Textos de abertura
O Senhor disse a Abraão: “Sai da tua terra, do meio
dos teus parentes, da casa do teu pai e vai para a terra que te
mostrarei. Farei de ti uma grande nação e te abençoarei engrandecendo o
teu nome de modo que se torne uma bênção” (Gênesis 12,1).
A fé é como uma criança que não dá descanso, não se acostuma a
hábito algum, sobretudo da indolência e da tibieza. Repugna-lhe
comprometimentos. Ela é uma criança rebelde, ao mesmo tempo vulnerável e
temerária, reflexiva e aventureira. Criança que nasceu em plena noite,
não feita para a provação da noite, sempre em estado de busca,
desejando a luz (Sylvie Germain).
1. Estamos vivendo a graça do Ano da Fé. Toda
reflexão sobre o tema da fé começa com Abraão, que deixa sua terra e
sua parentela, seu modo de viver no mundo e seu jeito de organizar a
vida e lança-se a caminho. Alguém avisa que ele, apesar de todos os
pesares, apesar do ventre seco de Sara, será pai de uma multidão. Ele
creu e por isso foi justificado. A fé é um movimento de ir, de sair,
de fazer o que é pedido, com parcial clareza ou mesmo nenhum. “Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste”, grita o homem Jesus no alto da
cruz. Sim, a fé é uma criança que não se acalma, nem dá descanso.
Coloca os que convoca em estado de busca. Nada tem de mesmice, de
indolência, nada tem a ver com um pacote recebido não sei quando e que
deve ser levado não sei para onde. A fé sempre questiona, interroga,
ilumina, apresenta-se oportuna e inoportunamente à nossa liberdade. Digo
bem, ela se apresenta à liberdade de cada um. Na abordagem do tema não é
questão apenas de insistir sobre o saber de cor o Credo. Não se trata,
em primeiro lugar, de doutrina, e sim do ingresso num universo que nos
escapa, numa misteriosa comunhão com Deus, em caminhar na terra como se
víssemos o Invisível. Melhor imagem para explicar a fé: uma luz, uma
claridade que dá sentido à vida e que nos permite organizar um
consistente projeto de existência. A luz da fé esclarece nosso presente
e projeta luz em nosso amanhã. Uma das experiências mais trágicas de
uma existência é a que fazem os que não creem. A fé é dom do alto que é
sempre dado aos pequenos. “Pai, Senhor do céu e da terra, eu te louvo,
porque escondeste estas coisas dos sábios e poderosos e as revelaste aos
pequenos”. O dom é dado a quem abre a porta.
2. A fé é escuta e assentimento. No coração
da vida irrompe a voz de um Outro que chama e convoca. A fé tem a ver
com o jogar-se naquele que chama, sem medo, correndo todos os riscos,
com pouca bagagem. Com certeza, de um lado e questões do outro.
Lançar-se sem medo porque quem nos chama nos ama. É um arremesso para
frente. É movimento de confiança em Alguém que está fora de nós, que nos
chama e convoca a sairmos de nós mesmos e ir ao seu encontro. O que vem
depois é segredo ente o Amante e a amada. A fé leva à comunhão.
Tornar-se uma pessoa de fé significa deixar-se conduzir por este
dinamismo que aponta para Jesus Cristo morto e ressuscitado. E saber
que, aqui e agora, eu morro e ressuscito com ele. Um tal movimento de
saída de si e busca do Outro comporta aspectos exigentes e, por vezes,
dolorosos. Andar na direção de Alguém exige um distanciamento do lugar
em que estamos, daquilo de que se ocupa nosso coração, nossos afetos,
desejos e posses. Andar na direção da fé implica na renúncia de
queremos construir em nosso interior uma imagem desse Alguém de acordo
com nossos gostos e nossas expectativas. Trata-se da aceitação humilde
de uma descoberta que vai se dilatando ao longo do tempo: uma vida à
luz da fé, do Senhor, do Cristo morto-ressuscitado. Vida de fé que há de
reservar suas surpresas. Não se coloca esse Alguém a nosso serviço. Se
assim fosse, estaríamos diante de um ídolo.
3. Andar na direção desse Alguém significa aceitar que ele seja diferente. Nem
sempre as exigências da fé coincidem com nosso querer. Nossos
critérios nem sempre são os critérios desse Alguém. Não se seleciona
aquilo em que deseja-se acreditar. A fé pede que perdoemos setenta vezes
sete, nos diz que o corpo apodrecido na sepultura é fadado à gloria,
que há força de redenção no sofrimento. O Outro será acolhido em sua
totalidade, em tudo o que é e que diz. Trata-se do tudo ou nada.
4. O movimento da fé não desemboca num vazio, mas encontra um dado objetivo, em alguma coisa que se acredita, um “regra de fé”.
A fé tem um conteúdo.
Situa-se no observável, no coletivo, no comunicável. Há um conjunto de
verdades que está diante de nós, um credo a ser conhecido, apreciado,
vivido. Não verdades frias. Há um Deus grande e belo que se revela em
Jesus, morto e ressuscitado, no coração de uma comunidade de crentes e
que nos faz viver aqui e agora a intimidade com ele de modo nebuloso e
esperando a plenitude na
“vita venturi saeculi”. Os
sentimentos e sensações que cada um experimenta nem sempre são bons
conselheiros, sobretudo quando as pessoas não são vigilantes nem
perseverantes. No campo da fé, a emoção é má conselheira. O “credo”
permite nos ater a um linguajar sóbrio e distinguir os reais fundamentos
da fé que são necessários para construir sobre o sólido uma experiência
pessoal do Deus de Jesus Cristo.
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A imagem da Igreja é representada por um barco que
navega sobre as ondas. Seu mastro é uma cruz. Este iça as velas que
formam o trigrama de Cristo: IHS. Na logomarca, ao fundo, se vê
representado o sol associado ao trigrama que se refere à Eucaristia. |
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5. A fé está ligada a uma experiência. É
um dado existencial. Ela permeia e atravessa a vida de uma pessoa
transformando-a através de um processo de conversão e de salvação.
Exteriormente, a convicção interior se explicita num testemunho concreto
e cotidiano, que arranca a pessoa do egoísmo e da instalação em seus
próprios interesses e abre para uma solidariedade mais ampla, a uma
justiça mais exigente, a uma caridade mais generosa. Não se pode pensar
numa ortodoxia, sem pensar numa
ortopraxia. Não se pode falar
de uma fé solidamente estruturada, sem delinear também um
comportamento, uma moral. O comportamento deve refletir a adesão ao Deus
de Jesus Cristo e deixar transparecer a fé através de escolhas
coerentes e decisivas. Não existe fé sem obras. Os ritos externos que
costumam exprimir a fé sem o fundamento da fé são vazios e inócuos.
6. A fé designa o ato pessoal de crer, de
se confiar a Cristo e a seu ensinamento que não se limita à submissão a
códigos engessados ou a um corpo de doutrina. Christophe Theobald:
a fé tem a ver com uma liberdade que faz a experiência de ser libertada de si mesma.
A fé cristã significa apostar todas as fichas nesse Jesus de Nazaré,
que veio ao mundo da parte de Deus, caminhou pelas estradas da terra,
conheceu os mistérios do coração humano, sofreu, morreu e ressuscitou e
vive entre nós. Estará conosco ate à consumação dos séculos. A fé em
Deus não exige renúncia de viver e responder aos convites do tempo. Ela,
no entanto, dá um sabor diferente a nossos planos, projetos e
vivência. A fé não nos fecha numa modalidade de autossuficiência ou
complacência para conosco mesmo. Convida-nos a nos reabastecer numa
fonte fora de nós. A fé não é qualquer coisa mágica que nos garante
tudo uma vez por todas. Ela coloca à prova nossa liberdade e nossa
confiança no cotidiano de nossas escolhas. A fé informa tudo:
casamento, vida de padre, pessoas solteiras, alegrias, sofrimentos,
prioridades, vida e morte. Vivemos como se sempre estivéssemos vendo o
Invisível.
7. Crer significa entrar numa relação de confiança com Deus.
Repetimos: ter fé é aderir pessoalmente ao Deus que se revela como o
Pai criador, como Jesus Cristo o Filho, morto e ressuscitado para nós,
como Espírito Santo, doador de vida e santidade. Com todos os homens e
mulheres, os cristãos têm perguntas que dançam seus lábios vindas de seu
interior. Como chegar a uma verdadeira felicidade? Qual o bem a ser
feito e o mal a ser evitado? Como decidir quando as situações são
complexas? Por que os justos sofrem? Por que o Senhor parece mudo. A
fé nos convida a elaborar respostas a estas questões. Ela não é uma
caixa de conteúdos e de soluções no sótão da nossa vida. Ela ilumina. A
nós de enxergar e aderir.
8. Crer é saber-se precedido e amado pelo Senhor na existência.
Aderir a Deus, é descobrir aquele que é fonte de minha vida, aquele
que suscitou minha liberdade e quer me guiar pelo caminho do amor.
Esta experiência tem suas consequências práticas: minhas ações e
decisões terão sentido somente na medida em que responderem ao dom do
amor de Deus. Sabemos em quem colocamos nossa confiança. Antes que
amássemos esse Outro, ele nos amou. É belo e reconfortante percorrer os
salmos e ver como o salmista se sente coberto de amor. “Bendirei o
Senhor em todo o tempo…”.
9. Crer nunca é obra solitária, mas significa ingresso numa tradição herdada dos apóstolos. O
compromisso que a fé suscita na vida cotidiana não é um ato isolado,
mas testemunho secundado e modelado pela comunidade dos crentes. Outros
viveram a fé e no-la transmitiram. Como discípulos de Cristo,
acreditamos também na Igreja que é seu corpo comunitário animado pelo
Espírito. A fidelidade ao Cristo supõe a fidelidade à sua Igreja. Um
documento pastoral dos bispos franceses, reza: “Recebemos da Igreja
encorajamento, formação e orientações para nosso comportamento. Toda a
comunidade cristã é lugar de discernimento da retidão cristã das
decisões. Para estarmos certos de responder em nossa vida aos apelos do
Espírito de Cristo temos necessidade de buscar tal verificação na
comunidade habitada pelo Espírito como se manifestam os frutos do
Espírito”.
10. “A comunidade cristã, de modo especial pela
vida litúrgica, modela nossa maneira de ver o mundo, instrui nosso
caráter moral, e educa nossa atitude diante de questões éticas. A
liturgia nos descentraliza, nos coloca diante da Palavra de Deus para
que possamos ser imitadores de Cristo. Por seus pastores também a Igreja
nos fornece indicações a respeito de nosso seguimento de Cristo” (
Thomasset).
11. A partir de Abraão, o pai dos crentes, crer é entrar em relação. Um
eu diante
de um tu, uma resposta de fé à iniciativa de Deus. A fé é da ordem da
relação (e da revelação) e da confiança. Abraão é a testemunha maior de
tal confiança do homem em Deus pessoalmente encontrado: a questão não é
mais a da existência de Deus, mas da confiança feita a esse Deus que se
interessa pelo homem. “A fé um caminho a ser percorrido, também como
foi para Abraão, o ato de caminhar na direção de Deus, do outro e de nos
mesmos. Para o cristãos, esse caminho se faz seguindo um homem que se
encarnou em nossa história: Jesus se Nazaré. Este homem, Filho de
Deus, nos arranca da crença e da religiosidade, convidando-nos a
segui-lo em toda a liberdade e nos comprometendo a viver o Evangelho e
sua mensagem: amar, partilhar, perdoar e dar a vida.” (
Régine Maire).
A fé nunca é adquirida de uma vez por todas. Dúvidas estão ligadas à
fé. A fé é combate que todos os santos conheceram. Podem surgir
dificuldades para crer a partir do mal, da mediocridade do testemunho
cristão. Entramos, por vezes, na noite terrível da dúvida.
12. “ A fé é virtude, atitude habitual da alma,
inclinação permanente a julgar e agir segundo o pensamento de Cristo,
com espontaneidade e vigor, como convém a homens “justificados”. Com a
graça do Espírito Santo, cresce a virtude da fé, se a mensagem cristã é
entendida e assimilada como “boa nova”, no sentido salvífico que tem
para a vida cotidiana do homem! A Palavra de Deus haverá de aparecer a
cada um como abertura aos próprios problemas, uma resposta às próprias
indagações, compreensão dos próprios valores e satisfação das próprias
aspirações. A fé se torna facilmente motivo e critério de todas as
avaliações e escolhas” (
Il Rinnovamento dela Catechesi, n. 52).
13. Michel Hubaut, franciscano francês, no seu livro
La Voie Franciscaine (tr. espanhol
El caminho franciscano)
disserta sobre o horizonte da fé de Francisco. O Poverello busca a fé
como se procura um poço no deserto. Ele se dá conta que ela é uma
frágil chama no meio da noite. Vai procurar a fé como se remexe a
terra para ver se por ali está enterrado um tesouro. A fé começa sempre
com uma rutura. O homem frágil, ergue-se, abre os braços. Como acolher a
gratuidade dos dons do Senhor sem deixar cair de nossas mãos nossas
pseudo-riquezas? Nos começos de sua caminhada o evangelho fez com que
Francisco tivesse dores como aquelas que provoca o bisturi do cirurgião
rasgando a carne. A homilia dominical que mantinha meio adormecida a
assembleia tornou-se para ele o evangelho de fogo. Hubaut: “O contrário
do medo é a fé. Ter a coragem de tudo arriscar. Renunciar ao desejo
de manipular sua vida, seus talentos, seus bens, de cada um seguir seu
caminho solitário. Renunciar a tudo isso para entregar-se à vontade de
Deus, para entrar no projeto amoroso que Deus tem para cada um: este é o
mistério da fé. Tudo aposta na fé. Não se pode compreender nada da
vida de Francisco quando se esquece este fundamento inicial. Sua
conversão é o desejo do homem que se abre ao desejo de Deus”
14. “Este é o cerne da espiritualidade de
Francisco: a fé vigilante. Para além das ideologias, das sirenes que
anunciam desgraças, dos slogans publicitários sobre a felicidade,
permanecer disponível ao chamamento de Deus, ao Espírito do Senhor.
Iluminar de novo nossas fontes interiores. Escutar a Deus. Buscar a
Deus. Deixar-se modelar por Deus. Deixar-se conduzir de novo no meio da
noite pela esperança que ganhou rosto em Jesus Cristo. Despertar desta
sonolência espiritual em que se entregou o mundo ocidental no meio de
sua abundância. O projeto evangélico de São Francisco se enraíza na fé.
A fé que crê que Deus é amor, que seu projeto sobre o homem faz ir
pelos ares a estreiteza de nossos horizontes e que esta dependência de
amor (a Deus) não aliena o homem, mas o liberta”
Obs.:
Esta reflexão esteve fortemente apoiada em:
● Introdurre ala vita di fede oggi, Roberto Laurita, in Credere oggi, n. 89, 5/ 1995, p. 89-107
● La Joie de croire, Régine Maire, in Les cahiers de croire, , n. 284
● Croire c’est imiter Dieu, Alain Thomasset, in Les cahiers, op.cit.
Frei Almir Ribeiro Guimarães