31 de outubro de 2013

A MÍSTICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - 12

A MÍSTICA DA UNIÃO CÓSMICA – O Cântico das Criaturas

Por Frei Vitório Mazzuco, OFM


Foi então que aconteceu o evento de doçura. De volta ao Monte Alverne, nos extremos da fraqueza e da perda das forças, Francisco se detém em São Damião, onde vivia Santa Clara e suas Irmãs. Exatamente na igreja, na qual o Senhor lhe falara e lhe pedira para reconstruir a sua casa em ruínas. Os sofrimentos não lhe davam tréguas. ”Durante 50 dias não estava em condições de suportar a luz do dia, nem o clarão do fogo da noite... Os olhos o atormentavam de tal maneira que nem podia repousar nem dormir” (Legenda Antiqua S. Francisci, Archivum Franc. Historicum XV (1922, 289-299).

Uma noite não podendo mais suportar as dores, São Francisco, numa atitude de profunda simpatia não só com as coisas, teve grande piedade e pena de si mesmo e disse ao Senhor: “Senhor, acorde-me em minha enfermidade, para que a possa suportar pacientemente” (Legenda Ant., 299). Segundo Celano travou-se uma luta em São Francisco para vencer as dores e a impaciência... orando entrou em agonia... No decurso desta agonia ouve em espírito uma voz que lhe diz: “Diga-me, irmão: se alguém lhe presenteasse, como dom por teus sofrimentos e pelas tribulações, um imenso tesouro precioso, a terra inteira transformada em ouro fino, as rochas em pedras preciosas, a água dos rios em perfumes, não te alegraria?” O beato Francisco responde: “Senhor, seria um tesouro imenso, preciosíssimo, inestimável e para além de tudo o que se pode desejar e amar!” – “Pois bem, irmão, disse a voz, alegra-te em meio as tribulações e enfermidades: vive agora em paz, como se foras já no meu Reino” (299).

Nesse momento uma alegria incontida invadiu e irrompeu em São Francisco, ao saber que já estava no Reino de Deus, que sua alma entrou numa esplêndida aurora. Levanta-se. Escreve o Hino a todas as Criaturas. Chama os Frades e com eles canta o Hino recém-composto. Esse canto de luz surgiu no meio de uma noite escura da alma. Emergiu das profundezas de uma existência que foi se erguendo, sofrida, acrisolada, como um botão que busca, insaciável, a luz do sol. É o símbolo expressivo de um universo que se configurou dentro do coração. Causa espanto que um homem cego, que em meio às dores horríveis, que não gozava mais as excelências das coisas, cante exatamente a matéria, o sol, a lua, a água e o fogo.

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28 de outubro de 2013

Reflexão - Opções acertadas


“Nunca estrague o seu presente por um passado que não tem futuro”.
 Dalai Lama

Uma poderosa ferramenta para nos ajudar a gerir com habilidade a nossa vida é perguntar antes de cada ato se isso nos trará felicidade. É muito importante lembrar que a felicidade não deve ser algo egoísta, mas um bem-estar comunitário e fraterno. Refletir ajuda-nos a ver melhor a situação e, assim, nossas ações serão mais acertadas… Não é possível uma realização, uma vitória ou momentos de alegria construídos sobre o mal ou sobre a infelicidade alheia…

O futuro se constrói sobre o presente, sobre o aqui e agora da vida! Nada garante que no futuro (imaginário) teremos uma vida melhor e mais feliz do que a que vivemos hoje. Daí a urgência de fazer as opções acertadas, de entender que é preciso compartilhar o bem hoje, conviver melhor com as pessoas hoje, buscar a Deus hoje… Tudo vai depender de nossa disposição de aproveitar cada instante e cada momento do tempo que se torna presente…

27 de outubro de 2013

A MÍSTICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - 11

Por Frei Vitório Mazzuco, OFM

A MÍSTICA DA UNIÃO CÓSMICA – O Cântico das Criaturas

Vamos procurar compreender o Espírito que está por detrás do Cântico das Criaturas de São Francisco, ou o Cântico do Sol como também é conhecido.

O Cântico das Criaturas é uma experiência de Francisco. Vamos procurar compreendê-la. Compreender é refazer a experiência do outro. É tentar descobrir o sentido, redescobrir a experiência religiosa que está por detrás dos escritos de S. Francisco. Este texto nos irá mostrar a maravilha de como este autor viveu Deus dentro de sua vida.

Este texto nos leva a pensar que o humano deve ter os seus olhos abertos para a profundidade das coisas. Temos que aprender a dar um mergulho religioso na realidade. Para a gente experimentar e exprimir... (Aqui reside uma decisão para toda humana criatura, uma decisão fundamental, pois é isto que nos faz pessoas maduras.)

Temos que perguntar: Poderá o mundo técnico, secular, segmentarizado, pluralista, urbano, opaco, revelar Deus? Essa pergunta é falha. A verdadeira pergunta consiste: Poderemos nós, nesse mundo técnico, secular, segmentarizado, pluralista, urbano e opaco, ver a presença de Deus? Deus esta presente em tudo e em toda parte. Isso não faz o problema. O problema é se nós temos olhos para vê-Lo.


 Na leitura do Cântico das Criaturas parece que estamos vendo uma escada (de Jacó) através da qual o místico Francisco ascende até Deus. Nesse sentido Francisco não é original, mas se alinha entre os místicos e os cantores bíblicos, salmistas e santos que cantaram também a natureza com seus elementos. Mas a originalidade de Francisco consiste no modo singular e simples como as coisas, no Cântico, são concebidas, valorizadas, ornadas. Ele segue a ordem cosmológica da época (os 4 elementos: terra, água, fogo e ar e o geocentrismo da cosmologia antiga), mas segundo uma ordem profunda da psique. Os elementos subjetivos (sol, lua, estrelas, etc.) valem enquanto exprimem uma vibração mística da alma. Eles formam uma língua com a qual o místico quer exprimir aquilo que lhe passa na alma: a união religioso-cósmica de tudo com Deus.

O hino representa o término de um longo itinerário espiritual de S. Francisco. Já se havia passado vinte anos de conversão. Dia após dia se esforçava Francisco em seguir os traços do Senhor, com grande humildade, meditando o “evento da doçura” do Altíssimo Filho de Deus. No Monte Alverne havia recebido as chagas do Senhor crucificado. Perdia sangue, enfraquecido pela doença, e cego, quase agonizante. Sofria mais certamente na alma. Via a cristandade medieval cobiçosa e cheia de poder sagrado e profano. Fazia-se então uma cruzada contra os mulçumanos na Palestina. Os valores evangélicos da pobreza, simplicidade e paz eram violados profundamente na Igreja, em nome do amor de Deus. Na Ordem havia já aparecido os primeiros problemas. Fazia-se tarde na vida de Francisco. Tarde sem doçura das tardes da Úmbria e da Toscana.

Imagem: "Cântico do Irmão Sol", de Piero Casentini 


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26 de outubro de 2013

A MÍSTICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - 10

Por Frei Vitório Mazzuco, OFM

Vejamos mais um texto narrado pelo Biógrafo São Boaventura:

“Quem seria capaz de narrar o amor fervoroso no qual ardia Francisco, o amigo do Esposo? Parecia, de fato, todo absorto, como um carvão ardente, na chama do amor divino” (LM IX, 1-2).

Quem somos nós, para falarmos de Deus se Ele não é uma chama que queima em nós? A mística franciscana nos provoca a evoluirmos como filhos e filhas apaixonados pelo Pai das Luzes. Deus não vem dos valores relativos criados pela intelectualidade humana; porém vem do mais profundo de nossos sentimentos. A mística franciscana quer nos ajudar a refazer a experiência do próprio Filho de Deus, o Mestre de Nazaré, que diz: “Deus é Amor!”.

É como se a mística franciscana nos dissesse assim: se você quer falar de Deus, fale sobre o Amor! Não o amor relativo, preso ao turbilhão dos sentimentos e que, às vezes, podem ser mesquinhos, como o suposto amor de certos romances e novelas; ou então das possessivas relações a dizer : “Eu te amo, mas exijo isto, e aquilo e mais aquilo; eu te amo pelo que você tem”. Para a mística franciscana amar é dizer: eu te amo pelo que você é e pelo Amor que está em você! Quanto eu digo “eu te amo”, para a mística franciscana é a mesma coisa que dizer: eu me faço feliz e quero te fazer feliz pelo Amor que nos envolve. É preciso amar o Amor que está em alguém. Eu me faço feliz com Ele e quero que Ele te faça feliz! Ninguém pode fazer feliz alguém, mas você se faz feliz com alguém através do Valor Maior (“a priori”). Francisco de Assis compreendeu isso como ninguém: há valores que só quem ama alguém percebe em alguém que é amado!

Para a mística franciscana, o verdadeiro Amor é o Absoluto que alimenta tudo e todos, é imenso, é a Vida! Para falar de Deus temos que passar por este filtro de compreensão do Amor. A primeira definição de amor que temos em nossa vida é o amor de nossos pais. Um amor que se aproxima da perfeição; mesmo assim este amor é pequeno perto do Amor de Deus Pai. Ao vislumbrar esse sentir, podemos ter uma vaga e nebulosa ideia, pois ainda vemos como que num espelho, não o vemos face a face como diz São Paulo.

Para São Francisco, o Amor de Deus é a mais bela oferenda. Ele consegue ver que Deus colocou nos caminhos de sua vida a dor, o leproso, o mendigo, a incompreensão da cidade. O Pai, que ele tivesse o privilégio de praticar a generosidade do Amor. O amor como oferenda e encontro nos harmoniza. Francisco observava que tudo era a mais completa oferenda: a natureza pratica ajuda. Já pensou se dissesse: “não vou mais chover” ou se um canário piasse dizendo: “hoje não vou mais cantar”. Para a mística franciscana, a vida celebra e pratica a mais bela e constante doação, esse princípio cósmico sem o qual se perde a razão de ser. O sol ajuda as plantas, as plantas ajudam os animais, os animais ajudam o ecossistema. Tudo é ajuda, respiração e movimento. Por isso, para Francisco de Assis, falar de Deus é falar de um movimento de cuidado! Repetir, isto é, refazer o cuidado, é criar um movimento de Amor no Universo, pois cada um de nós é como uma célula neste grande corpo cósmico e parte de um único Corpo: O Corpo Sagrado do Amor de Deus, o Corpo Místico. Para a mística franciscana, falar de Deus é sentir Deus, é Amar com o Deus ama. O verbo amar é que permite a maior e melhor aproximação de Deus. Nós rezamos muito, mas isto ainda é pouco: é preciso em nossas palavras respirar e perceber.

Fim deste primeiro Capítulo. Na próximo post, "A MÍSTICA DA UNIÃO CÓSMICA – O Cântico das Criaturas" 

Extraído de : http://carismafranciscano.blogspot.com.br/

25 de outubro de 2013

A MÍSTICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - 9

Por Frei Vitório Mazzuco, OFM


2. O QUE É A MÍSTICA FRANCISCANA?

É o refazer a experiência vivida de São Francisco de Assis de que Deus é formalmente Amor, não somente nas suas obras, mas no seu Ser: Deus é essencialmente Amor! Este Amor é a virtude por excelência, o cumprimento de todas as virtudes e a raiz, a forma e a finalidade das virtudes. Francisco, segundo os autores das Legendas primitivas, era o Místico do Amor. Ele foi tocado e visitado por tão grande Amor divino.

Diz o seu biógrafo Tomás de Celano: “Pois ainda que este homem fosse devoto em tudo, como quem fruía da unção do Espírito, no entanto, com especial afeto ele se movia com relação a certas realidades especiais. Entre outras expressões, cujo uso estava nas conversas comuns, ele não podia ouvir dizer amor de Deus sem uma certa mudança em si mesmo. Ao ouvir falar do amor do Senhor, subitamente  se excitava, se comovia, se inflamava, como se com a palheta da voz exterior  se tocassem as cordas mais íntimas do coração. 

Dizia que oferecer tal riqueza, o  amor de Deus, em troca de esmolas era nobre generosidade e que aqueles que o julgavam  menos do que o dinheiro eram os mais loucos. E observou infalivelmente até a morte o propósito que ele, ainda envolvido com as coisas do mundo, fizera de não rejeitar pobre algum que lhe pedisse por amor de Deus. Uma vez, como ele não tivesse nada para dar a um pobre que lhe pedia esmola por amor de Deus, tendo tomado uma tesoura às escondidas, apressa-se em dividir a túnica. Tê-lo-ia feito, se, surpreendido pelos irmãos, não tivesse feito prover um pobre com outra compensação. Disse: “Muito deve ser amado o amor daquele que muito nos amou!”” (2Cel 196, 3-9)

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24 de outubro de 2013

A MÍSTICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - 8


Por Frei Vitório Mazzuco, OFM

1.2 – O Amor como unidade de conhecimento e vontade

O ser humano, no seu pensar e agir, quer e deve procurar conhecer as causas últimas e a causa única de cada realidade, e agindo assim faz a metafísica, e vivendo assim descobre a mística: que é perguntar pela verdadeira natureza do Ser.

O princípio do Amor é a autocomunicação de Deus como conhecimento e vontade. A transcendência absoluta do espírito é o espaço que se abre para o “a priori” da revelação do Amor. Quando o conhecimento e a vontade se unem ao Ser, chega-se à experiência do Amor.

O amor é um modo como Deus revela a transparência de sua potência, de Si mesmo e da sua Criação; onde Ele mostra a capacidade de dar incondicionalmente o seu Ser. O ESPÍRITO INFINITO DE DEUS SE REVELA ATRAVÉS DE SEU AMOR CRIATIVO. No coração de tudo o que é, palpita o Amor de Deus.

Amar é afirmar a existência humana através da abertura a este Amor; é encontrar-se com o Amor como condição e princípio para o conhecimento. No coração do conhecimento está o Amor que nutre a vida. A mística significa conhecer, perceber e sentir, através do espírito, a luz que torna todo ser transparente e humano.

O ser humano é o ente que escuta a revelação do Amor Divino na medida que se abre, livremente, para a mensagem de Deus que se revela como Amor. É no Amor que se realiza a revelação divina que transcende o ser humano. O lugar da revelação de Deus é sempre naquele momento da história que em o ser humano ama; o amor é o lugar da transcendência. No Amor, o humano transcende o finito de sua própria matéria. A sensibilidade do ser humano vem de sua capacidade de transcender a matéria.

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18 de outubro de 2013

Especial - São Pedro de Alcântara.

 

Atualidade de São Pedro de Alcântara.

Pode um homem como São Pedro de Alcântara dizer-nos alguma coisa a nós, que fazemos parte de uma sociedade que não gosta de perguntas, e muito menos de respostas, sobre o único necessário? Pode um homem como Pedro de Alcântara, em cuja vida se manifesta “suma pobreza, profunda humildade, desprezo e afastamento de tudo o que parecesse estar sendo dado de presente, comodidade pessoal e temporalidade” , dizer alguma coisa aos homens do final deste século e particularmente a nós, frades menores?

Apesar da distância, que aparentemente parece existir entre São Pedro de Alcântara e nós, há aspectos de sua vida extremamente atuais. Entre todos, quero sublinhar três: homem de profunda contemplação, homem de constante busca e discernimento, homem a serviço dos outros como mestre espiritual.


1) Homem de profunda contemplação

São Pedro de Alcântara é um homem de Deus, é um gigante do espírito, porque deixou Deus crescer nele. A oração e a contemplação são o selo, o fundamento, a alma, o coração … é o tudo de sua vida. O espírito de oração e devoção constitui a grande prioridade – qualitativamente fa1ando – do projeto de vida da reforma alcantarina: tudo está em função dela e a seu serviço. A penitência e a mortificação encontram seu sentido mais profundo como disposição para uma oração confiante de abandono, na qual o ser humano se coloca por completo nas mãos de Deus. Sua grande atividade apostólica brota da profunda comunhão com Deus, nascida e alimentada pela “oração de mais horas”. Este primado qualitativo, porém, traz consigo também o primado prático da oração. Esta há de ser a primeira ocupação e preocupação dos Irmãos.

Os homens de hoje, sobretudo nós frades menores, como São Pedro de Alcântara, precisamos redescobrir a beleza do “coração e mente voltados para o Senhor”. O mundo de hoje, marcado por um ateísmo favorável ao religioso, está nos pedindo aos gritos que sejamos testemunhas de Deus, que criemos lugares de experiência de Deus. Nosso futuro dependerá, em grande parte, da capacidade de testemunhar aos outros a presença de Deus. Como nos preparamos, pessoal e comunitariamente, para esse futuro? Como respondemos à vocação de sermos testemunhas de Deus numa sociedade marcada pela secularização?


2) Homem em constante busca e discernimento

Pedro de Alcântara foi um homem em caminho, “peregrino e forasteiro” (1Pd 2,11), não só em sentido físico, mas também, e sobretudo, por sua constante atitude de discernimento e de busca da vontade do Senhor. Porque foi pobre e livre, viveu sempre e inteiramente disponível para o Senhor; porque experimentou a eficácia libertadora da pobreza, se sentiu sempre itinerante, disposto a abandonar atividades, ofícios e estruturas que não respondiam à sua vocação de frade menor.

Os homens de hoje, particularmente os frades menores, precisamos recuperar a liberdade que a pobreza nos dá; recomeçar a itinerância que estimula a criatividade; reacender o anseio pela pátria que nos força a deixar estruturas envelhecidas; abandonar seguranças que nos amarram e certezas que nos imobilizam. Como São Pedro de Alcântara, o discernimento do que o Senhor nos está pedindo aqui e agora há de ser a nossa constante preocupação. Não basta sermos fiéis: o Senhor nos pede uma fidelidade criativa. São Pedro de Alcântara nos ensina a viver abertos àquilo que o Espírito nos pede hoje para sermos fiéis a Cristo, que nos chamou, fiéis a Francisco, que é nosso modelo no seguimento, fiéis ao homem de hoje, a quem temos de testemunhar, com palavras e obras, “que só Ele é onipotente” (CtaO 9).


3) Homem a serviço dos outros como mestre espiritual

São Pedro de Alcântara foi um homem que pôs a serviço dos outros os dons que tinha recebido do Senhor. Um homem em quem a graça do Senhor não foi vã e que fez frutificar os talentos recebidos não só em próprio benefício, mas também em favor dos outros, ajudando a todos que lhe pediam conselho nas coisas que agradam ao Senhor.

São Pedro de Alcântara foi um grande mestre espiritual, porque foi um homem de Deus. Ensinou os caminhos de Deus a partir de sua experiência de Deus. Teresa, a grande, disse de Frei Pedro: “Desde o começo vi que me entendia por experiência própria, e isto era tudo o de que eu precisava … ” E isto, porque “da vida de perfeição – afirma ainda Santa Teresa na sua Autobiografia – só se pode falar com aqueles que a vivem”. Só quem vive na luz pode “iluminar tudo”. Só pode comunicar Deus quem nele vive.
No mundo de hoje há muitas pessoas, sobretudo jovens, que têm grande fome de Deus. Cabe a nós saciar essa fome a partir de uma profunda experiência daquele que é amor. Cabe a nós conduzi-los aos poços de água viva para saciar sua sede de eternidade. Cabe a nós acompanhá-los para que descubram que aquele, a quem buscam, caminha a seu lado; que aquele, por quem suspiram, pede para permanecer em sua casa.
Celebrar significa fazer memória, e fazer memória significa atualizar aquilo que celebramos e aquilo de que fazemos memória. Celebrar e fazer memória de São Pedro de Alcântara exige de todos nós colocar-nos a caminho para viver, encarnando-as em nosso tempo, as prioridades de seu projeto de vida, que não são diferentes das do projeto de vida de Francisco de Assis.

Isto é o que imploramos da Virgem Mãe, a quem invocamos com a mesma oração que lhe dirigia São Pedro de Alcântara: “Ó Virgem Santíssima, Mãe de Deus e Rainha do céu, Senhora do mundo, Sacrário do Espírito Santo, Lírio de pureza, Rosa de paciência, Paraíso de delícias, Espelho de castidade, Modelo de inocência! Rogai por estes pobres desterrados e peregrinos e derramai sobre eles as sobras de vossa superabundante caridade!”

Trecho da Carta do então Ministro Geral da OFM, Frei Giacomo Bini, em outubro de 1999, por ocasião do V Centenário de Nascimento de São Pedro de Alcântara.

17 de outubro de 2013

Especial - São Pedro de Alcântara.


“Para dentro e para fora da Ordem”

Sua vida tem duas vertentes bem diferenciadas e, ao mesmo tempo, complementares: para dentro e para fora da Ordem. Para dentro, foi homem de governo, desempenhando o ofício de guardião, mestre de noviços, definidor provincial e ministro provincial; e reformador da vida franciscana em seus aspectos fundamentais. Para fora, foi homem de conselho e de discernimento, acompanhando espiritualmente homens e mulheres que, sabedores de sua santidade e vida espiritual, a ele recorriam: Carlos V, que o chamou a Yuste para falar de sua alma; reis e infantes de Portugal; condes de Oropesa; Rodrigo de Chaves, a quem dedicou seu Tratado da oração e meditação; Santa Teresa de Ávila e São Francisco Borja.

Frei Pedro viveu um momento histórico, um tempo marcado por intensa inquietude espiritual e grande desejo de renovação de vida. Tempo, como diz um cronista da época, “em que todo o mundo queria entrar no paraíso”. Eram tempos carregados de intensa vida eclesial: celebração de dois Concílios ecumênicos: o Latrão V e o de Trento; três anos santos: o de 1500, com Alexandre VI, o de 1525, com Clemente VII, e o de 1550, com Júlio III; nascimento de numerosas Ordens religiosas: mínimos, barnabitas, teatinos, jesuítas, irmãos de São João de Deus, ursulinas. Tempos de grandes iniciativas missionárias, particularmente na América por obra dos mendicantes, e na Ásia, pelos jesuítas. Eram tempos também de grandes reformas ao interno da Igreja, particularmente a reforma teresiana, e de muitas outras reformas contra a Igreja: a de Martinho Lutero, na Alemanha; a de Henrique VIII, na Inglaterra e Irlanda; a de Calvino, na Escócia; a da igreja nacional na Holanda.

A Ordem dos Frades Menores participou plenamente dessas ânsias de profunda renovação e de dinamismo missionário: início da reforma capuchinha; fortaleceu-se o trabalho missionário da Ordem no Novo Mundo, iniciado pelos chamados “XII Apóstolos”, que saíram para o México em 1523, renovou-se e cresceu com a chegada de mais 150 missionários; na Espanha consolidou-se a reforma dos descalços, iniciada por Frei Juan de Puebla e Frei Juan de Guadalupe e estruturada definitivamente por Frei Pedro de Alcântara com suas Ordenações. Uma reforma que logo se estendeu pela Espanha inteira, Portugal, Brasil, México e Filipinas e que tinha como motor a “estreitíssima observância” da Regra Bulada de São Francisco, lida à luz do Testamento, sem glosas nem comentários acomodatícios.

Como Provincial, Frei Pedro entregou-se aos ofícios humildes, dedicou-se com carinho aos irmãos leigos. Cuidou dos doentes e adotou como lema de sua vida o pensamento de São Pascoal Bailón: “É preciso ter para com Deus um coração de menino, para com o próximo um coração de mãe, e para consigo mesmo um coração de juiz.”

A espiritualidade de São Pedro de Alcântara era de uma profundidade tão grande, que sem interromper a contemplação dedicava-se aos seus deveres de estado. Acima de todos os êxtases ele colocava as obras de misericórdias, o servir Cristo na pessoa dos pobres. Frei Pedro escreveu o “Tratado da Oração e Meditação”.

Frei Pedro foi testemunha privilegiada de todos esses acontecimentos e participou ativamente em muitos deles. Apesar de seu gosto pela solidão e pela oração, não se recusou aos pedidos de conselho e orientação que pequenos e grandes, nobres e plebeus, santos e pecadores lhe faziam para se sentirem seguros nos caminhos da santidade.

São Pedro, consciente de que no seguimento de Cristo nunca se pode dizer que se tenha alcançado a meta e que sempre se pode bater o próprio recorde, se lançou atrás da mais alta santidade, sem olhar o preço que isso lhe pudesse custar, atraindo a si os que, como ele, se sentiam inquietos e desejosos de alcançar a perfeição. No momento em que muitos de seus conterrâneos se lançavam à descoberta e conquista de novos mundos e glórias humanas, Frei Pedro de Alcântara, como um dia fizeram Paulo de Tarso e Francisco de Assis, deixou tudo para ganhar Cristo e viver nele (cf. Fl 3,8).

Sua memória histórica continua viva por onde passou: El Palancar (Cáceres), lugar despojado, rico de solidão e recolhimento, pedra angular de sua reforma, modelo e referência de todas as outras fundações. Frei Pedro, que considerava a alegria espiritual “remo sem o qual não se pode navegar”, começou aqui a última etapa de sua vida; Arrábida, em Portugal, experiência de vida penitente e contemplativa, na qual o importante era manter vivo o “espírito de oração e devoção” com gestos concretos, com a busca intensa da presença de Deus, com “a mente e o coração voltados para o Senhor” (Rnb 22,19); Solitudine, em Piedimonte Matese (Itália), lugar de rigoroso silêncio, de intensa oração e penitência; Arenas de San Pedro (Ávila), com suas ermidas e capelas para recolhimento e solidão orante, onde repousam os restos mortais deste homem que, apesar de sua “áspera penitência – no dizer de Santa Teresa era muito afável… e de privilegiada inteligência”.

Frei Giacomo Bini, então Ministro Geral da OFM, em outubro de 1999, por ocasião do V Centenário de Nascimento de São Pedro de Alcântara.

16 de outubro de 2013

A MÍSTICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - 7

 Por Frei Vitório Mazzuco, OFM

Na mística moderna de Rahner temos três aspectos:

1 - A explicação fenomenológica -
O humano, enquanto sujeito espiritual, é um Ser que não pode mais evitar de interrogar-se sobre si mesmo e sobre os seres em geral. É o fenômeno existencial do humano que coloca a pergunta necessária. O ser humano é uma pergunta necessária e ontológica do Ser e examina a sua essência. O ser humano é uma pergunta infinita e absoluta, e tal pergunta ontológica resulta na possibilidade de escutar uma resposta cristã.

2 - A redução transcendental -  O sujeito é uma dimensão “a priori” que coloca numa luz o humano como um ser de transcendência. O humano tem um horizonte “apriorístico” e por isso faz perguntas ontológicas através de uma prévia percepção do conhecimento como experiência transcendental, que é uma possibilidade da verdadeira e própria revelação. O humano, através da experiência mística é elevado ao “a priori” da revelação originária de Deus.

3 - A dedução transcendental - É o ponto que examina a estrutura característica da ação como categoria do sujeito. A essência do sujeito salta para fora na sua ação. O humano é a matéria de Deus, uma revelação histórica. Deus é a transcendência absoluta. O ser humano é transcendência que se orienta para o Absoluto.



 Continua...
 Texto extraído de: http://carismafranciscano.blogspot.com.br/

15 de outubro de 2013

Reflexão - Futuro





“Sua tarefa não é de prever o futuro, mas sim de o permitir” (Saint-Exupéry).

As pessoas felizes lembram o passado com gratidão, pois são capazes de aprender suas lições, sem, porém supervalorizá-lo. São capazes de se alegrar com o presente, pois vê no momento atual a grande possibilidade de fazer a diferença… Aprendem, com Jesus, a confiar no Pai do Céu que concede aos que O amam o pão de cada dia.

Quem assim aprende a se relacionar com o tempo, tem vigor e esperança pra encarar o futuro sem medo. Na verdade, o futuro dependerá daquilo que fazemos no presente… pois o céu que buscamos é o resultado do céu que vivenciamos no aqui e agora da vida. O futuro chega com esperança e alegria quando ele é semeado com amor nas relações que estabelecemos…



Frei Paulo Sérgio, ofm

A MÍSTICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - 6

Por Frei Vitório Mazzuco, OFM

 Grande contribuição fontal para a mística é o conhecimento amoroso que parte da Sagrada Escritura, o estudo do pensamento e prática dos Padres Orientais e Ocidentais.

É a força espiritual e transpsicológica do Ser imerso no fazer correr a vida divina contida nos sacramentos, especialmente na Eucaristia. É unir mística cristã com a vida cristã, caminho de santidade da vida e a divinização a que são chamados todos os cristãos. A chamada universal à santidade equivale à chamada universal à mística. Henri de Lubac (1896-1991) afirma que a mística cristã é a mais profunda interiorização do mistério da fé e alicerça suas raízes nas Sagradas Escrituras, na Liturgia e na Vida Sacramental.

Com Karl Rhaner (1904-1984) e Joseph Marechal (1878-1944), o aprofundamento da mística moderna tem como ponto de partida uma nova e mais adequada metafísica, a dinâmica do ato cognitivo, a possibilidade de conhecer Deus.

O sentido humano traz o sujeito do conhecimento em contato com a coisa real. A inteligência, como faculdade superior, deve ser considerada fundamentalmente intuitiva por tendência e por finalidade. A experiência mística é o contato direto, intuitivo e imediato na vida entre a inteligência e o seu fim que é o Absoluto. É o contato místico entre o ser humano e o ser Divino. Converter-se é enamorar-se de Deus. O humano como Ser, tende ao mistério Absoluto.


Continua...

Texto extraído de: http://carismafranciscano.blogspot.com.br/

10 de outubro de 2013

A MÍSTICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - 5

Por Frei Vitório Mazzuco, OFM

1.1 – Características da Mística na fluência do século XX

No século XX cresce o debate sobre a natureza da mística e a universalidade desta experiência. Até o Concílio Vaticano II, os caminhos da mística começavam na hermenêutica baseada sobre as Fontes Bíblicas e da Patrística; porém é exatamente a partir daí que começa a elucidar o significado de natureza do estado místico, da vocação universal à perfeição, do itinerário de virtudes, do vértice da experiência espiritual, dos fenômenos místicos e retoma-se a questão da contemplação adquirida (ativa) e da contemplação infusa (passiva), duas compreensões que têm a ver com o direcionamento da VIA PERFECTIONIS através, da UNIO MÍSTICA, uma espécie de matrimônio espiritual. A mística é essencial para a perfeição e caminho obrigatório para chegar ao ESTADO MÍSTICO, isto é, o próprio Amor recebido diretamente de Deus.

Não se pode deixar de lembrar que nos dois casos existem os fenômenos extraordinários que os acompanham: a prece mística, os efeitos que aparecem além do esforço humano, a pura graça; ou aqueles que tem a cooperação dos exercícios necessários tais como: meditação orientada, silêncio, prece comum. A contemplação adquirida é ativa e ordinária. A contemplação infusa é passiva e extraordinária.

Independente da questão de um Curso Sistemático de Teologia Espiritual, que a partir de 1931, com Pio XI, coloca a ascética como disciplina auxiliar e a mística como disciplina especial. O que nos interessa aqui nesta reflexão? Mostrar que todo este desenvolvimento une num mesmo tronco a mística e a ascética na História da Espiritualidade. Que a perfeição cristã vai crescendo graças à presença de dons do Espírito Santo que operam sobrenaturalmente na vida mística, e a busca incessante da vida da graça, da fé, da caridade e de dons do Espírito Santo, da força extraordinária dos milagres, das visões e da profecia.

Tudo isto faz parte do desenvolvimento da via espiritual e encontra a sua culminância na contemplação e na experiência mística.


Não podemos esquecer de citar o grande pensador cristão Jacques Maritain (1882-1973), que mostra em sua obra o fascínio pela mística; para ele a mística é a culminância de toda forma de conhecimento e consequência da verdadeira metafísica. Para ele, mística é conhecimento das coisas profundas de Deus, experiência esta que vai do contato direto e imediato com Ele, um contato que envolve amor e conhecimento

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Texto extraído de: http://carismafranciscano.blogspot.com.br/

9 de outubro de 2013

A MÍSTICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - 4

Por Frei Vitório Mazzuco, OFM

Deus é absolutamente incognoscível e se manifesta na criação, assim toda a realidade das coisas podem aproximar a união com a Origem escondida. Nesta afirmação aparece a dimensão universal da experiência mística, a pedra angular do desenvolvimento da mística nas épocas sucessivas.

A obra do Pseudo-Dionísio não conseguiu emplacar na Igreja Latina a ideia de experiência mística. O Ocidente preferiu a palavra Contemplação. Somente com a Idade Média que a palavra mística torna-se de uso corrente.

Contemplação era uma palavra mais usada para designar um estudo de vida mística dos eremitas e monges.

Foi a partir do século XVI que a mística passa a significar uma passagem do sagrado ao segredo, das coisas e sua dimensão essencial, da via ordinária ao extraordinário, o mundo espiritual visto como afeto, visões, êxtase, o puro amor de Deus, a alma que se deixa conduzir pelos espíritos e vive num estado místico.

A alma deve aprofundar-se em Deus e conduzir-se a fonte do amor puro. Quanto mais a alma se eleva, quanto mais a ação de Deus se faz sentir. A mística vai criar os caminhos da oração simplificada, a contemplação ativa e passiva, enfim o Estado Místico.


Continua...

Texto extraído de: http://carismafranciscano.blogspot.com.br/

8 de outubro de 2013

Reflexão - Amizade


“Trate seus amigos como quando você faz seu retrato: coloque-os sob a melhor luz” (Jennei J. Churchill).


Semear e cultivar. Cuidar com carinho, regar e permitir a luz do sol… Tudo isso faz com que uma planta seja bonita e retribua tanta gentileza com seu perfume e suas flores… Assim também são as amizades: requerem cuidado, carinho, rega e luz do sol. Se assim o fizermos, permitiremos que os (as) amigos (as) caminhem sempre ao nosso lado…

A amizade é quase um instinto natural dentro de nós. O (a) amigo (a) constitui a doçura da existência, o estímulo para vencer os conflitos e os dissabores; a força propulsora para gerar ideias, afeto e carinho. A amizade é uma maneira genial que temos pra fazer a travessia da vida com alegria, com muita esperança em relação ao futuro…


Frei Paulo Sérgio, ofm

7 de outubro de 2013

A MÍSTICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - 3

Por Frei Vitório Mazzuco, OFM

Justino (início do I século até 163) é o primeiro escritor cristão a discorrer sobre a relação do mistério cristão com o mistério pagão. Derivados de MÚEIN são também os significados de: realidade secreta, velada, escondida, de não imediato acesso de comunicação, e que pertence a ordem religiosa ou moral.

Não encontraremos jamais o termos MISTIKÓS na Bíblia. O primeiro a introduzir no vocabulário cristão o adjetivo MISTIKÓS foi Clemente de Alexandria (150-215), que usou o termo mais de 50 vezes em sua obra. E aqui o vocabulário era usado como: os segredos e modos da manifestação da realidade divina oculta na Sagrada Escritura, no Rito e na Prece.

Clemente de Alexandria é aquele que introduziu o conceito cristão de mística como CONHECIMENTO DO MISTÉRIO ESCONDIDO EM DEUS. Para Clemente, o cristianismo é uma mística fortemente acentuada, modificando no sentido cristão os mistérios pagãos, e manifestando aos pagãos um novo e verdadeiro mistério: aquele que é capaz de trazer purificação e salvação.

O termo Teologia Mística aparece pela primeira vez na história do cristianismo com o Pseudo-Dionísio, o Areopagita (V e VI séculos) que escreveu um tratado com este nome. A sua obra tem um caráter metafisico e especulativo. Não destaca um tipo particular de experiência, mas sim o CONHECIMENTO DO MISTÉRIO DE DEUS.

Aqui entra pela primeira vez o caráter estético da mística. Ele descreve a natureza divina entre o Belo e o Bom, o Eros e o Ágape, que são os nomes luminosos de Deus.

Eros não é atração física, mas a mais pura imagem do pleno sentido da unidade do Amor divino e uno. O escondimento e a revelação de Deus. Todas as criaturas manifestam o Criador e ao mesmo tempo o escondem. O universo é uma imagem necessária de Deus, mas ao mesmo tempo é incapaz de representar Deus. A partir do momento que o caminho da negação é usado, Deus é conhecido de modo mais profundo mediante a total incapacidade de dizê-Lo. A ignorância é a verdadeira GNÓSIS.

Continua...

Texto extraído de: http://carismafranciscano.blogspot.com.br/

3 de outubro de 2013

Morte e Vida de São Francisco de Assis - Transitus


Por Frei Nilo Agostini, OFM

Todo debilidato, com voz fraca, sumida, entoa Francisco o Salmo 142: Você mea ad Dominum clamavi (“Com minha voz clamei ao Senhor...”). O Salmo vai sendo entoado pouco a pouco, e ao chegar ao versículo Educ de custodia animam meam (“Arranca do cárcere minha alma, pra que vá cantar teu nome, pois me esperam os justos e tu me darás o galardão”). Faz-se grande e profundo silêncio. Acabara de morrer, cantando, Francisco de Assis.

Quem é este que transfigura o trauma da morte em expressão de liberdade tão suprema? Desaparece o sinistro da morte. E Francisco vai ao seu encontro como quem vai abraçar e saudar uma irmã muito querida.


Ano de 1226. Francisco se acha muito debilitado. Seu estômago não aceita mais alimento algum. Chega a vomitar sangue. Admiram-se todos como um corpo tão enfraquecido, já tão morto, ainda não tenha desfalecido. Transportado de Sena para Assis, Francisco ainda encontra forças para exortar os que acorrem a ele. E aos irmãos diz: “Meus irmãos, comecemos a servir ao Senhor, porque até agora bem pouco fizemos”. Ao chegar a Assis, um médico se apresenta e constata que nada mais resta a fazer. Ao que Francisco exclama: “Bem-vinda sejas, irmã minha, a morte!” E convida aos irmãos Ângelo e Leão para cantarem o Cântico do Irmão Sol, ao qual Francisco Acrescenta a última estrofe em louvor a Deus pela morte corporal.

Cria-se uma atmosfera tão jovial e alegre que o Ministro Geral da Ordem, Frei Elias, interpela Francisco para que pare com toda aquela atmosfera, vista como “cantoria”, para que enfim ele morra “convenientemente”, pois poderia escandalizar os moradores de Assis. “Com tudo o que sofro, me sinto tão perto de Deus que não posso senão cantar!” – respondeu-lhe Francisco.

Aproximando-se a hora derradeira, Francisco deseja ser levado para a capelinha de Nossa Senhora dos Anjos, na Porciúncula, onde tudo havia começado. Lá, num gesto de despojamento, de identificação com o Cristo crucificado e de integração com o Pai, pede que o deixem, nu, sobre a terra e diz aos frades: “Fiz o que tinha que fazer. Que Cristo vos ensine o que cabe a vós”. Despede-se de todos os irmãos; abençoa-os; lembra-lhes que “o Santo Evangelho é mais importante que todas as demais instituições”. Ainda deseja que Irmã Jacoba lhe traga alguns daqueles deliciosos biscoitos. Anima o seu médico, dizendo-lhe: Irmão médico, dize com coragem que a minha morte está próxima. Para mim, ela é a porta para a vida!” E, então, canta o Salmo 142. Francisco parte cantando, cortês, hospitaleiro e reconciliado com a morte.

O canto de Francisco está baseado em uma percepção realista da morte: “Nenhum homem pode escapar da morte”. Mas como pode ser irmã aquela que engole a vida, que decepa aquela pulsão arraigada em cada um de nós, fundada em um “desejo” que busca triunfar sobre a morte e viver eternamente? Francisco acolhe fraternalmente a morte. Nele realiza-se, de forma maravilhosa, o encontro entre a vida e a morte, em um processo de integração da morte.

Francisco acolhe a vida assim como ela é, ou seja, em sua exigência de eternidade e em sua mortalidade. Tanto a vida como a morte são um processo que perdura ao longo de toda a vida. A morte faz parte da vida. Como e despertar e o adormecer, assim é a morte para o ser humano. Ela não rouba a vida; dá a esse tipo de vida a possibilidade de outro tipo de vida, eterna e imortal, em Deus.

A morte não é então negação total da vida, não é nossa inimiga, mas é passagem para o modo de vida em Deus, novo e definitivo, imortal e pleno! Francisco capta esta realidade e abriga a morte dentro da vida. Acolhe toda limitação e mostra-se tolerante com a pequenez humana, a sua e a dos outros.

A grandeza espiritual e religiosa de Francisco no saudar e cantar a morte significa que já está para além da própria morte; ela, digna hóspede não lhe é problema; ao contrário, ela é a condição de viver eternamente, de triunfar de modo absoluto, de vencer todo embotamento do pecado que a transforma em tragédia. Francisco soube mergulhar na fonte de toda a vida. “Enquanto Deus é Deus, enquanto Ele é o vivente e a Fonte de toda a vida, eu não morrerei, ainda que corporalmente morra!”

Morte, drama sagrado,
não uma tragédia.
Morte, bem-vinda,
não uma inimiga.
Morte, uma irmã,
não uma ladra.
Morte, abertura para a plena liberdade,
presença do Reino de Deus, utopia do justos.
“Deus enxugará as lágrimas dos seus olhos, e a morte não existirá mais,
nem haverá mais luto, nem pranto, nem fadiga, porque tudo isso já passou” (Ap 21,4).

“Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, 
a morte corporal, da qual nenhum vivente pode escapar” (São Francisco, Cântico do Irmão Sol).
T


Sermão proferido por Frei Nilo Agostini, na Festa de São Francisco de Assis, 04/10/1991

Fonte: http://www.reflexoesfranciscanas.com.br/

2 de outubro de 2013

Francisco de Assis, um homem feito oração

Transformado não só em orante, mas na própria oração (totus non tam orans quam oratio factus), unia a atenção e o afeto num único desejo que dirigia ao Senhor.
(2Cel 95)




Segundo Celano, Francisco de Assis é a personificação da oração. Dificilmente poder-se-ia ter encontrado uma fórmula mais sintética e mais verdadeira para descrever a dimensão orante de São Francisco. Todo ele se tinha transformado em oração. Ele é o homem do ininterrupto diálogo com o Senhor. Depois de sua conversão, Francisco passa a viver na atmosfera de Deus.  O Poverello percorreu um longo e maravilhoso itinerário em seu relacionamento com Deus: há os suspiros profundos de insatisfação com sua vida quando é chamado a se dirigir a novos horizontes; percorre as planícies onde estão seus irmãos os homens, mormente seus irmãos na vocação de seguimento do Senhor e da forma do santo Evangelho; há essa comunhão constante e amorosa com o Senhor Jesus; passa pela exaltação da bondade do Criador manifestada no sol e nas estrelas, na água e na mãe terra; atinge o píncaro mais solene na configuração do santo a Cristo Jesus no alto do Tabor franciscano que é o Alverne. Ali Francisco poderia efetivamente dizer com Paulo: “Já não sou eu quem vivo, mas é Cristo que vive em mim” (01 2,20).

Nosso intuito não é fazer um estudo exaustivo sobre o tema da oração em Francisco. Há riquíssima e abundante bibliografia sobre o tema . Queremos apenas chamar atenção para alguns aspectos da figura de Francisco que o tornam um homem, feito oração. Num primeiro momento veremos como o Deus grande e altíssimo foi tomando conta do interior de Francisco e o seduzindo. Tudo em Francisco, também a oração, só se entende a partir da sequela de Cristo. Importante, no contexto deste estudo, chamar atenção para o caráter fundamental do manuseio do Livro da Cruz. Embora atraído pelo silêncio e disposto a estar solitariamente unido ao Senhor, Francisco é o homem que reza com os irmãos e chega mesmo a se tornar o maior cantor dos bens de Deus derramados na criação.

1. Dar lugar a um Outro

A oração é, efetivamente, um mistério. É uma experiência que se faz e não um discurso que se profere. Tem muito a ver com a amizade e o amor. É relacionamento entre a fraqueza e a plenitude, o amante e a amada, o esposo e a esposa. Pela oração, o homem tenta aproximar-se de seu Senhor que é amor, fogo, exigência, fonte de vida, misericórdia, paz e plenitude. Francisco viveu o relacionamento com Deus como plenitude inebriante. Os louvores ao Deus altíssimo, escritos por São Francisco no final de sua vida, no verso da bênção dada a Frei Leão: “… Vós sois o Forte… o Grande… o Altíssimo… a Delícia do amor… a Sabedoria… a Humildade… a Beleza… nossa eterna vida, ó grande e maravilhoso Deus, Senhor onipotente, misericordioso Redentor” (LDA). Curioso observar que neste texto, escrito quase no final de sua vida, haja tão pouca alusão a Cristo. Sente-se neste escrito um transbordamento talvez não encontrado em outro místico da história da Igreja. Tem-se a impressão de que
o Amante seduziu o amado. Esta sedução foi tão forte que seu biógrafo chegou a afirmar que o santo estava separado de Deus «apenas pela parede da carne” e “procurava estar sempre presente no céu” (cf. 2Cel 94).

Desde o momento de sua conversão, Francisco é alguém que procura fazer espaço em si para a chegada de um Outro. Assim, ele começou a ser trabalhado pelo Espírito. Michel Hubaut concebe a oração em São Francisco como abertura ao Espírito . Foi fazendo lugar dentro de si para acolher um Outro e viver em função dele. Houve um momento na trajetória de Francisco em que era preciso romper com ânsias e desejos, ambições e projetos pessoais. O processo da conversão de Francisco é marcado por um período de vazio, de não sentido, de espera de alguma coisa. Os dias longos passados na prisão de Perúsia, a prolongada enfermidade, os sonhos que povoavam tumultuadamente seu interior foram levando Francisco do exterior para o interior, do aparente para o essencial, do ilusório para a verdade. Nesse período, Francisco vive na atmosfera de perguntas, questionamentos, insatisfações. “Que queres de mim? Que queres que eu faça? Por que esta insatisfação dentro de mim? Estas questões são bem parecidas com aqueles que se colocam todos os que começam a aventura da entrega de suas vidas ao Mistério de Deus.

Mjchel Hubaut ainda observa: “O Espírito o orienta rumo ao futuro imprevisto de Deus. Nele desperta uma ‘faculdade interior’ e descobre que capaz de colocá-lo em relação com Deus. Se o homem tem dificuldade em entrar em contato com Deus é porque perdeu o caminho do seu ‘coração’ que se tornou, como diz São Paulo, ‘sem inteligência e obscurecido’, covarde e inútil” . Os grandes orantes sempre foram pessoas que visitaram seu interior a fim de que lá encontrassem Alguém que os queria
plenificar. Quem quer fazer essa experiência de plenitude despoja-se de tudo, toma distância de sua autossuficiência, renuncia a si mesmo. Sem esse vazio interior, vazio de si, muitas vezes doloroso, não há possibilidade da chegada do Outro.

Eloi Leclerc mostra como Francisco começa a despojar-se de glórias humanas e do desejo do prestígio. Experimenta uma insatisfação com tudo o que realiza. Aos poucos vai se dirigindo para uma região de profundidade. Francisco seria o homem da profundidade. “A partir deste dia (pouco antes da conversão), inaugura-se, na vida de Francisco, um período de silêncio. Uma necessidade imperiosa de silêncio toma conta dele. Procura afastar-se da agitação mundana e do mundo dos negócios. Esforça-se, segundo a expressão de Tomás de Celano, ‘por reter Jesus Cristo em seu interior’ (1Cel 6). A superfície do mundo tão cheia de brilho não mais o atrai. Procura a profundidade de uma caverna ou a sombra de uma capela solitária nos campos. Lá acha o seu tesouro, diz ele. Passa aí horas a fio. Tornou-se um homem chamado pela profundidade”.
Quem reencontra o caminho do coração e se dirige às regiões da profundidade começa um novo êxodo ou empreende uma viagem como a de Abraão: deixa suas seguranças, sua parentela, a terra firme em que costumava pisar e se dirige para horizontes novos que Deus haverá de lhe indicar. O que vai acontecer é mistério que está nas mãos e no coração de Deus. Certamente maravilhas poderão ser operadas se o convidado tiver a coragem de despojar-se a si mesmo de planos e projetos e acolher a visita do Inesperado.

Francisco experimentará durante toda a sua vida uma imperiosa necessidade da oração silenciosa e de espaços de recolhimento. A vida e a trajetória de Francisco são pontilhadas de lugares ermos e de eremitérios. Descobre o gosto pelo silêncio na vetusta e arruinada capela de São Damião. Mais tarde, as clarissas viveriam ali intensíssima contemplação silenciosa. Os biógrafos são generosos em lembrar esses lugares silenciosos e eremíticos: Poggio Bustone, Greccio, Fonte Colombo, Rivo Torto, Narni. Lugar de silêncio e de oração era o Alverne, píncaro de sua vida de união com Deus, monte da transfiguração dolorosa desse amante de Deus. Desejou sempre com grande intensidade a vida eremítica. Queria o retiro exterior nos bosques, nas fendas dos rochedos e nas capelas abandonadas. “Quando rezava nos matos e nos lugares desertos, enchia os bosques de gemidos, derramava lágrimas por toda a parte, batia no peito e, achando-se mais escondido que num esconderijo, conversava muitas vezes em voz alta com o seu Deus. Respondia ao juiz, fazia pedidos ao Pai, conversava com o amigo, brincava com o esposo” (2Ce1 95).
Nestas longas e intermináveis jornadas de oração, Francisco foi acolhendo a visita do Espírito, acolhendo um dom que ele mesmo, por suas próprias forças, nunca poderia se oferecer. A oração não é em primeiro lugar alguma coisa que fazemos, mas uma acolhida que damos. O orante permite que Deus se aposse dele: “Quer andasse ou parasse, viajando ou residindo no convento, trabalhando ou repousando, entregava-se à oração, de modo que parecia ter consagrado a ela todo o seu coração e todo o seu corpo, toda a sua atividade e todo o seu tempo. Compenetrado destas verdades jamais desprezava por negligência qualquer visita do Espírito; mas ao contrário, sempre que elas se apresentavam, seguia-as cuidadosamente e, enquanto duravam, procura gozar da doçura que lhe comunicavam” (LM 10,1-2). Francisco não é mais dono de si, de sua história, de seu presente e de seu futuro. Está sempre nas mãos do Altíssimo esperando suas novas manifestações, sempre no mistério da fé. Forçosamente, o Deus Altíssimo dos cristãos se manifesta na pobreza e no aniquilamento de Cristo Jesus. Por isso, o seguimento de Jesus será caminho de amadurecimento de sua oração que vai se tornar “crística”.

2. No seguimento de Jesus

Na trajetória espiritual de Francisco ficou claro que sua vida seria seguimento de Cristo. “A Regra e a vida destes irmãos é esta: viver em obediência, em castidade, sem propriedade; e seguir a doutrina e as pegadas de nosso Senhor Jesus Cristo (RNB 1,1-2). Logo depois destas palavras da Regra não Bulada, Francisco evoca os textos do seguimento: vender tudo, renunciar a si mesmo e tomar a cruz, deixar terras, esposa e esposo para a construção do Reino. Não é aqui o lugar de desenvolver a temática do seguimento de Cristo em alguns pontos característicos e precisos. Sabemos que os acontecimentos foram se atropelando em sua vida. Depois de um terrível vazio em seu interior vai vislumbrando uma presença que ia enchendo de júbilo seu coração. Coloca-se diante do Crucifixo de São Damião e vê que seus lábios mexem. O Crucificado pede que ele seja reconstrutor de sua casa que estava em ruínas. Ouve depois as palavras do Amor no Evangelho da festa de São Matias e compreende que precisa ir pelo mundo com seus irmãos, sem calçados, sem sacola, sem bagagem anunciando a paz e o amor do Amor que não era amado. Em toda esta trajetória Francisco descobre o despojamento, aniquilamento, pobreza e humildade de Jesus, de sua Mãe e dos apóstolos. Sabemos que foi fundamental nesta sequela de Cristo o encontro com o leproso.
Todos os estudiosos do franciscanismo voltam-se sempre às primeiras linhas do Testamento de Francisco: “Foi assim que o Senhor me concedeu a mim, Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência: como eu estivesse em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para leprosos. E o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia para com eles. E enquanto me retirava deles, justamente antes o que me parecia amargo se me converteu em doçura da alma e do corpo. E depois disto demorei só bem pouco e abandonei o mundo” (Test 1-3).

Francisco começa a abandonar o mundo de Assis. Não externa, mas interiormente ele deixava uma maneira de viver. Entrava no universo do Evangelho marcado pela necessidade do seguimento de Cristo. Deixava o mundo perverso e entrava no mundo do Senhor para depois voltar, transfigurado e diferente, a esse mesmo mundo que tinha saído e saía das mãos do Altíssimo e bom Senhor, criador das flores, verduras e vento. Fundamental foi o encontro de Francisco com o trapo humano do leproso. Esse marginalizado era vestígio gritante do leproso que é Cristo. Pensando no amor de Cristo por todos os homens, Francisco toma uma dupla decisão: associar-se a todos os pequenos da terra e viver de tal forma que nada impedisse a concretização do amor de Cristo em todos. Seu estilo de vida deveria ser testemunho claro de um mundo renovado, nascido da penitência.
A partir do seguimento de Cristo em tudo, a oração de Francisco necessariamente passa a se identificar com a realização da vontade de Deus. Nas Cartas que escreveu, Francisco não cessa de repetir essa verdade: Cristo colocou sua vontade na realização da vontade de Deus (cf. 2CtFi 10). O projeto de realizar a vontade de Deus, à imitação de Cristo, transforma toda a vida de Francisco em acolhida orante dos desígnios do Pai. Não são os que fazem discursos a respeito de Deus que entram na nova ordem do Reino, mas os que fazem a vontade do Pai (cf. Mt 7,21-23). O homem de oração é aquele que vive atento, na vida de todos os dias, a realizar o projeto de Deus para o mundo. O Amor de Deus se patenteia em Jesus e o discípulo do Senhor ouve o Filho Amado do Pai. 

A partir da cruz de Jesus nascem exigências novas: fraternidade sem restrições, abolição de privilégios, mundo sem barreiras, atitudes de humildade e entrega, respeito pelos homens que são amados por Deus e foram objeto de seu amor crucificado. O Amor que se fez cruz quer a libertação integral do homem, mormente do pecado. O contato orante do discípulo não poderá limitar-se à penumbra de uma gruta ou à solidão de uma igreja abandonada. Todas as servidões humanas, todos os pesos da opacidade da carne impedem o sucesso definitivo do gesto amoroso do Deus-Homem que morre na cruz. “Em todos os tempos, os símbolos que mantêm o homem prisioneiro são sempre fundamentalmente os mesmos, havendo somente a predominância de um ou de outro, aqui e ali. São eles: o sofrimento físico que atinge a vida, o sofrimento moral dos mais fracos provocado por várias formas de prepotência, tirania, violência; a marginalização e a intolerância para com os pobres, as mulheres, as crianças; o aproveitamento dos mais indefesos e dos mais fracos, favorecido e perpetrado por sutis estruturas dominadas por interesses econômicos; a exclusão da plena inserção na comunidade civil e eclesiástica devido a instituições que se colocam acima dos indivíduos ou de movimentos não-institucionais ou se substituam às prerrogativas individuais; os condicionamentos indevidos das religiões; a incompreensão para com a fraqueza moral dos homens”.

Iluminado pela dimensão do seguimento de Cristo, a oração de Francisco se identifica plenamente com o fazer a vontade de Deus colocando seus passos nos passos de Cristo. A oração da caverna se une à prática da missão no meio do mundo, lugar onde se decide o amanhã dos homens. Trata-se de um ir pelo mundo. Inspirando-se no texto da Legenda Perusina, E. Lehmann afirma que a cela não está vinculada de maneira absoluta a um lugar concreto ou a um espaço. E uma maneira de viver. “Embora vades em viagem, seja santo o vosso conversar, como se estivésseis no vosso eremitério ou na vossa cela, visto que, onde quer que estejamos ou por onde andarmos, levamos conosco a nossa cela, que é nosso irmão Corpo; e a Alma é o eremita, que mora dentro para orar e contemplar o Senhor” (LP 80) .

3. Lendo nas páginas do Livro da Cruz

A vida de Francisco, depois de sua conversão, é emoldurada por duas fortes imagens da cruz: a cruz de São Damião e a cruz do Alverne. Diante do belo e sereno crucifixo de São Damião, Francisco teria proferido esta prece: “Ó glorioso Deus altíssimo, iluminai as trevas de meu coração, concedei-me uma fé verdadeira, uma esperança firme e um amor perfeito. Dai-me, Senhor, o (reto) sentir e conhecer, a fim de que possa cumprir o sagrado encargo que acabais de me dar”. Liga cruz e desejo de fazer a vontade de Deus. Ao longo de sua trajetória haverá de manifestar seu amor e sua união à cruz: “Nós vos adoramos, Santíssimo Senhor Jesus Cristo, aqui e em todas as vossas igrejas que estão no mundo inteiro e vos bendizemos porque pela vossa santa cruz remistes o mundo” (Test 5).
Ninguém pode negar quanto ele amava as palavras de Jesus. Mas é certo que ele tinha mais gosto e mais facilidade em ler a vontade de Deus nas páginas do Livro da Cruz. Boaventura lembra um curioso detalhe durante a permanência de Francisco com seus irmãos no tugúrio de Rivotorto: “Entregavam-se ali a santos e piedosos exercícios; sua oração devota e quase nunca interrompida era mais mental do que vocal, pois não dispunham de livros litúrgicos pelos quais pudessem rezar as horas litúrgicas. Mas na falta desses, revolviam dia e noite o livro da Cruz de Cristo, que sempre tinham à vista, incitados pelo exemplo e pela palavra do amantíssimo Pai, que frequentemente lhes pregava com inefável doçura as glórias da Cruz de Cristo” (LM4,3).

No final de sua vida, depois de ter encontrado a cruz dos sofrimentos de seu corpo e de toda sorte de contrariedades com o andamento de sua Ordem, Francisco haverá de encontrar a cruz luminosa do Alverne. Na verdade não poucas adversidades pontilharam sua caminhada. Algumas vezes as cruzes lhe chegaram devido à sua falta de critério em mortificações corporais. Muitas delas se exprimiam em doenças e enfermidades. A maior delas parece ter chegado devido ao fato de não poder conservar em sua família religiosa o espírito primitivo dos inícios. No final da caminhada, ele chega à solidão do Alverne. Os Fioretti transcrevem densa e belíssima oração de Francisco antes de vislumbrar o Serafim alado e de ser marcado com os sinais da carne do crucificado: “Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças eu te peço que me faças antes que eu morra: a primeira é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora de tua acerbíssima paixão; a segunda é que eu sinta em meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores” (Consid. Estig, 3). O que se passa no Alverne é a conclusão de uma vida de união intensa com Deus. Ali se misturam dor e amor. Os grandes místicos sempre souberam paradoxalmente unir amor e dor. Tendo recebido os estigmas tornou-se efetivamente um outro Cristo. Neste momento cessam as palavras. Há uma fusão de amor vivida e experimentada que foi visibilizada nos estigmas que Francisco cobriu discretamente para não serem vistos. Eram os segredos do Rei.

4. Rezar com os outros

Por mais que Francisco fosse atraído pela solidão das grutas, ele sabe e quer rezar com os outros e ser sacerdote da criação inteira. Já dissemos que Francisco recomendava que os frades levassem sua “cela” interior pelo mundo afora. Nesta parte de nosso estudo queremos chamar atenção para a recitação das horas canônicas da Igreja e para sua oração com e pela criação. Seria grave falta de compreensão da figura deste homem feito oração se não levássemos em consideração estes dois aspectos.

Elemento fundamental do modo de vida de Francisco e dos seus era a fraternidade. Evidentemente esses andarilhos que eram os frades deviam se reunir muitas vezes. Mesmo quando eram muito poucos, um ponto de encontro marcado era para o Ofício divino. Francisco e Clara compreenderam que o Ofício era um dom recebido da Igreja. Fiel e devotamente os frades menores e as pobres irmãs haveriam de ser fiéis à recitação das horas canônicas. Tanto uns quanto outros se haviam constituído em famílias dentro da Igreja. E essa Igreja lhes confiava a bela tarefa de rezar com ela e nela, como membros de um grande Corpo.

“Embora a celebração do Ofício divino não apareça tematizada com amplitude e detalhes nos escritos e nas biografias de Francisco e Clara, sem dúvida, os dados que nos são oferecidos nos permitem dizer que para eles celebrar o Ofício divino era uma, e a primeira, das atividades que o seguimento de Cristo lhes impunha. Esta celebração era expressão de sua devoção, comunhão com a oração de Cristo em seus mistérios e dom que a Igreja faz à Fraternidade, por meio do qual os irmãos se unem em  fraternidade dentro da comunhão eclesial” . Não podemos esquecer que o próprio Francisco escreveu um ofício próprio, o da paixão, que retrata seu conhecimento da estrutura da oração da Igreja e coloca em realce o mistério da encarnação/paixão de Jesus.

A vontade de Francisco aparece claramente expressa em seus escritos. Tanto na RNB quanto na RB o ofício é colocado em relação ao jejum. “Rezem os clérigos o ofício divino, por isso podem ter breviários, segundo a ordem da Santa Igreja romana, exceto o Saltério (RB 3,1). “… todos os irmãos, sejam clérigos ou leigos, recitem o ofício divino, as ações de graças e demais orações, como é de sua obrigação” (RNB 3,3). Francisco emprega palavras duras no seu Testamento. Considerando-se homem simples, bastante enfermo assim se exprime: “E embora eu seja simples e enfermo quero contudo ter sempre junto a mim um clérigo que reze comigo o ofício segundo manda a Regra (29)”. Demonstra assim uma atitude de total fidelidade a esta missão que a Igreja lhe confiou e mesmo quando já se poderia considerar dispensado, quer um companheiro que o ajude a louvar a Deus com a oração da Igreja. “E todos os irmãos estejam obrigados a obedecer de igual modo aos seus guardiães e a rezar o ofício segundo manda a Regra. E se acaso houver quem não reze o ofício segundo o preceito da Regra e introduzir um modo diferente ou não seja católico, todos os irmãos, onde quer que estiverem e acharem um deles, são obrigados sob obediência a levá-lo ao custódio mais próximo do lugar onde o tiverem encontrado (Test 30s). São palavras bastante duras e que só podem ser entendidas a partir da concepção que Francisco tem da dependência com a Igreja Romana e suas determinações e também ao fato de ver nesse ofício uma oração da fraternidade que revive os mistérios de Cristo. Mais duras ainda são suas palavras na CtOr. Ali ela aborda duas questões: a necessidade de rezar com o coração e não simplesmente de forma bela a agradar os ouvidos dos homens e o problema dos irmãos que não querem observar o ofício divino. “Rogo, pois insistentemente ao ministro geral Frei H(elias), meu senhor, que faça observar a Regra por todos inviolavelmente, e que os clérigos digam o oficio divino com devoção diante de Deus, atendendo não tanto à harmonia da voz mas antes à sua concordância com o espírito, de modo que a voz se una ao espírito, e o espírito se harmonize com Deus. Assim, eles podem agradar a Deus pela pureza do coração e não lisonjear os ouvidos do povo pela delícia da voz. Quanto a mim prometo observar rigorosamente estes pontos, à medida em que o Senhor me der sua graça, e quero que os irmãos que estão comigo o observem no ofício divino e nos demais exercícios regulares. Mas aqueles irmãos que não quiserem observar, não os considerarei nem como católicos, nem como irmãos: nem quero vê-los nem falar-lhes, enquanto não mudarem de atitude…» (CtOr 40-44).

Dos textos transcritos podemos compreender que a recitação do Ofício divino não era uma atividade optativa dos frades. Tratava-se de uma obrigação. Tratava-se de incumbência dada pela Igreja e marcada pela força da Regra. Não se trata simplesmente de um formalismo a ser observado. Será preciso rezar a partir do coração, “com pureza de coração”. Os irmãos, desta forma, estariam unidos à Igreja já que eram uma fraternidade constituída na Igreja. Não se pode deixar de colocar em evidência a união desejada pelo Fundador com os mistérios de Cristo. Os frades estariam unidos ali à oração de Cristo, única verdade e único caminho para o Pai. Assim, a oração se coloca na linha do seguimento. Francisco não se faz homem de oração isoladamente. Quer se consumir diante de Deus no coração de sua fraternidade que é célula da Igreja.

Dentro da mesma perspectiva do rezar com os outros situa-se a oração de Francisco no coração do mundo criado. Francisco não despreza o mundo. Sempre soube vincular sua oração com a natureza. Desapropriado de tudo, sem alimentar em seu interior o sentido de posse e dominação sobre pessoas e sobre a natureza, Francisco é o homem que se considera constantemente um agraciado. Recebe irmãos e recebe os dons da criação. Evidentemente, o momento mais sublime do louvor de Deus em suas criaturas proferido por Francisco é o Cântico do Irmão Sol. Não é aqui o lugar de examinar exaustivamente o teor desta prece nem situá-la em seu verdadeiro contexto. Limitamo-nos a poucas observações, sempre tendo em mente nosso assunto que é mostrar Francisco como homem feito oração.
Transcrevemos dois textos dos biógrafos que mostram essa fraternização com o criado e ao mesmo tempo a forma de oração desse homem que em tudo andava procurando vestígios do Amado e via na criação toda como que uma “caligrafia de Deus”.

“Embora desejasse sair logo deste mundo como se fosse um exílio de peregrinação, este feliz viajante sabia aproveitar o que há no mundo, e bastante. Usava o mundo como um campo de batalha com os príncipes das trevas, mas também como um espelho claríssimo da bondade de Deus. Louvava o Criador em todas as suas obras e sabia atribuir os atos a seu Autor. Exultava em todas as obras das mãos do Senhor e enxergava a razão e a causa vivificantes através dos espetáculos que lhe davam prazer.

Nas coisas belas reconhecia aquele que é o mais belo e que todas as coisas boas clamavam: ‘Quem nos fez é ótimo’. Seguia sempre o Amado pelos vestígios que deixou nas coisas e fazia de tudo uma escada para chegar ao seu trono” (2Cel 165). “Nós que vivemos com ele vimo-lo rejubilar-se interior e exteriormente à vista de todas as criaturas. Era tal o seu amor por estas maravilhosas criaturas que, ao tocá-las ou vê-las, seu espírito parecia não mais pertencer à terra, mas ao céu. Por causa do grande consolo que recebeu destas criaturas, compôs pouco antes de sua morte os ‘Louvores ao Senhor nas suas criaturas’ para incitar os corações dos que os ouvissem a louvar a Deus e para louvar, ele próprio, ao Senhor nas suas criaturas” (EP 118).

Francisco não é um orante solitário. Reza com seus irmãos. Compõe orações que todos poderiam recitar. Une-se também aos seres irracionais e inanimados. Sabe que a fonte de todos é o único Pai. Francisco tem consciência pleníssima da paternidade universal de Deus que generosamente transborda nas criaturas todas. A criação é uma carta enviada pelo Pai aos seus filhos os homens que se tornam assim cantores e sacerdotes de todo o criado. Neste sentido, o Cântico do Sol é expressão do mais alto louvor da criação. E. Leclerc define este Cântico como um grande impulso na direção de Deus. Esse elã é tão veemente que desaparece num ato de adoração e de silêncio diante daquele “que humano algum é digno de mencionar”. Nesse momento, Francisco se inclui humildemente entre todas as criaturas e seu louvor é tão perfeito que se torna também magnífica exaltação das criaturas .

Conclusão

Toda a vida do Poverello era oração. Nada está desvinculado da comunhão com Deus. Francisco é um contemplativo na ação. Sabemos da importância que ele dava ao trabalho manual. Queria que seus frades sempre trabalhassem e quem não o soubesse, que aprendesse alguma coisa porque abominava o “irmão mosca”. “Os irmãos, aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar, trabalhem com fidelidade e devoção, de maneira que afugentem o ócio, inimigo da alma, e não percam o espírito de oração e de piedade ao qual devem servir todas as coisas temporais” (RB 5,1-2). O trabalho é uma graça, como também a oração é graça. Há uma fundamental unidade entre vida contemplativa e vida ativa. Francisco não está  sugerindo que, durante a realização do trabalho, os frades se entreguem a orações vocais ou análogas. É sempre o Espírito, o dom de Deus, que valoriza tudo na vida. O trabalho e qualquer atividade precisam ser realizadas em união profunda com Deus. Tudo tem que ser piedoso e devoto. Francisco une contemplação e ação (9).

Francisco sempre busca a Deus. Procura-o e ouve sua voz na solidão. Era um homem habituado ao silêncio das profundezas e da profundidade. Acolhe esse Senhor no mal amado, imagem de Cristo. Reage contra toda negligência com os irmãos amados por Deus. Rezar é amar o irmão e adotar um estilo de vida consentâneo aos desígnios de Deus e tornar possível e conhecida a graça que vem da cruz do Senhor. A oração ganha intensidade quando é feita a partir do amor louco e desmesurado da cruz. Quem lê no livro da Cruz mistura em seu interior dor e amor. A oração se alimenta de toda Palavra que sai da boca de Deus. É realização da Palavra.  O orante une sua voz à voz dos irmãos todos e reza com a Igreja. Não deixa de incluir e inserir em sua oração as criaturas mais insignificantes. Eleva até o Criador o hino de louvor pelo sol, pelas estrelas, pelo vento, pela vida e pela morte. Realmente, Francisco não é somente um grande orante, mas a própria oração.
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Texto de Almir R. Guimarães, publicado nos “Cadernos Franciscanos/5”, Cefepal e Vozes, 1993