2 de outubro de 2013

Francisco de Assis, um homem feito oração

Transformado não só em orante, mas na própria oração (totus non tam orans quam oratio factus), unia a atenção e o afeto num único desejo que dirigia ao Senhor.
(2Cel 95)




Segundo Celano, Francisco de Assis é a personificação da oração. Dificilmente poder-se-ia ter encontrado uma fórmula mais sintética e mais verdadeira para descrever a dimensão orante de São Francisco. Todo ele se tinha transformado em oração. Ele é o homem do ininterrupto diálogo com o Senhor. Depois de sua conversão, Francisco passa a viver na atmosfera de Deus.  O Poverello percorreu um longo e maravilhoso itinerário em seu relacionamento com Deus: há os suspiros profundos de insatisfação com sua vida quando é chamado a se dirigir a novos horizontes; percorre as planícies onde estão seus irmãos os homens, mormente seus irmãos na vocação de seguimento do Senhor e da forma do santo Evangelho; há essa comunhão constante e amorosa com o Senhor Jesus; passa pela exaltação da bondade do Criador manifestada no sol e nas estrelas, na água e na mãe terra; atinge o píncaro mais solene na configuração do santo a Cristo Jesus no alto do Tabor franciscano que é o Alverne. Ali Francisco poderia efetivamente dizer com Paulo: “Já não sou eu quem vivo, mas é Cristo que vive em mim” (01 2,20).

Nosso intuito não é fazer um estudo exaustivo sobre o tema da oração em Francisco. Há riquíssima e abundante bibliografia sobre o tema . Queremos apenas chamar atenção para alguns aspectos da figura de Francisco que o tornam um homem, feito oração. Num primeiro momento veremos como o Deus grande e altíssimo foi tomando conta do interior de Francisco e o seduzindo. Tudo em Francisco, também a oração, só se entende a partir da sequela de Cristo. Importante, no contexto deste estudo, chamar atenção para o caráter fundamental do manuseio do Livro da Cruz. Embora atraído pelo silêncio e disposto a estar solitariamente unido ao Senhor, Francisco é o homem que reza com os irmãos e chega mesmo a se tornar o maior cantor dos bens de Deus derramados na criação.

1. Dar lugar a um Outro

A oração é, efetivamente, um mistério. É uma experiência que se faz e não um discurso que se profere. Tem muito a ver com a amizade e o amor. É relacionamento entre a fraqueza e a plenitude, o amante e a amada, o esposo e a esposa. Pela oração, o homem tenta aproximar-se de seu Senhor que é amor, fogo, exigência, fonte de vida, misericórdia, paz e plenitude. Francisco viveu o relacionamento com Deus como plenitude inebriante. Os louvores ao Deus altíssimo, escritos por São Francisco no final de sua vida, no verso da bênção dada a Frei Leão: “… Vós sois o Forte… o Grande… o Altíssimo… a Delícia do amor… a Sabedoria… a Humildade… a Beleza… nossa eterna vida, ó grande e maravilhoso Deus, Senhor onipotente, misericordioso Redentor” (LDA). Curioso observar que neste texto, escrito quase no final de sua vida, haja tão pouca alusão a Cristo. Sente-se neste escrito um transbordamento talvez não encontrado em outro místico da história da Igreja. Tem-se a impressão de que
o Amante seduziu o amado. Esta sedução foi tão forte que seu biógrafo chegou a afirmar que o santo estava separado de Deus «apenas pela parede da carne” e “procurava estar sempre presente no céu” (cf. 2Cel 94).

Desde o momento de sua conversão, Francisco é alguém que procura fazer espaço em si para a chegada de um Outro. Assim, ele começou a ser trabalhado pelo Espírito. Michel Hubaut concebe a oração em São Francisco como abertura ao Espírito . Foi fazendo lugar dentro de si para acolher um Outro e viver em função dele. Houve um momento na trajetória de Francisco em que era preciso romper com ânsias e desejos, ambições e projetos pessoais. O processo da conversão de Francisco é marcado por um período de vazio, de não sentido, de espera de alguma coisa. Os dias longos passados na prisão de Perúsia, a prolongada enfermidade, os sonhos que povoavam tumultuadamente seu interior foram levando Francisco do exterior para o interior, do aparente para o essencial, do ilusório para a verdade. Nesse período, Francisco vive na atmosfera de perguntas, questionamentos, insatisfações. “Que queres de mim? Que queres que eu faça? Por que esta insatisfação dentro de mim? Estas questões são bem parecidas com aqueles que se colocam todos os que começam a aventura da entrega de suas vidas ao Mistério de Deus.

Mjchel Hubaut ainda observa: “O Espírito o orienta rumo ao futuro imprevisto de Deus. Nele desperta uma ‘faculdade interior’ e descobre que capaz de colocá-lo em relação com Deus. Se o homem tem dificuldade em entrar em contato com Deus é porque perdeu o caminho do seu ‘coração’ que se tornou, como diz São Paulo, ‘sem inteligência e obscurecido’, covarde e inútil” . Os grandes orantes sempre foram pessoas que visitaram seu interior a fim de que lá encontrassem Alguém que os queria
plenificar. Quem quer fazer essa experiência de plenitude despoja-se de tudo, toma distância de sua autossuficiência, renuncia a si mesmo. Sem esse vazio interior, vazio de si, muitas vezes doloroso, não há possibilidade da chegada do Outro.

Eloi Leclerc mostra como Francisco começa a despojar-se de glórias humanas e do desejo do prestígio. Experimenta uma insatisfação com tudo o que realiza. Aos poucos vai se dirigindo para uma região de profundidade. Francisco seria o homem da profundidade. “A partir deste dia (pouco antes da conversão), inaugura-se, na vida de Francisco, um período de silêncio. Uma necessidade imperiosa de silêncio toma conta dele. Procura afastar-se da agitação mundana e do mundo dos negócios. Esforça-se, segundo a expressão de Tomás de Celano, ‘por reter Jesus Cristo em seu interior’ (1Cel 6). A superfície do mundo tão cheia de brilho não mais o atrai. Procura a profundidade de uma caverna ou a sombra de uma capela solitária nos campos. Lá acha o seu tesouro, diz ele. Passa aí horas a fio. Tornou-se um homem chamado pela profundidade”.
Quem reencontra o caminho do coração e se dirige às regiões da profundidade começa um novo êxodo ou empreende uma viagem como a de Abraão: deixa suas seguranças, sua parentela, a terra firme em que costumava pisar e se dirige para horizontes novos que Deus haverá de lhe indicar. O que vai acontecer é mistério que está nas mãos e no coração de Deus. Certamente maravilhas poderão ser operadas se o convidado tiver a coragem de despojar-se a si mesmo de planos e projetos e acolher a visita do Inesperado.

Francisco experimentará durante toda a sua vida uma imperiosa necessidade da oração silenciosa e de espaços de recolhimento. A vida e a trajetória de Francisco são pontilhadas de lugares ermos e de eremitérios. Descobre o gosto pelo silêncio na vetusta e arruinada capela de São Damião. Mais tarde, as clarissas viveriam ali intensíssima contemplação silenciosa. Os biógrafos são generosos em lembrar esses lugares silenciosos e eremíticos: Poggio Bustone, Greccio, Fonte Colombo, Rivo Torto, Narni. Lugar de silêncio e de oração era o Alverne, píncaro de sua vida de união com Deus, monte da transfiguração dolorosa desse amante de Deus. Desejou sempre com grande intensidade a vida eremítica. Queria o retiro exterior nos bosques, nas fendas dos rochedos e nas capelas abandonadas. “Quando rezava nos matos e nos lugares desertos, enchia os bosques de gemidos, derramava lágrimas por toda a parte, batia no peito e, achando-se mais escondido que num esconderijo, conversava muitas vezes em voz alta com o seu Deus. Respondia ao juiz, fazia pedidos ao Pai, conversava com o amigo, brincava com o esposo” (2Ce1 95).
Nestas longas e intermináveis jornadas de oração, Francisco foi acolhendo a visita do Espírito, acolhendo um dom que ele mesmo, por suas próprias forças, nunca poderia se oferecer. A oração não é em primeiro lugar alguma coisa que fazemos, mas uma acolhida que damos. O orante permite que Deus se aposse dele: “Quer andasse ou parasse, viajando ou residindo no convento, trabalhando ou repousando, entregava-se à oração, de modo que parecia ter consagrado a ela todo o seu coração e todo o seu corpo, toda a sua atividade e todo o seu tempo. Compenetrado destas verdades jamais desprezava por negligência qualquer visita do Espírito; mas ao contrário, sempre que elas se apresentavam, seguia-as cuidadosamente e, enquanto duravam, procura gozar da doçura que lhe comunicavam” (LM 10,1-2). Francisco não é mais dono de si, de sua história, de seu presente e de seu futuro. Está sempre nas mãos do Altíssimo esperando suas novas manifestações, sempre no mistério da fé. Forçosamente, o Deus Altíssimo dos cristãos se manifesta na pobreza e no aniquilamento de Cristo Jesus. Por isso, o seguimento de Jesus será caminho de amadurecimento de sua oração que vai se tornar “crística”.

2. No seguimento de Jesus

Na trajetória espiritual de Francisco ficou claro que sua vida seria seguimento de Cristo. “A Regra e a vida destes irmãos é esta: viver em obediência, em castidade, sem propriedade; e seguir a doutrina e as pegadas de nosso Senhor Jesus Cristo (RNB 1,1-2). Logo depois destas palavras da Regra não Bulada, Francisco evoca os textos do seguimento: vender tudo, renunciar a si mesmo e tomar a cruz, deixar terras, esposa e esposo para a construção do Reino. Não é aqui o lugar de desenvolver a temática do seguimento de Cristo em alguns pontos característicos e precisos. Sabemos que os acontecimentos foram se atropelando em sua vida. Depois de um terrível vazio em seu interior vai vislumbrando uma presença que ia enchendo de júbilo seu coração. Coloca-se diante do Crucifixo de São Damião e vê que seus lábios mexem. O Crucificado pede que ele seja reconstrutor de sua casa que estava em ruínas. Ouve depois as palavras do Amor no Evangelho da festa de São Matias e compreende que precisa ir pelo mundo com seus irmãos, sem calçados, sem sacola, sem bagagem anunciando a paz e o amor do Amor que não era amado. Em toda esta trajetória Francisco descobre o despojamento, aniquilamento, pobreza e humildade de Jesus, de sua Mãe e dos apóstolos. Sabemos que foi fundamental nesta sequela de Cristo o encontro com o leproso.
Todos os estudiosos do franciscanismo voltam-se sempre às primeiras linhas do Testamento de Francisco: “Foi assim que o Senhor me concedeu a mim, Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência: como eu estivesse em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para leprosos. E o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia para com eles. E enquanto me retirava deles, justamente antes o que me parecia amargo se me converteu em doçura da alma e do corpo. E depois disto demorei só bem pouco e abandonei o mundo” (Test 1-3).

Francisco começa a abandonar o mundo de Assis. Não externa, mas interiormente ele deixava uma maneira de viver. Entrava no universo do Evangelho marcado pela necessidade do seguimento de Cristo. Deixava o mundo perverso e entrava no mundo do Senhor para depois voltar, transfigurado e diferente, a esse mesmo mundo que tinha saído e saía das mãos do Altíssimo e bom Senhor, criador das flores, verduras e vento. Fundamental foi o encontro de Francisco com o trapo humano do leproso. Esse marginalizado era vestígio gritante do leproso que é Cristo. Pensando no amor de Cristo por todos os homens, Francisco toma uma dupla decisão: associar-se a todos os pequenos da terra e viver de tal forma que nada impedisse a concretização do amor de Cristo em todos. Seu estilo de vida deveria ser testemunho claro de um mundo renovado, nascido da penitência.
A partir do seguimento de Cristo em tudo, a oração de Francisco necessariamente passa a se identificar com a realização da vontade de Deus. Nas Cartas que escreveu, Francisco não cessa de repetir essa verdade: Cristo colocou sua vontade na realização da vontade de Deus (cf. 2CtFi 10). O projeto de realizar a vontade de Deus, à imitação de Cristo, transforma toda a vida de Francisco em acolhida orante dos desígnios do Pai. Não são os que fazem discursos a respeito de Deus que entram na nova ordem do Reino, mas os que fazem a vontade do Pai (cf. Mt 7,21-23). O homem de oração é aquele que vive atento, na vida de todos os dias, a realizar o projeto de Deus para o mundo. O Amor de Deus se patenteia em Jesus e o discípulo do Senhor ouve o Filho Amado do Pai. 

A partir da cruz de Jesus nascem exigências novas: fraternidade sem restrições, abolição de privilégios, mundo sem barreiras, atitudes de humildade e entrega, respeito pelos homens que são amados por Deus e foram objeto de seu amor crucificado. O Amor que se fez cruz quer a libertação integral do homem, mormente do pecado. O contato orante do discípulo não poderá limitar-se à penumbra de uma gruta ou à solidão de uma igreja abandonada. Todas as servidões humanas, todos os pesos da opacidade da carne impedem o sucesso definitivo do gesto amoroso do Deus-Homem que morre na cruz. “Em todos os tempos, os símbolos que mantêm o homem prisioneiro são sempre fundamentalmente os mesmos, havendo somente a predominância de um ou de outro, aqui e ali. São eles: o sofrimento físico que atinge a vida, o sofrimento moral dos mais fracos provocado por várias formas de prepotência, tirania, violência; a marginalização e a intolerância para com os pobres, as mulheres, as crianças; o aproveitamento dos mais indefesos e dos mais fracos, favorecido e perpetrado por sutis estruturas dominadas por interesses econômicos; a exclusão da plena inserção na comunidade civil e eclesiástica devido a instituições que se colocam acima dos indivíduos ou de movimentos não-institucionais ou se substituam às prerrogativas individuais; os condicionamentos indevidos das religiões; a incompreensão para com a fraqueza moral dos homens”.

Iluminado pela dimensão do seguimento de Cristo, a oração de Francisco se identifica plenamente com o fazer a vontade de Deus colocando seus passos nos passos de Cristo. A oração da caverna se une à prática da missão no meio do mundo, lugar onde se decide o amanhã dos homens. Trata-se de um ir pelo mundo. Inspirando-se no texto da Legenda Perusina, E. Lehmann afirma que a cela não está vinculada de maneira absoluta a um lugar concreto ou a um espaço. E uma maneira de viver. “Embora vades em viagem, seja santo o vosso conversar, como se estivésseis no vosso eremitério ou na vossa cela, visto que, onde quer que estejamos ou por onde andarmos, levamos conosco a nossa cela, que é nosso irmão Corpo; e a Alma é o eremita, que mora dentro para orar e contemplar o Senhor” (LP 80) .

3. Lendo nas páginas do Livro da Cruz

A vida de Francisco, depois de sua conversão, é emoldurada por duas fortes imagens da cruz: a cruz de São Damião e a cruz do Alverne. Diante do belo e sereno crucifixo de São Damião, Francisco teria proferido esta prece: “Ó glorioso Deus altíssimo, iluminai as trevas de meu coração, concedei-me uma fé verdadeira, uma esperança firme e um amor perfeito. Dai-me, Senhor, o (reto) sentir e conhecer, a fim de que possa cumprir o sagrado encargo que acabais de me dar”. Liga cruz e desejo de fazer a vontade de Deus. Ao longo de sua trajetória haverá de manifestar seu amor e sua união à cruz: “Nós vos adoramos, Santíssimo Senhor Jesus Cristo, aqui e em todas as vossas igrejas que estão no mundo inteiro e vos bendizemos porque pela vossa santa cruz remistes o mundo” (Test 5).
Ninguém pode negar quanto ele amava as palavras de Jesus. Mas é certo que ele tinha mais gosto e mais facilidade em ler a vontade de Deus nas páginas do Livro da Cruz. Boaventura lembra um curioso detalhe durante a permanência de Francisco com seus irmãos no tugúrio de Rivotorto: “Entregavam-se ali a santos e piedosos exercícios; sua oração devota e quase nunca interrompida era mais mental do que vocal, pois não dispunham de livros litúrgicos pelos quais pudessem rezar as horas litúrgicas. Mas na falta desses, revolviam dia e noite o livro da Cruz de Cristo, que sempre tinham à vista, incitados pelo exemplo e pela palavra do amantíssimo Pai, que frequentemente lhes pregava com inefável doçura as glórias da Cruz de Cristo” (LM4,3).

No final de sua vida, depois de ter encontrado a cruz dos sofrimentos de seu corpo e de toda sorte de contrariedades com o andamento de sua Ordem, Francisco haverá de encontrar a cruz luminosa do Alverne. Na verdade não poucas adversidades pontilharam sua caminhada. Algumas vezes as cruzes lhe chegaram devido à sua falta de critério em mortificações corporais. Muitas delas se exprimiam em doenças e enfermidades. A maior delas parece ter chegado devido ao fato de não poder conservar em sua família religiosa o espírito primitivo dos inícios. No final da caminhada, ele chega à solidão do Alverne. Os Fioretti transcrevem densa e belíssima oração de Francisco antes de vislumbrar o Serafim alado e de ser marcado com os sinais da carne do crucificado: “Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças eu te peço que me faças antes que eu morra: a primeira é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora de tua acerbíssima paixão; a segunda é que eu sinta em meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores” (Consid. Estig, 3). O que se passa no Alverne é a conclusão de uma vida de união intensa com Deus. Ali se misturam dor e amor. Os grandes místicos sempre souberam paradoxalmente unir amor e dor. Tendo recebido os estigmas tornou-se efetivamente um outro Cristo. Neste momento cessam as palavras. Há uma fusão de amor vivida e experimentada que foi visibilizada nos estigmas que Francisco cobriu discretamente para não serem vistos. Eram os segredos do Rei.

4. Rezar com os outros

Por mais que Francisco fosse atraído pela solidão das grutas, ele sabe e quer rezar com os outros e ser sacerdote da criação inteira. Já dissemos que Francisco recomendava que os frades levassem sua “cela” interior pelo mundo afora. Nesta parte de nosso estudo queremos chamar atenção para a recitação das horas canônicas da Igreja e para sua oração com e pela criação. Seria grave falta de compreensão da figura deste homem feito oração se não levássemos em consideração estes dois aspectos.

Elemento fundamental do modo de vida de Francisco e dos seus era a fraternidade. Evidentemente esses andarilhos que eram os frades deviam se reunir muitas vezes. Mesmo quando eram muito poucos, um ponto de encontro marcado era para o Ofício divino. Francisco e Clara compreenderam que o Ofício era um dom recebido da Igreja. Fiel e devotamente os frades menores e as pobres irmãs haveriam de ser fiéis à recitação das horas canônicas. Tanto uns quanto outros se haviam constituído em famílias dentro da Igreja. E essa Igreja lhes confiava a bela tarefa de rezar com ela e nela, como membros de um grande Corpo.

“Embora a celebração do Ofício divino não apareça tematizada com amplitude e detalhes nos escritos e nas biografias de Francisco e Clara, sem dúvida, os dados que nos são oferecidos nos permitem dizer que para eles celebrar o Ofício divino era uma, e a primeira, das atividades que o seguimento de Cristo lhes impunha. Esta celebração era expressão de sua devoção, comunhão com a oração de Cristo em seus mistérios e dom que a Igreja faz à Fraternidade, por meio do qual os irmãos se unem em  fraternidade dentro da comunhão eclesial” . Não podemos esquecer que o próprio Francisco escreveu um ofício próprio, o da paixão, que retrata seu conhecimento da estrutura da oração da Igreja e coloca em realce o mistério da encarnação/paixão de Jesus.

A vontade de Francisco aparece claramente expressa em seus escritos. Tanto na RNB quanto na RB o ofício é colocado em relação ao jejum. “Rezem os clérigos o ofício divino, por isso podem ter breviários, segundo a ordem da Santa Igreja romana, exceto o Saltério (RB 3,1). “… todos os irmãos, sejam clérigos ou leigos, recitem o ofício divino, as ações de graças e demais orações, como é de sua obrigação” (RNB 3,3). Francisco emprega palavras duras no seu Testamento. Considerando-se homem simples, bastante enfermo assim se exprime: “E embora eu seja simples e enfermo quero contudo ter sempre junto a mim um clérigo que reze comigo o ofício segundo manda a Regra (29)”. Demonstra assim uma atitude de total fidelidade a esta missão que a Igreja lhe confiou e mesmo quando já se poderia considerar dispensado, quer um companheiro que o ajude a louvar a Deus com a oração da Igreja. “E todos os irmãos estejam obrigados a obedecer de igual modo aos seus guardiães e a rezar o ofício segundo manda a Regra. E se acaso houver quem não reze o ofício segundo o preceito da Regra e introduzir um modo diferente ou não seja católico, todos os irmãos, onde quer que estiverem e acharem um deles, são obrigados sob obediência a levá-lo ao custódio mais próximo do lugar onde o tiverem encontrado (Test 30s). São palavras bastante duras e que só podem ser entendidas a partir da concepção que Francisco tem da dependência com a Igreja Romana e suas determinações e também ao fato de ver nesse ofício uma oração da fraternidade que revive os mistérios de Cristo. Mais duras ainda são suas palavras na CtOr. Ali ela aborda duas questões: a necessidade de rezar com o coração e não simplesmente de forma bela a agradar os ouvidos dos homens e o problema dos irmãos que não querem observar o ofício divino. “Rogo, pois insistentemente ao ministro geral Frei H(elias), meu senhor, que faça observar a Regra por todos inviolavelmente, e que os clérigos digam o oficio divino com devoção diante de Deus, atendendo não tanto à harmonia da voz mas antes à sua concordância com o espírito, de modo que a voz se una ao espírito, e o espírito se harmonize com Deus. Assim, eles podem agradar a Deus pela pureza do coração e não lisonjear os ouvidos do povo pela delícia da voz. Quanto a mim prometo observar rigorosamente estes pontos, à medida em que o Senhor me der sua graça, e quero que os irmãos que estão comigo o observem no ofício divino e nos demais exercícios regulares. Mas aqueles irmãos que não quiserem observar, não os considerarei nem como católicos, nem como irmãos: nem quero vê-los nem falar-lhes, enquanto não mudarem de atitude…» (CtOr 40-44).

Dos textos transcritos podemos compreender que a recitação do Ofício divino não era uma atividade optativa dos frades. Tratava-se de uma obrigação. Tratava-se de incumbência dada pela Igreja e marcada pela força da Regra. Não se trata simplesmente de um formalismo a ser observado. Será preciso rezar a partir do coração, “com pureza de coração”. Os irmãos, desta forma, estariam unidos à Igreja já que eram uma fraternidade constituída na Igreja. Não se pode deixar de colocar em evidência a união desejada pelo Fundador com os mistérios de Cristo. Os frades estariam unidos ali à oração de Cristo, única verdade e único caminho para o Pai. Assim, a oração se coloca na linha do seguimento. Francisco não se faz homem de oração isoladamente. Quer se consumir diante de Deus no coração de sua fraternidade que é célula da Igreja.

Dentro da mesma perspectiva do rezar com os outros situa-se a oração de Francisco no coração do mundo criado. Francisco não despreza o mundo. Sempre soube vincular sua oração com a natureza. Desapropriado de tudo, sem alimentar em seu interior o sentido de posse e dominação sobre pessoas e sobre a natureza, Francisco é o homem que se considera constantemente um agraciado. Recebe irmãos e recebe os dons da criação. Evidentemente, o momento mais sublime do louvor de Deus em suas criaturas proferido por Francisco é o Cântico do Irmão Sol. Não é aqui o lugar de examinar exaustivamente o teor desta prece nem situá-la em seu verdadeiro contexto. Limitamo-nos a poucas observações, sempre tendo em mente nosso assunto que é mostrar Francisco como homem feito oração.
Transcrevemos dois textos dos biógrafos que mostram essa fraternização com o criado e ao mesmo tempo a forma de oração desse homem que em tudo andava procurando vestígios do Amado e via na criação toda como que uma “caligrafia de Deus”.

“Embora desejasse sair logo deste mundo como se fosse um exílio de peregrinação, este feliz viajante sabia aproveitar o que há no mundo, e bastante. Usava o mundo como um campo de batalha com os príncipes das trevas, mas também como um espelho claríssimo da bondade de Deus. Louvava o Criador em todas as suas obras e sabia atribuir os atos a seu Autor. Exultava em todas as obras das mãos do Senhor e enxergava a razão e a causa vivificantes através dos espetáculos que lhe davam prazer.

Nas coisas belas reconhecia aquele que é o mais belo e que todas as coisas boas clamavam: ‘Quem nos fez é ótimo’. Seguia sempre o Amado pelos vestígios que deixou nas coisas e fazia de tudo uma escada para chegar ao seu trono” (2Cel 165). “Nós que vivemos com ele vimo-lo rejubilar-se interior e exteriormente à vista de todas as criaturas. Era tal o seu amor por estas maravilhosas criaturas que, ao tocá-las ou vê-las, seu espírito parecia não mais pertencer à terra, mas ao céu. Por causa do grande consolo que recebeu destas criaturas, compôs pouco antes de sua morte os ‘Louvores ao Senhor nas suas criaturas’ para incitar os corações dos que os ouvissem a louvar a Deus e para louvar, ele próprio, ao Senhor nas suas criaturas” (EP 118).

Francisco não é um orante solitário. Reza com seus irmãos. Compõe orações que todos poderiam recitar. Une-se também aos seres irracionais e inanimados. Sabe que a fonte de todos é o único Pai. Francisco tem consciência pleníssima da paternidade universal de Deus que generosamente transborda nas criaturas todas. A criação é uma carta enviada pelo Pai aos seus filhos os homens que se tornam assim cantores e sacerdotes de todo o criado. Neste sentido, o Cântico do Sol é expressão do mais alto louvor da criação. E. Leclerc define este Cântico como um grande impulso na direção de Deus. Esse elã é tão veemente que desaparece num ato de adoração e de silêncio diante daquele “que humano algum é digno de mencionar”. Nesse momento, Francisco se inclui humildemente entre todas as criaturas e seu louvor é tão perfeito que se torna também magnífica exaltação das criaturas .

Conclusão

Toda a vida do Poverello era oração. Nada está desvinculado da comunhão com Deus. Francisco é um contemplativo na ação. Sabemos da importância que ele dava ao trabalho manual. Queria que seus frades sempre trabalhassem e quem não o soubesse, que aprendesse alguma coisa porque abominava o “irmão mosca”. “Os irmãos, aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar, trabalhem com fidelidade e devoção, de maneira que afugentem o ócio, inimigo da alma, e não percam o espírito de oração e de piedade ao qual devem servir todas as coisas temporais” (RB 5,1-2). O trabalho é uma graça, como também a oração é graça. Há uma fundamental unidade entre vida contemplativa e vida ativa. Francisco não está  sugerindo que, durante a realização do trabalho, os frades se entreguem a orações vocais ou análogas. É sempre o Espírito, o dom de Deus, que valoriza tudo na vida. O trabalho e qualquer atividade precisam ser realizadas em união profunda com Deus. Tudo tem que ser piedoso e devoto. Francisco une contemplação e ação (9).

Francisco sempre busca a Deus. Procura-o e ouve sua voz na solidão. Era um homem habituado ao silêncio das profundezas e da profundidade. Acolhe esse Senhor no mal amado, imagem de Cristo. Reage contra toda negligência com os irmãos amados por Deus. Rezar é amar o irmão e adotar um estilo de vida consentâneo aos desígnios de Deus e tornar possível e conhecida a graça que vem da cruz do Senhor. A oração ganha intensidade quando é feita a partir do amor louco e desmesurado da cruz. Quem lê no livro da Cruz mistura em seu interior dor e amor. A oração se alimenta de toda Palavra que sai da boca de Deus. É realização da Palavra.  O orante une sua voz à voz dos irmãos todos e reza com a Igreja. Não deixa de incluir e inserir em sua oração as criaturas mais insignificantes. Eleva até o Criador o hino de louvor pelo sol, pelas estrelas, pelo vento, pela vida e pela morte. Realmente, Francisco não é somente um grande orante, mas a própria oração.
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Texto de Almir R. Guimarães, publicado nos “Cadernos Franciscanos/5”, Cefepal e Vozes, 1993

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