que se associa ao cortejo dos pecadores, santifica as águas… Todos os que mais tarde seriam batizados haveriam de mergulhar nas águas marcadas pela presença do Filho amado.  Santo Efrem  coloca belíssimas palavras nos lábios de Cristo que se dirige a João, o Batista:  “Eu quero, João, aproxima-te e confere-me o batismo para que se realize a minha vontade. Não podes resistir à minha vontade; serei batizado por ti porque assim quero.  Tu tremes e, contra a minha vontade, não percebes que te pedi um batismo muito importante para mim.  Cumpre a obra para  a qual foste chamado.  Pelo meu batismo é que as águas serão santificadas, recebendo de mim o fogo e o Espírito. Se eu não receber o batismo, elas  não terão o poder de gerar filhos imortais.  É absolutamente indispensável que me batizes, sem discussão como te ordenei.  Eu te batizei no seio materno; batiza-me no Jordão”.
4. Aquele que recebe o  batismo de João no Jordão teria uma outra água a oferecer: a água de seu lado aberto.  O lado ferido pelo soldado cura  Adão e  a mulher que saiu de seu lado aberto. O Coração de Jesus, seu peito aberto, é manancial de toda salvação.  Água do peito de Jesus que lava peito de Adão.  Batismo, santo batismo da regeneração.  Voltemos ao texto de Hipólito: “Vinde, nações todas, ao batismo que confere a imortalidade. Esta é a água unida ao Espírito, que irriga o paraíso, fertiliza a terra, dá crescimento às plantas e faz os seres se reproduzirem. Em resumo, esta é a água  pela qual os homens recebem nova vida, com a qual o Cristo foi batizado e sobre  a qual o Espírito Santo desceu em forma de pomba”. O lado de Jesus inventou uma fonte borbulhante de puro amor que lava o lado de Adão.

Frei Almir Guimarães

Extraído de : http://www.franciscanos.org.br/?p=31350

3 de janeiro de 2013

Um certo Francisco de Assis - Humanista e humorista

Francisco de Assis, eis um tema que não se esgota. Um frade  espanhol, José Antonio Merino, OFM,  escreveu texto muito saboroso sobre esse nosso italiano que é do mundo inteiro, que saiu como encarte da revista espanhola Vida Nueva, n. 2663, com o título de Francisco de Assís, santo enigmático e provocador. Transcrevemos aqui apenas uns poucos parágrafos  que falam do humanista e humorista.



Ainda em vida, Francisco foi um fenômeno de massa, devido ao seu estilo evangélico. Não somente por isso, mas porque era um gênio da comunicação e da propaganda. Compreendia imediatamente as necessidades e expectativas dos que dele se acercavam. Tinha um senso inato e forte sentido do espetáculo. Era um artista. Nos tempos de sua juventude cantava pelas ruas nas serestas com seus amigos.
Depois de sua conversão exprimia-se, em suas pregações, com gestos e posturas dos jograis e dos trovadores. Se, em sua juventude tinha sonhado ser um cavaleiro, empregando a linguagem cavalheiresca da época, depois de sua conversão continuou usando um repertório de palavras e imagens muito diferente  da linguagem religiosa habitual.
 Falava de seus irmãos com sendo cavaleiros da Távola Redonda e da pobreza como se fosse sua noiva. Por vezes pregava com a linguagem das canções eróticas que estavam em voga, transformando-as e dando-lhes um sentido religioso. Conseguiu superar a dicotomia entre sagrado e profano, laical e clerical, linguagem profana e linguagem eclesiástica. Certa vez, diante de suas admiradoras do sexo feminino, reunidas em torno da nobre Clara, improvisou uma pregação somente feita de gestos.
Sua conversão ao Evangelho não significou renúncia a seu caráter jovial e festivo; ao contrário, chegou mesmo a potenciá-lo. Para ele, Deus era uma festa, e dançava quando se aproximava dele. Sua vida era um constante celebração litúrgica  pelos campos e cidades. Para ele, a natureza era  um templo visível da divindade onde se celebra espontaneamente a liturgia cósmica.

Inventou um estilo novo de encarnar o Evangelho combinando a coerência da mensagem evangélica com seu caráter jovial e festivo.  A santidade com a poesia. O humanismo com o humorismo. A religião com a estética. Trouxe alegria para o cristianismo. Seu estilo de vida tão original  foi logo captado pelas multidões de gente simples que sabem descobrir o essencial da vida. Bem cedo, Francisco se converteu num fenômeno de massas.  No capítulo  10 dos Fioretti, encontramos um  texto muito significativo. 
Frei Masseo, com uma certa duvidosa simplicidade e não pouca ironia ( para tentá-lo”, diz o texto), pergunta:
 "Por que a ti, por que a ti,  Francisco?".

Extraído de: http://www.franciscanos.org.br/