6 de fevereiro de 2013

A aventura da fé

Textos de abertura
O Senhor disse a Abraão: “Sai da tua terra, do meio dos teus parentes, da casa do teu pai e vai para a terra que te mostrarei. Farei de ti uma grande nação e te abençoarei engrandecendo o teu nome de modo que se torne uma bênção”  (Gênesis  12,1).
A fé  é como uma criança que não dá descanso, não se acostuma a hábito algum, sobretudo da indolência e da tibieza. Repugna-lhe comprometimentos. Ela é uma criança rebelde, ao mesmo tempo vulnerável e temerária, reflexiva e aventureira. Criança que nasceu em plena noite, não feita para a provação da noite, sempre em estado de busca,  desejando a luz  (Sylvie Germain).


1. Estamos vivendo a graça do Ano da Fé.  Toda reflexão sobre o tema  da fé começa com Abraão, que deixa sua terra e sua parentela, seu modo de viver no mundo e seu jeito de organizar a vida  e lança-se a caminho. Alguém avisa que ele, apesar de todos os pesares, apesar do ventre seco de Sara, será pai de uma multidão. Ele creu e por isso foi justificado.   A fé é um movimento de ir, de sair, de  fazer o que é pedido, com parcial clareza ou mesmo nenhum. “Meu Deus, meu  Deus, por que me abandonaste”, grita o homem Jesus no alto da cruz. Sim, a fé é uma criança que não se acalma, nem dá descanso. Coloca os que convoca em estado de busca. Nada tem de mesmice, de indolência, nada tem a ver com um pacote recebido não sei quando e que deve ser levado não sei para onde. A fé sempre questiona, interroga, ilumina, apresenta-se oportuna e inoportunamente à nossa liberdade. Digo bem, ela se apresenta à liberdade de cada um. Na abordagem do tema não é questão apenas de insistir sobre o saber de cor o Credo. Não se trata, em primeiro lugar, de doutrina, e sim do ingresso num universo que nos escapa, numa misteriosa comunhão com Deus, em caminhar na terra  como se víssemos o Invisível. Melhor imagem para explicar a fé: uma luz, uma claridade que dá sentido à vida e que nos permite organizar um consistente projeto de existência.  A luz da fé esclarece nosso presente e projeta luz em nosso  amanhã. Uma das experiências mais trágicas de uma existência é a que fazem os que não creem. A fé é dom do alto que é sempre dado aos pequenos. “Pai, Senhor do céu e da terra, eu te louvo, porque escondeste estas coisas dos sábios e poderosos e as revelaste aos pequenos”.  O dom é dado a quem abre a porta.

2. A fé é escuta e assentimento. No coração da vida  irrompe a voz de um Outro que chama e convoca. A fé tem a ver com o jogar-se naquele que chama, sem medo, correndo todos os riscos, com pouca bagagem. Com certeza, de um lado e questões do outro. Lançar-se sem medo porque quem nos chama nos ama. É um arremesso para frente. É movimento de confiança em Alguém que está fora de nós, que nos chama e convoca a sairmos de nós mesmos e ir ao seu encontro. O que vem depois é segredo ente o Amante e a amada. A fé leva à comunhão. Tornar-se uma pessoa de fé significa deixar-se conduzir por este dinamismo que aponta  para  Jesus  Cristo morto e ressuscitado. E saber que, aqui e agora, eu morro e ressuscito com ele. Um tal movimento de saída de si e busca do Outro comporta aspectos exigentes e, por vezes, dolorosos.  Andar na direção de Alguém exige um distanciamento do lugar em que estamos, daquilo de que se ocupa  nosso coração, nossos afetos, desejos e posses. Andar na direção da fé  implica na renúncia de queremos construir em nosso interior uma imagem desse Alguém de acordo com nossos gostos e nossas expectativas. Trata-se da aceitação humilde de uma descoberta que vai se dilatando ao longo do tempo:  uma vida à luz da fé, do Senhor, do Cristo morto-ressuscitado. Vida de fé que há de reservar suas surpresas.  Não se coloca esse Alguém a nosso serviço. Se assim fosse, estaríamos diante  de um ídolo.

3.  Andar na direção desse  Alguém significa aceitar que ele seja diferente. Nem sempre as  exigências da fé coincidem com nosso querer. Nossos critérios nem sempre são os critérios desse Alguém. Não se seleciona aquilo em que deseja-se acreditar. A fé pede que perdoemos setenta vezes sete, nos diz que o corpo apodrecido na sepultura é fadado à gloria,  que há força de redenção no sofrimento. O Outro será acolhido em sua totalidade, em tudo o que é e que diz. Trata-se do tudo ou nada.

4. O movimento da fé não desemboca num vazio, mas encontra um dado objetivo, em alguma  coisa que se acredita, um “regra de fé”.  A fé tem um conteúdo. Situa-se no observável, no coletivo, no comunicável. Há um conjunto de verdades que está diante de nós, um credo a ser conhecido, apreciado, vivido. Não verdades frias.  Há um Deus grande e belo que se revela em Jesus, morto  e ressuscitado,  no coração de uma comunidade de crentes  e que nos faz viver aqui e agora a intimidade com ele de modo nebuloso e esperando a  plenitude  na “vita venturi saeculi”.  Os sentimentos e sensações que cada um experimenta nem sempre são bons conselheiros,  sobretudo quando as pessoas não são  vigilantes nem perseverantes. No campo da fé, a emoção é má conselheira. O “credo”  permite nos ater a um linguajar sóbrio e distinguir os reais fundamentos da fé que são necessários para construir sobre o sólido uma experiência pessoal do Deus de Jesus Cristo.
A imagem da Igreja é representada por um barco que navega sobre as ondas. Seu mastro é uma cruz. Este iça as velas que formam o trigrama de Cristo: IHS. Na logomarca, ao fundo, se vê representado o sol associado ao trigrama que se refere à Eucaristia.










 5. A fé está ligada a uma experiência.  É um dado existencial.  Ela permeia e atravessa a vida de uma pessoa transformando-a através de um processo de conversão e de salvação. Exteriormente, a convicção interior se explicita num testemunho concreto e cotidiano, que arranca a pessoa do egoísmo e da instalação em seus próprios interesses e abre para uma solidariedade mais ampla, a uma justiça mais exigente, a uma caridade mais generosa. Não se pode pensar numa ortodoxia, sem pensar numa ortopraxia. Não se pode  falar de  uma fé solidamente estruturada, sem delinear também  um comportamento, uma moral. O comportamento deve refletir a adesão ao Deus de Jesus Cristo e deixar transparecer a fé através de escolhas coerentes e decisivas. Não existe fé sem obras. Os ritos externos que costumam exprimir a fé sem o fundamento da fé são vazios e inócuos.

6. A fé designa o ato pessoal de crer, de se confiar a Cristo e a seu ensinamento  que não se limita à submissão a códigos engessados ou a um corpo de doutrina.  Christophe Theobald: a fé  tem a ver com uma liberdade que faz a experiência de ser libertada de si mesma.  A  fé cristã significa apostar todas as fichas nesse Jesus de Nazaré, que veio ao mundo da parte de Deus, caminhou pelas estradas da terra, conheceu os mistérios do coração humano, sofreu, morreu e ressuscitou e vive entre nós.  Estará conosco  ate à consumação dos séculos. A fé em Deus não exige renúncia de viver e responder aos convites do tempo. Ela, no entanto, dá um sabor diferente a nossos  planos, projetos e vivência.  A fé não nos fecha  numa modalidade de autossuficiência ou complacência para conosco mesmo.  Convida-nos a nos reabastecer numa fonte fora de nós.  A fé não é qualquer coisa mágica que nos garante tudo  uma vez por todas. Ela coloca à prova nossa  liberdade e nossa  confiança  no cotidiano de nossas escolhas.  A fé informa tudo: casamento, vida de padre, pessoas solteiras, alegrias, sofrimentos, prioridades, vida e morte.  Vivemos como se sempre estivéssemos vendo o Invisível.

7. Crer significa entrar numa relação de confiança com Deus. Repetimos:  ter fé é aderir pessoalmente ao Deus que se revela como o Pai criador,  como Jesus Cristo o Filho, morto e ressuscitado para nós, como Espírito Santo, doador  de vida e santidade. Com todos os homens e mulheres, os cristãos têm perguntas que dançam seus lábios vindas de seu interior.  Como chegar a uma verdadeira felicidade?  Qual o bem a ser feito e o mal a ser evitado?  Como decidir quando as situações são complexas?  Por que os justos sofrem?  Por que o  Senhor parece mudo.  A fé nos convida  a elaborar respostas a estas questões. Ela não é uma caixa de conteúdos e de soluções no sótão da nossa vida.  Ela ilumina. A nós de enxergar e aderir.

8. Crer é saber-se  precedido e amado pelo Senhor na existência.  Aderir  a Deus, é descobrir aquele que é fonte de minha vida, aquele que suscitou minha liberdade e  quer me guiar pelo caminho do amor.  Esta experiência tem suas consequências  práticas:  minhas ações e decisões  terão sentido somente na medida  em que responderem ao dom  do amor de Deus. Sabemos em quem colocamos nossa confiança.  Antes que amássemos esse Outro, ele nos amou. É belo e reconfortante percorrer os salmos e ver como o salmista se sente coberto de amor.  “Bendirei  o Senhor em  todo o tempo…”.

9. Crer nunca é obra solitária, mas significa  ingresso numa tradição herdada dos apóstolos. O compromisso que a fé suscita na vida cotidiana não é um ato isolado, mas testemunho secundado e modelado pela comunidade dos crentes.  Outros viveram a fé  e no-la transmitiram. Como discípulos de Cristo, acreditamos também na Igreja que é seu corpo comunitário animado pelo Espírito. A fidelidade ao Cristo supõe  a fidelidade à sua Igreja. Um documento pastoral dos bispos franceses, reza: “Recebemos da Igreja  encorajamento,  formação e orientações para nosso comportamento. Toda a comunidade cristã é lugar de discernimento da retidão cristã das decisões. Para estarmos certos de responder em nossa vida aos apelos do Espírito de Cristo temos necessidade de buscar tal verificação na comunidade habitada  pelo Espírito como se manifestam os frutos do Espírito”.

10. “A comunidade cristã,  de modo especial pela vida litúrgica,  modela nossa maneira de ver o mundo, instrui nosso caráter moral, e educa  nossa atitude diante de questões éticas.  A liturgia nos descentraliza, nos coloca diante da Palavra de Deus  para que possamos ser imitadores de Cristo. Por seus pastores também a Igreja nos fornece indicações a respeito de nosso seguimento de Cristo”  (Thomasset).

11. A partir de Abraão, o pai dos crentes, crer é entrar em relação.  Um eu diante de um tu, uma resposta de fé à iniciativa de Deus. A fé  é da ordem da relação (e da revelação) e da confiança.  Abraão é a testemunha maior de tal confiança do homem em Deus pessoalmente encontrado: a questão não é mais a da existência de Deus, mas da confiança feita a esse Deus que se interessa pelo homem. “A fé um caminho a ser percorrido, também como foi para Abraão, o ato de caminhar na direção de Deus, do outro e de nos mesmos.  Para o cristãos, esse caminho se faz seguindo um homem que se encarnou em nossa história:  Jesus se Nazaré.  Este homem, Filho de Deus, nos arranca  da crença e da religiosidade, convidando-nos a segui-lo em toda a liberdade  e nos comprometendo a viver o Evangelho e sua mensagem:  amar, partilhar, perdoar e dar a vida.”  (Régine Maire).  A fé nunca é adquirida de uma vez por todas. Dúvidas estão ligadas à fé. A fé é combate que todos os santos conheceram. Podem surgir dificuldades para crer a partir do mal,  da mediocridade do testemunho cristão.  Entramos, por vezes, na noite terrível da dúvida.

12. “ A fé é virtude, atitude habitual da alma, inclinação permanente a julgar e agir segundo o pensamento de Cristo, com espontaneidade e vigor, como convém  a  homens  “justificados”. Com a graça do Espírito Santo, cresce a virtude da fé, se a mensagem cristã é entendida e assimilada como “boa nova”, no sentido salvífico que tem  para a vida cotidiana do homem!  A Palavra de Deus haverá de aparecer a cada um como abertura aos próprios problemas, uma resposta às próprias indagações, compreensão dos próprios valores  e satisfação das próprias aspirações.  A fé se torna facilmente motivo e critério de todas as avaliações e escolhas” (Il Rinnovamento dela Catechesi, n. 52).

13. Michel  Hubaut,  franciscano francês, no seu livro  La Voie Franciscaine  (tr. espanhol  El caminho franciscano)  disserta sobre o horizonte da fé de Francisco. O Poverello busca a fé como se procura um poço  no deserto. Ele se dá conta que ela é uma frágil chama no meio da noite. Vai procurar a fé como se  remexe  a terra para ver se por ali está enterrado um tesouro. A fé começa sempre com uma rutura. O homem frágil,  ergue-se, abre os braços. Como acolher a gratuidade dos dons do Senhor sem deixar cair de nossas mãos nossas pseudo-riquezas? Nos começos de sua caminhada o evangelho fez com que Francisco tivesse dores como aquelas que provoca o bisturi do cirurgião rasgando a carne. A homilia  dominical que mantinha meio adormecida a assembleia tornou-se para ele o evangelho de fogo. Hubaut: “O contrário do medo é a fé.  Ter a coragem de tudo arriscar.  Renunciar ao desejo de  manipular sua vida, seus talentos, seus bens, de cada um seguir seu caminho solitário. Renunciar a tudo isso para  entregar-se à vontade de Deus, para entrar no projeto amoroso que Deus tem para cada um: este é o mistério da fé.  Tudo aposta na fé. Não se pode compreender nada da vida de Francisco quando se esquece este fundamento inicial.  Sua conversão é o desejo  do homem que se abre ao desejo de Deus”

14. “Este é o cerne da espiritualidade de Francisco:  a fé vigilante. Para além das ideologias, das sirenes  que anunciam desgraças, dos slogans publicitários sobre a felicidade, permanecer disponível ao chamamento de Deus, ao Espírito do  Senhor.  Iluminar de novo  nossas fontes interiores. Escutar a Deus.  Buscar a Deus. Deixar-se modelar por Deus. Deixar-se conduzir de novo no meio da noite pela esperança que ganhou rosto em  Jesus Cristo. Despertar desta sonolência espiritual em que se entregou o mundo ocidental  no meio de sua abundância.  O projeto evangélico de São Francisco se enraíza na fé. A fé que crê que  Deus é amor, que seu projeto sobre o homem  faz ir pelos ares a estreiteza de nossos horizontes e que esta dependência de amor (a Deus) não aliena o homem, mas o liberta”

Obs.:
Esta reflexão esteve fortemente apoiada  em:

● Introdurre ala  vita di fede oggi,  Roberto Laurita,  in Credere oggi,  n. 89, 5/  1995, p. 89-107
● La Joie de croire, Régine Maire, in  Les cahiers de croire, , n. 284
● Croire c’est imiter Dieu,  Alain Thomasset,  in Les cahiers, op.cit.
Frei Almir Ribeiro Guimarães

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