31 de outubro de 2012

A clausura na Forma de Vida de Santa Clara


Frei Fábio Cesar Gomes

 
O décimo primeiro capítulo da Regra de Santa Clara trata do tema da clausura, determinando-se como e por quem deve ser exercido o ofício de porteira (cfr. RegCl 11,1-2), os cuidados com a porta (cfr. RegCl 11,3-7) e de quando e como alguém poderá entrar no mosteiro (cfr. RegCl 11,8-12). Trata-se de um tema do qual Clara já havia começado a se ocupar no capítulo quinto, quando referiu-se à porta junto à grade do coro (cfr. RegCl 5,11-13). Talvez nossa primeira reação diante desse capítulo seja de estranhamento pelo fato de Clara, franciscana, prescrever a clausura na sua Regra. Tal estranhamento pode nos levar a fazer perguntas como estas: Tratou-se de uma opção que ela fez livremente ou de uma imposição à qual teve que se submeter? Que significado tem a clausura para ela?
Não temos aqui nem o espaço suficiente, nem, muito menos, a pretensão de dar uma resposta exaustiva a essas perguntas. Gostaríamos apenas, num primeiro momento, de fazer algumas considerações sobre as mesmas para, em seguida, acenarmos para a relevância do tema da clausura para nós, Frades Menores.
No que se refere à primeira questão, antes de mais nada, devemos dizer que, para nós, é difícil imaginar que uma mulher como Clara, com tanta clareza a respeito dos elementos essenciais da sua Forma de Vida, tenha simplesmente submetido-se à regra da clausura. Acreditamos que se a clausura estivesse em total contradição com a sua inspiração originária, ela teria sido capaz de afirmar-se, como o fez a propósito da pobreza absoluta, conseguindo dos Papas, muito antes da aprovação da sua Regra, o famoso Privilégio da Pobreza. Ao contrário, as normas de clausura da Regra de Hugolino de 1219, mais rigorosas do que aquelas das Ordens Monásticas de então, passaram praticamente inalteradas para a Regra de Clara, aprovada em 1253. E isso não porque, no seu tempo, não existissem outras possibilidades de Vida Religiosa Feminina. Pensemos, por exemplo, no movimento das “Beguinas” – surgido por volta de 1170 na região da Bélgica e já presente  na Itália aos tempos de Clara – formado de comunidades de mulheres dedicadas à oração e a obras de caridade, algumas das quais viviam em pequenos grupos itinerantes (cfr. D. Brunelli, O seguimento de Jesus Cristo em Clara de Assis, 49). Por tudo isso, há que se admitir que a clausura constitui um dos traços que caracterizam a Forma de Vida das Irmãs de São Damião desde os seus primórdios, razão pela qual, não por acaso, ainda enquanto Clara vivia, elas eram popularmente conhecidas como “mulheres reclusas” (ProcC 16,2).
Quanto à segunda questão, acreditamos que as normas referentes ao tema tenham sim um significado muito concreto de defesa contra as reais ameaças provenientes de fora do mosteiro: invasões de leigos e intromissões de eclesiásticos. Ademais, é preciso recordar que aqueles eram tempos marcados por contínuas guerras e que São Damião encontrava-se fora dos muros da cidade de Assis. Porém, somos da opinião de que ao tema da clausura na Regra de Clara possam ser atribuídos também outros tipos de significado. De fato, como espaço físico do mosteiro a ser guardado com toda solicitude, a clausura clariana parece também ser uma evocação da interioridade humana, enquanto remete cada Irmã àquele “espaço interior da liberdade de cada pessoa” de que nos falou Frei João Mannes nas Comunicações do mês passado, onde cada uma é chamada a guardar e a cultivar a própria identidade de religiosa. Assim, a clausura de Clara e de suas Irmãs aparece como o espaço exterior que, ao mesmo tempo em que evoca, lhes possibilita adentrar naquele “espaço interior” no qual elas se abrem para a contemplação do mistério insondável de Deus.
No entanto, a clausura clariana possui sobretudo um significado cristológico, como, aliás, é o significado principal de tudo o que pertence à Forma de Vida de Clara, uma vez que essa consiste, fundamentalmente, em “observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem nada de próprio e em castidade” (RegCl 1,2). Em outras palavras, a Forma de Vida das Irmãs Pobres não consiste na clausura, mas, no seguimento do Cristo pobre e crucificado, em função do qual a clausura apresenta-se como “um modo típico de (a Clarissa) aprofundar aquela Kénosis que é própria de Cristo Senhor (cfr. Fl 2,5ss) e que é por Ele proposta a quem o quer seguir” (Chiara A. Lainati, Santa Chiara d’Assisi. Contemplare la belezza di un Dio sposo, 468). E dado que Clara fala mais detalhadamente da clausura somente no final da Regra, esta aparece aqui como a possibilidade oferecida a todas e a cada uma das Irmãs de guardar e cultivar tudo o que foi dito anteriormente a propósito do seguimento de Jesus Cristo.
A esta altura, nos perguntemos: o que essa questão da clausura tem a dizer a nós, Frades Menores, chamados a “encher a terra com o Evangelho de Cristo” e que, segundo o que se diz na bela parábola da aliança de Francisco com a Senhora Pobreza, temos o mundo por claustro (cfr. Sacrum Commercium 30,25)?
Aqui, é preciso termos presente que, para Francisco, o mandato recebido da Igreja de pregar a penitência (cfr. 1Cel 33,7; LM 3,10,11; 12,12,3; LTC 49,2; 51,10; AP 36,7) não estava em contradição com a frequentação dos lugares solitários. A vida de Francisco e dos seus primeiros Irmãos era profundamente unitária porque consistia essencialmente em seguir Jesus Cristo, Aquele que veio sim para anunciar a Boa Nova aos pobres (cfr. Lc 4,18-19), mas, também se recolhia em lugares solitários para rezar (cfr. Lc 6,12; 9, 28). Por isso, mais do que alternativa, devemos falar de alternância entre pregação nas cidades e contemplação nos eremitérios por parte da primitiva Fraternidade Franciscana, o que foi muito bem evidenciado por Jacques de Vitry que, já em 1216, descreve assim o modo de vida dos Frades Menores: “De dia, entram nas cidades e vilas, dedicando-se ao trabalho pela ação; de noite voltam ao eremitério ou lugares solitários, dedicando-se à contemplação” (Crônicas, Testemunhos não franciscanos, Ia).
Trata-se de uma alternância vivida, antes de todos, pelo próprio Francisco, que intercalava as suas fadigas apostólicas com períodos muitas vezes prolongados de oração nos Eremitérios, para os quais, como sabemos, escreveu também uma Regra. Nela, entre outras coisas, Francisco prescreve que os Irmãos que quiserem viver nos Eremitérios tenham um claustro onde não seja permitido a ninguém nem entrar, nem comer (cfr. RegErm 2; 7). Portanto, a idéia de clausura como um espaço físico reservado não é totalmente estranha ao pensamento do Poverello. Ao contrário, tal como para Clara, também para ele, a total abertura diante do mistério de Deus parece solicitar a permanência, ainda que temporária, em espaços exteriores de clausura que nos possibilitem adentrar naquele espaço da nossa interioridade onde, como ele próprio nos admoesta, o servo deve conservar os segredos do seu Senhor (cfr. Adm 28,3).
Se redimensionamento significa nos medirmos sempre de novo, individual e comunitariamente, com a nossa Forma de Vida que, fundamentalmente, consiste em observar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo pobre e crucificado, então, parece-nos que tal processo, se bem realizado, nos conduzirá, necessariamente, tanto aos “amplos espaços” de anúncio do Evangelho onde o mundo de hoje nos possibilita estar, quanto aos “eremitérios ou lugares solitários” de cultivo da nossa identidade e de abertura para o mistério de Deus.

30 de outubro de 2012

Família Franciscana como um movimento da Paz







Para a família franciscana, o conceito de paz não é simplesmente um valor marginal, mas pertence ao núcleo central da sua missão. Francisco concebeu sua família como um movimento de paz, enviado para proclamar a conversão e trazer a paz.

A verdadeira paz
É preciso afastar-se de uma compreensão superficial de paz. Pois, o que Francisco deseja é “a verdadeira paz do céu e sincera caridade no Senhor” (2CtFi 1). Portanto, para ele, a paz é um dom do céu, ligado essencialmente a Jesus Cristo (cf. Ef 2), “no qual foram pacificadas todas as coisas, assim as da terra como as do céu, e reconciliadas com o Deus onipotente” (cf. Adm 15; Cant 11). A verdadeira paz é experimentada por quem vive para Deus. Por isso, Francisco, muitas vezes, pode também dizer que a paz deve ser “conservada” (Adm; Cant.). Paz é, portanto, de maneira paradoxal, uma coisa já dada e simultaneamente ainda procurada.
A expressão “paz verdadeira”, confrontada com a tradição agostiniana, que Francisco conhecia, recebe nova significação. Na sua obra, “Cidade de Deus” (19, 17), Agostinho distingue duas formas de estado e dois conteúdos de paz.

O estado temporal procura a paz na terra
Procurando a paz na terra, o Estado temporal a encontra na medida em que consegue a maior concordância possível dos cidadãos (“concórdia civium”). Os cidadãos devem unir-se e concordar, por um grande número de decisões concretas, em como satisfazer as suas exig~encias fundamentais (“compósito voluntatum”). O sentido da legislação estatal consiste, portanto, em “regulamentar o que é favorável à conservação da vida mortal” e organizar “o que é necessário para a vida” (res huic vitae necessariae). Neste sentido, a paz significa a satisfação de necessidades fundamentais dentro de uma comunidade estatal. Assim, a política econômica deve ser entendida também como uma política da paz.
A paz, portanto, segundo Agostinho, é um tema não interestatal, mas antes intra-estatal. Hoje em dia, a paz, no sentido da satisfação de necessidades fundamentais de todos, é concebível apenas quando se leva em consideração o conjunto global do nosso mundo. Desta forma, paz e justiça se entrelaçam. Paz verdadeira só pode existir, quando todos os seres humanos julgam satisfeitas as suas exigências fundamentais.
A partir desta noção de paz, franciscanos e franciscanas juntaram-se nos anos 80, para representar a missão franciscana de paz a nível da Organização das Nações Unidas (= ONU). Atualmente, eles possuem o “status” de uma organização não-governamental (= ONG) chamada “Franciscans International” (= Franciscanos na ONU), que define a sua visão nos seguintes termos:

Visão dos Franciscanos nas Nações Unidas
“Nós, Franciscanos, homens e mulheres no seguimento de São Francisco de Assis, acreditamos que a criação inteira, do menor organismo até o ser humano, vive numa interdependência mútua no planeta Terra. Estamos conscientes de que esta relação está ameaçada pela recusa em aceitar a interdependência, optando, ao contrário, pelo uso da exploração e da dominação. Nós nos engajamos a fomentar a nossa mútua dependência, para que toda a criação possa viver em harmonia. Vamos contribuir para o serviço a nossos próprios membros e aos colaboradores das Nações Unidas, assim como a todos os outros, pela formação e promoção dos seguintes temas: ecologia, preservação do meio ambiente, métodos pacificadores e a solução de conflitos.
Procuraremos colaborar, neste sentido, com os membros das Nações Unidas e de outras organizações não-governamentais. Nossos esforços refletirão valores franciscanos, relativos à preservação da natureza, à promoção da paz e à ajuda prestada aos pobres. Estes valores coincidem com aqueles que as Nações Unidas afirmaram na sua Carta fundamental e na sua Declaração dos Direitos Humanos”.

Texto da Lição 23, do Curso Básico sobre o Carismo Missionário Franciscano, da FFB.

29 de outubro de 2012

Trabalhar sem perder o espírito da Santa Oração

Aqueles irmãos aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar trabalhem fiel e devotamente, de modo que afastado o ócio que é o inimigo da alma, não extingam o espírito da santa oração e da devoção, ao qual devem servir as coisas temporais (Regra Bulada, V)

O trabalho é graça. Que belo o espetáculo dos trabalhadores em ação. O médico no santuário de seu consultório  examina resultados de ultrassonografias, verifica a pressão, mede a temperatura, ausculta os pulmões. Trabalha fielmente. Permanece no consultório ou no hospital horas a fio. Pensa, pergunta por sintomas, receita, previne… A mulher, esposa e mãe,  trabalha em casa.  Há esse trabalho de todo dia cansativo e rotineiro. Mas ele tem sentido. Ela  é, de alguma forma, a alma da casa. Gosta também de fazer bolo de amendoim e torta de maçã nos dias de festa. Aquela outra senhora pobre, bem pobre, que é gari. Varre as calçadas do centro da cidade todos os dias de madrugada.  Ajunta folhas e lixo com a vassoura numa pá e depois coloca em recipientes de lixo amarelos. Todos estes trabalham com as mãos, com o coração. Pensam na qualidade de seu labor. Cansam o corpo e a mente. Enfeitam a terra.
Os homens são os jardineiros da terra…  São formiguinhas trabalhadeiras.  Alguns, talvez, sejam displicentes cigarras que cantam o tempo todo e esquecem a dureza do labor.
O frade levanta-se. Imediatamente procura o rosto do Senhor, a presença daquele que está sempre perto. Há uma explosão de louvor  e um grito de  socorro. Tem diante dos olhos as horas  do labor. Mas tudo começa com essa sintonia com o Senhor. E vem o trabalho e quanto trabalho! Trabalho em casa. Trabalho pastoral. Trabalho de caridade.  Trabalho manual e trabalho intelectual. Trabalho sem a primeira preocupação do lucro, do guardar, do reter. Trabalho para fugir da ociosidade, da vadiagem, do ir e vir, de lá para cá e cá para lá… Simplesmente  pelo  ir e vir. Trabalho feito com disciplina e persistência. Trabalho para fugir da ociosidade que é a mãe de todos os vícios.
O frade desperta e coloca seu olhar no olhar do Senhor. Há compras a serem feitas, doentes a serem visitados, exortações a serem  dirigidas a uns e outros. Tudo feito com zelo, como se fosse a única coisa que tivesse que ser feita.  Tudo feito com a qualidade do servo inútil que faz bem e muito bem o que tem que fazer e não busca salário, nem recompensa.
Aqui e ali uma pequena pausa para um salmo ou um olhar para o Senhor. Um dia especial para o retiro, para saborear os salmos, escutar a palavra e se jogar mais explicitamente nos braços do Amado.  Nada de ativismo. Não somos funcionários de uma administração descontrolada e louca. Trabalhamos com a mente, o coração e as mãos. Há esses frades que vão pelo mundo, há esses que plantam rosas, preparam a comida, ensinam nas universidades… Sempre cuidando de não perderem o espírito da santa oração e da devoção.
“A intuição teológica de Francisco diz que o trabalho é um dom para o homem enquanto inserido na obra da criação e da redenção do mundo:  o homem com seu trabalho  imprime um selo cristão na atividade que transforma e melhora a vida  humana. O trabalho é continuação e  acabamento da criação que Deus confiou ao homem: é vocação e serviço. O trabalho é graça  na qualidade de coparticipar do “plasmar” da criação, própria de Deus (…). Todos vivemos esta graça: somos chamados para seremos mandados, para realizar uma tarefa, um trabalho, uma obra que somente nós podemos fazer e que ninguém fará senão nós. O trabalho cotidiano situa-se nesse plano e somente assim pode se tornar expressão de nossa liberdade e do nosso amor. Se não for resposta à graça que nos chama à vida, acabará sempre, inevitavelmente por cair numa busca de afirmação de nós mesmos e de nossas capacidades, acabará por ser coisa nossa, possuída como outras coisas e, no final das contas, fonte de tristeza e de  escravidão, peso insuportável de nosso eu egoísta e egocêntrico” (Francesco  de Lazzari,  Il Testamento di San Francisco. Meditazioni, Ed. Porziuncula, p. 239-240).

E quando termina o dia, o olhar do franciscano canta um pequeno hino de gratidão ao Doador de todos os dons, também do dom do trabalho.

28 de outubro de 2012

A Paz na Mística Franciscana - Assis, Chamada à Paz





Papa Bento XVI

Oito séculos atrás, à cidade de Assis seria difícil poder imaginar o papel que a Providência lhe designava, um papel que faz dela uma cidade sumamente conhecida no mundo, um autêntico «lugar da alma». Quem lhe deu este caráter foi um acontecimento que sucedeu aqui e que lhe imprimiu um sinal indelével. Refiro-me à conversão do jovem Francisco, que depois de 25 anos de vida medíocre e sonhadora, caracterizada pela busca de alegrias e êxitos mundanos, abriu-se à graça, recolheu-se interiormente e pouco e pouco reconheceu em Cristo o ideal de sua vida. Minha peregrinação de hoje a Assis quer recordar aquele acontecimento para viver seu significado e sua amplitude.
Detive-me com particular emoção na pequena igreja de São Damião, na qual Francisco escutou do Crucifixo a frase programática: «Vai, Francisco, reconstrói a minha casa» (Relato de Celano (2 Cel I, 6, 10). Era uma missão que começava com a plena conversão de seu coração para converter-se depois em fermento evangélico espalhado a mãos cheias na Igreja e na sociedade.
Em Rivotorto vi o lugar no qual, segundo a tradição, eram relegados aqueles leprosos de quem o santo se aproximou com misericórdia, começando assim sua vida de penitente, e visitei ao santuário que recorda a pobre morada de Francisco e de seus primeiros irmãos.
Estive na Basílica de Santa Clara, e na tarde de hoje, depois da visita à catedral de Assis, me deterei na Porciúncula, onde Francisco guiou, à sombra de Maria, os passos de sua fraternidade em expansão, e onde exalou seu último respiro. Ali encontrarei os jovens para que o jovem Francisco, convertido a Cristo, lhes fale ao coração.
Neste momento, desde a Basílica de São Francisco, onde repousam seus restos mortais, desejo sobretudo fazer meu seu louvor: «Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são os louvores, a glória e a honra e toda benção» («Cântico do Irmão Sol» 1). Francisco de Assis é um grande educador de nossa fé e de nosso louvor. Ao enamorar-se de Jesus Cristo, encontrou o rosto de Deus-Amor, converteu-se em seu cantor apaixonado, autêntico «cantor de Deus». À luz das Bem-aventuranças evangélicas se compreende a mansidão com que soube viver as relações com os demais, apresentando-se a todos com humildade e fazendo-se testemunha e agente de paz.
Desde esta cidade da paz quero enviar uma saudação aos expoentes das demais confissões cristãs e das demais religiões que em 1986 acolheram o convite de meu venerado predecessor a viver, aqui, na pátria de São Francisco, uma Jornada Mundial de Oração pela Paz. Considero que é meu dever lançar desde aqui um importante e sincero chamado para que cessem todos os conflitos armados que sangram a terra. Que se calem as armas e que por toda parte o ódio ceda ao amor, a ofensa ao perdão e a discórdia à união!
Sentimos espiritualmente aqui presentes todos os que choram, sofrem e morrem por causa da guerra e de suas trágicas conseqüências, em qualquer parte do mundo. Nosso pensamento se dirige em particular à Terra Santa, tão querida por São Francisco, ao Iraque, ao Líbano, a todo Oriente Médio.
As populações desses países experimentam, há já muito tempo, os horrores dos combates, do terrorismo, da violência cega, a ilusão de que a força pode resolver os conflitos, a negativa em escutar as razões do outro e fazer-lhes justiça. Só um diálogo responsável e sincero, sustentado pelo generoso apoio da comunidade internacional, poderá acabar com tanta dor e voltar a dar a vida e dignidade a pessoas, instituições e povos.
Que São Francisco, homem de paz, alcance-nos do Senhor a graça da multiplicação do número de quem aceita converter-se «em instrumentos de sua paz» através de milhares de pequenos atos da vida cotidiana. Que quem tem cargos de responsabilidade esteja animado por um amor apaixonado pela paz e por uma vontade firme de alcançá-la, escolhendo os meios adequados por alcançá-la.
Que a Virgem Santa, a quem o «pobrezinho» amou com coração terno e a que cantou com tom inspirado, ajude-nos a descobrir o segredo da paz no milagre de amor que aconteceu em seu seio com a encarnação do Filho de Deus.
Homilia proferida em Assis, no dia 17.06.2007

27 de outubro de 2012

A Mística da Paz em Francisco e Clara





Frei Nestor Inácio Schwerz, Ofm

A Concepção de Paz na Idade Média
Na visão cristã, evitam-se guerras entre cristão, mas ao mesmo tempo faz-se guerra contra os inimigos do cristianismo, os não-crentes e os hereges, que a ameaçam a existência do cristianismo. A paz interior da pessoa adquire-se pela conversão do pecado, penitência e paz com Deus. A meta dos cristãos crentes, através do afastamento do pecado, do mundo, e através das obras de misericórdia, é a paz do paraíso.
A paz nas cidades era entendida como garantia aos cidadãos da inviolabilidade do corpo, da vida e do matrimônio. A cidade garante a segurança dos bens dentro dos muros. A cidade assume o dever de construir e manter relações pacíficas entre seus cidadãos.

1. A Mística da Paz em Francisco e Clara
Francisco faz referência a uma revelação em relação à saudação da paz. “O Senhor me revelou que nós devíamos saudar da seguinte forma: ‘O Senhor te dê a paz’ ” (Test. 23). Várias fontes biográficas confirmam essa expressão e contam como os irmãos desde o início usaram em diferentes modos essa saudação (cf. LTC, 26; LP, 67; LM 3,2; EP,26). A Legenda Perusina e o Espelho da Perfeição relacionam a revelação da saudação da paz com revelação do nome de “menores”. Dizer que algo é revelado por Deus é dizer que vem carregado de força de vida, de verdade, de amor e bondade, de graça e salvação. Torna-se normativo, tem peso de responsabilidade. Tem o caráter de dom, de iniciativa divina e do que não pode ser guardado, mas deve ser comunicado, anunciado, testemunhado. A expressão “saudação” indica busca, abertura, desejo de relação. Saudar alguém é estabelecer relação com alguém. Saudar, desejando a paz do Senhor, é construir relação de paz. Este desejo terá tanto mais credibilidade quanto mais vier do coração, do testemunho de quem vem carregado da vontade divina.
Dois são, portanto, os traços que caracterizam o movimento dos irmãos que se reuniram ao redor de Francisco. Juntando esses dons com a experiência do Evangelho (envio missionário), temos um núcleo certamente bem central no carisma francisclariano. É uma fraternidade enviada em missão para dar testemunho e anunciar o Evangelho, como Irmãos Menores e arautos da paz.
Esta saudação da paz soava estranha para muitos que nunca tinham ouvido algo semelhante de outros religiosos. Alguns ficavam até mal humorados e questionavam os frades, de modo que houve quem sentisse vergonha e pedisse a Francisco a dispensa de tal saudação. Francisco, porém, animou o frade envergonhado e admoestou-o para que não se encolhesse (cf. EP,26). No tempo de Francisco haviam muitos grupos e movimentos que buscavam a pobreza e a pregação. No entanto, a novidade estava nessa saudação da paz. Diante do irmão envergonhado, Francisco esclarece que essa saudação pertence essencialmente à compreensão da nova Fraternidade. Segundo o franciscanólogo João Batista Frayer, são quatro os elementos que impregnaram a compreensão inicial dos irmãos que se juntaram a Francisco: a minoridade, a vida de penitência, a fraternidade enquanto tal e a saudação de paz. O novo estaria na saudação de paz, ao passo que os demais elementos são comuns a outros grupos da época. As fontes testemunham com clareza que se pode falar com a mesma ênfase de um movimento de paz como se costuma falar de um movimento de pobreza e penitência.
Podem-se identificar alguns traços característicos do significado da paz em Francisco: a paz interior como fundamento da paz exterior, atitude de paz como estilo de vida, contemplação, paz a ser construída, teologia e espiritualidade como base para a paz.

2. A paz interior como fundamento da paz exterior
Francisco faz em Poggio Bustone uma profunda experiência de reconciliação. Tomás de Celano conta que permaneceu algum tempo aí e refletia com amargura sobre os anos mal vividos, repetindo frequentemente: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (1Cel 26). Teve a experiência de uma indizível alegria e imensa doçura, juntamente com a certeza do perdão de todos os pecados, e sentiu a confiança de que estava em graça. Percebeu-se todo absorto em luz e finalmente todo transformado. Fez a experiência da paz interior que ele recebeu gratuitamente como dom de Deus. “É a experiência do Deus da misericórdia como pura gratuidade que possibilita a paz interior, a alegria e a iluminação em Francisco, e que constitui o fundamento de sua atitude de paz”.
Na 15ª Admoestação, Francisco faz referência à bem-aventurança relativa aos pacíficos, que serão chamados filhos de Deus (cf. Mt 5,9), acrescentando: “São verdadeiramente pacíficos os que, no meio de tudo quanto padecem neste mundo, se conservam em paz, interior e exteriormente, por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Certamente São Francisco fala a partir de sua própria experiência, de alguém profundamente reconciliado e em íntima comunhão de amor com o Senhor da Paz, o Filho de Deus, que padeceu muito no caminho da cruz, sendo vítima de extrema violência. No entanto, manteve-se em paz interior e exteriormente, fazendo da sua entrega de amor a fonte de reconciliação e pacificação, pedindo ao Pai perdão pelos que o estavam agredindo e matando e demonstrando solidariedade com todas as vítimas da violência e da injustiça. Rompeu a força da violência, da injustiça e da maldade com a força do amor, do perdão, da misericórdia. No Cântico do Irmão sol, Francisco louva ao Senhor pelos que perdoam por amor a Ele e proclama bem-aventurados os que sustentam enfermidades e tribulações em paz, pois serão coroados pelo Altíssimo.
De maneira que o teste mais exigente de uma pessoa pacífica se dá em meio a adversidades, a ofensas, a conflitos, a sofrimentos de todo tipo. É ali que se prova a capacidade de amor, de perdão, de não-violência ativa, de paciência, de misericórdia, a força da justiça e da bondade.
3. Atitudes e pressupostos para a paz na forma de vida francisclariana
A fraternidade primitiva tinha como estilo de vida certos aspectos que tem relação direta com a temática da paz. A pobreza se torna o pressuposto para a paz. Na Legenda dos Três Companheiros, o bispo de Assis dirige-se a Francisco para comentar que a vida da nova Fraternidade parece muito rigorosa e áspera pelo fato de não dispor de nada deste mundo. Francisco responde: “Senhor, se tivéssemos algumas posses, precisaríamos de armas para defender-nos. E daí nascem as disputas e os litígios, que costumam impedir de múltiplas formas o amor de Deus e do próximo. Por isso, não queremos ter coisa alguma temporal neste mundo” (LTC 35).
A pobreza, enquanto sem nada de próprio, liberta diante dos outros, liberta das posturas de defesa e ataque por causa de propriedades. Liberta do medo de perder algo, pois tudo é dom e tudo deve ser restituído em forma de partilha, de doação, de gratidão. Liberta do apego a cargos, a status, a prestigio e evita a criação de obstáculos, impedindo que os outros possam se aproximar.
A pobreza que Francisco e Clara abraçaram de todo o coração é a pobreza vivida e testemunhada por Jesus Cristo e recomendada por Ele a seus seguidores, a seus enviados e suas enviadas em missão. Jesus envia os doze e os setenta e dois discípulos (cf. Mt 10,1-5 e Lc 10,1-11) como cordeiros no meio de lobos, pede que nada levem consigo e desejem a paz, cuidem dos doentes e anunciem que o Reino de Deus está próximo. Esta pobreza deixa os/as discípulos/as livres para aproximar-se de todos, principalmente dos pobres, e os/as faz colocar toda a confiança no Deus do Reino.
O trabalho introduz os irmãos num mundo fortemente marcado por conflitos, injustiças, opressões. A questão social passa pelo mundo do trabalho. Francisco trabalhou com suas mãos e queria que todos trabalhassem com honestidade e aprendessem algum ofício. Para Francisco, o trabalho é graça e serviço, não é meio de fomentar a cobiça pela paga. É forma de dar bom exemplo evitando a ociosidade, mãe de todos os vícios. Caso falte o necessário, pode-se recorrer à mesa do Senhor: o necessário para viver é também dom do Senhor que passa pela capacidade de partilha e solidariedade na comunidade e na sociedade.
Isso tem seu significado para a paz. Em primeiro lugar, exercita a pessoa para manter a paz interior, vencendo a cobiça diante da retribuição e do fruto do trabalho. O trabalho manual era atividade mal vista e, por isso, aproximava dos mais pobres, leprosos, mendigos, fracos, doentes, dos sem propriedade e dos perdedores dos pactos de paz. Os Irmãos e as Irmãs unem-se aos pobres para recorrer à mesa do Senhor, como direito que Ele mesmo conquistou para os pobres: não como alívio de consciência, mas como expressão de justiça, de amor solidário, misericordioso. A paz na sociedade, a partir do seguimento de Jesus Cristo, passa por esse caminho da justiça e da partilha de bens, da possibilidade de uma mesa ao redor da qual todos possam sentar-se e ter o necessário para comer e viver.
Em Clara e Francisco encontramos uma conexão profunda entre contemplação e paz. No eremitério dos Carceri encontra-se uma inscrição com a frase: “Ubi Deus ibi Pax” (“Onde está Deus, aí está a paz”). O exercício da contemplação quer colocar Deus no centro da vida e dar condições para que ele, com seu Espírito e seu santo modo de operar, possa garantir a história da salvação, iniciada na Criação e que passa pela Encarnação do Filho, sua missão, morte e ressurreição, e continua se realizando pela ação do Espírito na Igreja e culminará na parusia. Contemplar é considerar essa ação divina de salvação, acolhê-la e participar dela. “A expressão central desta consideração da ação divina de salvação é precisamente uma mensagem: que a ação de Deus tem como finalidade a busca da paz e a salvação para todas as pessoas e toda a criatura. A partir daqui se entende a combinação da saudação: Pax et Bonum. A atitude de paz dos irmãos é uma conseqüência da ação histórico-salvífica de Deus que tem como finalidade uma paz que abarque tudo”.

4. Estilo de vida que testemunha e anuncia a paz
Francisco exorta seus irmãos a se guardarem de caluniar, de ocupar-se com discussões vãs, de se irritarem e se irarem contra os irmãos, e a cultivarem o amor mútuo, mostrando-o por obras (cf. Rnb 11). Clara igualmente admoesta e exorta suas irmãs, no Senhor Jesus Cristo, a se guardarem de toda soberba, vanglória, inveja, avareza, da detração e da murmuração, da dissensão e divisão. E ainda exorta a amar os que as perseguem, as repreendem e acusam, lembrando a bem-aventurança dos que sofrem perseguição por causa da justiça.
Francisco aconselha, admoesta e exorta os irmãos no Senhor Jesus Cristo que, ao irem pelo mundo, não litiguem, nem porfiem com palavras, nem façam juízo de outrem, mas sejam mansos, pacíficos, modestos, afáveis… Lembra a passagem evangélica: “Ao entrarem em qualquer casa, digam antes: Paz a esta casa!” (Rb 3,10-14). No cap. 14 da Regra não Bulada, Francisco admoesta os irmãos que vão pelo mundo para que nada levem consigo, que ao entrarem numa casa, digam primeiro: a paz esteja nesta casa, que não resistam ao malvado, mas se alguém lhes der numa face, ofereçam também a outra, se alguém roubar o manto, não lhe negue também a túnica. E no cap. 16 da mesma Regra, Francisco orienta os irmãos que vão entre os sarracenos e outros infiéis a se abster de Rixas e disputas, submetendo-se a todos por causa do Senhor e confessando serem cristãos.
Trata-se, portanto, de um estilo de vida em que se procura viver radicalmente a paz nas relações da fraternidade e na relação com as pessoas que se encontram pelo caminho, seja lá quem for. Para isso se faz necessário cultivar atitudes e virtudes, vida sem propriedade e sem apegos, capacidade de partilha, postura do ser menor e motivação a partir do evangelho, do Reino de Deus, do seguimento de Jesus Cristo, do desejar o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar. A mística da paz está enraizada neste processo de acolher e de dar espaço central ao Evangelho, ao Reinado de Deus, ao Espírito do Senhor e seu santo modo de operar.

5. Francisco como construtor da paz
As fontes biográficas e hagiográficas apresentam Francisco como construtor de relações de paz. Em 1 Cel 23, logo após a narração do episódio da escuta do evangelho da missão, Francisco aparece como pregador da penitência e da paz. Diz Celano: “Em todas as pregações, antes de propor aos ouvintes a palavra de Deus, invocava a paz dizendo: ‘O Senhor te dê a paz’. Anunciava-a sempre a homens e mulheres, aos que encontrava e aos que lhe iam ao encontro. Dessa forma, muitos que tinham desprezado a paz, como também a salvação, pela cooperação do Senhor abraçaram a paz de todo o coração, fazendo-se também eles filhos da paz, desejosos da salvação eterna”. Em seguida, Celano fala dos primeiros seguidores, entre eles Frei Bernardo, que “abraçou a missão de paz”.
Um pouco mais adiante, em 1Cel 29, aparece Francisco enviando seus primeiros irmãos, dois a dois pelas quatro partes do mundo, recomendando que anunciassem a paz e a penitência. Diante de eventuais perseguições, injúrias e calúnias, a ordem é responder com humildade, abençoar, agradecer. Está aí a perspectiva de que a paz chegue a todos os cantos do mundo. Em 1 Cel 41, os irmãos são descritos como aqueles que guardam a paz e a mansidão com todas as pessoas, sua reta intenção e seu espírito de paz lhes permitiam evitar todo escândalo. Em 2Cel 108, o biógrafo narra o episódio de Arezzo, em que Francisco soube que a cidade inteira estava afogada numa luta interna, ameaçada de iminente destruição. Mandou Frei Silvestre diante da porta da cidade para que libertasse a cidade dos demônios destruidores. “A cidade voltou à paz pouco depois e tratou de preservar com grande tranqüilidade os direitos dos cidadãos”. Francisco utiliza a fórmula bíblica de benção (Nm 6,23-27) que finaliza com a invocação de que o Senhor conceda a paz à pessoa e ao povo abençoado. Ao confiar na benção de Deus, estamos nos situando na força criadora, renovadora e salvadora dele. Quem acolhe essa força, esse dom, essa graça da paz, poderá experimentá-la em sua vida e se tornará, por sua vez, um instrumento irradiador da mesma.
Na Legenda Perusina 90, encontramos o interessante episódio dos ladrões de Borgo San Sepolcro, que vinham pedir pão no eremitério dos frades. Alguns dos frades começaram a murmurar, pois não queriam ser coniventes com as ações de violência dos ladrões, sustentando-os com esmolas. Outros se comoviam com a humildade e a necessidade dos ladrões. São Francisco dá as orientações com sábia pedagogia: pede para preparar pão, do bom, e vinho, do melhor, ir ao encontro deles onde estão, chamá-los de irmãos ladrões, estender uma toalha no chão e servi-los. Na vez seguinte, Francisco recomenda levar comida mais enriquecida e que os frades lhes falem do Senhor e peçam, pouco a pouco, mudanças em seus atos, por amor de Deus. Revela o quanto Francisco acredita na possibilidade de mudança e conversão do ser irmão e fraterno que mora em cada ser humano. Ao mesmo tempo, é realista e não esconde a dimensão de ladrão, de violência. A pedagogia da paz inclui o ir ao encontro de forma desarmada, com o mesmo amor e a mesma atitude de serviço, testemunhados pelo Mestre Jesus em sua vida e na última ceia. A mudança há de acontecer em processo lento, aos poucos. Alguns, na verdade, se tornaram irmãos menores.
Significativo é o episódio narrado por Celano (cf. 2Cel 89), no qual Francisco encontra um pobre, conhecido desde antes da conversão, e que estava cheio de ódio mortal contra o seu patrão que lhe tirara tudo. Francisco preocupa-se com ele, com sua alma em risco devido a esse ódio mortal. Pede ao pobre que perdoe o patrão por amor de Deus para libertar a alma e para haver a possibilidade de uma restituição. O pobre considera impossível o perdão sem que primeiro seja feita a devolução do que lhe foi tirado pelo patrão. Francisco reparte com ele a capa que tinha consigo e insiste no perdão em nome do Senhor Deus. O pobre, após acalmar-se e movido pelo gesto, acabou perdoando as injúrias. Francisco não exclui e não ignora a necessidade da devolução do que foi tirado. Trata-se de injustiça, de violência por parte do patrão. Francisco, no entanto, convoca o pobre a dar um salto qualitativo: agir pela dinâmica e pela força do amor, do perdão, do desapego. O ódio mortal equivale à mesma lógica da ação do patrão: é a lógica da violência, revestida de força de morte e eventual cobiça. Isso põe em risco o que o pobre tem de mais digno, sagrado, divino: a sua alma. Francisco quer quebrar esse esquema. Ele mesmo já está nesse espírito. O gesto de partilha e da solidariedade dá credibilidade e força de autoridade ao seu pedido feito ao pobre. Este acaba acolhendo a proposta de Francisco.
Outro fato de profunda significação é o encontro de Francisco com o Sultão em Damieta, Egito (cf. 1Cel 57; LP 37). Num contexto de cruzadas dos cristãos contra os sarracenos, chamados de “cães” e “depravados”, que ocupavam a Terra Santa, Francisco assume postura de respeito e procura evitar combates. Acompanhado de um confrade, foi ao encontro do sultão Malik-el-Khamil, de forma desarmada, pacífica, com motivação evangélica, com humildade, como um enviado “do Deus Altíssimo”. Inicialmente os dois sofreram algumas agressões, mas o sultão ficou impressionado e acabou tratando-os com cortesia e afeição, convidando-os a permanecerem no acampamento. Francisco encontrou no Sultão um “crente”, um irmão da fé no Deus único. O Sultão descobriu em Francisco um “homem cortês” e não um inimigo. No mesmo período (1219-1220), alguns seguidores de São Francisco vão ao Marrocos e em Marrakech, empolgados por um entusiasmo imprudente, apresentam-se como enviados dos Romanos (e, portanto, do Papa!), pregam contra Maomé e são mortos pelo próprio Sultão (cf. 1Cel 56; LM 9,6). O grande milagre de Damieta foi o encontro com respeito à diversidade, no diálogo cortês, no amor gratuito. Francisco, sem esconder sua identidade cristã, deixou-se evangelizar e voltou a Assis com profundo respeito pelos muçulmanos, inserindo na primeira regra as orientações de como ir entre os infiéis (Rnb 16). Em Marrakech aconteceu o martírio sem encontro com o outro, o diferente. Em Damieta aconteceu o encontro sem martírio. A presença franciscana na Terra Santa e em terras de muçulmanos, durante séculos até hoje, deve-se, em grande parte, a esse modo de proceder de Francisco.
Na LP 44, conta-se como o bispo de Assis excomungou o podestà. Este, por sua vez, pressionou para que ninguém fizesse comércio com o bispo sem realizasse qualquer trato legal com ele. “Nasceu entre ambos feroz contenda”. Francisco ficou triste e indignado que ninguém se mexesse para restabelecer a paz entre os dois. Envolveu seus irmãos para que convidassem bispo e podestà e muita gente para restabelecer a paz. Compôs mais uma estrofe do Cântico do Irmão Sol: “Louvado sejas tu, meu Senhor, por quem perdoa por teu amor; por quem sofre provações e doença; feliz quem as sustenta em paz, porque será por ti, Altíssimo, coroado!”. No dia da grande assembléia, os frades cantaram tal estrofe, e a paz foi restabelecida. O Cântico do Irmão Sol é a expressão de alguém totalmente reconciliado, em paz com o Criador, com todas as criaturas e com a vida toda. O bispo é símbolo de uma Igreja a caminho da conversão, que conserva marcas de pecado e contradição: “…deveria ser humilde, mas por natureza tenho um coração demasiado pronto para a cólera; tendes que me perdoar”. A Igreja do tempo de Francisco e Clara agiu com demasiada cólera, com poder, com violência em relação aos hereges, aos muçulmanos… O podestà representa o poder do comércio, do dinheiro e da lei: “ninguém podia fazer comércio com o bispo nem ter com ele qualquer trato legal”.
Um texto clássico, que revela a pedagogia da paz de Francisco, é a parábola ou alegoria do Lobo de Gubbio, contada em Fioretti 21. O lobo é o arquétipo dos inimigos do sistema e, por isso, demonizado: é grandíssimo, terrível e feroz, devorador de animais e homens, causando grande medo à população da aldeia de Gubbio. Os citadinos andavam “armados quando saíam da cidade, como se fossem para o combate”. O medo chegou a tal ponto que ninguém mais ousava sair da cidade. Entre a cidade e o lobo não há diálogo, apenas enfrentamento, medo, defesa, ataque, combate. Francisco, juntamente com seus companheiros, fazendo o sinal da cruz e pondo toda a confiança em Deus, sai da cidade e vai ao encontro do lobo. Francisco vai sem armas, sem preconceitos, sem agressividade, inspirado no modo como Jesus Cristo enfrentou os inimigos no conflito da cruz: com amor, perdão, não-violência, pedindo ao Pai que os perdoasse. É pelo amor misericordioso, revelado na Cruz, que Cristo reconcilia o mundo com o Pai, oferecendo a possibilidade da plena pacificação. Fazer o sinal da cruz diante do lobo de boca aberta é confiar na força do amor do Crucificado e assumir o mesmo modo de ser e agir.
Francisco denuncia as maldades e violências do lobo. Reconhece que tal forma de agir tem a ver com a fome. E vê nele também um irmão e a possibilidade de construir novas relações entre ele e a cidade. Consegue pacificá-lo e alcança dele a possibilidade de um pacto de paz. Da mesma forma, Francisco vai ao encontro do povo da aldeia, denunciando-lhe seus pecados e convocando-o à mudança de vida, à penitência. Realiza-se um encontro entre ambas as partes e conclui um pacto de paz, que inclui o compromisso da aldeia em garantir comida para o lobo e deste agir sem maldade e agressividade. Trata-se de um pacto de paz diferente daqueles de Assis ou da “pax romana” ou outros realizados na história em que predomina a vontade do mais forte sobre o mais fraco ou se estabelece apenas um equilíbrio de forças e interesses. Francisco torna-se um intermediário que ajuda a desarmar espíritos, superar preconceitos, construir novas relações, com senso de realismo e com mística, com novos compromissos de ambas as partes, superando a causa do conflito. Entre o lobo e a cidade de Gubbio se dá um processo de conversão, de mudança, de mentalidade, de atitudes, de visão, de coração. Francisco desdemonizou o lobo e a cidade, pois ambos tinham suas razões e seus pecados, e investiu na possibilidade de um verdadeiro encontro entre as partes, de relações fraternas, dialógicas, pacíficas. Com esta mesma lógica de fundo, a Comunidade Santo Egídio de Roma, com sua espiritualidade inspirada em São Francisco de Assis, contribuiu eficazmente na pacificação de Moçambique, de Kosowo e em outros lugares de conflitos.
Igualmente Clara, com suas irmãs, consegue evitar uma invasão dos sarracenos em Assis e conseqüente destruição da cidade. Sem medo, sem agressividade, sem nenhum recurso a estratégia de poder militar, confia no poder da oração e na força do amor de Cristo presente na eucaristia.

6. Significado da Paz no desenvolvimento da História Franciscana
Na primeira fase do movimento francisclariano, a paz é entendida a partir da história da salvação que conduz a uma nova ordem de paz. Os irmãos e as irmãs davam testemunho de penitência, de conversão ao Evangelho, de seguimento de Jesus Cristo, de acolhida e anúncio do Reino de Deus mediante sua vida e sua prática de paz. Trata-se de uma paz em fidelidade ao Evangelho, ao Reino de Deus e em abertura à ação do Espírito. A mediação de paz tem como finalidade a realização do Evangelho e do Reino de Deus e fundamenta-se na misericórdia. A fraternidade francisclariana consegue comunicar uma postura contestatória diante da situação social e política e de resposta profética à busca de paz expressa nos Acordos de Paz. Os irmãos e irmãs entendem a paz como dom de Deus entre eles e os demais seres. O fundamento da paz é Deus mesmo, como o sumo Bem do qual procede todo o bem. No contexto das Cruzadas, o movimento francisclariano investe na possibilidade de uma vida pacífica em meio aos infiéis. Faz-se uma contestação profética no interior da vida eclesial e cristã. É possível dialogar, conviver e testemunhar relações de paz em meio aos assim considerados inimigos, mantendo fidelidade à identidade cristã.
Na segunda fase, o espírito das Cruzadas domina a atitude de paz dos irmãos. Há irmãos que apóiam as Cruzadas, pregando e fazendo coleta em favor delas. Outros contribuem como estrategistas militares. Podem ser citados Guilherme de Cordelle (1235, pregador e estrategista militar), Berthold von Regensburg (1235, pregador), Fidêncio de Pádua (plano de batalha para a recuperação da Terra Santa). Paralelamente, havia irmãos teólogos que rejeitavam as Cruzadas e se comprometiam com missões de paz: Rogério Bacon, Adam Marsch, Salimbene (o qual interpreta o fracasso da última Cruzada como vontade de Deus e propõe a não violência).
Na terceira fase, os irmãos, já com distintas reformas, são valorizados como mediadores de paz entre as cidades, contribuindo para a paz pública e social, inclusive entre os Estados. Adquirem fama na defesa contra o avanço dos turcos (João de Capistrano). Prevalece a concepção de paz como ordenamento cristão da Idade Média. Os irmãos vão se acomodando às concepções sociais da época em relação à paz, o que os torna incapazes de questionar a ordem do mundo.
Quanto à Ordem Terceira, esta destacou-se como movimento pacifista, com proibição de porte de armas. Conduziu à pacificação de muitos conflitos dentro das cidades. Por outro lado, colaborou para criar tropa para o Papa que tinha representação em muitas cidades. Para defender a Igreja havia disposição para pegar em armas.
Em síntese:
1.Todas as fontes até São Boaventura descrevem unanimemente a Fraternidade francisclariana como movimento de Penitência e da Paz.
2. A paz é dom de Deus. Os irmãos compreendem a si mesmos como anunciadores da paz de origem divina. A saudação da paz é considerada de revelação divina, portanto elemento essencial na forma de vida evangélica e na pregação.
3. A paz com Deus em Cristo é a base das relações entre os seres humanos e da respectiva paz no mundo.

7. A construção de relações de Paz em nossa sociedade
Situando-nos em nosso contexto atual, a primeira tarefa a ser feita é acreditar que a paz é possível, é fazer uma leitura dos sinais dos tempos, identificando o desenvolvimento e o crescimento de uma cultura de paz. O segundo trabalho é resgatar, com mais vontade, decisão e coerência, a nossa vocação francisclariana de sermos anunciadores/as e construtores/as de paz, em fidelidade criativa a São Francisco e Santa Clara de Assis. O terceiro grande desafio é discernir e investir em ações, em projetos, em iniciativas, mantendo clara nossa identidade e abrindo-nos para parcerias e colaborações.
a) Nosso estilo de vida
Sempre de novo temos que nos convencer sobre o que está no centro de nossa vida: o seguimento de Jesus Cristo a exemplo de Francisco e Clara. Viver o Evangelho, desejar o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar, voltar-nos inteiramente ao Reino de Deus, é beber da fonte de onde emana toda a força e vitalidade para a nossa presença profética no mundo de hoje. Com Francisco e Clara queremos acolher de novo a revelação do Senhor a respeito da saudação de paz, o envio missionário pelo mundo, sendo pessoas de paz, anunciadores e construtores de paz e, com isso, proclamando a proximidade do Reino de Deus.
Para tanto, é necessário recriar sempre de novo os pressupostos de uma vida sem nada de próprio, de pobreza em suas múltiplas facetas, de contemplação, de cultivo das nossas relações internas de fraternidade sem disputas, sem iras, sem cobiça, sem murmurações. Precisamos exercitar a capacidade de partilha, de solidariedade, de perdão e reconciliação, de diálogo com o diferente, de amar aos inimigos.
As nossas motivações terão que ser, a exemplo de Francisco e Clara, claramente evangélicas, espirituais e teologais. Queremos participar da bem-aventurança proclamada em favor dos pacíficos, conservando-nos “em paz interior e exteriormente, por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Adm. 15), perdoando por amor a Ele, suportando enfermidades e tribulações e sustentando-as em paz (cf. Cânt. 10-11). É preciso acreditar na força profética que daí decorre. Não se trata de cair em fundamentalismos, em sectarismos, mas de convencer-nos de que o testemunho de vida fala mais que palavras e discursos e dá credibilidade ao anúncio, ao serviço, às propostas. É preciso crer na eficácia histórica e evangelizadora da santidade. Em tempos como o nosso, em que se praticam violências e guerras em nome de Deus, nós queremos deixar o Deus da paz ser Deus em nossas vidas, em nossas Fraternidades, em nossa presença e serviço na Igreja e no mundo. Isto implica em desejar sempre de novo, acima de tudo, o Espírito do Senhor e sua santa operação para que nos torne pessoas e fraternidades pacíficas e nos faça instrumentos, agentes, construtores de paz.
b) A construção da paz em nosso cotidiano
Todos os nossos serviços e nossas presenças podem ser lugares onde podemos e devemos construir relações de paz e educar para a paz. Nossa ação educativa e pedagógica nas escolas, nas diferentes instituições, na pastoral, nos movimentos é desafiada a por em ato um processo eficaz de construção de relações de paz. A paz não cai pronta, precisa ser educada cotidianamente. A enorme Família Franciscana e Clariana certamente têm uma responsabilidade e uma oportunidade preciosa neste tempo no empenho em educar para a não-violência ativa, para os valores do respeito, da tolerância, da solidariedade. Albert Einstein teria dito: “O mundo seria diferente, se finalmente fossem feitos tantos investimento em favor da pedagogia e da busca pela paz e não-violência, quanto foram feitos para preparar e conduzir à guerra”.
O cultivo de atitudes, de comportamentos e posturas de paz é processo lento, demorado, permanente. Podemos ser instrumentos de reconciliação entre as pessoas, na família, na comunidade. Podemos ajudar as pessoas a controlar seus impulsos de agressividade e vingança. Podemos elevar os conflitos sociais ao nível da organização popular, do debate político, da negociação, da luta pelos direitos fundamentais com processos firmes e a não-violência ativa, com formação de consciência crítica, sempre na perspectiva de uma cultura de paz que implique em justiça e solidariedade.
Pastoralmente, precisamos acreditar na força e na eficácia do trabalho religioso, no que se refere a possibilitar a experiência de Deus e a vida comunitária; a oferecer um sentido para a vida e um quadro de valores; a educar para atitudes pessoais e comunitárias de paz e solidariedade; a motivar para engajamentos na sociedade; a realizar sinais significativos da presença do Reino de Deus e da Paz. Somos desafiados a propor a conversão, a mudança de vida, de mentalidade, de atitudes e sermos criativos no propor e oferecer o sacramento da reconciliação como um meio eficaz de reconciliação e perdão.
c) A construção da paz como serviço específico
A construção da paz passa também por exigências específicas. Além de atitudes, de todo um modo de ser e de viver, ela implica em projetos concretos, em ações, em iniciativas, em gestos. É necessário investir em formas organizadas, em capacitação teórica e prática, em pedagogia e metodologia, planejamento, investimento em pessoas e recursos, tempo e subsídios.
A Família Franciscana no Brasil – FFB – conta com o Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia (SINFRAJUPE). Cabe apoiar e investir nesse Serviço, que já tem uma boa caminhada, que possui uma rede de articulações, que acumulou experiências e saberes. Mas não se trata de delegar simplesmente a responsabilidade do compromisso com a Justiça, Paz e Ecologia a um certo grupo de irmãos e irmãs. Se quisermos levar a sério nossa vocação e missão em favor da paz, é necessário um envolvimento de fraternidade no discernimento, na opção e realização de engajamentos específicos na construção da paz.
Temos muitos irmãos e irmãs, pelo mundo afora, presentes em situações e realidade de conflito: em contextos de pluralidade étnica e religiosa, em projetos missionários, nas periferias de cidades, em movimentos sociais, em organizações populares, em projetos específicos junto a pessoas e grupos que são vítimas de violência (mulheres, população de rua, crianças e adolescentes pobres, drogados, portadores de HIV, grupos de risco, índios, negros, pessoas com deficiências…). Um dos desafios é a contínua qualificação para uma presença franciscana, evangélica, profética, e que essa presença e esse serviço efetivamente contribuam ao resgate e à promoção da dignidade humana, ao processo de inclusão social, à criação de uma cultura de paz com justiça e solidariedade, diálogo e reconciliação.
Outro desafio é ampliar as possibilidades de parcerias em vista de uma maior eficácia, para somar forças e recursos, para partilhar conhecimentos e experiências. O leque que se abre nesse sentido é enorme: projetos de assistência e promoção humana, empenho no mutirão da superação da fome e da miséria, campanhas contra guerra e armamentos… Temos tanto a aprender e a contribuir com nossa espiritualidade, nossos valores, nossa concepção de pessoa, de vida e de mundo. [...]
O ex-Ministro Geral da OFM, Frei Giacomo Bini, em seu relatório ao Capítulo Geral de 2003, declarou: “Cabe-nos em nossa vocação de minoridade fazer sério esforço pela paz fundada na justiça e no perdão: estes valores estão no coração do Evangelho que professamos [...] Parece que ainda não conseguimos encontrar o caminho para testemunhar esta reconciliação universal”. E questiona: “O mundo em que vivemos, com suas violências e divisões crescentes, estimula-nos e provoca-nos à ação? O que fazemos pessoalmente e em fraternidade? A vocação e a missão dos franciscanos é estarem ativamente presentes, em fraternidade e minoridade, nos lugares de fronteira, onde há divisões, violência e sofrimentos, para levar um testemunho de amor e uma palavra de reconciliação e de paz”.

Conclusão
Um discernimento que sempre precisamos fazer é sobre a fidelidade criativa ao nosso carisma originário, à nossa vocação e à missão em nosso mundo de hoje. Diante do leque enorme de presenças e serviços que assumimos, podemos perguntar-nos: têm todos os serviços o mesmo valor do ponto de vista da fidelidade ao nosso carisma e do ponto de vista da missão evangelizadora e profética hoje? Onde deveríamos concentrar mais energias, mas pessoas, mais recursos, mais atenção, mais qualificação? O problema não está na diminuição do número de irmãos e irmãs, no aumento da média de idade, na redução de forças ativas para nossas instituições. A questão é estabelecer prioridades a partir da clareza de nossa vocação e missão e da leitura evangélica dos tempos atuais.
Que o Espírito do Senhor nos ajude a desejar sinceramente ser pessoas e Fraternidades de paz, anunciando-a e construindo relações de paz entre nós, na Igreja, na sociedade e no conjunto das criaturas todas.

Texto publicado na “Revista Franciscana”, FFB, 2004, volume IV
Frei Nestor Inácio Schwerz é franciscano da Província São Francisco de Assis, de Porto Alegre (RS), e atualmente é o Definidor Geral para a América Latina.

26 de outubro de 2012

A Paz na Mística Franciscana - Evangelização e Paz

Frei Celso Márcio Teixeira, OFM

Introdução
Um dos mais profundos anseios do coração humano é o anseio pela paz. Fundamentalmente, todas as utopias da humanidade – elaboradas ou não – se resumem no desejo de paz. A utopia que se chama cristianismo também é fundamentalmente um desejo de paz. E quanto mais distantes estivermos dela, mais sonharemos com ela; quanto mais violento for o mundo que nos rodeia, mais a desejaremos. Este desejo é como uma minúscula brasa que fica escondida sob um montão de cinzas, esperando que alguém venha soprá-la para que ela se manifeste em todo o seu brilho e calor. Perder a esperança e não crer nesta utopia significa apagar em si o sonho que dá sentido à vida; e apagar o sonho da vida é extinguir-se a si mesmo. Por isso, aqui vale o conselho do profeta Isaías: Não apagar o pavio que ainda fumega (cf. Is 42,3).
Ao longo da história, vários foram os profetas da paz que tentaram manter acesa, ainda que sob uma montanha de cinzas, a brasa da paz. Somente para lembrar os nomes de alguns: Isaías, o profeta da paz, elaborou a sua utopia, na qual ele via o lobo comer com o cordeiro (cf. Is 11,6-9); Jesus Cristo anunciou um reino que resumia todas as utopias do ser humano, “reino da verdade e da vida, reino da justiça, do amor e da paz”; Francisco de Assis, trovador e profeta, símbolo de homem reconciliado com todos os seres, desde a mais brilhante estrela do firmamento ao minúsculo verme que se arrasta pela terra; Mahatma Ghandi, o homem que pregou a revolução pela via da não violência.
O mundo atual, marcado pela cultura da morte, ainda sonha com a paz. Isto significa que o pavio ainda fumega (cf. Is 42,3). A sociedade movimenta-se de maneira pluriforme em busca da realização dessa utopia. Este contexto nos parece campo fértil para que franciscanos e franciscanas desenvolvam toda uma evangelização voltada para a paz. A inserção nos movimentos de paz será um dos lugares preferenciais de presença franciscana. Aí temos a tarefa de dar uma contribuição tipicamente franciscana.
Esta contribuição, a nosso ver, não pode limitar-se ao nível panfletário. Temos uma contribuição mais substancial a oferecer. Ela abrange dois pólos: Um em nível de reflexão, outro em nível de ação. Em nível de reflexão, temos toda uma espiritualidade que serve de fundamentação para nossa presença nos movimentos de paz; temos toda uma teologia a oferecer aos nossos interlocutores e aliados. Em nível de ação, devemos ter a coragem de abandonar nossas “pastorais” rotineiras e partir para uma presença mais ágil e significativa no meio dos pobres, dos excluídos, primeiras vítimas silenciosas de sistemas causadores de violência, de exclusão e de morte.
Portanto, é importante que tenhamos consciência de que nossa contribuição franciscana deve ser qualificada. Distribuir panfletos? Todo mundo pode fazer isto. Uma reflexão franciscana e uma presença franciscana de qualidade, ao contrário, é tarefa que cabe unicamente a nós.

1. Uma reflexão preliminar: A evangelização como quadro de referência do anúncio franciscano da paz
Normalmente, quando se escreve ou se fala sobre o tema da paz em Francisco de Assis, vai-se entrando imediatamente no tema, praticamente sem fazer alusão a um quadro mais amplo de referência. Começa-se a tratar da paz que Francisco pregava, como que desvinculando-a do conjunto ou amputando-a do corpo todo da atividade e da proposta de vida de Francisco. Por isso, o anúncio da paz corre o risco de ser compreendido como um apêndice, como algo que Francisco fazia ao lado de sua atividade evangelizadora, ou apenas de vez em quando, ou como um tema ao lado de outros. Está aí, a nosso ver, uma compreensão parcial (portanto, distorcida) do que Francisco entendia pelo anúncio da paz. Realmente, o fato de desvincular a proclamação da paz de toda a atividade (e espiritualidade) de Francisco não deixa de empobrecer o próprio conteúdo de sua concepção sobre a paz.
Segundo nosso modo de ver, o quadro de referência para o anúncio (e compreensão) da paz está na evangelização. Evidentemente, o termo “evangelização” é recente na teologia. Praticamente, só ganhou impulso e divulgação e relevância a partir da encíclica Evangelii Nuntiandi, do Papa Paulo VI. Mas a prática da evangelização é tão antiga como o próprio evangelho. Por isso, podemos atribuir uma terminologia nova a uma prática antiga (no caso, da Idade Média), conscientes de não estarmos traindo a verdade dos fatos.
A evangelização é o ponto chave para compreendermos a vocação de Francisco e de seus companheiros (por conseguinte, a vocação legada como herança a toda Ordem). Uma leitura mais comum, inclusive dos biógrafos da primeira hora, tem centralizado a vocação de Francisco na escolha da pobreza. Esta seria para muitos a ótica sob a qual deve ser contemplado todo o desenvolver da vocação franciscana. Nosso modo de considerar prefere ver na evangelização o pólo catalisador de todo o movimento franciscano desde as origens. De fato, após alguns anos de busca de uma resposta, vivendo primeiramente como eremita e depois como reconstrutor de capelas, Francisco sente-se tocado pelas palavras do Evangelho (1) que teria ouvido durante uma missa na Porciúncula. Tratava-se do texto do envio dos discipulos (Lc 10,1-11 ou Mt 10,1.5-15; em Mt trata-se do envio dos doze) para anunciar o Reino.
Ora, este texto do Evangelho, depois de descrever o envio dos discípulos na condição de pessoas despojadas (nada leveis pelo caminho), contém três elementos nucleares: a) a saudação da paz; b) a cura dos doentes; c) o anúncio do reino (esta ordem em Mt 10 está exatamente ao inverso).
Uma interpretação dicotômica poderia ver nestes elementos três fases da tarefa de evangelizar, a saber, a saudação da paz, como sendo uma introdução, a cura dos doentes, como uma preparação para a evangelização, e o anúncio do Reino, que seria a tarefa evangelizadora propriamente dita. A nosso ver, porém, estes três elementos constituem a própria evangelização. O conjunto todo é anúncio do reino. O reino de Deus só pode ser reino de paz, caso contrário não será reino de Deus. Por isso, a própria saudação de paz já é anúncio do reino, como também a cura dos doentes é anúncio de um reino sem males (cf Lc 7,18-23).
O primeiro biógrafo, mesmo com a tentação de interpretar a vocação de Francisco na ótica da pobreza (de fato, descreve primeiramente o despojamento de Francisco que troca o hábito de eremita por outro muito pobre e desprezível), passa em seguida a descrever a tarefa evangelizadora de Francisco: “A partir de então, com grande fervor de espírito e alegria da alma, começou a pregar a todos a penitência, edificando os ouvintes com palavras simples, mas com o coração nobre … Em toda pregação sua, antes de propor a palavra de Deus aos que estavam reunidos, invocava a paz, dizendo: ‘O Senhor vos dê a paz’ (cf 2Ts 3,16; Lc 10, 4b). Anunciava-a sempre mui devotamente a homens e mulheres, aos que ele encontrava e aos que lhe vinham ao encontro. Por esta razão, muitos que odiavam a paz, com a cooperação do Senhor, abraçaram de todo coração a salvação juntamente com a paz, tornando-se também eles filhos da paz e desejosos da salvação eterna”(2).
A saudação da paz e a proposição da palavra de Deus, descritas por Tomás de Celano, remetem-nos imediatamente ao texto de Lc 10. Só falta o elemento da cura dos doentes. Esta constatação nos permite concluir que para Francisco a saudação e o anúncio da paz constituíam a própria evangelização, exatamente como ouvira do Evangelho. Na prática de Francisco, a evangelização inclui necessariamente o anúncio da paz. Em outras palavras: não se evangeliza, se não se anuncia a paz.
O Anônimo Perusino não narra o episódio da escuta do texto de Lc 10 na Porciúncula. Mas não desconhece que este texto fazia parte da origem da vocação de Francisco, pois ele coloca, logo após o despojamento de Francisco diante de Pedro Bernardone, a ressonância do texto do envio: “O Senhor conduziu-o pelo caminho reto e estreito, porque ele não quis possuir nem ouro nem prata, nem dinheiro, nem qualquer outra coisa (cf. Mt 10,9), mas seguiu o seu Senhor na humildade, na pobreza e na simplicidade de seu coração. Andando de pés descalços, vestia-se com um hábito desprezível, cingia-se com um cinto também muito barato” (3).
Embora o despojamento de ouro e prata, etc., fizesse parte de um texto dinâmico de envio a evangelizar, o AP prefere lê-lo na ótica da pobreza, desvinculando a pobreza do quadro da evangelização.

2. Evolução do conceito: da prática da pregação a um conceito mais amplo de evangelização
No entusiasmo de quem descobriu o sentido de sua vida, Francisco começa a pregar. Evangelizar significa inicialmente para Francisco dirigir-se ao povo, anunciar a palavra de Deus, lembrando sempre que o reino que ele quer anunciar é reino de paz. Por isso, insiste na saudação da paz. Como a saudação da paz fazia parte do envio dos discípulos, assim também ela faz parte de seu próprio envio.
Evangelização é, portanto, inicialmente compreendida como uma atividade ad extra, um dirigir-se ao povo. Dentro desta compreensão, podemos interpretar os dois ou três envios ou missões dos primeiros companheiros, antes mesmo da aprovação da regra:
a) Quando eles eram quatro: Francisco e Egídio foram à Marca de Ancona, os outros dois ficaram (4). Francisco não pregava ao povo, mas apenas exortava os homens e mulheres a fazerem penitências (5).
b) Quando eram seis: O envio é proposto como sua vocação: “Consideremos, irmãos caríssimos, a nossa vocação, porque Deus misericordiosamente nos chamou não somente para a nossa utilidade, mas também para a utilidade e salvação de muitos” (6). Eles anunciavam a paz em suas pregações(7).
c) Quando eram oito: No envio constava explicitamente o anúncio da paz: “Ide, caríssimos, dois a dois pelas diversas partes do mundo, anunciando aos homens a paz!” (8).
Um conceito de evangelização, que inicialmente se identificava com a atividade ad extra de pregar o reino, a penitência e a paz, começa muito cedo a alargar-se em compreensão. O anúncio exigia uma coerência de vida por parte dos evangelizadores. Quem prega o Evangelho é convocado à coerência, isto é, a colocar em prática, a fazer a experiência, a viver os valores que proclama com a voz.
É digno de nota que, após as primeiras missões evangelizadoras, quando se tratava de colocar por escrito numa regra essa vocação dada pelo Senhor, a vocação dos frades menores não foi expressa em termos de pregação ou de anúncio do Evangelho ou do reino, mas em termos de vida, de viver. Deste modo, já na primitiva regra apresentada a Inocêncio III para a aprovação, a vocação dos frades menores vem assim explicitada: Esta é a vida do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que Frei Francisco pediu ao senhor papa … (9). Evangelizar é pregar e proclamar, mas é também fundamentalmente viver os valores evangélicos proclamados.
Assim, é dentro da compreensão da coerência entre a proclamação e a vida que se entende a exortação de Francisco, quando enviava os frades em missão evangelizadora: “Assim como proclamais a paz com a boca, assim em maior medida tenhais em vossos corações a paz, para que ninguém por meio de vós seja provocado à ira e ao escândalo; mas todos, por meio de vossa paz e mansidão, sejam novamente chamados à paz e à benignidade” (10).
Detalhes preciosos da Regra mostram a compreensão ampla do conceito de evangelização. Ao tratar do modo como devem os irmãos ir pelo mundo, Francisco não ensina o que devem pregar, mas o modo de comportar-se que convém ao evangelizador: “Aconselho, todavia, admoesto e exorto a meus irmãos no Senhor Jesus Cristo que, quando vão pelo mundo, não discutam nem alterquem com palavras (cf. Tm 2,14) nem julguem os outros; mas sejam mansos, pacíficos e modestos, brandos e humildes, falando a todos honestamente, como convém. E não devem andar a cavalo, a não ser que sejam obrigados por manifesta necessidade ou por enfermidade. Em qualquer casa em que entrarem, digam primeiramente: Paz a esta casa (cf. Lc 10,5). E, segundo o santo Evangelho, seja-lhes permitido comer de todos os alimentos que forem colocados diante deles (cf. Lc 10,8)” (11).
Não nos passe despercebida a ressonância do texto do envio (Lc 10) que está sempre como pano de fundo da vocação dos frades menores. Presente e indissociável sempre a proclamação da paz, porque não existe uma evangelização sem a proposta de paz. Aliás, todas as atitudes que Francisco propõe são a própria proclamação da paz com o modo de viver. Em outras palavras, a vida dos irmãos devia ser o anúncio vivo do Evangelho da paz: em formulação negativa: não discutam nem alterquem nem julguem os outros; em formulação positiva: sejam mansos, pacíficos e modestos, brandos e humildes, falando a todos honestamente como convém … e digam “paz a esta casa”.
No confronto com as autoridades eclesiásticas constituídas, os novos evangelizadores (os que proclamam o Evangelho com a palavra e com a vida) só serão verdadeiros evangelizadores, se mantiverem a paz no coração:
“E embora quisesse que [seus] filhos vivessem a paz com todos os homens (cf. Rm 12,18) e se apresentassem a todos como pequeninos, no entanto, ensinou-os pela palavra e mostrou pelo exemplo a serem humildes, mormente com relação aos clérigos. Dizia, pois: ‘Fomos enviados em auxílio (cf. Sl 69,2; Dn 10,13) dos clérigos para a salvação das almas (cf. 1 Pd 1,9) … Sabei, irmãos – disse -, que a Deus é muito agradável o fruto das almas (cf. Sb 3,13) e que isto se pode conseguir melhor com a paz do que com a discórdia dos clérigos … Se fordes filhos da paz (cf. Lc 10,6), havereis de lucrar o clero e o povo para o Senhor, o que o Senhor julga mais agradável do que lucrar só o povo, [depois de ter] escandalizado o c1ero” (12).
No fundo desta exortação está a seguinte compreensão: a evangelização (pela palavra ou pela vida) somente será eficaz, se for, ao mesmo tempo, anúncio de paz. Uma evangelização desvinculada da paz não é evangelização. A verdadeira evangelização é necessariamente proposta de paz.
Igualmente precioso é o modo de os irmãos irem para o meio dos sarracenos e de outros que não têm a fé cristã. Francisco prescreve dois modos de evangelização: a evangelização pelo modo de vida (a própria vida é o anúncio) e a evangelização pelo anúncio explícito (pela palavra). Novamente as exortações de Francisco para o primeiro modo de evangelização são propostas de paz (e toda proposta de paz é proposta do reino): “não litiguem nem porfiem, mas sejam submissos a toda criatura humana por causa de Deus e confessem que são cristãos” (13).
O fato de confessarem que são cristãos é, freqüentes vezes, interpretado como coragem de apresentar-se ao martírio, pois o fato de confessar-se cristão entre os sarracenos, devido à inimizade existente entre cristãos e sarracenos, era interpretado como uma oferta do pescoço à espada (14). Não vemos, porém, esta interpretação como o sentido primeiro. O confessar-se cristão seria, segundo nossa maneira de interpretar, uma forma de dizer: “Estes valores que estamos vivendo são simplesmente o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Portanto, no confessar-se cristão, está contido fundamentalmente um modo de evangelizar. Apenas secundariamente, poderia ter o sentido de disposição ao martírio.
Percebe-se, então, que o conceito de evangelização, inicialmente interpretado por pregação, evolui para uma compreensão mais abrangente que envolve não apenas o anúncio pela palavra (pregação), mas também a proclamação pelo modo evangélico de viver. A paz, por identificar-se com a própria evangelização, também não é somente algo que pregamos ou propomos aos outros, mas antes um valor evangélico que coerentemente procuramos cultivar no coração.

3. Tratados de paz: formas concretas de evangelização (força política da evangelização)
A crônica de um frade dominicano chamado Tomás de Spalato traz, entre seus relatos, um episódio muito significativo para compreendermos a evangelização de Francisco. Corria o ano de 1222. Tomás de Spalato, estudante que morava no Studium em Bolonha, teve oportunidade de ouvir uma pregação de Francisco. Limitemo-nos a citar apenas o que no momento nos interessa. Assim ele escreveu:
“Na verdade, todo o tema de suas palavras visava a extinguir as inimizades e a reformar os pactos de paz. O seu hábito era sujo, a pessoa desprezível, e a face sem beleza; mas Deus conferiu tanta eficácia às suas palavras que muitas famílias dos nobres, entre as quais o furor desumano de antigas inimizades eclodira em muito derramamento de sangue, foram levadas de novo ao pacto de paz” (15).
A primeira coisa que se deduz deste breve relato é que a preocupação de Francisco pela paz era uma constante em sua vida. O anúncio da paz não era algo dos inícios de sua vocação, mas acompanhava a evangelização de Francisco ao longo de sua história. E nem podia ser diferente, pois anunciar a paz para ele era anunciar o reino e vice-versa. De novo, convém salientar que a paz não é apenas um tema entre outros da evangelização, mas é a própria evangelização. E a evangelização só é verdadeira evangelização, se anunciar e visar à construção da paz.
Outro elemento digno de nota é que as palavras de Francisco visavam “extinguir as inimizades e reformar os pactos de paz”. Tratava-se de um problema muito concreto, o das inimizades e guerras entre famílias. Evangelizar não é abstração, mas é confrontar-se com problemas concretos, é inserir-se em contextos históricos e aí apresentar o Evangelho como opção ou alternativa para situações que parecem insolúveis. Nesse confronto e inserção, evangelização significa deixar que o Evangelho ilumine as pessoas e coisas envolvidas. O Evangelho é que ilumina tudo e convoca todos à conversão (e à paz).
Após a pregação de Francisco, “muitas famílias foram levadas de novo ao pacto de paz”. Deu-se, portanto, uma transformação na vida da cidade. Embora a evangelização não se identifique com nenhuma política partidária, no entanto, ela é profundamente política, tem forte incidência na vida e na organização da sociedade, pois ela apresenta aos cidadãos os valores fundamentais da pessoa humana, valores que muitas vezes estão encobertos, como pequena brasa sob uma montanha de cinzas. Evangelizar é explicitar os valores humanos escondidos no fundo dos corações, é fazer brilhar os pequenos focos do Evangelho presentes, mas não percebidos, no íntimo de cada um em forma de desejo, de anseio, de sonho, de utopia, de esperança.
As Fontes Franciscanas apresentam outros episódios em que Francisco, exercendo sua tarefa de evangelizador, provocava os habitantes das cidades ao pacto de paz. Além de Bolonha, são conhecidos os casos de Arezzo (16) e de Sena (17). Mas parece que os pactos entre famílias eram constantes. A Legenda dos Três Companheiros apresenta-os como um fenômeno generalizado:
“Portanto, o homem de Deus, Francisco, subitamente transbordante do espírito dos profetas [ ... ], segundo a palavra profética, anunciava a paz, pregava a salvação (cf. Is 52,7), e muitos, que por viverem na discórdia estavam distantes da salvação de Cristo, pelas salutares admoestações dele se coligavam [em aliança de paz]” (18).
A evangelização (o Evangelho) tem, portanto, força política para transformar a realidade, mesmo que ela não se identifique com a política partidária. Fique bem claro que, ao fazermos esta afirmação não queremos despolitizá-la; pelo contrário, queremos apontar exatamente onde reside sua força política transformadora.

4. A visita ao Sultão: em vez de proselitismo, uma proposta de paz (tolerância religiosa, tolerância com o diferente, tolerância com outras culturas) 
Em vários textos, desde a Primeira Vida escrita por Tomás de Celano (1 Cel) até Fioretti, encontramos o relato da ida de Francisco ao Sultão dos sarracenos (l9). Além desses textos, existe documentação em outros textos, que não estão incluídos nas nossas Fontes Franciscanas e Clarianas: Bernardo Tesoureiro, História de Eráclio, Crônica da Dinamarca. Portanto, parece fora de dúvida que Francisco tenha ido, de fato, fazer uma visita ao Sultão. Além de algumas diferenças de detalhes nas diversas redações, o enfoque também varia. Por exemplo, na redação de Atos e de Fioretti, a introdução de uma mulher que tentava seduzir Francisco destaca a castidade heróica de Francisco. A recusa de presentes é uma constante. Todos afirmam também que Francisco se dirigiu ao Sultão para convertê-lo à fé cristã. Por isso, no final das narrativas permanece um sabor amargo de fracasso, um certo desapontamento. Alguns tentam disfarçar esse fracasso, acrescentando que o Sultão pediu que Francisco rezasse por ele para que ele abraçasse a verdadeira fé. Outros acrescentam até a conversão milagrosa do sultão por intercessão de Francisco (20).
Preferimos uma outra leitura dos fatos. Pelo que deduzimos da evangelização desenvolvida por Francisco, que levava o povo em guerra a pactos de paz, a intenção dele ao visitar o Sultão deve ter tido essa finalidade concreta: Uma proposta de paz que ele fazia em nome não dos reis do Ocidente Cristão, nem mesmo do papa, mas em nome do Evangelho. Evangelização, sem dúvida, mas de maneira muito concreta, na forma de uma proposta de paz. Sem intenções de proselitismo. Sem a intenção primeira do martírio, embora Francisco tivesse a coragem de enfrentar também o martírio.
De sua parte, os biógrafos contemporâneos de Francisco não podiam ter outra ótica, a não ser a do proselitismo e a do martírio. Converter o Sultão, converter os muçulmanos ao cristianismo, ou melhor, ao regime de cristandade, teria sido a grande meta de Francisco. Quanto ao desejo do martírio, criou-se uma mentalidade entre os cristãos de que o sarraceno, além de ser o inimigo da fé, era também o ser mais cruel sobre a face da terra, pronto a degolar o cristão pelo simples fato de ser cristão. Na mente do povo cristão criou-se uma verdadeira neurose de guerra contra os sarracenos. Matar o sarraceno era ser herói de Cristo; morrer nas mãos do sarraceno era ser martirizado por Cristo. Toda a Europa respirava este ar.
Mas as circunstâncias levam-nos a deduzir que a meta concreta que Francisco queria atingir era um tratado de paz, como já havia feito em algumas cidades e entre algumas facções por onde ele passava. O que deve ter causado grande admiração em Francisco era o fato de toda a cristandade estar envolvida numa guerra. E ninguém, nem da Igreja nem dos governos da Europa, propunha uma alternativa. Parafraseando o que Francisco disse a respeito da inimizade entre o bispo e o podestà de Assis, ele deve ter pensado a respeito da inimizade entre cristãos e sarracenos: “É grande vergonha para nós, servos de Deus, que ninguém se intrometa para tratar da paz e concórdia com eles” (21).
A atitude de não proselitismo comporta acima de tudo tolerância para com outras religiões. No fundo, é aceitar que o outro seja diferente, pense diferentemente e possa agir diferentemente. Ser diferente não é defeito. O fato de ser diferente não coloca ninguém sobre ou sob os outros. Isto é a base para qualquer diálogo, ecumênico, inter-religioso, intercultural. O diálogo cria laços.
Consta em todos os relatos que o Sultão e Francisco estreitaram entre si laços de estima, respeito e amizade.

5. A saudação da paz (fraternidade) – construir a paz a partir das pequenas coisas
No Testamento, Francisco faz alusão à saudação da paz como algo revelado por Deus. Note-se que a saudação da paz já consta no texto do envio. A Compilação de Assis narra um episódio interessante:
” … nos primórdios da religião, quando o bem-aventurado Francisco andava com um irmão que foi um dos doze primeiros irmãos, esse irmão saudava os homens e as mulheres pelo caminho e aqueles que estavam nos campos, dizendo: ‘O Senhor vos dê a paz’ (cf. Nm 6,26; 2Ts 3,16). E porque os homens ainda não haviam ouvido tal tipo de saudação ser dita por religioso algum, disto muito se admiravam. Mais ainda, alguns homens, quase com indignação, lhes diziam: ‘o que lhe significa esta saudação (cf. Lc 1,29)?’. De modo que aquele irmão começou a envergonhar-se muito disso. Por isso, disse ao bem-aventurado Francisco: ‘Deixa-me, irmão, dizer outra saudação’. Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: ‘Deixa-os falarem, porque não percebem o que vem de Deus (cf. 1 Cor 2,14). Mas não te envergonhes disso, porque te digo, irmão, que os nobres e príncipes deste mundo ainda mostrarão reverência a ti e aos outros irmãos por este gênero de saudação” (22).
Francisco está convencido de que a saudação da paz ainda vai fazer com que os príncipes e nobres deste mundo fiquem admirados. Ele crê na grandeza e eficácia desta saudação. No início, aquele irmão não entendeu bem o sentido dela, sentiu vergonha de usá-la, pediu para trocar a saudação. Francisco insistiu nela.
E nós nos perguntamos: “Por que essa insistência de Francisco na pequena saudação?”.
Embora Francisco não tivesse tido os conhecimentos da Psicologia moderna desenvolvida a partir de Freud com a “descoberta” do inconsciente, ele mostra uma intuição psicológica muito profunda. Ele conhece o valor formativo da repetição. A repetição age no inconsciente. A repetição de uma palavra ou gesto acaba criando o chamado hábito que, por sua vez, vai como que fornecendo seiva para a vida espiritual. Isto acaba criando uma mentalidade, um modo de pensar, um modo de agir, um modo de ser. Talvez Francisco não tivesse conhecido o provérbio como nós o formulamos hoje: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Mas o dinamismo é o mesmo. É a força das coisas pequenas que acabam criando algo grandioso. Usando positivamente a comparação da gota de água, é como as gotas da chuva que nas cavernas formam o estalagmite e o estalactite, criando verdadeiras obras de arte, não de repente num piscar de olhos, mas ao longo dos dias, dos anos e dos séculos. Desse modo, a saudação é capaz de estabelecer relações de amizade, de fraternidade. Começamos a pensar como amigos daqueles que nos desejam paz. Sentimo-nos irmãos deles. E, se nos sentimos amigos e irmãos, a paz já começa a ser construída.
Talvez um erro nosso, de homens modernos, seja o de não acreditarmos na força das coisas pequenas. Precisamos logo de coisas grandiosas, de preferência de coisas ou de eventos que resultem em sucesso internacional. O dia-a-dia, o tijolo por tijolo (como na construção das grandes catedrais) não nos atrai. Somos mais atraídos a fazer belíssimos discursos sobre a paz em nível nacional e internacional, mas não queremos aceitar que a vivência quotidiana da fraternidade é como a areia que entra na argamassa da construção da paz. Bastaria para nós, franciscanos e franciscanas, viver a fraternidade, para sermos construtores da paz. A fraternidade é profundamente evangelizadora. E se é evangelizadora, é proposta de paz para os outros, é convite para que todos vivam em paz, como irmãos. Isso é o reino.
Mas o homem moderno não acredita que viver em fraternidade possa ter força. O moderno precisa de atividades, preferentemente de atividades ad extra. Ele pressupõe que, quando fala de fraternidade ou de paz, ela já as possui, por isso trata de levá-las aos outros que não as possuem. Aí entra Francisco com sua pedagogia: “Assim como proc1amais a paz com a boca, assim em maior medida a tenhais nos vossos corações”.
Não é por acaso que Francisco insista e dê preferência à evangelização pelo modo de vida. E Francisco era o próprio Evangelho vivo.

6. A paz entre o bispo e o podestà (dois poderes: minoridade, respeito para com o espaço do outro)
É muito conhecida a contenda entre o bispo e o podestà de Assis. As razões desta contenda não nos são dadas pelas fontes. Sabe-se, no entanto, que se criou uma situação de divisão na cidade: de um lado, os que apoiavam o bispo; de outro lado, os que apoiavam o podestà. Uma miniatura da situação da Itália dividida entre guelfos (partidários do papa) e gibelinos (partidários do imperador alemão). E cada um dos oponentes usou suas próprias armas:
“… o que então era bispo de Assis excomungou o podestà de Assis; pois que, indignado contra ele, o que era podestà mandou apregoar [com voz] forte e cuidadosamente pela cidade de Assis que nenhum homem lhe vendesse ou dele comprasse ou com ele fizesse contrato; e assim, muito se odiavam um ao outro” (23).
Embora não saibamos as causas desta inimizade ou ódio, podemos deduzir que outra coisa não pode ter sido, senão o conflito ou luta entre dois poderes. Não se trata de inimizade entre cristão e sarraceno, mas de ódio entre dois cristãos (24). O texto do Evangelho: “Os chefes das nações as mantêm sob seu poder, e os grandes, sob seu domínio. Não deve ser assim entre vós” (Mt 20,25-26) parece não ter penetrado na alma desses dois chefes cristãos.
É difícil lidar com o poder. E a maneira que Cristo propõe, uma maneira alternativa, ainda não foi suficientemente assimilada por muitos chefes cristãos (de Estado) nem por muitos chefes religiosos cristãos. A cada dia, podemos constatar a veracidade do dito: “O poder e o dinheiro corrompem” .
Ao saber disso, Francisco toma uma atitude inusitada: compõe mais uma estrofe do Cântico do Irmão Sol sobre o perdão e envia dois companheiros para cantá-la diante do bispo e do podestà. O resultado é conhecido de todos: o perdão mútuo, a volta à antiga amizade.
Francisco utiliza a música e a poesia como meios de evangelização. Instrumentos tão frágeis para fazer curvar-se a rigidez de dois homens de poder. O que é frágil Deus utiliza para confundir o que é forte, diz São Paulo na Carta aos Coríntios (cf. 1Cor 1,27). Esta é a força da minoridade.
Fazer-se menor é proposta evangélica de paz. Evangelizar e construir a paz pela minoridade é caminho natural, pois os caminhos de Deus são diferentes dos caminhos dos homens. A força de Deus manifesta-se no que é pequeno, na fragilidade, no ser menor. Muitas vezes, pensamos, como o profeta Elias, que a força da evangelização está na grandiosidade dos planos e atividades. O profeta Elias não viu o Senhor no vento forte e violento que raspava as montanhas e fendia os rochedos, nem no terremoto, nem no fogo. Quando passou a brisa suave, Elias cobriu o rosto, porque Deus estava naquele sopro tênue (cf. 1 Rs 19,11-13). Assim, quem quiser ser forte ou o maior, faça-se o mais frágil e o menor. Esta é a pedagogia de Deus: “Assim deve ser entre vós”.
A música e a poesia de Francisco são os exemplos desta minoridade. Quem pensaria que uma música e uma estrofe de poesia pudessem levar os dois gigantes do poder a curvar-se um diante do outro, a chorar e a pedir perdão e a perdoar-se mutuamente, a abraçar-se como dois irmãos?

7. O lobo de Gubbio: parábola sobre a paz (o homem reconciliado, da utopia, do reino) 
Uma outra historieta muito conhecida de todos é a do lobo de Gubbio (25). Embora alguns queiram dar historicidade a este episódio (em Gubbio se conta que numa escavação fora encontrada a ossada de um lobo muito grande), a nosso ver, ela deve ser compreendida sob o gênero literário que se chama parábola. Parábola significa que o que é narrado não implica necessariamente em ter acontecido historicamente, mas que contém elementos reais, contém uma verdade que se quer transmitir. Uma leitura deste episódio exige, portanto, um processo de despojamento do texto: despir o texto daquilo que é fictício, da sua roupagem literária, para se chegar ao real, à verdade que a roupagem literária quer comunicar.
Um primeiro elemento a ser destacado é que Francisco vai ao encontro do lobo (26) sem armas. A presença do lobo causou um estado permanente de medo e pânico entre a população, de maneira que todos andavam armados como se fossem para a guerra. Francisco despoja-se das armas, como que a dizer: “Não se promove a paz com as armas”. Se alguém deve propor a paz, deve ir desarmado ao encontro do outro, ao encontro do diferente. Esta atitude causou grande admiração ao povo.
Segundo elemento: tendo-se encontrado com o lobo, este veio a Francisco com a boca aberta em sinal de agressividade. Francisco conversa com ele mansamente, pacificamente, sem agressão e sem violência, como menor. Diante da minoridade de Francisco, acalma-se a ferocidade do lobo. Percebendo que Francisco não tinha armas, que era menor, o lobo não viu sentido para sua agressividade, pois, na maioria das vezes, a agressividade é apenas resposta a uma agressão gratuita anteriormente recebida.
Terceiro elemento: Francisco dialoga com o lobo. O diálogo restabelece relações rompidas. E diálogo, é bom notar, é estrada de duas mãos. Francisco falava com o lobo, e o lobo falava com Francisco através de sinais (linguagem que lhe era própria). Diálogo inclui, portanto, esforço por compreender a linguagem do outro. Nesse diálogo, Francisco compreendeu que a situação de fome levava o lobo a matar. Ele leu isto na própria situação do lobo. Compreendeu que muita maldade é cometida, não porque a pessoa seja intrinsecamente má, mas por circunstâncias adversas. Mais ainda: nesse diálogo, Francisco não deixou de recriminar os erros do lobo e de exigir dele uma mudança de atitude, como também depois ele vai exigir o mesmo do povo de Gubbio.
Quarto elemento: Tratado de paz no qual se celebra o compromisso de ambas as partes. Este elemento retrata a maneira concreta de Francisco evangelizar. Evangelizar é encamar Evangelho em situações concretas. Como a situação era de guerras entre cidades e conflitos entre famílias, sua evangelização tinha como finalidade palpável os pactos de paz. Este elemento está muito bem retratado na parábola do lobo de Gubbio.
Quinto e último elemento de nossa consideração: A parábola apresenta Francisco como uma figura utópica do homem reconciliado com toda a criação. Retomando a utopia de Isaías, Francisco é apresentado como a criança que brinca com o animal selvagem, do cordeiro que come com o lobo. Aliás, esta interpretação de Francisco como homem reconciliado já se encontra na primeira biografia, em que Tomás de Celano assim se expressa: “Enfim, chamava todas as criaturas com o nome de irmão e, de maneira eminente e não experimentada por outros, percebia com agudeza as coisas ocultas do coração das criaturas, como quem já tivesse alcançado a liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (27).
Portanto, Francisco é interpretado como homem reconciliado, homem da utopia, homem do reino de Deus. A parábola tem esta significação como pano de fundo.

8. OFS: uma política da paz (a decisão pessoal que transforma a sociedade)
O movimento franciscano desdobrou-se rapidamente em três Ordens. Dentre as três Ordens, a Ordem Terceira, hoje conhecida como OFS, tem uma maneira especial de evangelizar: levar o carisma franciscano a todos os ambientes seculares. A secularidade é que dá a nota marcante e distintiva dessa Ordem.
Lamentavelmente, com a OFS aconteceu algo que não devia ter acontecido em termos de engajamento na vida secular. Ela perdeu a força de Ordem e tomou-se, em muitos lugares, uma associação de pessoas piedosas. Como Ordem, ela teve um papel muito importante nos primórdios. Ela foi uma das forças motoras de construção da paz. De fato, a história mostra que a decisão dos chamados terceiros ou terciários de não portar armas, uma decisão de nível pessoal, acabou por provocar uma mudança radical na mentalidade bélica da Idade Média. Quando cada um decide fazer a sua parte, por mais pequenina que possa parecer, algo na sociedade muda. De novo, trata-se de acreditar no pequeno, no frágil. Uma atitude frágil acrescentada a outra atitude frágil pode criar aos poucos um modo de pensar diferente. Tanto isto é verdade sobre a OFS que temos documentos em que os príncipes escreviam aos papas, pedindo que obrigasse os terceiros (terciários) a portarem armas novamente. Eles perceberam que estava acontecendo um verdadeiro desarmamento dos cidadãos. Desarmamento, gesto concreto de construção da paz; decisão pessoal que ajudou a criar toda uma mentalidade de paz.
A OFS, como Ordem franciscana cuja característica é a inserção na secularidade, deveria estar mais presente na vida política e social. E a partir daí ser uma presença evangelizadora e anunciadora da paz. E como é necessária uma presença evangelizadora nesses setores da sociedade! Seria um modo de estar constantemente denunciando a corrupção, o descaso pelo bem comum, o desapreço pela vida dos cidadãos, mormente pela vida dos pobres.
A política partidária é lugar da OFS, pois ela é secular. E sua missão é evangelizar os partidos em vista de um serviço mais evangélico à sociedade, preferencialmente aos pobres.
 
Conclusão
Santo Antônio afirmava que os pregadores (evangelizadores) são os pés da Igreja. Esperar-se-ia que eles fossem a boca da Igreja. Possivelmente, Antônio se baseou no texto de Isaías: “Como são belos, sobre os montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz, do que proclama boas novas e anuncia a salvação, do que diz a Sião: O teu Deus reina” (Is 52,7; cf. Na 2,1). Então, surge a pergunta: Por que os pés e não a boca? Por que também Isaías faz referência aos pés do mensageiro? Porque, para que alguém seja evangelizador, é necessário usar os pés. São os pés que lhe permitem percorrer todos os cantos e recantos das cidades, aldeias e vilas. Aquele que evangeliza, anunciando a paz, não pode estar estático (stabilitas loci), com os pés amarrados, parado num só lugar, mas ir ao encontro das pessoas para transmitir-lhes a mensagem. Não pode esperar que as pessoas venham ao seu encontro, mas ir ao encontro delas. Ser evangelizador (anunciador da paz) implica dinamismo, mobilidade, itinerância (28). Elementos básicos do modo de ser franciscano – segundo nosso parecer – a serem profeticamente resgatados. Na linha da itinerância e da mobilidade dos pés estaria a direção da busca de novas formas de presença evangelizadora por parte dos seguidores de Francisco.

FONTE : http://www.franciscanos.org.br/

O ESPÍRITO DE ASSIS 26 ANOS





No próximo 27 de outubro, estaremos celebrando 26 anos do histórico encontro em Assis, que ficou conhecido como o “Espírito de Assis”. Em 27 de outubro de 1986, o Papa João Paulo II se reuniu em Assis com líderes de várias religiões para um encontro de diálogo sobre a paz.
Transcorria o Ano Internacional da Paz, celebrado pela Organização das Nações Unidas (ONU), e João Paulo II queria destacar a dimensão espiritual da paz e refletir, com os representantes das religiões, sobre a responsabilidade comum de orientar as crenças religiosas pessoais e comunitárias para a construção efetiva da paz; o papa lamentava que, infelizmente, a religião era instrumentalizada com frequência para gerar violência e alimentar conflitos.
Sem cair no sincretismo, nem relativizando as crenças de cada religião, o papa João Paulo II quis mostrar que era possível as religiões conviverem em paz e serem instrumentos de edificação da concórdia nas comunidades e entre os povos.
No ano passado, ao celebrar 25 anos desse Espírito de Assis, o papa Bento XVI, falando sobre o tema, convidou os líderes de religiões a prosseguirem nos esforços comuns pela paz. Desde o primeiro encontro, em 1986, muitas iniciativas de reconciliação e de paz já ocorreram. No entanto, também houve muitas ocasiões perdidas e retrocessos! Velhos conflitos, ocultos como brasa debaixo da cinza, explodiram novamente em terríveis atos de violência e pareceram sufocar a possibilidade da paz.
Segundo o Cardeal D. Odilo Scherer, São Francisco de Assis, homem de paz, convidava a colocar Deus no centro do viver humano. Assim fazendo, ele próprio podia amar com liberdade e desapego cada criatura, valorizar cada pessoa, ir ao encontro do leproso e do pobre, falar com o lobo e com o ladrão, dialogar com aqueles que, antes, queria combater… “O campo onde prospera o desejado fruto da paz precisa ser cultivado sem parar; é tarefa constante e nunca está plenamente realizada: a edificação da convivência pacífica entre os homens requer o testemunho e o esforço comum de todos aqueles que buscam a Deus de coração sincero”.