28 de abril de 2012

Testamento de Santa Clara - 2ª parte

Depois que o Altíssimo Pai celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar meu coração para fazer penitência segundo o exemplo e ensino de nosso bem-aventurado pai Francisco, pouco depois de sua conversão, com algumas irmãs que Deus me dera logo após a minha conversão, eu lhe prometi obediência voluntariamente, como o Senhor nos concedera pela luz da sua graça através da vida admirável e do ensinamento dele.

Vendo o bem-aventurado Francisco que nós, embora frágeis e fisicamente sem forças, não recusávamos nenhuma privação, pobreza, trabalho, tribulação, nem humilhação ou o desprezo do mundo, e até julgávamos tudo isso as maiores delícias, como pôde comprovar freqüentemente em nós a exemplo dos santos e dos seus frades, alegrou-se muito no Senhor.

E movido de piedade para conosco, assumiu o compromisso, por si e por sua Ordem, de ter sempre por nós o mesmo cuidado diligente e a mesma atenção especial que tinha para com seus irmãos.

E assim, por vontade de Deus e do nosso bem-aventurado pai Francisco, fomos morar junto da igreja de São Damião, onde em pouco tempo o Senhor nos multiplicou por sua misericórdia e graça, a fim de que se cumprisse o que tinha predito por seu santo. Pois antes tínhamos morado em outro lugar, embora por pouco tempo.

Depois escreveu para nós uma forma de vida, principalmente para que perseverássemos sempre na santa pobreza. E não se contentou em exortar-nos durante a sua vida com muitos sermões (cfr. Act 20,2) e exemplos ao amor e observância da santa pobreza, mas nos deu muitos escritos, para que depois de sua morte não nos desviássemos dela de modo algum, como o Filho de Deus, enquanto viveu neste mundo, não quis jamais afastar-se da santa pobreza.

Também o nosso bem-aventurado pai Francisco, imitando os seus passos (cfr. 1Pd 2,21), pelo exemplo e pelo ensinamento, nunca se desviou, em toda a vida, de sua santa pobreza, que escolheu para si e seus irmãos.

Por isso eu, Clara, serva de Cristo e das Irmãs Pobres do mosteiro de São Damião, embora indigna, e verdadeira plantinha do santo pai, considerando com as minhas outras Irmãs a nossa tão alta profissão e o mandamento de tão grande pai, como também a fragilidade de outras, que temíamos em nós mesmas depois do falecimento do nosso pai São Francisco, que era a nossa coluna e única consolação depois de Deus e o nosso apoio (cfr. 1Tm 3,15), repetidas vezes fizemos nossa entrega voluntária a nossa santíssima Senhora Pobreza, para que, depois de minha morte, as Irmãs que estão e as que vierem não possam de maneira alguma afastar-se dela.

E como sempre fui cuidadosa e solícita em observar a santa pobreza que prometemos ao Senhor e ao nosso bem-aventurado pai Francisco, e em fazer que fosse observada pelas outras, assim sejam obrigadas até o fim aquelas que vão me suceder no ofício a observar e fazer observar sua santa pobreza, com o auxílio de Deus.

Para maior segurança, tive a preocupação de conseguir do senhor papa Inocêncio, em cujo tempo começamos, e dos seus outros sucessores, que corroborassem com os seus privilégios a nossa profissão da santíssima pobreza, que prometemos ao Senhor e ao nosso bem-aventurado pai, para que em tempo algum nos afastássemos dela de maneira alguma.

27 de abril de 2012

REFLEXÃO : "Amar"

“Amar talvez seja isso… Descobrir o que o outro fala mesmo quando ele não diz”.
Pe. Fábio de Melo.


Na experiência do amor aprendemos a descobrir o mistério que é cada pessoa, pois há uma mudança no nosso olhar e uma transformação no nosso coração. Quando somos atingidos pela beleza divina tudo em nós é transformado: gestos, ações, postura, olhar, ternura! Já não se pode viver sem o sabor da vida, sem a alegria de cada encontro, sem compartilhar a alegria e a esperança…

Amar não é fácil e nem difícil: é uma opção que fazemos por uma vida mais digna, mais bonita e mais fraterna! Amar é querer e desejar o BEM, a paz e a solidariedade. Amar é compartilhar os sonhos com alguém, é ter amizade com algumas pessoas e estar em harmonia com todas as pessoas que habitam o planeta. Amar é estar em comunhão de oração e fé pela evolução da humanidade…

Frei Paulo Sérgio, OFM

26 de abril de 2012

Testamento de Santa Clara – 1ª parte


Em nome do Senhor! Amém!

Entre outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da generosidade do Pai de toda misericórdia (cfr. 2Cor 1,3) e pelos quais mais temos que agradecer ao glorioso Pai de Cristo, está a nossa vocação que, quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida. Por isso diz o Apóstolo: “Reconhece a tua vocação” (cf. 1Cor 1,26).

O Filho de Deus fez-se para nós o Caminho (cf. Jo 14,6; 1Tm 4,12), que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e seguiu de verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e exemplo.

Por isso, queridas Irmãs, devemos considerar os imensos benefícios que Deus nos concedeu, mas, entre outros, aqueles que Ele se dignou realizar em nós por seu dileto servo, nosso pai São Francisco, não só depois de nossa conversão mas também quando estávamos na miserável vaidade do mundo.

Pois, quando o santo, logo depois de sua conversão, sem ter ainda irmãos ou companheiros estava construindo a igreja de São Damião, em que foi visitado plenamente pela graça divina, e foi impelido a abandonar totalmente o mundo, numa grande alegria e iluminação do Espírito Santo, profetizou a nosso respeito aquilo que o Senhor veio a cumprir mais tarde.

Pois, nessa ocasião, subindo ao muro da igreja, ele disse em voz alta e em francês para uns pobres que moravam ali perto: Venham me ajudar na obra do mosteiro de São Damião, porque nele ainda haverão de morar umas senhoras cuja vida famosa e santo comportamento vão glorificar nosso Pai celestial (cfr. Mt 5,16) em toda a sua santa Igreja.

Nisso nós podemos considerar, portanto, a copiosa bondade de Deus para conosco, pois, em sua imensa misericórdia e amor, dignou-se contar essas coisas sobre nossa vocação e eleição (cfr. 2Pd 1,10), através do seu santo. E o nosso bem-aventurado pai Francisco não profetizou isso só a nosso respeito, mas também sobre as outras que haveriam de vir, na santa vocação em que Deus nos chamou.

Com que solicitude, então, com que zelo da mente e do corpo devemos observar o que foi mandado por Deus e por nosso pai, para restituir o talento multiplicado, com a colaboração do Senhor!

Pois o próprio Senhor colocou-nos não só como modelo, exemplo e espelho para os outros, mas também para nossas irmãs, que ele vai chamar para a nossa vocação, para que também elas sejam espelho e exemplo para os que vivem no mundo.

Portanto, se o Senhor nos chamou a coisas tão elevadas que em nós possam espelhar-se as que deverão ser exemplo e espelho para os outros, estamos bem obrigadas a bendizer e louvar a Deus, dando força ainda maior umas às outras para fazer o bem no Senhor.

Por isso, se vivermos de acordo com essa forma, daremos aos outros um nobre exemplo (cfr. 2Mc 6,28.31) e vamos conquistar o prêmio da bem-aventurança eterna com um trabalho muito breve.

25 de abril de 2012

Carta do Santo Padre Bento XVI para o Ano Clariano



Por ocasião do VIII Centenário da “conversão” e consagração de Santa Clara de Assis

Ao venerado irmão Domenico Sorrentino

Bispo de Assis – Nocera Umbra – Gualdo Tadino,

Soube com alegria que, nessa diocese, da mesma forma que entre os franciscanos e as clarissas de todo o mundo, está se recordando Santa Clara com um “Ano Clariano”, por ocasião do VIII centenário de sua “conversão” e consagração. Esse acontecimento, cuja data oscila entre 1211 e 1212, completa, podemos dizer “o feminino” a graça que, poucos anos antes, a comunidade de Assis havia alcançado, com a conversão do filho de Pietro Bernardone. E, da mesma forma como havia ocorrido com Francisco, também na decisão de Clara se escondia o gérmen de uma nova fraternidade, a Ordem Clariana que, convertida em árvore robusta, no silêncio fecundo dos claustros continua espalhando a boa semente do Evangelho e servindo à causa do reino de Deus.

Esta alegre circunstância me impulsiona a voltar espiritualmente a Assis, para refletir convosco, venerado irmão, e com a comunidade a si confiada e, igualmente, com os filhos de S. Francisco e as filhas de Santa Clara, sobre o sentido daquele acontecimento, que também interessa a nossa geração, e atrai, sobretudo, os jovens, aos quais, dirige-se meu afetuoso pensamento, por ocasião da Jornada mundial da juventude, que este ano, segundo o costume, celebra-se nas Igrejas particulares precisamente neste dia do domingo de Ramos.

A própria Santa, em seu Testamento, fala de sua eleição radical de Cristo em termos de “conversão” (cf. FF 2825). Quero, a partir deste aspecto, retomando o elo do discurso desenvolvido referente à conversão de Francisco em 17 de junho de 2007, quando tive a alegria de visitar essa diocese. A história da conversão de Clara gira em torno da festa litúrgica do domingo de Ramos. De fato, seu biógrafo escreve: “Estava próximo o dia solene de Ramos, quando a jovem, de fervoroso coração, foi ter com o homem de Deus, para saber o que e como devia fazer para mudar de vida. O pai Francisco lhe ordenou que no dia da festa, bem vestida e elegante, fosse receber a palma no meio da multidão e que, de noite, saísse da cidade, trocasse o gozo mundano pelo luto da Paixão do Senhor. Quando chegou o Domingo, a jovem entrou na igreja com os outros, brilhando em festa no grupo das senhoras. Aconteceu um oportuno presságio: os outros se apressaram a ir pegar os ramos, mas Clara ficou parada em seu lugar por recato, e o pontífice desceu os degraus, aproximou-se dela e lhe colocou a palma nas mãos” (Legenda Sanctae Clarae virginis, 7: FF 3168).

Havia se passado cerca de seis anos desde que o jovem Francisco havia empreendido o caminho da santidade. Nas palavras do Crucifixo de São Damião – “Vai, Francisco, repara a minha casa” -, e no abraço aos leprosos, rosto sofredor de Cristo, havia encontrado sua vocação. Daí surgiu o gesto libertador do “despojamento de suas vestes”, diante da presença do Bispo Guido. Entre o ídolo do dinheiro que seu pai terreno lhe propôs, e o amor de Deus, que lhe prometia preencher o coração, não teve dúvidas e com impulso exclamou: “De agora em diante poderei dizer livremente: Pai nosso, que estais nos céus, e não pai Pietro Bernardone» (Vida segunda, 12: FF 597). A decisão de Francisco havia desconcertado à cidade. Os primeiros anos de sua nova vida foram marcados por dificuldades, amarguras e incompreensões. Porém, muitos começaram a refletir. Também a jovem Clara, então adolescente, foi tocada por aquele testemunho. Dotada de um notável sentido religioso, foi conquistada pela “mudança” existencial daquele que havia sido o «rei das festas». Descobriu o modo de encontrar-se com ele e deixou-se envolver por seu zelo por Cristo. O biógrafo descreve o jovem convertido instruindo a nova discípula: “O pai Francisco a exortava ao desprezo do mundo, demonstrando-lhe, com palavras vivas, que a esperança neste mundo é árida e decepciona, e infundia-lhe aos ouvidos a doce união de Cristo” (Vita Sanctae Clarae Virginis, 5: FF 3164).

Segundo o Testamento de santa Clara, antes mesmo de receber outros companheiros, Francisco havia profetizado o caminho de sua primeira filha espiritual e de suas irmãs. Na verdade, enquanto trabalhava para a restauração da igreja de São Damião, onde o Crucifixo lhe havia falado, havia anunciado que aquele lugar seria habitado por mulheres que glorificariam a Deus com seu santo modo de vida (cf. FF 2826; Tomás de Celano, Vida segunda, 13: FF 599). O Crucifixo original se encontra na basílica de Santa Clara. Aqueles grandes olhos de Cristo que haviam fascinado Francisco transformaram-se no “espelho” de Clara. Não é por acaso que o tema do espelho lhe foi muito querido e na IV carta a Inês de Praga, escreve: “Olhe dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo e espelhe nele sem cessar, o seu rosto” (FF 2902). Nos anos em que se encontrava com Francisco para aprender dele o caminho de Deus, Clara era uma menina atraente. O Poverello de Assis lhe mostrou uma beleza superior, que não se mede com o espelho da vaidade, mas que se desenvolve numa vida de amor autêntico, no seguimento de Cristo crucificado. Deus é a verdadeira beleza! O coração de Clara se iluminou com este esplendor, e isto lhe deu a coragem para deixar-se cortar os cabelos e começar uma vida penitente. Para ela, igualmente para Francisco, esta decisão foi marcada por muitas dificuldades. Ainda que alguns familiares não tardassem em compreendê-la, inclusive sua mãe, Ortolana, e duas irmãs que seguiram sua forma de vida, outros reagiram de maneira violenta. Sua fuga de casa, da noite do domingo de Ramos à Segunda-feira Santa, foi uma aventura. Nos dias seguintes, procuraram-na nos lugares onde Francisco lhe havia preparado como refúgio e em vão tentaram, inclusive à força, fazê-la desistir de seu propósito.

Clara havia se preparado para esta luta. E se Francisco era seu guia, um apoio paterno lhe vinha também do Bispo Guido, como sugere mais de um indício. Assim se explica o gesto do prelado que se aproximou dela para lhe oferecer o ramo, como para abençoar sua corajosa escolha. Sem o apoio do Bispo dificilmente teria sido realizado o projeto idealizado por Francisco e realizado por Clara, tanto na consagração que esta fez de si mesma na igreja da Porciúncula na presença de Francisco e de seus irmãos, como na hospitalidade que recebeu nos dias seguintes no mosteiro de São Paulo das Abadessas e na comunidade de Santo Ângelo de Panzo, antes da chegada definitiva a São Damião. Assim, a história de Clara, como a de Francisco, mostra uma característica eclesial particular. Nela se encontram um pastor iluminado e dois filhos da Igreja que se confia a seu discernimento. Instituição e carisma interagem esplendidamente. O amor e a obediência à Igreja, tão marcados na espiritualidade franciscano-clariana, aprofundam suas raízes nesta bela experiência da comunidade cristã de Assis, que não somente gerou na fé Francisco e a sua “plantinha”, mas também os acompanhou pela mão pelo caminho da santidade.

Francisco, com razão, sugeriu a Clara sua fuga de casa no início da Semana Santa. Toda a vida cristã e, portanto, também a vida de especial consagração, são um fruto do Mistério pascal e uma participação na morte e na ressurreição de Cristo. Na liturgia do domingo de Ramos dor e glória se entrelaçam, como um tema que se irá desenvolvendo depois nos dias seguintes através da obscuridade da Paixão até a luz da Páscoa. Clara, com sua escolha, revive este Mistério. O dia de Ramos recebe, assim, seu programa. Depois entra no drama da Paixão, despojando-se de seus cabelos, e com ele, renunciando por completo a si mesma, para ser esposa de Cristo na humildade e na pobreza. Francisco e seus companheiros já são sua família. Logo chegaram irmãs também de longe, porém os primeiros brotos, como no caso de Francisco, despontaram precisamente em Assis. E a santa permanecerá sempre vinculada a sua cidade, demonstrando especialmente em algumas circunstâncias difíceis, quando sua oração salvou a cidade de Assis de violência e devastação. Disse então ás Irmãs: “Desta cidade, queridíssimas filhas, recebemos a cada dia muitos bens; seria muito injusto que não lhe prestássemos auxílio como podemos no tempo oportuno” (Legenda Sanctae Clarae Virginis 23: FF 3203).

Em seu significado profundo, a «conversão» de Clara é uma conversão ao amor. Ela já não usará mais os vestidos refinados da nobreza de Assis, mas a elegância de uma alma que se entrega totalmente aos louvores de Deus. No pequeno espaço do mosteiro de São Damião, contemplado com afeto conjugal na escola de Jesus Eucaristia, irão se desenvolvendo, dia após dia, as características de uma fraternidade formada pelo amor de Deus e pela oração, pela solicitude e pelo serviço. Neste contexto de fé profunda e de grande humanidade, Clara se converte em fiel intérprete do ideal franciscano, implorando o “privilégio” da pobreza, ou seja, a renúncia de bens, inclusive comunitariamente, que desconcertou durante longo tempo ao próprio Sumo Pontífice, ao qual, acabou se rendendo ao heroísmo de sua santidade.

Como não propor Clara, junto a Francisco, à atenção dos jovens de hoje? O tempo que nos separa da época destes santos não diminuiu sua atração. Pelo contrário, pode-se ver sua atualidade quando se compara com as ilusões e as desilusões que continuamente marcam a atual condição juvenil. Nunca um tempo fez sonhar tanto os jovens, com tantos atrativos de uma vida na qual tudo parece possível e lícito. E, no entanto, quanta insatisfação existe! Quantas vezes a busca de felicidade, de realização, termina por desembocar em caminhos que levam a paraísos artificiais, como os da droga e da sensualidade desenfreada! Também a situação atual com a dificuldade para encontrar um trabalho digno e formar uma família unida e feliz, faz surgir nuvens no horizonte. Não faltam, no entanto, jovens, que inclusive em nossos dias, acolhem o convite de confiar-se a Cristo e a enfrentar com coragem, responsabilidade e esperança o caminho da vida, também realizando a escolha de deixar tudo para segui-Lo, no serviço total a Ele e aos irmãos. A história de Clara, junto à de Francisco, é um convite à reflexão sobre o sentido da existência e a buscar em Deus o segredo da verdadeira alegria. É uma prova concreta de que quem cumpre a vontade do Senhor e confia n’Ele, não perde nada, mas encontra o verdadeiro tesouro capaz de dar sentido a tudo.

A vós, venerado irmão, a essa Igreja que tem a honra de haver dado origem a Francisco e a Clara, às Clarissas, que mostram diariamente a beleza e a fecundidade da vida contemplativa, sendo sustentáculo no caminho de todo o povo de Deus, aos franciscanos espalhados pelo mundo, a tantos jovens que andam buscando e necessitam de luz, ofereço esta breve reflexão. Espero que contribua para redescobrir cada vez mais estas duas figuras luminosas do firmamento da Igreja. Com uma saudação especial às filhas de Santa Clara do Protomosteiro e dos demais mosteiros de Assis e do mundo inteiro, transmito de coração, a todos, minha bênção apostólica.

Vaticano, 1 de abril de 2012, Domingo de Ramos.

REFLEXÃO : "Cortesia"


“Sê cortês com todos, até com os inferiores. Se a cortesia é honra para quem a recebe, muito mais o é para quem a faz”.
Santa Teresa de Jesus

A cortesia é a companheira inseparável da virtude, pois a mesma permite crescimento nas relações e revela uma alma desejosa de relações elevadas. A cortesia é própria daquelas pessoas que cultivam a polidez e a sensibilidade nas relações interpessoais. A cortesia exige dedicação e trabalho, pois é algo desenvolvido em nossa personalidade. Não nascemos corteses, tornamo-nos!

A cortesia abre qualquer porta, pois atinge as pessoas de maneira positiva. Essa verdadeira virtude possibilita relações mais polidas e, conseqüentemente, atrai as pessoas para quem a exerce. Por isso, procure cultivas a cortesia, trate as pessoas com amabilidade e alegria. Evite fazer acepção de pessoas e veja cada pessoa como um verdadeiro dom divino. Assim, você será mais feliz e possibilitará maior alegria na sua família, em sua equipe de trabalho e nas suas relações sociais!

Frei Paulo Sérgio, OFM


24 de abril de 2012

Especial - Santa Clara de Assis 800 anos.Clara Viva

Pequena biografia


A revista Evangile Aujourd’hui publicou um texto muito original a respeito de Clara de Assis. O título Claire la vivante – Petite biographie, tendo como autora uma religiosa da Segunda Ordem, Irmã Marie Pascal. A autora escreve o texto conversando com Clara. Na introdução ao artigo, assim ela se exprime. “Que procedimento adotar para evocar Clara de Assis santa Clara? A história, a hagiografia, a sociologia da vida religiosa, a espiritualidade ou a teologia? Gostaria de falar dela como mulher, clarissa por acréscimo. Clara mulher ao mesmo tempo autêntica e excepcional, cuja visão do mundo e projeto de vida mobilizam ainda perto de 17.000 pessoas em todas as latitudes. A autora resolve ter uma longa conversa com Clara. Ou como se ela estivesse lhe dirigindo uma carta. Uma clarissa escreve a uma mãe que muito ama.

Clara, lemos algumas das cartas que você escreveu, seu testamento, vivemos “a forma de vida” que você compôs para nós e que você mesma não pode observar integralmente. Como você se desenha aos nossos olhos? Descubro sua existência como uma paixão no sentido literal e musical do termo. Sim, uma paixão grave e belíssima em todos os seus movimentos. Trágica, inverossímil mesmo, com pitadas de humor como Deus costuma fazer. Se devesse se falar de música seria a de Heinrich Schütz com curtas pastorais ou ainda a música de câmara com três ou quatro instrumentos, quem sabe árias de Bach para voz feminina de beleza ao mesmo tempo selvagem e clássica.

Apassionata

Você nasceu no final do século XII, em 1193, no dia 18 de julho, costuma-se dizer, perto da Catedral de São Rufino, cujas rosáceas encantam os turistas de Assis. Provavelmente você foi concebida na volta de uma das peregrinações que sua mãe fazia à Terra Santa. A vida estável que você levou não contradiz em nada essa mentalidade de “peregrina e estrangeira”, que você reivindica, na esteira de Francisco. Aliás, tudo normal para uma mulher que foi contemporânea do nascimento das comunas. Como parece convir, os hagiógrafos escrevem mais a respeito de sua mãe, do que de seu pai. Cavaleiro de boa cepa, teria ele estaria ele vivo no momento de sua partida da casa paterna? Ninguém o sabe. Você parece ter todas as qualidades de sua mãe. Distinta, empreendedora, eficiente, cultivada, com pendão para a caridade, com um gosto acentuado pela dimensão interior da existência. Duas irmãs suas virão alegrar a morada senhorial. Catarina que Francisco batizará de “Inês” no momento do afrontamento violento que iria opor as duas à família em Santo Ângelo de Panzo e Beatriz que vai ganhar São Damião dezessete anos mais tarde.

Será preciso logo mencionar Francisco, o “homem novo”. A opinião pública queria que vocês tivessem se conhecido um ao outro desde a sua mais tenra infância. Na verdade, ele é onze anos mais velho do que você. Há autores que afirmam que você estava “apaixonada” por ele. Será verdade? Esta é uma pergunta meio romântica… Uma filha de cavaleiro e um filho da burguesia! Em todo caso é graças a ele e aos seus pares que a sua família precisou buscar o exílio em Perugia, ao menos por cinco anos… Francisco, esse revolucionário com um itinerário de vida um tanto quanto movimentado, salvo da prisão, líder de uma juventude ávida de prazer e depois penitente inopinado e fundador de comunidade… Você tem outras preocupações, em particular com seu futuro. Você sabe muito bem que Aquele a respeito do qual sua Mãe tanto falou reclama o amor de seu coração. Mais tarde você falará de Francisco como um apaixonado pelo Cristo. Você, na realidade, não era menos do que ele…

Você vai se dando conta que o Evangelho reclama suas energias, a conversão de sua existência. Há um problema a ser resolvido: como é que as coisas vão se passar? Como responder ao apelo do Senhor? Será fundamental conversar com Francisco. Marca-se um encontro. Preparam-se as coisas. Francisco viria com um de seus companheiros e você com uma amiga. Toma-se o tempo necessário para a reflexão sobre o contexto todo e sua decisão é tomada. Tudo foi bem pesado. Você está com dezoito anos. Imediatamente fica combinada a saída de casa para a noite do Domingo de Ramos. Era um bom momento para passar de um mundo para outro. Você sairá sem prevenir, os frades virão ao seu encontro e a “conversão” será celebrada na Porciúncula, uma dessas capelas que Francisco reconstruíra com suas mãos. Depois os frades haveriam de colocá-la protegida numa comunidade de beneditinas. Até que… no dia seguinte… encontrada rapidamente a pista, sua família chega, e com toda a fúria. Você, naquele momento, como jovem penitente, tira o véu, mostra a cabeça raspada e todos compreendem que se trata de uma decisão sem volta. Dias depois será a vez de sua irmã caçula. O tio Monaldo, misteriosamente, quebra o braço: não podia imaginar que suas sobrinhas fossem tão teimosas quanto ele.

Allegro vivace

E eis que nossas jovens da aristocracia estarão brevemente em São Damião, a igreja para a qual Francisco andou fazendo uma coleta de pedras. Foi ali que, subindo no alto de uma parede ela anunciara, seis anos antes, cheio de alegria e do Espírito Santo, a vinda de “senhoras” de vida correta e luminosa. São Damião… mínimo conforto; Evangelho vivido no dia a dia. Você haveria de ir decifrando com Francisco a gramática da pobreza. Nesse momento se poderia colocar como fundo musical a pastoral do Messias de Haendel. Desde que se comece a ouvir já os golpes do destino, os primeiros movimentos de uma sinfonia heroica que colore sua aventura, irmã Clara! Um grande presente, o Crucifixo de São Damião. Foi ele, sabemos muito bem, que encarregou Francisco a que reconstruísse as paredes em ruína….Esse Crucifixo ocupa um imenso lugar, com seu olhar cheio de interioridade, suas mãos pregadas, aquela bela postura de acolhimento e de envio. E esse pequeno galo, no meio da coxa, que anuncia cada manhã a infidelidade perdoada e a incrível novidade da vida que começa.

Com o entusiasmo dos começos, moças afluem a São Damião. Amigas de castelos vizinhos, meninas da burguesia, mulheres do povo, em suma, penitentes em busca… Todas dizem: era o que lhes faltava. E você, Clara, com seu discernimento perspicaz, você as acolhia…. ou as orientava para que fossem buscar respostas em outros lugares. Francisco leva a sério sua missão e escreve para vocês “um forma de vida”… Nada de detalhes inúteis, mas motivos para viver. “Inequivocamente foi o Espírito que as convocou. Vocês optaram por servir a Deus Pai e viver o Evangelho tal qual ele soa! Eu, Frei Francisco, juro que as ajudarei de todo o coração e com todas as minhas forças, por mim mesmo e por meus irmãos”. Isso vos basta! Mais tarde, você vai se lembrar nos tempos heroicos a emoção de Francisco quando as via comendo o pão duro e dormido que traziam os frades. Naquele momento, vocês eram inteiramente irmãs deles. Mais tarde você escreveu: “Vendo o bem-aventurado Francisco que nós, embora frágeis e fisicamente sem força, não tínhamos medo de nenhuma privação, pobreza, trabalho, tribulação, nem humilhação, nem desprezo do mundo, e até julgávamos tudo isso as maiores delícias, Francisco tomado de emoção e de alegria escreveu para nós uma forma de vida”. Naquele tempo você já sabia o que significa viver a perfeição do Evangelho. Neste estava a fonte da sua alegria, como da alegria de Francisco.

Esse era o sentido puro e simples do famoso “privilégio da pobreza”, que veio a se transformar numa espécie de “curiosidade” jurídica. Ele merece explicação. Você pedia para sua comunidade simplesmente o direito existir “sem garantias”. Você tomou a decisão de vender os seus bens e de distribuir o resultado aos pobres. Você queria viver sem terrenos que dessem dinheiro, para seguir os traços do Cristo pobre. Esse era o segredo de seu projeto: vida comum, trabalho manual dia a dia e esmolas, opção pela pobreza. Nada de frases, mas uma convicção: Deus ou o dinheiro, ser ou ter. Você chegou até mesmo a escrever em uma de suas cartas: “Quem se apega ao que possui, perde o fruto do amor”. Apegar-se ao que se tem e não estar mais aberto para receber o que Deus dá”. A vida monástica feminina, então vigente, tinha fundamentos diferentes: dispor de propriedades para que as monjas não experimentassem inquietações a respeito do dia de amanhã e, assim, mais despreocupadamente, rezar com tranquilidade. Essa não era sua maneira de ver as coisas. Você vai escrever ao Papa. Há de fazê-lo com diplomacia usando a linguagem dele. Antes de você, as religiosas solicitavam “privilégios de propriedades”; você pede um “privilégio de pobreza”. Inocêncio III tem bom faro. Ele mesmo escreve um rascunho de um documento…. Nesse momento, você abandona os caminhos batidos e começa a guerra…

Pastorale

Como era a vida em São Damião? As irmãs rezam e trabalham. Você tinha aprendido isto de Francisco e transmitiu às suas irmãs. Evidentemente há tempos inteiramente consagrados ao colóquio com Deus. Como os frades, vocês rezavam o Ofício: hinos, salmos, tempos de escuta da Palavra de Deus, intercessões alternam, ritmam o tempo nesse espaço exíguo que a tradição chamava de “coretto”, mas que também é o lugar do coração. Você gosta de beber da água fresca da Palavra de Deus e conserva em sua memória passagens que dizem muito. O Cântico dos Cânticos alimenta seu diálogo com o Bem Amado, as palavras de Lucas e de Mateus exprimem maravilhosamente seus laços íntimos com a pobreza. Você manifesta uma grande paixão pela vida dos mártires, ouvida todos os dias nas matinas, com preferência especial pela mártir Inês.

Em São Damião, pois, o tempo é cadenciado com o ritmo da oração litúrgica. Trabalho, no entanto, também é oração. Realizado em silêncio, excetuando-se as palavras indispensáveis e ditas com parcimônia e com voz baixa, permitem o colóquio constante com o Senhor. Esse seu jeito e de Francisco tem tudo a ver com a maneira da oração dos Padres do Deserto. Um coração entregue ao Espírito Santo e unificado pela reta e pura intenção não se desvia de Deus durante o trabalho das mãos. Ao contrário, liberto da ociosidade, o ser inteiro deseja o Senhor. Tem nele os olhos postos. Ama-o e estabelece com ele o diálogo da oração. Tudo se fazendo no cotidiano das coisas cotidianas.

Allegro ma non toppo

A Igreja romana estava muito preocupada com as comunidades que queriam viver como vocês viviam em São Damião. Seu grande amigo, o cardeal Hugolino que é ao mesmo tempo protetor dos frades e de sua comunidade se pôs a redigir Constituições destinadas a explicitar a Regra de São Bento que, de fato, lhes foi imposta desde o começo. Mesmo nutrindo uma grande estima pela forte personalidade do cardeal, essas Constituições, desde o começo não lhe agradaram. Com tantos pormenores regulamentados, careciam de sopro vital. Você nelas não encontra os dilatados horizontes abertos por Frei Francisco. As ditas Constituições nada dizem a respeito de dois assuntos que você tem a peito: os laços com os frades e o compromisso da pobreza.

Como foi seu relacionamento com a Igreja? Foi movimentado. Você tinha verdadeira veneração pelo cardeal-protetor Hugolino, que deveria receber o encargo de todas as Igrejas com o nome de Gregório IX. Com idade que tinha podia ser seu avô. Assistiu aos seus começos e admirava a coragem e a tenacidade de vocês. Tinha receio que a experiência de São Damião viesse a se generalizar. Foi por isso que ele redigiu as tais Constituições destinadas a unificar os grupos de penitentes que desejavam viver como você e suas irmãs.

No mesmo ano em que foram publicadas as Constituições o referido documento, Hugolino veio celebrar a Páscoa com vocês. Vocês falaram do Cristo vivo no meio de nós, maravilhosamente presente em sua Eucaristia. Tendo sido obrigado de retomar suas atividades, ele lhe escreveu uma carta calorosa na qual ele a designa como “a mãe de sua alma”. Mesmo partilhando seu afeto, nada a impede de se opor a ele quando está em jogo o sentido de sua vocação. Tão logo ele fora eleito Papa, escreveu à sua comunidades estas palavras cheias de calor: “No meio de amarguras e angústias que nos afligem sem cessar, vocês são nossa consolação… Porque vocês vivem um só espírito com o Cristo, pedimos que sempre se lembrem de nós em sua oração, que erguam em prece suas mãos para que o Senhor seja a nossa força”. Nesta época, o Santo Padre tinha 83 anos e foi obrigado a fugir de Roma, cidade palco de tumultos, para se refugiar em Rieti. Nesse quadro de revolta e de fome, pouco antes, ele tinha insistido que você aceitasse propriedades e ele mesmo propunha consegui-las para vocês. As irmãs se lembram ainda do diálogo. No fim, o Papa lança a última cartada: “Se é o voto de pobreza que causa dificuldade, eu posso dispensá-lo!” A resposta veio imediatamente e diz bem aquilo que você é: “Santíssimo Padre, nunca gostaria que me tirassem a alegria de seguir Jesus Cristo!” Esse foi o teor das conversas que vieram a ter.

En choeur

A grande novidade de sua “forma de vida” consiste nessa atmosfera dos relacionamentos fraternos. Você gosta de lembrar às suas irmãs aquilo que as motivou a tudo deixarem e a se voltarem totalmente para Cristo. Sempre juntas… juntas na oração, no trabalho, no dormitório. A repartição dos espaços em São Damião evoca tal realidade. Vocês chegaram a ser cinquenta… Um chamado comum convocou-as a viverem juntas. Vocês são uma parábola viva desse viver junto.

No meio das irmãs você é aquela que serve. Não gosta de mandar, segundo os depoimentos as irmãs no Processo de canonização. Você está sempre pronta a realizar as tarefas menos atraentes Cuida das irmãs doentes: lava-lhes os pés, ministra-lhes os remédios, tenta satisfazer seus mínimos desejos. Circulam muitas histórias a esse respeito. Diz-se que uma irmã não queria comer. Foram feitas propostas apetitosas, dadas ordens. Nada. Não sabendo mais o que dizer, com o fervor do desespero, você pergunta à doente: “O que poderia bem te agradar?” Ousada e brincalhona ao mesmo tempo, a irmã faz um gracejo: “Pois bem, quero uma truta de Topino e um doce de Nocera”. A irmã sabia que você seria incapaz de realizar esse pedido. Você se pôs de joelhos e começou a rezar. Alguém toca a sineta em hora tardia. Sob uma chuva diluviana não é que chega um mensageiro desconhecido e trazendo uma bandeja coberta com uma toalha nos quatro cantos e pede que lhe seja entregue. A irmã porteira apresenta-lhe aquele estranho embrulho. Quando ele é aberto lá estão a truta e o doce. Milagre da ternura fraterna…. Poderíamos aqui mencionar muitos outros episódios….

Em São Damião, vocês devem ter tido uma horta com legumes e frutas. O fruto do quintal não bastava. Dois ou três irmãos que moravam do outro lado da casa de vocês esmolavam para vocês. Traziam aquilo que lhes era generosamente dado pelas pessoas. Sempre se fala de certo Frei Bentivenga a quem você pediu que fosse buscar óleo porque não havia mais em casa. O frade pede o recipiente. Você o lavou e o colocou no costumeiro lugar para que fosse levado pelo dito frade. Seu desejo, Clara, foi satisfeito antes do tempo: a vasilha já estava cheia de óleo antes que o frade saísse. Nem preciso dizer que as irmãs e o frade ficaram muito admirados.

Posteriormente, quando o relacionamento com os frades parecia conhecer tensões (a profissão de irmão esmoler nem sempre era bem entendida), você pediu que suas irmãs fizessem esse delicado trabalho. Você mesma as prepara: elas serão mensageiras de esperança, irradiarão a paz que unia vocês todas e prometiam a todos a oração do mosteiro… Quando elas voltavam você gostava de acolhê-las e servi-las.

Pelo que eu disse aqui talvez alguém pudesse pensar que a vida comunitária não comporta conflitos? Em sua “forma de vida”, você previu muito realisticamente que poderiam haver momentos de confronto. Se a desavença opunha duas irmãs, por gestos ou palavras, a que estivesse na origem de tal desavença deveria pedir perdão e pediria a intercessão daquela que ofendeu. A irmã ofendida perdoará de todo o coração. As duas irmãs reconciliadas poderiam então rezar juntas com o coração em paz. Por detrás desta bela passagem da Regra se pode pressentir uma grande experiência. Para tanto, acrescento eu, era necessário ser mulher.

Mais grave

Houve a páscoa de Frei Francisco na tardinha de 3 de outubro de 1226. Os frades fizeram o relato dos últimos momentos do santo (na verdade, mesmo em vida, ela já era considerado santo). Quando o cortejo fúnebre fez o desvio de seu caminho passando por São Damião, você venerou as chagas preciosas de seu pai e seu irmão muito querido com todo o seu coração! Depois, ele se fez presente de uma outra maneira. Você passou a ser testemunha das origens e nem sempre era fácil responder aos frades que vinha pedir lhe conselhos. Todos sabiam que você não queria julgar, mas refletir como num espelho essa “ senhora pobreza, que Francisco tanto havia amado.

Quando Francisco morreu, você tinha 33 anos. Você atravessou essa provação com galhardia. Aliás, é desse tempo que data sua doença da qual não se conhece a natureza. Corajosamente você continuou a caminhada. Dois presentes recebeu de Francisco: o Cântico das Criaturas e a exortação que ele compôs para vocês às vésperas de sua morte: “Ouvi, pobrezinhas, pelo Senhor chamadas, que de muitas partes e províncias fostes congregadas. Vivei sempre na verdade, para morrerdes na obediência. Não olheis a vida de fora, porque a do espírito é melhor. Eu vos rogo com grande amor: com discernimento devereis usar as esmolas que o Senhor vos dá. As que estão por doenças agravadas e outras que por elas estão fatigadas, umas e outras suportai-o em paz pois essa fadiga terá alto preço, já que cada uma será rainha no céu coroada com a Virgem Maria”. Para falar dessa maneira era preciso ter experimentado a doença. Francisco queria que você e suas irmãs usassem as esmolas com cuidado. Quando a gente não pode mais trabalhar, na verdade, a dependência é sempre maior e cada vez menos uma simples palavra, mas uma realidade dura a viver.

Alla fuga

Sua mãe Ortolana foi viver com você em São Damião. Depois chegou também sua irmã Beatriz. O serviço do Senhor unia vocês três e lhes dava alegria.

De toda a Europa chegavam pedidos de bispos ou de grupos evangélicos para que se fundassem comunidades de irmãs, sobretudo nos países em que os frades haviam criado uma fraternidade ou falado de nosso gênero de vida. Assim, como um “fuga” executada no órgão em que o mesmo tema não cessa de recomeçar em sucessivas transposições, você enviava algumas irmãs de Assis ou de outras cidades italianas. Inês teve que deixar Assis e esteve por longos anos em Florença, tendo voltado a São Damião apenas poucos anos antes de você morrer. Era necessário escolher as irmãs e prepará-las. Multiplicavam-se as colmeias…

A fundação que parece ter tocado profundamente seu coração foi a de Praga na região da Boêmia. Você havia recebido cartas da princesa Inês da Boemia. Esta estava empenhada em descartar o pedido de sua mão em casamento por parte do Imperador Frederico II. Parece que esse casamento tinha mesmo um certo patrocínio do Papa. Você, Clara, através de suas cartas, animou a princesa a se tornar uma irmã pobre. Você parecia se identificar com esta mulher inteligente e ardorosa, mais nova do que você uns dez anos. Em suas cartas para ela, você transmitiu o melhor que tinha em seu interior e em seu coração. Você descreveu para ela a pobreza de São Damião e também convidou a que ela fosse prudente na questão do jejum. Em Pentecostes de 1234, momento em que ela recebeu o hábito da penitência em Praga, seu coração batia tão forte em seu peito quanto nos dias daquele Domingo de Ramos por ocasião de sua saída da casa paterna. Inês havia conseguido para seu mosteiro em Praga o privilégio da pobreza. Provavelmente foi a pedido dela que você colocou por escrito seu propósito de vida em pobreza.

Noturno

A disponibilidade para com a generosidade do Senhor é o fundamento da vida fraterna: esta foi sempre a sua convicção. Para solidificar a vida de São Damião era importante um texto inspiracional: a Regra. Você não se sentia no direito de deixar as irmãs num clima de incerteza. Parecia-lhe importante iluminar o horizonte dessas suas estimadas irmãs. Depois de anos em que você comparava todas as regras da vida religiosa, ou seja, a regra de São Bento, a de Hugolino e a do Papa de Inocêncio IV, foi amadurecendo o projeto que você tinha em mente. O texto da Regra que Frei Francisco havia feito para seus frades estava à sua disposição. Tratava-se agora de adaptá-lo a um vida estável vivida por mulheres e acrescentar outros tópicos novos. Assim, como que de um só impulso, você ditou a “forma de vida”. Você transmitia, por assim dizer, as suas entranhas nos capítulos da Regra. Esta foi como que um poema que fluía de seus lábios, o cântico da vida pobre em fraternidade.

As irmãs recolheram seu testamento como uma oração eucarística. Tudo vinha à mente com incomparável nitidez: a profecia de Francisco ganhava plena luz. Aquelas palavras meio misteriosas proclamadas aos quatro ventos em São Damião ganhavam sentido e encontravam confirmação. De toda a eternidade você foi criada, chamada, santificada para viver nesse lugar uma existência reta e luminosa para o louvor do Pai cheio de ternura. Os mosteiros todos, espalhados, em todo o mundo atestam a profecia de Francisco. Irmãs pobres, vocês foram escolhidas, reunidas para a alegria da Igreja e a salvação de seus irmãos em humanidade. O filme da sua vida passava diante de seus olhos como uma fonte que corre e vai fecundar o universo. Você tinha todas as condições de cantar o Magnificat dos pobres. O olhar do seu Senhor fazia vibrar seu ser ao mesmo tempo despojado e rico.

O dia 11 de agosto chegou como um raio. Frei Leão chorava. Frei Junípero, no entanto, achou ainda alguma coisa nova para lhe ensinar a respeito do amor do Senhor. Como reconhecimento veio finalmente o sim da Igreja. A “forma de vida” estava aprovada e as suas irmãs podiam viver o que você não pôde viver com toda liberdade. O próprio Papa veio visitá-la como que pedindo perdão por ter demorado tanto na aprovação. Você com um olhar cheio de eloquência pediu o perdão sacramental. As irmãs se perguntavam como poderiam viver sem você. Elas tinham razão de se inquietar porque não viveram como você o elã da sua vocação na Igreja. Era preciso quase pensar no impossível. Deus sabe que isso não é tão fácil todos os dias.

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Nós também, Clara, lhe pedimos que permaneça ao nosso lado no caminho da busca da felicidade, no meio de pedregulhos e da poeira. Leve, você saltou e nos chama a seguir o Cristo pobre e humilde para nossa salvação. Nós, no entanto, sentimos medo. Estenda a sua mão e não nos largue. Que guardemos em nossa memória seu projeto de vida pobre. No coração da Igreja e para a alegria de todos, como você na delirante espera daquele que vem!

23 de abril de 2012

REFLEXÃO : "Amizade"

“A amizade é o conforto indescritível de nos sentirmos seguros com uma pessoa, sem ser preciso pesar o que se pensa, nem medir o que se diz”.
George Eliot

A felicidade de um amigo deleita-nos, enriquece-nos, não nos tira nada… A amizade tem o poder de multiplicar a alegria e curar as feridas do coração, pois ela possibilita acolhida, espaço para o encontro e partilha para os sentimentos. Então, não apenas deseje uma boa amizade: trabalhe por ela, permita que as pessoas possam entrar na casa do seu coração… Apesar do risco, permita-se acreditar nas pessoas.

Lembra-se: onde quer que nos encontremos, são os nossos amigos que constituem o nosso mundo. E, por onde caminharmos, necessitaremos sempre de pessoas que compartilhem conosco nossas forças e fraquezas. Mas, para que isso aconteça, precisamos semear, cultivar e permitir que a amizade cresce e desenvolva numa relação madura e saudável…

Frei Paulo Sérgio, OFM

22 de abril de 2012

Refletindo sobre o Serviço dos Enfermos e Idosos (SEI) na Ordem Franciscana Secular

Quando os anos pesam e a enfermidade nos visita

E se algum irmão cair enfermo, os outros irmãos devem servi-lo como gostariam de ser servidos (Regra Bulada de São Francisco VI, 10).

Avançando em idade, aprendam os irmãos a aceitar a doença e as crescentes dificuldades e a dar à vida um sentido mais profundo, no progressivo desprendimento e encaminhamento à Terra Prometida (CCGG art. 27, 1)

1. As Fraternidades Franciscanas Seculares sempre tiveram uma preocupação toda especial para com os enfermos e os idosos. Houve tempos em que esse segmento da Fraternidade recebia a designação, nem sempre bem compreendida, de “ala paciente”. Hoje designamos de Serviço dos Enfermos e Idosos (SEI) a essa tarefa de todos os membros de uma Fraternidade no cuidado desses irmãos que vivem doença e idade avançada. Embora seja de todos tal tarefa é confiada de modo particular a um ou mais membros escolhidos ou eleitos para concretizar esse gesto amoroso. Sempre de novo precisamos ficar atentos e inventar expedientes e mimos para que os irmãos não se sintam esquecidos e nem se considerem marginalizados.

2. O tema da enfermidade e doença e da idade avançada pode ser visto sob diferentes ângulos. Há o doente e o idoso de um lado e há, de outro, o irmão da Fraternidade que é encarregado de prestar atenção na situação do irmão e da irmã. Deveremos distinguir o irmão doente durante um certo tempo e, de outro, lado aquele que está fadado a não se levantar do leito ou a viver na dependência quase que total de familiares ou de outras pessoas. Cada situação é uma situação. Há doenças em que o enfermo conserva sua lucidez e outras em que a família até chega a poupar visitas para que estas não assistam a espetáculos constrangedores.

3. Num primeiro momento façamos algumas considerações atinentes à postura do irmão e da irmã que precisam ir se retirando da vida ativa e entrando nessa condição de idosos ou gravemente doentes.

• Os documentos franciscanos pedem que o irmão acolha a doença e os inconvenientes da idade avançada. As CCGG exortam que todos aceitem a situação sabendo que nossa existência continuará na vida eterna como “comunhão dos santos” (art. 27,1).

• A doença, quando não se manifestar de maneira violenta e não tirando a consciência, pode ser uma ocasião de crescimento, de prática de penitência, de aceitação de nossa limitação. Idosos e menos idosos somos convidados a aceitar os reveses da vida. Sabemos que é fácil escrever essa frase, mas que é necessário têmpera e garra e muita força do alto para carregar a cruz de uma enfermidade que veio para ficar ou acolher os achaques humilhantes da velhice.

Os idosos e enfermos saberão ter a simplicidade de comunicar aquilo de que precisam. Num contexto mais centrado no conjunto do tema da fraternidade, Francisco fala na Regra Bulada: “E onde estão e onde quer que se encontrem os irmãos, mostrem-se mutuamente familiares entre si. E com confiança um manifeste um ao outro sua necessidade, porque se uma mãe ama e nutre seu filho carnal quanto mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir seu irmão espiritual?” (Regra Bulada VI, 8-9). Assim, o irmão doente tem o direito de expor seus desejos sejam eles de coisas simples ( dar um passeio pela cidade, visitar um parente, degustar um sorvete de creme, escutar uma música).

• Os doentes e idosos não se acanhem, pois, de exprimirem o que desejam. Porém, prestarão atenção para não serem exigentes e procurarão evitar reclamações e “murmurações”.

• No momento da enfermidade há os que começam a refletir sobre sua vida passada e se enchem de escrúpulos e de arrependimentos por atos poucos nobres cometidos. Os acompanhantes (também o assistente religioso da Fraternidade) haverão de ajudar o irmão nesse transe. Que ele possa ter paz no coração e não fique remoendo o que passou. Pela confissão sacramental e pelo arrependimento do coração saberá o doente que foi perdoado. Ninguém pode ficar se torturando com escrúpulos e arrependimentos doentios.

• Doentes e idosos procurem simplificar as coisas. Na medida do possível esvaziem gavetas, distribuam os bens quando existirem, procurem desligar-se de todas as preocupações desnecessárias. Joguem-se nas mãos do Senhor.

• Se o idoso e enfermo tiver condições de fazer a contribuição financeira prevista pela Ordem Franciscana Secular haverá de realizá-lo com presteza. Esse ponto faz parte da formação inicial e permanente. Há muitos irmãos e irmãs acamados que sempre lembram aos familiares e visitas que providenciem o pagamento de sua contribuição financeira.

• Facilitem a vida dos irmãos da Fraternidade e de sua família determinando a regularidade com que gostariam de receber os sacramentos da eucaristia e da penitência. Conveniente seria que o irmão, se dando conta do agravamento da doença, pedisse a visita do sacerdote para receber a unção dos enfermos.

• À guisa de sugestão diria que o local onde está o enfermo fosse “decorado” com flores e que não se administrasse esse sacramento lugubremente, mas com plena participação do enfermo ou idoso e com tintas de alegria e de esperança no fundo do coração. Diria mesmo que se cantasse algum hino franciscano. Desta forma, isto é, com esperança alegre é que se prepara a chegada da Irmã Morte.

• Os irmãos doentes e idosos, aceitando os incômodos da idade as dores do corpo completam em si o que falta à paixão de Cristo.

4. Vejamos agora alguns cuidados que precisam ter irmãos e irmãs encarregados por esse carinhoso serviço fraterno. Antes de mais nada deve-se dizer que o cuidado e acompanhamento dos idosos é um verdadeiro serviço de amor pastoral. Que belo quando irmãos acompanham os doentes e idosos durante a dor e a solidão do sofrimento e estão presentes, como diletos irmãos e amigos na celebração da passagem. Esses aprenderam a chorar com o que choram e a rir com os que riem.

• A visita deverá se fazer com um certo ritmo. Não se pode exagerar na frequência, nem espacejá-las demais. Tudo deverá ser combinado com a família. O irmão visitador precisa sentir o “tônus” da família. Pode ser que alguns familiares nem sempre queiram visitas para que seus entes queridos não se exponham a situações constrangedoras (pessoas com incontinência etc.). Pode acontecer que a visita precise ser abreviada. Necessário ter sensibilidade para tanto.

• O doente e o idoso querem viver, querem sentir uma proximidade carinhosa com que os visita. Num momento em que as esperanças humanas vão desaparecendo, o enfermo quer uma pessoa realista e que, ao mesmo tempo, lhe traga alegria. Sabemos que cada caso é um caso. Nunca o doente deverá sentir que irmão faz uma visita formal ou simplesmente cumprindo a obrigação de lhe trazer o Sacramento do Corpo do Senhor.

• Na administração da Comunhão eucarística, ministro ou irmão da Fraternidade cuidarão de não se prolongar demais. Bom que o rito fosse desenvolvido com calor na voz e expressão carinhosa nos gestos. Nada de frio formalismo.

• O irmão que visita precisa, de alguma forma compreender aquilo que vive o irmão, em outras palavras, saber colocar-se em seu lugar. E, como já dissemos, cada caso é um caso. Há os doentes mais gravemente enfermos e terminais. Há o sofrimento físico, é claro, por vezes aliviado com analgésicos, há a vergonha de não poder controlar suas necessidades, o mal-estar de perder o fio de um assunto e ficar num estado de perplexidade. Há doentes que passam facilmente de um estado de euforia a outro de depressão e de pranto. Não se deve ficar chocado quando um irmão se revolta contra a doença e a proximidade da morte por meio de palavras e mesmo de vociferações. Deitado em seu leito, o doente pode estar vivendo sentimentos de cólera, de depressão, de revolta com a chegada da morte, de dúvidas a respeito de sua salvação eterna, de remorsos cruéis e mesmo crises de desespero. Por vezes pode mesmo acontecer que os doentes manifestem sua revolta contra Deus. O visitador não fará discursos moralizantes, mas tentará ouvir e mais vale ficar quieto e perto do que fazer discursos para defender o Senhor Deus. Que o irmão doente chore, reclame e encontre em nosso rosto a paz da compreensão.

• O irmão responsável pelo serviço dos idosos e enfermos saberá satisfazer seus desejos e suas necessidades espirituais. O doente precisa sentir que continua dono de sua história. Não é pelo fato de estar numa cama ou impossibilitado de caminhar que pode delegar a outros os fios de sua história. Sobretudo quando a doença é grave o doente sente um peso enorme sobre ele e precisa ser ajudado, discreta, mas realmente ajudado. Há muitas perguntas que ele se faz interiormente sem exprimi-las em palavras. O doente sente que o corpo não responde mais e que a mente se esvai. Há também essa questão de todos, também dos cristãos, também dos franciscanos religiosos e seculares, a respeito depois da morte. Cremos na vida que vem depois da morte, mas… Os que não tem fé esclarecida pesam: “O que me vai acontecer agora? Vou bater com a cabeça num muro de pedra? As CCGG da OFS lembram aos doentes: “Estejam firmemente convencidos de que a comunidade dos crentes em Cristo e dos que se amam nele prosseguirá na vida eterna como comunhão dos santos. Os franciscanos seculares se empenhem em criar em seu ambiente, sobretudo nas Fraternidades, uma clima de fé e de esperança, de modo que a “irmã morte”, seja vista como passagem para o Pai e todos possam preparar-se para ela com serenidade” (art. 27,1-2).

• Muitas Fraternidades costumam organizar encontros festivos e alegres, de modo especial por ocasião das festas do Natal, da Páscoa e nas comemorações franciscanas para os quais são convidados os irmãos que ainda podem se locomover. Essas reuniões feitas num espaço de beleza, de alegria, de fé são de grande proveito para os irmãos. A experiência diz que, mormente para aqueles que nunca podem sair de casa, que a data de seu aniversário seja belamente lembrada e festejada desde a manhã com mensagem, presentes, visita e bolo com velas.

5. Procurem os irmãos que cuidam dos idosos e doentes se fazerem presentes no sepultamento e também junto da família do falecido. Sempre haverão de estar com discrição, mas sempre como irmãos verdadeiros sofrem com a partida do irmão.

Apêndice 1
(para ajudar os que visitam enfermos e idosos)

Quando se envelhece…

…luzes e sombras

Quantas coisas atravessam a cabeça dos idosos e doentes:

  • Há a alegria do dever cumprido, da missão realizada: um pai e uma mãe olham os filhos crescidos, adultos, já também pais e avós, um sacerdote faz desfilar em sua mente os anos de ministério, uma professora se recorda das turmas e dos alunos que foram objeto de seus cuidados. Há essa alegria de experimentar o sabor dos frutos que foram lentamente amadurecendo.
  • Há essa sensação de que outros estão chegando e vão ocupando um espaço que era o nosso. Há esse pressentimento de que se está sobrando.
  • Há essa experiência de anos e anos no campo profissional, nas atividades da paróquia, na Fraternidade franciscana, no contato humano, na arte de negociar, no exercício da acolhida do diferente. Os idosos são peritos em humanidade. São sábios que precisam fazer ouvir a voz de sua sabedoria.
  • Há essa sensação de cansaço das pernas e dos braços, o enfraquecimento da memória, a respiração meio ofegante, o sono diante do computador, da televisão e numa sala de espera de um consultório médico.
  • Há essa alegria de poder ir refazendo sua biografia humana através do tempo que Deus permitiu que se fosse vivendo.
  • Na medida em que os anos chegam vem essa impressão que as cortinas estão para ser puxadas, que há pouco que fazer. Os que ganham idade se dão conta de limitações irreversíveis. Será que ainda se pode fazer algum projeto? Quais?
  • A velhice é tempo em que se aprende e se vive o despojamento. Nem sempre é pedido o parecer do idoso. Ou então nem é mesmo levado em consideração. Os móveis e os hábitos são mudados de lugar sem o parecer do idoso ou do doente. Há uma sensação de inutilidade, de se ser um traste tolerado.
  • Quando se envelhece há mais tempo para ler, para ver as plantas crescendo, para ver se os passarinhos já nasceram no ninho feito na goiabeira, tempo de acolher com clama uma visita. O idoso não é um apressado. Normalmente transmite paz e serenidade.
  • Há esses idosos e anciãos descuidados, sujos, lambuzados, vestindo roupa velha, rasgada. Há esses velhos nos asilos, nos abrigos, nas marquises que são verdadeiros restos humanos.
  • Há esses idosos que evitam conversar porque sua existência não teve frutos saborosos e têm receio de se exporem à piedade alheia.
  • Há doentes e idosos que têm sempre um sorriso de paz, que ajudam a descascar maças para a torta da noite, ou aqueles que ainda fazem a contabilidade da capela do bairro. Enfeitam o mundo com sua história. Há esses que oferecem para passar uma roupa, há os que falam de flores e aqueles que só dissertam sobre as dores.
  • Há os que sabem que, na hora do trespasse, os anjos chegarão para lhes dar a mão. Outros têm medo de colocar os pés nessa terra desconhecida. Há os que rezam com toda confiança: “Santa Maria, rogai por nós, agora e na hora de nossa morte…”
  • “Qualquer que seja a sua idade, guardem este pensamento: o importante não é viver muito ou pouco, mas realizar na vida o plano para o qual Deus nos criou. As rosas, a rigor, vivem um dia. Mas vivem plenamente porque realizam o destino de graça e de beleza que trazem à terra. Se vocês sentirem que os anos passam e a mocidade se vai, peçam a Deus para si e para os que se tornam menos jovens a graça de, envelhecendo, não azedar, não virar vinagre” (Dom Helder Câmara).
Apêndice 2

Os desejos de São Francisco quando estava doente….

Os que são responsáveis pelo Serviço dos Enfermos e Idosos em nossas Fraternidades OFS saberão alegrar os irmãos enfraquecidos. Procurarão satisfazer seus lícitos desejos: procurar-lhes uma fruta que apreciam, dar um “giro” de carro pela cidade, fazer com que eles encontrem seu amigos. Os biógrafos de São Francisco relatam alguns desejos, pelo menos curiosos, expressos pelo santo já bem perto da morte e quando já havia atingido altíssimo grau de santidade. André Menard, frade menor francês, escreve a respeito de três deles: música ao som da cítara, uma porção de aipo, uma torta de amêndoas que Fra Jacoba sabia fazer (Les envies, les humeurs et les variations de François, in Évangile Aujourd’hui, n.147. agosto de 1990, p. 42-46).

Um pequeno grupo de irmãos rodeia Francisco no final de sua vida. Permanecem bem perto do santo pai e demonstram atenção e solicitude. O testemunho deles nos permite chegar até a mais profunda humanidade de Francisco. Deixando de lado o “não fica bem” ou “o que os outros vão pensar”, Francisco dá livre curso à realização de seus justos desejos.

Um pouco de música - Prostrado por muitas enfermidades, Francisco sentiu o desejo de ouvir um pouco de música que viesse a lhe devolver a alegria espiritual (cf. Legenda Maior de São Boaventura 5, 11). Francisco sabia que esse expediente lhe faria bem. “Embora muito enfraquecido pela doença, o santo, para consolo de seu espírito e para não se deixar abater no meio de graves e numerosas enfermidades, mandava cantar repetidas vezes durante o dia os Louvores de Deus que havia composto, tempos atrás, durante um período de doença. Pedia também que os cantassem durante a noite para edificação e para recreio daqueles que por sua causa estavam em vigília no palácio (do bispo em Assis) (Legenda Perusina,64).

Seu desejo encontrava uma certa resistência à sua volta. Um dos frades que havia sido conhecido como o rei dos poetas não aceitava realizar o desejo de Francisco.

“Disse Francisco a um de seus irmãos que no século era tocador de cítara: ‘Irmão… gostaria que fosses em segredo pedir a uma pessoa honesta uma cítara emprestada, na qual me tocasses uma bela música para acompanhar as orações e os Louvores do Senhor…’ O irmão respondeu-lhe: ‘Pai, tenho vergonha de ir à procura deste instrumento. Os habitantes desta cidade sabem que, no mundo, eu fui tocador de cítara; e tenho receio de os escandalizar, fazendo com que pensem que estou voltando ao meu ofício…’” (Legenda Perusina, 24).

Francisco bem podia ter previsto esta dificuldade. Ele mesmo, anteriormente, havia dito que os instrumentos de música que antigamente serviam aos santos para o louvor de Deus, agora serviam à vaidade e ao pecado, contrariamente à vontade de Deus”.

Francisco respeita a delicadeza de consciência do irmão musico: “Está bem, irmão, não se fala mais nisso”. O Senhor, no entanto, haveria de atender de outra maneira, o desejo de seu servo: “Na noite seguinte… Francisco começou a ouvir perto de casa, a mais bela e mais suave melodia, que até então ouvira, nas cordas de uma cítara… e, de manhã, disse ao companheiro: ‘Irmão, pedi-te e não me atendeste; mas o Senhor, que consola os seus amigos em suas tribulações, dignou-se consolar-me esta noite’” (Legenda Perusina, 24).

Encorajado por esta aprovação divina, Francisco pôde encontrar resposta a dar a Frei Elias. Na verdade, o Ministro Geral exprimiu assim sua própria perplexidade ao relatar as reações dos habitantes de Assis: “Como se explica tanta alegria quando se aproxima a hora da morte? Não seria melhor que pensasse na morte?” Francisco não hesita em retrucar: “Deixa-me rejubilar no Senhor e cantar os seus louvores em meio às minhas enfermidades: pela graça do Espírito estou tão unido ao meu Senhor que, por sua bondade, posso na verdade regozijar-me no Altíssimo” (Legenda Perusina 64).

Através de sua liberdade de comportamento Francisco sugere que o caminho que ele seguiu ontem continua viável hoje. Tudo é puro para os puros e tudo é santo para os santos. Os instrumentos de música, cítaras, saltérios e outros podem se prestar para o louvor de Deus e a consolação da alma. Trata-se do bom uso a se fazer da música.

Um pouco de aipo - Francisco jaz em seu leito, muito enfraquecido pela enfermidade. Procura algum reconforto. Teve desejo de comer aipo. Era noite e o tempo se apresentava inclemente. Sabe ele muito bem que aquele não era o melhor momento de exprimir um tal desejo. E além disso o irmão da cozinha parece não querer colaborar. Ele apresenta argumentos sólidos que tornavam inviável a satisfação desse desejo naquela hora. Francisco vai insistir para que o irmão se decida a acolher seu pedido, embora sem muita convicção. Como o irmão cozinheiro haveria de se ver livre desse doente caprichoso, febril e teimoso?

Os céus haveriam novamente de dar razão a Francisco. No meio de uma soca de ervas sem valor, lá se acha um pouquinho de aipo. Francisco provará um pouco e se sentirá reconfortado. Não poderá ele, no entanto, deixar de exprimir a leve decepção de alguém que tem que insistir muito para ser ouvido. Desta forma nos é revelado que, mesmo sendo já objeto de veneração, Francisco faz a experiência da dependência que o coloca à mercê dos outros. Ele o exprime sem azedume, até mesmo com doçura, como que desejando despertar a generosidade meio adormecida de seus companheiros: “Irmãos, cumpri as ordens sempre à primeira palavra, sem esperar que sejam repetidas” (2Celano 51).

Um pedaço de torta de amêndoas – Teria Frei Elias razão em achar nosso moribundo meio “sem juízo”? Mas Francisco se encontra com pleno uso de suas faculdades, mormente da inteligência e do coração. Disse Francisco a Elias: “Creio que se informásseis a Senhora Jacoba de Settesoli a respeito de meu estado de saúde, haveríeis de lhe propiciar ocasião de uma gesto de delicadeza e de consolação”. Francisco está disposto de dar a Fra Jacoba o prazer de vê-lo, saboreando pela última vez os doces que ela sabia tão bem fazer. “Que ela mande também aquele doce que tantas vezes fez para mim quando eu estive em Roma”.

Francisco tinha bom gosto. Queria um “mostacciulo”, uma torta feita com amêndoas, açúcar e outros ingredientes (Legenda Perusina 101).

Um vez mais Francisco vê seu desejo atendido. Fra Jacoba antecipa a realização de seu querer. Ela conhece os gostos de seu amigo e lhe traz a torta de amêndoas. A acolhida de Francisco é toda espontaneidade, verdadeira liberdade de amor: “Bendito seja Deus que nos enviou nosso irmão, Senhora Jacoba! Abri as portas e fazei com que ela entre, pois o artigo que proíbe a entrada de mulheres não vale para Fra Jacoba (3Celano 37).

E Jacoba “tinha preparado para o santo Pai os doces que ele queria… Ele mal os provou porque as forças do corpo iam declinando…” (Legenda Perusina, 101). Francisco ainda se lembrou que Frei Bernardo também apreciava esse doce: “No dia em que a Senhora Jacoba fez aqueles doces para o bem-aventurado Francisco, lembrou-se ele de Frei Bernardo dizendo: ‘Frei Bernardo é que deve gostar desse doce”. E mandou a um companheiro que o chamasse: ‘Vai, e dize a Frei Bernardo que venha cá’” (Legenda Perusina, 107).

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Especial - Santa Clara de Assis 800 anos.Clara, a mulher da esperança


Com alegria estamos todos mergulhados na meditação dos passos dados por Clara de Assis no seguimento do Evangelho. Estamos vivendo esse tempo dos oitocentos anos da forma de vida da Senhora Clara. Temos diante dos olhos um texto que aborda Clara, como mulher da esperança, da autoria de uma das mais conhecidas e eruditas filhas da santa. Trata-se de Chiara Augusta Lainati. São incontáveis as obras publicadas por esta clarissa. O texto de que dispomos foi enviado para mosteiros das irmãs pobres de São Damião e é uma versão em espanhol de artigo que, provavelmente foi escrito em italiano (Clara, la mujer de la esperanza). A autora se dirige às suas irmãs fazendo um veemente convite a que voltem ao primeiro amor e sejam mulheres de esperança para um mundo sem esperança. Mesmo sendo dirigidas para as irmãs, as palavras da Lainati servem para todos que vivemos o aperto no coração de ter perdido, em parte, a esperança. Temos dúvidas, vivemos perplexidades, precisamos nos colocar entre os pobres que esperam a Deus. Fazemos uma tradução do texto com levíssimas adaptações. O presente artigo nos coloca, pois, diante do ardente e urgente tema da esperança. Seu estilo é poético, mas também profético. Vale a pena ser meditado.

“Os pobres têm o segredo da esperança. Alimentam-se dia após dia das mãos de Deus. Os outros homens, desejam, exigem, reivindicam e a tudo isso chamam de esperança… Acrescente-se que o mundo moderno vivendo a loucura da aceleração não tem tempo para esperar. A vida interior do homem moderno tem hoje um ritmo freneticamente veloz, impossibilitando que seu coração seja alimentado por sentimento tão forte e tão doce como o da esperança… Somente os pobres esperam por nós, como somente os santos amam e expiam por nós… Chegará o dia em que cumprirá a palavra de Deus e os pobres possuirão a terra e a possuirão simplesmente porque não perderam a esperança nesse mundo de desesperados” ( Georges Bernanos).

Uma imersão no incerto

O primeiro passo dado por Clara fora da segurança da casa, rumo à Porciúncula envolta na obscuridade do bosque, um mergulho na incerteza é seu passo decisivo na caminhada da esperança.

Um passo dado sem timidez (a filha de Favarone nunca é tímida) que será diferente, tomando um outro ritmo, quase passo de dança sob as asas do Espírito. Ela mesma haverá de escrever: “Em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira, confiante e alegre, avance com cuidado pelo caminho da perseverança” (2CtIn).

De fato, pouco a pouco, a mulher de Assis foi aprendendo em São Damião “a comer cada dia da mão de Deus”; uma mão que oferece, isto sim, e abundantemente, “pobreza, trabalho, tribulação, humilhação e desprezo do mundo” (TestClara 27) e que converte tudo isso em “delícia” porque derrama sem medida nos sulcos do coração uma semente viva: a esperança.

Quase com os olhos se pode ver aprofundar, germinar e crescer a semente na vida de Santa Clara: uma árvore tenra, depois mais robusta, vigorosa sob o sol de São Damião, finalmente caminhando com segurança no céu eterno de Deus, como modelo de esperança de toda a Igreja, como a árvore de mostarda do evangelho que abriga nela numerosos pássaros dos céus.

Nas mãos de Deus

Toda a vida de Clara, na realidade, se apoia na esperança.

Sozinha deixa para sempre a casa paterna para, aos dezoito anos, seguir os passos de um homem, de um burguês, Francisco, que as pessoas tinham como um louco. Um salto no vazio. Contra a tradição da família. Contra as convenções sociais. Contra a prática normal da Igreja daquele tempo. Um fechar os olhos e deixar-se conduzir pelo abismo da fé “contra toda esperança” (Rm 4,18). Péguy diz a Deus que a fé que ele ama é a esperança.

Um pouco depois vemos Clara deixar de lado a tranquila e organizada segurança do mosteiro beneditino no qual recebeu hospitalidade por uns poucos dias. Ali, ela resistiu à pressão e à violência dos familiares. Recusa a segurança humana que torna a bater à sua porta.

Dirige-se a São Damião. Na incerteza. Ali também está tudo para ser feito. Naquele lugar está sozinha mas não fica espantada com a solidão. Quanto mais profundo se faz seu despojamento, sua pobreza de seguranças humanas, à imitação do Cristo pobre, mais canta com toda liberdade e brilha ao sol, sempre caminhando na esperança porque permite experimentar desde aqui a secreta doçura que Deus reservou desde o principio para aqueles que o amam (3CtIn).

Em São Damião há muito pouco ou quase nada. E o que é mais certo: não há perspectivas seguras.

Hoje vemos a vida de Santa Clara à luz que aconteceu posteriormente… Clara, no entanto, ao entrar em São Damião, naquele marcante março de Assis, levava com ela somente a esperança. Contava unicamente com a promessa evangélica: “Vosso Pai sabe que tendes necessidade de todas essas coisas. Buscai em primeiro lugar o Reino e todas as coisas vos serão dadas de acréscimo” (Lc 12,30-31). Contava com uma outra promessa, a de Francisco, que havia predito que o Senhor haveria de multiplicá-las (TestCl). Não confiava em nada a não ser nisso. Não sabia o que seria dela, nem de sua irmã Inês que já se achava com ela… Vive a experiência do “pássaro do céu” e sabe que, nas mãos de Deus, ela vale mais do que muitos pássaros (cf. Mt 6,26). Alimenta-se com o que vem das mãos da Providência, dia após dia, como pobre. Não sabe se o lugar em que se encontra, São Damião, terá futuro: naquele momento estava vazio. Não podia imaginar que depois de poucos meses Deus, em sua misericórdia, haveria de multiplicar as andorinhas debaixo do sol. No momento, humanamente falando, tudo é obscuro.

Como Abraão, Clara caminha na noite, sustentada apenas pela confiança inquebrantável naquele que é o Senhor do impossível. “O Senhor disse a Abraão: Sai da tua terra, do meio de teus parentes, da casa do teu pai e vai para a terra que te mostrarei (Gn 12,1). E Abraão “saiu sem saber para onde ia” (Hb 11,8).

Clara também ignorava para onde o Senhor a estava levando. Era noite. Na esperança, no entanto, tudo se arrisca. “Olho confiante para o Senhor, espero no Deus de minha salvação; meu Deus me ouvirá”(Mq 7,7). E, apesar disso, Clara sentia-se segura, mais segura do que no velho e protegido castelo de seus familiares. Deus é fiel em suas promessas. Clara espera em sua palavra.

Como uma agonia

“Tu és a nossa esperança, grande e admirável Senhor, Deus onipotente, misericordioso salvador”, Estas palavras que Francisco escreveu para Frei Leão, foram passando de mão em mão e chegaram ao coração de Clara. “Tu és a segurança, tu és a riqueza que nos satisfaz. És o guarda e o defensor” ( Bilhete de Francisco a Frei Leão). Toda outra segurança fora do Senhor seria traição.

Clara lança-se no vazio: vende a herança e o resultado dá aos pobres. Faz aprovar de viva voz pelo Papa Inocêncio III o surpreendente privilégio da pobreza que seria concedido oficialmente em 1228. Deus fará com que nada falte às irmãs. Quanta esperança para aquela mulher, a quem um filho espiritual, um futuro Papa, não duvidará de chamá-la de “mãe da sua salvação” (Carta “Ab illa hora” do Cardeal Hugolino).

Aqui em baixo é noite, noite mais profunda do que nos bosques em torno da Porciúncula. Noite também para Clara, noite em que somente a pura esperança pode entrever uma luz, noite em que a única salvação é “olhar-se” no “espelho” que é o rosto de Cristo, o Amor pobre, privado do esplendor humano, que está suspenso da cruz; “Esperança de Israel que salvas no tempo da desgraça…”(Jr 14,8).

“Veja como por você ele se fez desprezível e siga-o, sendo desprezível por ele neste mundo. Com o desejo de imitá-lo, mui nobre rainha, olhe, considere, contemple o seu esposo , o mais belo entre os filhos dos homens, feito por sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, morrendo no meio de angústias na própria cruz… Se você sofrer com ele, na cruz e na tribulação, vai ter com ele na mansão celeste… e seu nome será inscrito no livro da vida” (2CtIn).

Como Clara aprendeu a “agonizar” com Cristo agonizante ( cf. LSC 31)? Somente pode responder a esta pergunta Aquele que a ensinou. Podemos, no entanto, exemplificar esses momentos de “agonizar com Cristo”: ter cinquenta irmãs e não ter nada para matar sua fome (Proc 6,6); ter uma “irmã Andréia” que, desesperada, tem no coração propósitos insanos (Proc 3,16); esperança de que tudo poderá se viver olhando para o espelho e para aquele que está suspenso no madeiro da cruz…Papas, bispos, padres e leigos vieram mendigar esperança em Clara, “mãe da salvação”.

Aqui, nesta terra de desterro, é noite. A salvação vem unicamente de Deus, do Deus pregado na cruz que se fez “a esperança de Israel, seu salvador em tempo de angústia”. É extremamente cansativo, verdadeira agonia, caminhar nas areias ardentes deste deserto que nos conduz à terra prometida. No entanto, está escrito: “O resto de Jacó será no meio de numerosos povos como o orvalho vindo do Senhor, como gota de chuva sobre a erva que não espera em ninguém nem conta com um ser humano” (Mq 5,6).

Há essa certeza: naquela terra não haverá mais noite (Ap 22,5). Não estaríamos já vislumbrando aqui uma aurora no horizonte?

Êxodo

Francisco parte pelos caminhos do mundo sem bolsa, nem alforje, nem bastão. Clara também, com a percepção de ter deixado na outra margem do Mar Vermelho a “vaidade do mundo” (TestCl), encerrada em São Damião, percorre os caminhos misteriosos de um êxodo no deserto, onde Deus é o único guia (Dt 32.12), Javé, o “Deus da esperança” (Rm 15,13), o Deus que desde sempre fez palpitar no coração do homem o desejo da terra do sonho que se acha para além das estepes e das dunas arenosas desse nosso viver cotidiano.

Clara entrevê esta terra: “Vou correr sem desfalecer, até me introduzires na minha adega, até que a tua esquerda esteja sobre a minha cabeça, sua direita me abrace e toda feliz me dês o beijo mais feliz de tua boca”(4CtCl). Nos seus escritos está sempre presente a “terra prometida”, reino de glória rumo à qual estamos caminhando.

Na experiência espiritual de todos os tempos, como na história de Israel, o “deserto” é sempre cenário de encontro com o Senhor. “… em terra deserta o encontrou, na vastidão ululante do deserto. Cercou-o de cuidados e o ensinou, guardou-o como a menina dos olhos. Qual águia que desperta a ninhada, voando sobre os filhotes também ele estendeu suas asas e o apanhou (Jacó) e sobre suas penas o carregou” (Dt 32, 10-12).

Clara sabe bem disto. É ensinada pelo Espírito. No interior da clausura organiza uma vida “nômade”, vida de povo que peregrina até à terra que está para além do rio. “Como peregrinas e forasteiras neste mundo, servindo o Senhor em pobreza e humildade”, “de nada se apropriando, nem de casa, nem de lugares, nem de coisa alguma” (Regra 8).

Nada. Simplesmente um caminhar para frente rumo à terra prometida, como um povo em marcha, que não tem cidade aqui embaixo, nem tenda estável onde refugiar-se, à imitação do Filho do Homem que não teve onde reclinar a cabeça e quando a inclinou foi para entregar seu espírito(1CtIn). Um “pequeno rebanho” que avança na esperança, cuja “porção” é uma “altíssima pobreza”, que “as faz pobres de bens materiais, mas ricas em virtude e as conduz até a terra dos vivos”. “Nada mais queirais ter debaixo do céu” (Regra 8). Na verdade, porque parar? Por que querer aqui embaixo uma morada? “Pois o Senhor teu Deus vai te introduzir numa terra boa, terra com águas correntes, fontes e lençóis de água subterrâneos que brotam dos vales e dos montes, terra de trigo, cevada, vinhas, figueiras e romãzeiras; terra de oliveiras, de azeite e mel; terra onde comerás pão em abundância… onde não te faltará nada” (Dt 8,7ss).

A esperança, escreve Péguy, leva Israel à posse da terra prometida. A esperança sustenta o povo a caminho através de todas as dificuldades. A esperança infunde coragem diante da certeza de que um dia as promessas se cumprirão.

A mesma esperança que orienta Israel é a secreta dinâmica do Privilégio da Pobreza. Clara caminha na certeza de que Deus é fiel em suas promessas. “Não se assuste, filha, Deus, fiel em todas as suas palavras e santo em todas as suas obras (Sl 144,13) vai derramar sua bênção sobre você e suas filhas. Vai ser o seu auxílio e o seu melhor consolador, porque ele é o nosso redentor e nossa recompensa eterna”(CtEr). E a terra que se pode divisar para além do rio distante, é bela demais para ser trocada por um pedaço de terra avermelhada de plagas áridas. “Que troca maior e mais louvável: deixar as coisas temporais, merecer os bens celestes em vez de terrestres , receber cem por um e possuir a vida” (1CtIn).

Um coração pobre

Estamos, portanto, sempre a caminho… Não é fácil caminhar por este “deserto” é o que nos ensina a experiência de cada um. Agora parece mais difícil do que nunca porque parece que o vento árido que muda de perfil as dunas, arrancando as tendas pacientemente erguidas entre uma tempestade de areia e outra despedaça toda esperança renascida… Nesses momentos nossos olhos ficam cheios de areia. Não podemos ver.

Para caminhar não basta o escudo da Regra que prescreve a pobreza absoluta. Clara está bem consciente disto:” E como é estreito o caminho e apertada a porta por onde se vai e se entra na vida, são poucos os que por aí passam e entram. E se há alguns que nele andam por um tempo, são pouquíssimos os que nele perseveram. Felizes, no entanto, são aqueles a quem foi dado andar por ele e perseverar até o fim” (TestCl). Não basta um esforço de desprendimento renovado a cada dia… Hoje, mais do que nunca, no “deserto” resiste somente quem tiver um coração de pobre, quem viver a dinâmica da espera, quem se apresentar em estado de disposição, de fidelidade, daquela confiança em tensão que é precisamente a esperança… Quando Israel se desvia, confiando mais nas potências políticas e na segurança terrena do que em seu Deus, uma estranha certeza toma conta dos profetas: para que Israel volte a encontrar seu Deus será preciso perder tudo, quer dizer, todas as certezas terrenas, tudo o que insensivelmente foi ocupando em seu coração o lugar de Deus.

Ter um coração de pobre significa, nem mais nem menos, contar apenas com Deus. Portanto, não com meus talentos pessoais, nem com as reservas feitas, não com programas a realizar, não com a força do grupo, nem com o prestígio da Ordem ou do mosteiro, não com a força da tradição, nem com o passado glorioso, nem com a capacidade de organização dos outros e minha, não com o número, não com a qualidade, não com uma fonte que pode ser encontrada um pouco mais adiante na caminhada, não com a saúde de que gozo e que continuarei a ter nos próximos anos, não com a ajuda do exterior, não com as ideias deste ou daquele. Somente com Deus, como o “pequeno resto” da profecia: ”Deixarei no meio de ti um povo pobre e humilde: eles procurarão refúgio no nome do Senhor (Sf 3,12).

Senhor, somente tu. Tu és apoio e plenitude. Fora de ti nada tem cor. Tudo tem tom cinzento que lembra a desesperança… “Senhor, meu coração não é pretensioso, meus olhos não são arrogantes. Não ando à procura de grandezas, nem de maravilhas fora de meu alcance. Pelo contrário, estou sossegado e tranquilo: como criança saciada no colo da mãe, como criança saciada minha alma está em mim. Israel põe tua esperança no Senhor, desde agora e para sempre (Sl 130).

O “deserto” queimou tudo em Clara. “Põe-me como um selo em teu coração, como um selo sobre teu braço” (Ct 8,6). Depois que tudo foi queimado ficou apenas o semblante de seu Cristo, pobre e crucificado. Nada mais. Ele. Clara não se dispersa. Só tem tempo para ocupar-se com Cristo, Cristo Verbo Encarnado que exige o amor daqueles que ele “separa” por amor.

Assim, também no “deserto” surge um oásis que vivifica toda a Igreja. “Já não te chamarão ‘Repudiada’ nem a tua terra de ‘Devastada’. Serás chamada, isto sim, minha querida e tua terra terá o nome de desposada. Pois como o jovem se casa com uma moça, assim o teu arquiteto te desposa, e como o noivo se alegra com a noiva, teu Deus se alegra contigo” (Is 62, 4-5). “Seu afeto comove, sua contemplação reconforta, sua benignidade sacia, sua suave plenifica, sua memória ilumina suavemente” (4CtIn).

Se Clara vivesse hoje, penso que ninguém duvidaria, estaria muito ocupada em amar a Cristo (Verbo encarnado, criança, crucificado, próximo, que plenifica a sua vida, exige em troca o amor, um Deus que coloca sementes de escuta no coração). Clara recriminaria menos passado que já não lhe pertence, não ficaria chorando o tempo presente que só a força do amor pode redimir, não faria perguntas inúteis nem nutriria apreensões com respeito ao futuro. Estas posturas constituem pecados contra a esperança.

Quando é que vamos compreender que não temos outra coisa a fazer senão ocuparmo-nos dele, do salvador do mundo, comprometendo-nos a fazer novas todas as coisas com aquela atenção, aquele amor, aquela fidelidade, aquela confiança que é própria de uma esposa, de uma mãe, de uma filha, de uma irmã que ama? Quando?

Porque todo o resto, todo, virá por si mesmo para nós, para a Igreja e para o mundo inteiro: oráculo do Senhor (cf. Mt 6,33).

Tempo de esperar

“Há um tempo para cada coisa”, afirma o Eclesiastes (3,1): “tempo para nascer e tempo para morrer, tempo para chorar e tempo para rir, tempo para calar e tempo para falar…”

Há também um tempo para esperar e esse tempo chegou. Agora é tempo de esperar, de esperar por todos, porque são muitos os que “experimentam o sabor” da angústia do deserto e depende em grande parte de nós, clarissas, que escutem ou não a voz do Deus vivo.

Creio que não nos perdoarão muitas coisas; de uma certamente pedirá contas Aquele que se definiu como “esperança de Israel” e que nos tirou do nada para que fôssemos filhas de Clara nesses anos: se soubemos ou não manter viva a esperança no coração do mundo, no coração da Igreja, a esperança em nossa terra que parece estremecer de desesperança em sua profundidade e se deixa levar por “fugas” rumo a horizontes ilusórios; se soubemos ou não devolver o verde à esperança desalentada dos homens, a esperança da Igreja, a esperança franciscana, acovardada diante de enormes problemas de evangelização no exterior e de autenticidade no interior. Quantas defecções, quantas quedas ou acomodações por falta de esperança!

Sim, para nós, clarissas, é tempo de sustentar, com um coração pobre, apoiado somente em Cristo, a esperança universal.

Não se nos perdoará o pecado contra a esperança, pecado que poucas vezes se manifesta em gestos trágicos, mas que atinge a vida de modo sutil, quase que sem nos darmos conta; que nos paralisa, que nos faz perder tempo com problemas secundários (a única “questão” não marginal é Ele). Atinge também nossa vida quando buscamos posições mais cômodas. O pecado que lança sementes de desilusão e desconsolo, que rói o entusiasmo do dom e o solapa com uma infinidade de “se”: “se houvesse vocações”; “se tivéssemos com que sustentar a casa”; “se tivesse saúde”. Esse pecado tira a alegria de ir adiante como peregrinos, numa caminhada cheia de confiança no Deus da salvação, deixando-nos ser alavancados pelo Espírito; esse pecado nos faz regredir por meio de inúteis lamúrias. Esse “antigamente sim que…” seca o canto nos lábios, extirpa a alegria do coração e onde há fervor, faz se instalar a apatia.

Não há vocações, não se tem saúde. Que importa? Será que por estas razões deixamos de estar nas mãos de Deus ou sua sombra deixou de nos cobrir? Ou será que neste tempo, como aconteceu com Clara, o Senhor não estaria pedindo de nós “um salto no vazio”, um abandono sem limites a seus desígnios misteriosos?

Senhor, confio em Ti! Perdoa-me por este meu duvidar, que marca minha vida de desalento e de tristeza. Tu és a minha esperança! “Tens na mão a minha sorte” (Sl 15,6).

Nós, clarissas, deveríamos ser, neste momento, aquelas que cantassem para o Povo de Deus, para Ordem Franciscana e para o mundo o Cântico de Isaías (cap. 26). “Temos uma cidade forte, para segurança ele colocou muro e antemuro. Abri as portas para que entre uma nação justa que guarda a fidelidade… Confiai no Senhor sempre, porque o Senhor é uma rocha forte pelos séculos”.

Sim, em nossas mãos está, desde que queiramos nos servir dela, toda a força dos pobres, aquela força que “obrigou” a Deus voltar-se para Clara, inclinar-se sobre sua pobreza, sobre seu denso silêncio de espera e de confiança:

Dá-nos, Senhor, um coração de pobres e dilata nossa capacidade de esperar, para que em nós possa pulsar a esperança de todos os povos! Por nosso Senhor Jesus, Amor pobre, espelho da Senhora Clara.

20 de abril de 2012

Especial - Santa Clara de Assis 800 anos.Clara de Assis: O canto de uma vida


Irmã Catherine Savey, clarissa, publicou na revista Èvangile Aujourd’hui (n.194. 2002, p.6-11) um texto descrevendo os últimos momentos de Clara e tecendo considerações a respeito da cultura da morte da Idade Média. Querendo continuar nossa preparação para o oitavo centenário da forma de vida de Clara acreditamos ser proveitosa para todos a leitura deste texto. Substancialmente é o texto de Irmã Catherine, com algumas modificações e adaptações.

Para melhor captar o alcance da frase de Clara: “Obrigado, Senhor, por me teres criado”, necessário se faz colocá-la no seu contexto histórico. Ela é a conclusão das palavras de encorajamento que Clara dirige a si mesma antes de morrer. A morte na Idade Média tinha um alcance sociológico considerável, tanto por ser frequente, como também devido ao número de pessoas que cercam o moribundo e todo o quadro ritual que acompanha o final da vida. Os últimos dias de Clara e o relato que deles fazem as testemunhas estão impregnados desta cultura. As últimas palavras de Clara constituem o fecho desta liturgia num canto de louvor que resume e dá sentido a toda sua vida.

“Obrigado, Senhor, por me teres criado”. Muitos citam esta frase de Clara e, as mais das vezes, é a única palavra da Plantinha que conhecem. Um pouco como aquilo que acontece com a imagem de Francisco com os passarinhos. De acordo que tudo isso respire a alegria, o frescor, o louvor do Criador. Tudo pode ser correto, mas o contexto dá um peso diferente aos propósitos de Clara. Estamos praticamente com suas últimas palavras. Necessário situá-las em seu contexto.

Na verdade, a frase é conclusão da oração pronunciada por Clara no fim de sua vida. A passagem se situa em capítulos que relatam os últimos dias de Clara e comporta dez parágrafos do total dos vinte e nove de sua biografia, o que denota a importância desses últimos instantes para seu biógrafo Tomás de Celano. Uma tal constatação pode talvez nos causar surpresa. Os hagiógrafos da Idade Média, no entanto, tinham consciência de que a morte é mais do que o fim da vida. É, na verdade, sua conclusão, o instante que dá sentido a toda uma existência.

Para melhor compreender as páginas que cercam a frase “ Obrigado, Senhor, por me teres criado” e assim tentar compreender a plenitude de seu significado parece oportuno ver como se situava a morte na cultura da Idade Média.

A morte na Idade Média

Na Idade Média, a morte não causava surpresa. Ele acontecia com muita frequência ques que se tornava alguma coisa familiar. Mesmo se o século XIII tivesse sido uma época de prosperidade em que as epidemias perdiam a amplitude que ganhariam no século seguinte, podemos dizer que Clara e Francisco viveram um tempo em que a realidade da morte estava sempre presente. Muitas crianças morriam muito cedo, não poucas mulheres morriam no parto. As doenças também ceifavam adultos na plenitude de suas forças e homens sucumbiam em plena juventude nos campos das guerras. Além disso, a morte não era um acontecimento pessoal e escondido como acontece em nossos dias. Tinha um cunho eminentemente social. O moribundo era cercado de orantes (carpideiras), os funerais se revestiam de solenidade, o falecido era confiado à intercessão dos monges.

Nessa época em que a fé era inquestionável, o problema não consistia em saber se existia vida após a morte, mas se a pessoa que morria estava em condições de entrar no paraíso. A representações do juízo que adornavam os portais das catedrais construídas nesta época testemunham esta preocupação pela salvação eterna. A angústia que brota da morte corporal era potencializada com o medo do castigo eterno.

Tendo em mente o que dissemos, compreende-se a importância dos últimos instantes, ocasião em que o moribundo pode se reconciliar com a misericórdia divina. Aconselhava-se que, então, ele fizesse “donativos” para a celebração de missas e a recitação de orações pelos religiosos, que ele fizesse confissão geral de sua vida, recebesse o viático, “alimento para o caminho” até o paraíso e penhor de vida eterna, de ser acompanhado ao longo da agonia da oração ininterrupta da família e de pessoas que acorriam para prestar assistência ao que morria.

Se todas as condições mencionadas fossem cumpridas, poder-se-ia mesmo esperar que uma legião de santos e anjos viesse escoltar o defunto, ajudando-o em sua ascensão ao céu e assim atravessando ileso o ar enfestado de demônios.

Assim sendo feito, os funerais podiam se dar. Mesmo para os pobres os funerais eram solenes. Havia festa para celebrar na alegria o começo de uma nova vida.

O que acabamos de dizer parece distante da ação de graças de Clara. Em tal contexto, no entanto, é que devemos situar esse obrigado pela vida que sai dos lábios da santa.

Os últimos dias de Clara

A “Vita” de Celano e os testemunhos do Processo de canonização de Clara estão, com efeito, impregnados desta cultura.

Certamente, a morte era familiar a Clara e seus contemporâneos:

• As taxas de mortalidade não deveriam ser menores em São Damião do que em outros lugares. Clara assistiu algumas irmãs em seus últimos momentos. O Processo faz alusão a várias dentre elas.

• O Ofício dos Defuntos era recitado frequentemente em São Damião, talvez mesmo todos os dias como faziam os cistercienses, mas certamente durante vários dias após a morte de uma irmã. Ele lembrava que a presente vida nada mais do que uma etapa para a eternidade.

• As cartas de Clara dirigidas a Inês de Praga falam de seu desejo ardente de ir ter com o Senhor no Reino. Tal pensamento era mais do que uma simples manifestação de fervor. Era, de verdade, uma real probabilidade diante da prolongada doença de Clara. A morte poderia ser realidade a se concretizar num breve espaço de tempo. Por duas vezes (em 1224 e 1251), as irmãs temeram pelo pior.

No dia 5 de novembro de 1251, a corte pontifícia chegava a Óstia. Depois se dirigiria a Perusa. O cardeal Rainaldo, bispo de Óstia e cardeal protetor da Ordem, ficou sabendo do agravamento da enfermidade de Clara. Veio fazer-lhe uma visita, trazendo-lhe a comunhão. Clara pede que ele consiga do Papa a aprovação da Regra. No ano seguinte, o Papa e os cardeais passam de Perusa a Assis. Clara está cada vez mais fraca. “Juntou-se nova fraqueza a seus membros sagrados gastos pela velha doença…” (Legenda, 41). Inocêncio IV foi visitar a serva de Cristo e deu-lhe a absolvição plena e a graça de uma ampla bênção. Depois, a Plantinha recebeu a comunhão das mãos do ministro provincial.

A morte não deveria tardar. Clara não se alimenta mais e sofre. As irmãs fazem vigília noite e dia, sempre chorando. Clara pede a presença de padres e de santos frades para que lhe leiam a Paixão. Frei Rainaldo, sem dúvida seu confessor, e os primeiros companheiros de Francisco: Junípero, Leão, Angelo de Rieti acompanham os lamentos das irmãs e em suas preces. Cercada de tão ilustres personalidades, irmãos sacerdotes, foi a Frei Junípero, sabidamente homem de coração extremamente singelo, que Clara pergunta “se existe alguma coisa nova para aprender a respeito do Senhor”. Essa insaciável Clara! “Ele abriu a boca e deixou sair centelhas ardentes da fornalha do fervoroso coração. E a virgem de Deus ficou muito consolada com suas parábolas”.

Não restava a Clara outra coisa senão, uma vez mais, recomendar às suas irmãs o amor pela pobreza e lembrar-lhes os benefícios com os quais o Senhor as havia cumulado.

Clara parece preparada para a grande partida. Tem consciência de que em poucos minutos estará sozinha, face a face com seu Senhor. Há muito tempo ela desejava que esta hora chegasse. Como muitos que estão às portas da morte, como o próprio Jesus, parece que ela se vê tomada de angústia e ela mesmo se exortava à confiança. A virgem muito santa, voltando-se para si mesma, diz baixinho à sua alma: “Vá segura, que você tem uma boa escolta pelo caminho. Vá, diz, porque aquele que a criou também a santificou e guardando-a sempre como uma mãe guarda o filho, amou-a com terno amor. E bendito sejais, Vós que me criaste”

O canto de uma vida

Para ganhar confiança, Clara repassa interiormente todo o desenrolar de sua vida, dando-se sempre conta da presença constante e amorosa do Senhor ao seu lado:

Foi ele que a havia tecido no seio de sua mãe (Sl 138,13), e que antes de seu nascimento garantiu a Ortolana angustiada com a proximidade do parto com todos os seus eventuais perigos que tudo sairia bem. Esse Deus havia garantido a sua mãe que a criança que ela carregava em seu seio irradiaria a luz de Deus (Legenda 2).

• Foi o Senhor que a fizera nascer para vida divina no dia de seu batismo quando recebeu o nome de Clara, lembrando a graça recebida por sua mãe.

• Ele é que a ensinou a conhecer e a amar quando Ortolana falava dos relatos evangélicos, envolvidos nas lembranças de sua peregrinação à Terra Santa.

• Foi o Senhor que havia colocado bem cedo no seu coração o desejo de lhe pertencer de maneira total.

Redigindo seu Testamento, alguns meses antes, Clara já havia evocado o encadeado da história maravilhosa de sua via com Deus com o intuito de fazer sua ação de graças:

• Foi o Senhor que a chamara para esta vocação, da qual ela conhece a grandeza ( Test. 2 e 19-21).

• Foi ele, pelo Espirito Santo, que inspirara a Francisco quando o santo restaurava a igreja de São Damião, a predição de que ali viveriam religiosas que glorificariam a Deus ( Test. 11-14 e 31).

• Foi o mesmo Senhor que iluminou seu coração para que ela abraçasse essa forma de vida segundo o exemplo e as palavras de Francisco ( Test 24 e 26).

• Foi ele que a levou a São Damião ( Test 30).

• Foi ele que lhe deu irmãs e as multiplicou constituindo “este pequeno rebanho” na Igreja (25, 31 e 46).

• Esse mesmo Altíssimo sempre atendeu às necessidades das irmãs encaminhando-lhes esmolas (Test 64).

•Ele foi o seu consolador, seu apoio, através de Francisco que foi jardineiro e cuidador da pequena plantação (Test 38 e 48).

• Foi ele que, na pessoa de Francisco, foi o seu caminho e a ensinou as sendas da pobreza e da humildade ( Test 57 e 74).

• Ele, finalmente, resume Clara, que deu o começo, o crescimento e a perseverança ( Test 78).

Quando lemos assim o Testamento ficamos impressionados em constatar a que ponto o olhar de fé faz com que Clara descubra em tudo a presença amorosa de Deus que ela encontra nos pormenores da vida de todos os dias.

Poucos dias antes ela havia recebido do Senhor um último presente: a tão desejada aprovação de sua Regra pelo Papa Inocente. Durante toda a sua vida, Clara batalhara para conseguir o direito de seguir o Cristo na pobreza (toda a luta para conseguir o privilégio de não ter privilégios). Insatisfeita com as regras que sucessivos papas lhes atribuíam sem o privilégio da pobreza, ela própria redigiu sua forma de vida.

Irma Filipa diz no Processo: “Como desejava ardentemente que a regra da Ordem fosse bulada, mesmo que tivesse que colocar esta bula um dia e morrer no dia seguinte, assim lhe aconteceu que veio um frade com a carta bulada, que ela tomou reverentemente e, embora estivesse à morte, colocou ela mesmo aquela bula na boca para beijá-la.” (Proc 3,32). A bula pontifícia data de 9 de agosto, antevéspera da morte de Clara.

Na verdade, Clara podia partir com toda segurança porque aquele que a acompanhará para além das angústias da morte e a protegerá das últimas invectivas do demônio, seu guia para o caminho, foi Aquele que a criou, santificou, guardou, amou ao longo de sua existência com um terno amor, como uma mãe ama seu filho!

Num último suspiro, Clara resume o canto de sua vida: Obrigado, Senhor, por me teres criado”

Frei Almir Ribeiro Guimarães