30 de dezembro de 2011

SAGRADA FAMILIA DE NAZARÉ




Da alocução de Paulo VI, Papa, em Nazaré, 5.1.1964:

O exemplo de Nazaré:

Nazaré é a escola em que se começa a compreender a vida de Jesus, é a escola em que se inicia o conhecimento do Evangelho. Aqui se aprende a observar, a escutar, a meditar e a penetrar o significado tão profundo e misterioso desta manifestação do Filho de Deus, tão simples, tão humilde e tão bela. Talvez se aprenda também, quase sem dar por isso, a imitá-la.
Aqui se aprende o método e o caminho que nos permitirá compreender facilmente quem é Cristo. Aqui se descobre a importância do ambiente que rodeou a sua vida, durante a sua permanência no meio de nós: os lugares, os tempos, os costumes, a linguagem, as práticas religiosas, tudo o que serviu a Jesus para Se revelar ao mundo. Aqui tudo fala, tudo tem sentido. Aqui, nesta escola, se compreende a necessidade de ter uma disciplina espiritual, se queremos seguir os ensinamentos do Evangelho e ser discípulos de Cristo. Quanto desejaríamos voltar a ser crianças e acudir a esta humilde e sublime escola de Nazaré! Quanto desejaríamos começar de novo, junto de Maria, a adquirir a verdadeira ciência da vida e a superior sabedoria das verdades divinas!
Mas estamos aqui apenas de passagem e temos de renunciar ao desejo de continuar nesta casa o estudo, nunca terminado, do conhecimento do Evangelho. No entanto, não partiremos deste lugar sem termos recolhido, quase furtivamente, algumas breves lições de Nazaré.
Em primeiro lugar, uma lição de silêncio. Oh se renascesse em nós o amor do silêncio, esse admirável e indispensável hábito do espírito, tão necessário para nós, que nos vemos assaltados por tanto ruído, tanto estrépito e tantos clamores, na agitada e tumultuosa vida do nosso tempo. Silêncio de Nazaré, ensina-nos o recolhimento, a interioridade, a disposição para escutar as boas inspirações e as palavras dos verdadeiros mestres. Ensina-nos a necessidade e o valor de uma conveniente formação, do estudo, da meditação, da vida pessoal e interior, da oração que só Deus vê.
Uma lição de vida familiar. Que Nazaré nos ensine o que é a família, a sua comunhão de amor, a sua austera e simples beleza, o seu caráter sagrado e inviolável; aprendamos de Nazaré como é preciosa e insubstituível a educação familiar e como é fundamental e incomparável a sua função no plano social.
Uma lição de trabalho. Nazaré, a casa do Filho do carpinteiro! Aqui desejaríamos compreender e celebrar a lei, severa mas redentora, do trabalho humano; restabelecer a consciência da sua dignidade, de modo que todos a sentissem; recordar aqui, sob este teto, que o trabalho não pode ser um fim em si mesmo, mas que a sua liberdade e dignidade se fundamentam não só em motivos econômicos, mas também naquelas realidades que o orientam para um fim mais nobre. Daqui, finalmente, queremos saudar os trabalhadores de todo o mundo e mostrar-lhes o seu grande Modelo, o seu Irmão divino, o Profeta de todas as causas justas que lhes dizem respeito, Cristo Nosso Senhor.

João Paulo II, na Carta dirigida à família, por ocasião do Ano Internacional da Família, 1994, escreve:

A Sagrada Família é a primeira de tantas outras famílias santas. O Concílio recordou que a santidade é a vocação universal dos batizados (LG 40). Como no passado, também na nossa época não faltam testemunhas do "evangelho da família", mesmo que não sejam conhecidas nem proclamadas santas pela Igreja...

A Sagrada Família, imagem modelo de toda a família humana, ajude cada um a caminhar no espírito de Nazaré; ajude cada núcleo familiar a aprofundar a própria missão civil e eclesial, mediante a escuta da Palavra de Deus, a oração e a partilha fraterna da vida! Maria, Mãe do amor formoso, e José, Guarda e Redentor, nos acompanhem a todos com a sua incessante proteção.


Sagrada Família de Nazaré, rogai por nós!

HOMILIA

Da gruta de Belém, onde naquela noite santa nasceu o Salvador, o olhar volta-se hoje para a humilde casa de Nazaré, para contemplar a Santa Família de Jesus, Maria e José, cuja festa celebramos no clima festivo e familiar do Natal.

O Redentor do mundo quis escolher a família como lugar do Seu nascimento e crescimento, santificando assim esta instituição fundamental [família] de todas as sociedades. O tempo passado em Nazaré e que Lucas descreve, no qual diz: “O menino crescia e ficava forte; tinha muita sabedoria e era abençoado por Deus”, representa o mais longo da sua existência. O Menino permanece envolto por uma grande discrição e dele poucas notícias nos são transmitidas pelos evangelistas. Se, porém, desejamos compreender mais profundamente a vida e a missão de Jesus, devemos aproximar-nos do mistério da Santa Família de Nazaré para ver e ouvir. A liturgia de hoje oferece-nos para isso uma oportunidade providencial.

A humilde casa de Nazaré é para todo o cristão, e especialmente para as famílias cristãs, uma autêntica escola do Evangelho. Aqui admiramos a realização do projeto divino de fazer da família uma íntima comunidade de vida e de amor; aqui aprendemos que cada núcleo familiar cristão é chamado a ser pequena «Igreja doméstica», onde devem resplandecer as virtudes evangélicas. Recolhimento e oração, compreensão mútua e respeito, disciplina pessoal e ascese comunitária, espírito de sacrifício, trabalho e solidariedade são traços típicos que fazem da família de Nazaré um modelo para todos os nossos lares.

Querendo realçar os valores da família na Exortação apostólica «Familiaris consortio», o beato João Paulo II afirmou que “o futuro da humanidade passa pela família”.

Embora, nos tempos atuais, a família esteja sendo assinalada por profundas e rápidas transformações da cultura e da sociedade, a Igreja, porém, nunca deixou de fazer chegar «a sua voz e oferecer a sua ajuda a quem, conhecendo já o valor do matrimônio e da família, procura vivê-lo fielmente; a quem, incerto e ansioso, anda à procura da verdade e a quem é injustamente impedido de viver livremente o próprio projeto familiar» (Familiaris consortio, 1). Ela dá conta da sua responsabilidade e deseja continuar, ainda hoje, «a oferecer o seu serviço a cada homem interessado nos caminhos do matrimônio e da família».

Para realizar esta sua ingente missão, a Igreja conta de modo especial com o testemunho e contribuição das famílias cristãs. Melhor ainda, «perante os perigos e dificuldades que a instituição familiar atravessa, ela convida a um suplemento de audácia espiritual e apostólica, na consciência de que as famílias são chamadas a ser ‘sinal de unidade para o mundo’, e a testemunhar ‘o Reino e a paz de Cristo, para os quais o mundo inteiro caminha’».

Os cristãos, recorda o Concílio Vaticano II, atentos aos sinais dos tempos, devem promover «ativamente o bem do matrimônio e da família, quer pelo testemunho da sua vida pessoal, quer pela ação harmônica com todos os homens de boa vontade» (Gaudium et spes, 52). É necessário proclamar com alegria e com coragem o Evangelho da família.

Jesus, Maria e José, abençoem e protejam todas as famílias do mundo, para que nelas reinem a serenidade e a alegria, a justiça e a paz, que Cristo, ao nascer, trouxe como dom à humanidade.

Padre Bantu Mendonça

27 de dezembro de 2011

São João Evangelista

João quer dizer “graça de Deus”, ou “em quem está a graça”, ou “ao qual foi dada a graça”, ou “aquele que recebeu um dom de Deus”. É muito difícil imaginar que esse autor do quarto evangelho e do Apocalipse tenha sido considerado inculto e não douto. Mas foi dessa forma que o sinédrio classificou João, o apóstolo e evangelista, conhecido como “o discípulo que Jesus amava”. Ele foi o único apóstolo que esteve com Jesus até a sua morte na cruz.

João, filho de Zebedeu e de Salomé, irmão de Tiago Maior, de profissão pescador, originário de Betsaida, como Pedro e André, ocupa um lugar de primeiro plano no elenco dos apóstolos. O autor do quarto Evangelho e do Apocalipse, será classificado pelo Sinédrio como indouto e inculto. No entanto, o leitor, mesmo que leia superficialmente os seus escritos, percebe não só o arrojo do pensamento, mas também a capacidade de revestir com criativas imagens literárias os sublimes pensamentos de Deus. A voz do juiz divino é como o mugido de muitas águas.

João é sempre o homem da elevação espiritual, mais inclinado à contemplação que à ação. É a águia que desde o primeiro bater das asas se eleva às vertiginosas alturas do mistério trinitário: “No princípio de tudo, aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus e ele mesmo era Deus.”

Ele está entre os mais íntimos de Jesus e nas horas mais solenes de sua vida João está perto. Está a seu lado na hora da ceia, durante o processo, e único entre os apóstolos, assiste à sua morte junto com Maria. Mas contrariamente a tudo o que possam fazer pensar as representações da arte, João não era um homem fantasioso e delicado. Bastaria o apelido humorista que o Mestre impôs a ele e a seu irmão Tiago: “Filhos do trovão” para nos indicar um temperamento vivaz e impulsivo, alheio a compromissos e hesitações, até aparecendo intolerante e cáustico.

No seu Evangelho designa a si mesmo simplesmente como “o discípulo a quem Jesus amava.” Também se não nos é dado indagar sobre o segredo desta inefável amizade, podemos adivinhar uma certa analogia entre a alma do Filho do homem e a do filho do trovão, pois Jesus veio à terra não só trazer a paz mas também o fogo. Após a ressurreição, João está quase constantemente ao lado de Pedro. Paulo, na epístola aos Gálatas, fala de Pedro, Tiago e João como colunas na Igreja.

No Apocalipse, João diz que foi perseguido e degredado para a ilha de Patmos “por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus Cristo”. Conforme uma tradição unânime ele viveu em Éfeso em companhia de Maria e sob o imperador Domiciano foi colocado dentro de uma caldeira com óleo a ferver, mas saiu ileso e todavia com a glória de ter dado testemunho. Depois do exílio de Patmos voltou definitivamente para Éfeso, onde exortava continuamente os fiéis ao amor fraterno, resultando em três cartas, acolhidas entre os textos sagrados, assim como o Apocalipse e o Evangelho. Morreu em Éfeso durante o império de Trajano (98-117), onde foi sepultado.

Aquele que perscrutou os mistérios do seu amado


São João, apóstolo e evangelista
1João 1, 1-4; João 20, 2-8

Nesta quadra do tempo do Natal temos sempre a alegria de celebrar a festa do apóstolo do amor, de João, aquele que reclinou a cabeça no peito do Mestre. João da ceia e do lava-pés, João do ardor e da caridade, João, simplesmente o discípulo amado.

A cena do evangelho escolhido para este dia é tocante. Maria Madalena, vendo que Jesus não estava mais no sepulcro, sai correndo para comunicar o fato a Pedro e João. Saiu correndo, com pressa, sem perder tempo. E há esse pormenor tão delicado e tão cheio de beleza: “Os dois (João e Pedro) corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo. Olhando para dentro viu as faixas de linho no chão, mas não entrou. Chegou também Simão Pedro, que vinha correndo atrás, e entrou no túmulo… Depois entrou o outro discípulo que tinha chegado primeiro” (Jo 20, 4ss).

Os dois correm. João corre mais rapidamente e, chegando, deixa que Pedro entre primeiro. Vejamos as explicações que nos oferece o presbítero Arnon de Reichersberg: “Espetáculo verdadeiramente digno de admiração e respeito! Os dois discípulos de Cristo correm juntos: um deles é o que mais ama, o outro é o mais amado. Um repousou suavemente sobre peito, o outro andou com Cristo sobre as águas do mar. Um foi espectador das maravilhas celestes, o outro se tornou espetáculo para o mundo. Um é afeito ao repouso e à contemplação, o outro é mais disposto para o ministério da palavra. Corriam juntos, um jovem, mais veloz de corpo e de espírito, o outro velho e pesado, mas perseverante. Corriam juntos e aquele que correu mais rápido e passou o outro não se achou superior, mas deixou para o mais velho a precedência no conhecimento dos mistérios. É assim que, em cada homem perfeito, correm juntas a contemplação e a ação, uma mais bela e atraente, a outra mais paciente e fecunda; uma admirando a palavra no repouso, a outra consagrada ao seu serviço. Correm juntas, e não é porque o olhar contemplativo vai à frente do serviço da palavra que se deve achá-lo mais digno. Pois, com frequência, no serviço da palavra são revelados os segredos que, antes dele, permaneciam ocultos para a contemplação pura: e isto é Pedro entrando no sepulcro”.

João permanece fiel até o fim. Quando todos haviam se dispersado ele está ao pé da cruz, o jovem, o cheio de ardor, o contemplativo que nos chama a não perdermos “o espírito da devoção e da santa oração”.



26 de dezembro de 2011

Mensagem do Papa Bento XVI para o Dia mundial da Paz 2012.

EDUCAR OS JOVENS PARA A JUSTIÇA E A PAZ

1. INÍCIO DE UM NOVO ANO
, dom de Deus à humanidade, induz-me a desejar a todos, com grande confiança e estima, de modo especial que este tempo, que se abre diante de nós, fique marcado concretamente pela justiça e a paz.
Com qual atitude devemos olhar para o novo ano? No salmo 130, encontramos uma imagem muito bela. O salmista diz que o homem de fé aguarda pelo Senhor «mais do que a sentinela pela aurora»(v. 6), aguarda por Ele com firme esperança, porque sabe que trará luz, misericórdia, salvação. Esta expectativa nasce da experiência do povo eleito, que reconhece ter sido educado por Deus a olhar o mundo na sua verdade sem se deixar abater pelas tribulações.
Convido-vos a olhar o ano de 2012 com esta atitude confiante. É verdade que, no ano que termina, cresceu o sentido de frustração por causa da crise que aflige a sociedade, o mundo do trabalho e a economia; uma crise cujas raízes são primariamente culturais e antropológicas. Quase parece que um manto de escuridão teria descido sobre o nosso tempo, impedindo de ver com clareza a luz do dia.
Mas, nesta escuridão, o coração do homem não cessa de aguardar pela aurora de que fala o salmista.
Esta expectativa mostra-se particularmente viva e visível nos jovens; e é por isso que o meu pensamento se volta para eles, considerando o contributo que podem e devem oferecer à sociedade. Queria, pois, revestir a Mensagem para o XLV Dia Mundial da Paz duma perspectiva educativa: «Educar os jovens para a justiça e a paz», convencido de que eles podem, com o seu entusiasmo e idealismo, oferecer uma nova esperança ao mundo.
A minha mensagem dirige-se também aos pais, às famílias, a todas as componentes educativas, formadoras, bem como aos responsáveis nos diversos âmbitos da vida religiosa, social, política, econômica, cultural e mediática. Prestar atenção ao mundo juvenil, saber escutá-lo e valorizá-lo para a construção dum futuro de justiça e de paz não é só uma oportunidade, mas um dever primário de toda a sociedade.
Trata-se de comunicar aos jovens o apreço pelo valor positivo da vida, suscitando neles o desejo de consumá-la ao serviço do Bem. Esta é uma tarefa, na qual todos nós estamos, pessoalmente, comprometidos.
As preocupações manifestadas por muitos jovens nestes últimos tempos, em várias regiões do mundo, exprimem o desejo de poder olhar para o futuro com fundada esperança. Na hora atual, muitos são os aspectos que os trazem apreensivos: o desejo de receber uma formação que os prepare de maneira mais profunda para enfrentar a realidade, a dificuldade de formar uma família e encontrar um emprego estável, a capacidade efetiva de intervir no mundo da política, da cultura e da economia contribuindo para a construção duma sociedade de rosto mais humano e solidário.
É importante que estes fermentos e o idealismo que encerram encontrem a devida atenção em todas as componentes da sociedade. A Igreja olha para os jovens com esperança, tem confiança neles e encoraja-os a procurarem a verdade, a defenderem o bem comum, a possuírem perspectivas abertas sobre o mundo e olhos capazes de ver « coisas novas » (Is 42, 9; 48, 6).

Os responsáveis da educação
2. A educação é a aventura mais fascinante e difícil da vida. Educar – na sua etimologia latina educere – significa conduzir para fora de si mesmo ao encontro da realidade, rumo a uma plenitude que faz crescer a pessoa. Este processo alimenta-se do encontro de duas liberdades: a do adulto e a do jovem. Isto exige a responsabilidade do discípulo, que deve estar disponível para se deixar guiar no conhecimento da realidade, e a do educador, que deve estar disposto a dar-se a si mesmo. Mas, para isso, não bastam meros dispensadores de regras e informações; são necessárias testemunhas autênticas, ou seja, testemunhas que saibam ver mais longe do que os outros, porque a sua vida abraça espaços mais amplos. A testemunha é alguém que vive, primeiro, o caminho que propõe.

E quais são os lugares onde amadurece uma verdadeira educação para a paz e a justiça? Antes de mais nada, a família, já que os pais são os primeiros educadores. A família é célula originária da sociedade. «É na família que os filhos aprendem os valores humanos e cristãos que permitem uma convivência construtiva e pacífica. É na família que aprendem a solidariedade entre as gerações, o respeito pelas regras, o perdão e o acolhimento do outro». Esta é a primeira escola, onde se educa para a justiça e a paz.
Vivemos num mundo em que a família e até a própria vida se veem constantemente ameaçadas e, não raro, destroçadas. Condições de trabalho frequentemente pouco compatíveis com as responsabilidades familiares, preocupações com o futuro, ritmos frenéticos de vida, emigração à procura de um adequado sustento se não mesmo da pura sobrevivência, acabam por tornar difícil a possibilidade de assegurar aos filhos um dos bens mais preciosos: a presença dos pais; uma presença, que permita compartilhar de forma cada vez mais profunda o caminho para se poder transmitir a experiência e as certezas adquiridas com os anos – o que só se torna viável com o tempo passado juntos. Queria aqui dizer aos pais para não desanimarem! Com o exemplo da sua vida, induzam os filhos a colocar a esperança antes de tudo em Deus, o único de quem surgem justiça e paz autênticas.

Quero dirigir-me também aos responsáveis das instituições com tarefas educativas: Velem, com grande sentido de responsabilidade, por que seja respeitada e valorizada em todas as circunstâncias a dignidade de cada pessoa. Tenham a peito que cada jovem possa descobrir a sua própria vocação, acompanhando-o para fazer frutificar os dons que o Senhor lhe concedeu. Assegurem às famílias que os seus filhos não terão um caminho formativo em contraste com a sua consciência e os seus princípios religiosos.
Possa cada ambiente educativo ser lugar de abertura ao transcendente e aos outros; lugar de diálogo, coesão e escuta, onde o jovem se sinta valorizado nas suas capacidades e riquezas interiores e aprenda a apreciar os irmãos. Possa ensinar a saborear a alegria que deriva de viver dia após dia a caridade e a compaixão para com o próximo e de participar ativamente na construção duma sociedade mais humana e fraterna.
Dirijo-me, depois, aos responsáveis políticos, pedindo-lhes que ajudem concretamente as famílias e as instituições educativas a exercerem o seu direito–dever de educar. Não deve jamais faltar um adequado apoio à maternidade e à paternidade. Atuem de modo que a ninguém seja negado o acesso à instrução e que as famílias possam escolher livremente as estruturas educativas consideradas mais idôneas para o bem dos seus filhos. Esforcem-se por favorecer a reunificação das famílias que estão separadas devido à necessidade de encontrar meios de subsistência.
Proporcionem aos jovens uma imagem transparente da política, como verdadeiro serviço para o bem de todos. Não posso deixar de fazer apelo ainda ao mundo das mídia para que prestem a sua contribuição educativa. Na sociedade atual, os meios de comunicação de massa têm uma função particular: não só informam, mas também formam o espírito dos seus destinatários e, consequentemente, podem concorrer notavelmente para a educação dos jovens. É importante ter presente a ligação estreitíssima que existe entre educação e comunicação: de fato, a educação realiza-se por meio da comunicação, que influi positiva ou negativamente na formação da pessoa.
Também os jovens devem ter a coragem de começar, eles mesmos, a viver aquilo que pedem a quantos os rodeiam. Que tenham a força de fazer um uso bom e consciente da liberdade, pois cabe-lhes em tudo isto uma grande responsabilidade: são responsáveis pela sua própria educação e formação para a justiça e a paz.

Educar para a verdade e a liberdade
3. Santo Agostinho perguntava-se: «Quid enim fortius desiderat anima quam veritatem – que deseja o homem mais intensamente do que a verdade?». O rosto humano duma sociedade depende muito da contribuição da educação para manter viva esta questão inevitável. De fato, a educação diz respeito à formação integral da pessoa, incluindo a dimensão moral e espiritual do seu ser, tendo em vista o seu fim último e o bem da sociedade a que pertence.
Por isso, a fim de educar para a verdade, é preciso antes de mais nada saber que é a pessoa humana, conhecer a sua natureza. Olhando a realidade que o rodeava, o salmista pôs-se a pensar: «Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, a lua e as estrelas que Vós criastes: que é o homem para Vos lembrardes dele, o filho do homem para com ele Vos preocupardes? » (Sal 8, 4-5). Esta é a pergunta fundamental que nos devemos colocar: Que é o homem?
O homem é um ser que traz no coração uma sede de infinito, uma sede de verdade – não uma verdade parcial, mas capaz de explicar o sentido da vida –, porque foi criado à imagem e semelhança de Deus. Assim, o fato de reconhecer com gratidão a vida como dom inestimável leva a descobrir a dignidade profunda e a inviolabilidade própria de cada pessoa.
Por isso, a primeira educação consiste em aprender a reconhecer no homem a imagem do Criador e, consequentemente, a ter um profundo respeito por cada ser humano e ajudar os outros a realizarem uma vida conforme a esta sublime dignidade. É preciso não esquecer jamais que «o autêntico desenvolvimento do homem diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões», incluindo a transcendente, e que não se pode sacrificar a pessoa para alcançar um bem particular, seja ele econômico ou social, individual ou coletivo.
Só na relação com Deus é que o homem compreende o significado da sua liberdade, sendo tarefa da educação formar para a liberdade autêntica. Esta não é a ausência de vínculos, nem o império do livre arbítrio; não é o absolutismo do eu. Quando o homem se crê um ser absoluto, que não depende de nada nem de ninguém e pode fazer tudo o que lhe apetece, acaba por contradizer a verdade do seu ser e perder a sua liberdade. De fato, o homem é precisamente o contrário: um ser relacional, que vive em relação com os outros e, sobretudo, com Deus. A liberdade autêntica não pode jamais ser alcançada, afastando-se d’Ele.
A liberdade é um valor precioso, mas delicado: pode ser mal entendida e usada mal. «Hoje um obstáculo particularmente insidioso à ação educativa é constituído pela presença maciça, na nossa sociedade e cultura, daquele relativismo que, nada reconhecendo como definitivo, deixa como última medida somente o próprio eu com os seus desejos e, sob a aparência da liberdade, torna-se para cada pessoa uma prisão, porque separa uns dos outros, reduzindo cada um a permanecer fechado dentro do próprio “eu”. Dentro de um horizonte relativista como este, não é possível, portanto, uma verdadeira educação: sem a luz da verdade, mais cedo ou mais tarde cada pessoa está, de fato, condenada a duvidar da bondade da sua própria vida e das relações que a constituem, da validez do seu compromisso para construir com os outros algo em comum ».

Por conseguinte o homem, para exercer a sua liberdade, deve superar o horizonte relativista e conhecer a verdade sobre si próprio e a verdade acerca do que é bem e do que é mal. No íntimo da consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer e cuja voz o chama a amar e fazer o bem e a fugir do mal, a assumir a responsabilidade do bem cumprido e do mal praticado. Por isso, o exercício da liberdade está intimamente ligado com a lei moral natural, que tem caráter universal, exprime a dignidade de cada pessoa, coloca a base dos seus direitos e deveres fundamentais e, consequentemente, da convivência justa e pacífica entre as pessoas.

Assim o reto uso da liberdade é um ponto central na promoção da justiça e da paz, que exigem a cada um o respeito por si próprio e pelo outro, mesmo possuindo um modo de ser e viver distante do meu. Desta atitude derivam os elementos sem os quais paz e justiça permanecem palavras desprovidas de conteúdo: a confiança recíproca, a capacidade de encetar um diálogo construtivo, a possibilidade do perdão, que muitas vezes se quereria obter mas sente-se dificuldade em conceder, a caridade mútua, a compaixão para com os mais frágeis, e também a prontidão ao sacrifício.

Educar para a justiça
4. No nosso mundo, onde o valor da pessoa, da sua dignidade e dos seus direitos, não obstante as proclamações de intentos, está seriamente ameaçado pela tendência generalizada de recorrer exclusivamente aos critérios da utilidade, do lucro e do ter, é importante não separar das suas raízes transcendentes o conceito de justiça. De fato, a justiça não é uma simples convenção humana, pois o que é justo determina-se originariamente não pela lei positiva, mas pela identidade profunda do ser humano. É a visão integral do homem que impede de cair numa concepção contratualista da justiça e permite abrir também para ela o horizonte da solidariedade e do amor.

Não podemos ignorar que certas correntes da cultura moderna, apoiadas em princípios econômicos racionalistas e individualistas, alienaram das suas raízes transcendentes o conceito de justiça, separando-o da caridade e da solidariedade. Ora « a “cidade do homem” não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo».
« Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados » (Mt 5, 6). Serão saciados, porque têm fome e sede de relações justas com Deus, consigo mesmo, com os seus irmãos e irmãs, com a criação inteira.

Educar para a paz
5. «A paz não é só ausência de guerra, nem se limita a assegurar o equilíbrio das forças adversas. A paz não é possível na terra sem a salvaguarda dos bens das pessoas, a livre comunicação entre os seres humanos, o respeito pela dignidade das pessoas e dos povos e a prática assídua da fraternidade». A paz é fruto da justiça e efeito da caridade. É, antes de mais nada, dom de Deus. Nós, os cristãos, acreditamos que a nossa verdadeira paz é Cristo: n’Ele, na sua Cruz, Deus reconciliou consigo o mundo e destruiu as barreiras que nos separavam uns dos outros (cf. Ef 2, 14-18); n’Ele, há uma única família reconciliada no amor.
A paz, porém, não é apenas dom a ser recebido, mas obra a ser construída. Para sermos verdadeiramente artífices de paz, devemos educar-nos para a compaixão, a solidariedade, a colaboração, a fraternidade, ser ativos dentro da comunidade e solícitos em despertar as consciências para as questões nacionais e internacionais e para a importância de procurar adequadas modalidades de redistribuição da riqueza, de promoção do crescimento, de cooperação para o desenvolvimento e de resolução dos conflitos.

« Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus » – diz Jesus no sermão da montanha (Mt 5, 9). A paz para todos nasce da justiça de cada um, e ninguém pode subtrair-se a este compromisso essencial de promover a justiça segundo as respectivas competências e responsabilidades. De forma particular convido os jovens, que conservam viva a tensão pelos ideais, a procurarem com paciência e tenacidade a justiça e a paz e a cultivarem o gosto pelo que é justo e verdadeiro, mesmo quando isso lhes possa exigir sacrifícios e obrigue a caminhar contracorrente.

Levantar os olhos para Deus
6. Perante o árduo desafio de percorrer os caminhos da justiça e da paz, podemos ser tentados a interrogar-nos como o salmista: «Levanto os olhos para os montes, de onde me virá o auxílio? » (Sal 121, 1). A todos, particularmente aos jovens, quero bradar: «Não são as ideologias que salvam o mundo, mas unicamente o voltar-se para o Deus vivo, que é o nosso criador, o garante da nossa liberdade, o garante do que é deveras bom e verdadeiro (…), o voltar-se sem reservas para Deus, que é a medida do que é justo e, ao mesmo tempo, é o amor eterno. E que mais nos poderia salvar senão o amor?». O amor rejubila com a verdade, é a força que torna capaz de comprometer-se pela verdade, pela justiça, pela paz, porque tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (cf. 1 Cor 13, 1-13).
Queridos jovens, vós sois um dom precioso para a sociedade. Diante das dificuldades, não vos deixeis invadir pelo desânimo nem vos abandoneis a falsas soluções, que frequentemente se apresentam como o caminho mais fácil para superar os problemas. Não tenhais medo de vos empenhar, de enfrentar a fadiga e o sacrifício, de optar por caminhos que requerem fidelidade e constância, humildade e dedicação. Vivei com confiança a vossa juventude e os anseios profundos que sentis de felicidade, verdade, beleza e amor verdadeiro. Vivei intensamente esta fase da vida, tão rica e cheia de entusiasmo.
Sabei que vós mesmos servis de exemplo e estímulo para os adultos, e tanto mais o sereis quanto mais vos esforçardes por superar as injustiças e a corrupção, quanto mais desejardes um futuro melhor e vos comprometerdes a construí-lo. Cientes das vossas potencialidades, nunca vos fecheis em vós próprios, mas trabalhai por um futuro mais luminoso para todos. Nunca vos sintais sozinhos! A Igreja confia em vós, acompanha-vos, encoraja-vos e deseja oferecer-vos o que tem de mais precioso: a possibilidade de levantar os olhos para Deus, de encontrar Jesus Cristo – Ele que é a justiça e a paz.
Oh vós todos, homens e mulheres, que tendes a peito a causa da paz! Esta não é um bem já alcançado, mas uma meta, à qual todos e cada um deve aspirar. Olhemos, pois, o futuro com maior esperança, encorajemo-nos mutuamente ao longo do nosso caminho, trabalhemos para dar ao nosso mundo um rosto mais humano e fraterno e sintamo-nos unidos na responsabilidade que temos para com as jovens gerações, presentes e futuras, nomeadamente quanto à sua educação para se tornarem pacíficas e pacificadoras! Apoiado em tal certeza, envio-vos estas reflexões que se fazem apelo: Unamos as nossas forças espirituais, morais e materiais, a fim de «educar os jovens para a justiça e a paz».

Vaticano, 8 de dezembro de 2011.

25 de dezembro de 2011

“Tu és meu filho e hoje te gerei”: Solenidade do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo


Apparuit enim gratia Dei salutaris omnibus hominibus – Manifestou-se a graça salvadora de Deus a todos os homens” (Tt 2, 11).

Esta é a festa da gloriosa manifestação da graça santificante. Somos envoltos na luz da misericórdia e do amor de Deus, um Deus que faz-se um de nós assumindo o rebaixamento da nossa condição humana. Esse amor não aparece, mas manifesta-se. Manifesta-se, pois já existia, e porque já existia manifestou-se. Mas que coisa é para nós hoje esta manifestação? O que ela representa aos nossos dias atribulados pela valorização de coisas efêmeras, de guerras, de ódios, de divisões? Vemos com grande tristeza a perda dos valores natalinos. Enfeitamos as casas, os comércios, os, porém, corações continuam despreparados para acolher o Menino Deus que vem para libertar-nos do pecado. Os símbolos natalinos perdem seu valor e em nada traduzem o espírito natalino quando são privados de exalar o perfume de Cristo. A Igreja não cessa de convidar os católicos para que, profundamente tomados pela força revigoradora do Cristo, possam manifestar ao mundo que o verdadeiro espírito do Natal não há de consistir apenas nos presentes, pois hoje nos é dado o maior presente; também não há de consistir apenas na árvore de Natal, pois os céus se abrem hoje para manifestar que a Árvore da Vida implanta-se no mundo para nos guiar até o céu.
A manifestação daquele recém-nascido envolto em panos é também o grito de tantas crianças colocadas à margem da sociedade e que nesta noite, tomadas pela escuridão e pelo frio que as cercam não estão incluídas em seios familiares. A elas também dirijo o meu pensamento e peço que não se sintam abandonadas, mas que sintam a presença do Menino Jesus que as ama e com elas permanece sempre.
O Senhor faz-se pequeno para que a o gênero humano pudesse ser engrandecido, e o homem, tomado em sua totalidade, visse a manifestação da glória de Deus, mas não somente a visse como também a experimentasse, tocasse, por assim dizer, pudesse fazer parte dela. Só desta forma os homens poderiam sentir-se abraçados pelo grande amor de Deus, por Aquele que, a princípio, por ser grande e estar infinitamente acima de nós parecia-nos distante e inalcançável.
Na manifestação humilde do Filho de Deus o mundo encontra uma resposta a todas as suas angústias, a todos as suas interrogações. Só Deus pode responder verdadeiramente aos anseios do homem e só d’Ele provém a felicidade eterna e verdadeira, que não se restringe a um instante mas é algo novo, diferente. A alegria que provém de Deus não muda somente o estado de espírito do ser humano; ela vai além: muda o modo de viver, muda o coração e também os objetivos que deseja alcançar. Esta, e só esta, é a felicidade divina.
Na sua maravilhosa obra Confissões, Santo Agostinho irá manifestar um triângulo de relacionamentos em um parágrafo que considero um dos mais belos. Diz ele: “Ó eterna verdade e verdadeira caridade e cara eternidade! Tu és o meu Deus, por ti suspiro dia e noite. Desde que te conheci, tu me elevaste para ver que quem eu via, era, e eu, que via, ainda não era. E reverberaste sobre a mesquinhez de minha pessoa, irradiando sobre mim com toda a força. E eu tremia de amor e de horror. Vi-me longe de ti, no país da dessemelhança, como que ouvindo tua voz lá do alto: ‘Eu sou o alimento dos grandes. Cresce e me comerás. Não me mudarás em ti como o alimento de teu corpo, mas tu te mudarás em mim’”.
São estas belíssimas palavras que nos levam a contemplar novamente esta novidade que vem do alto. Sim, Deus é uma verdade eterna, imutável. Em um mundo que necessita exercitar seu empirismo para acreditar, a Igreja nos exorta novamente a abandonarmos esta mentalidade. Busquemos Aquele pelo qual acreditamos não por vermos e necessitarmos tocar, mas acreditamos pelo Amor, um amor incondicional que instiga-nos a caminharmos em direção do próximo, do que necessita nosso amparo e nosso amor, dos que sofrem por não amarem. A estes o Senhor faz um convite incansável: Não temam em abrir-se para o amor! Não temam em abrir-se a Mim!
Se eterna é a verdade, a caridade há de ser, então, verdadeira. Só a verdade pode levar o homem a sair de si mesmo e com Cristo, humilhar-se, e em Cristo, ser unido a Ele sem jamais deixar-se atribular por qualquer pressão do mundo. Renuncieis a esta vida e tereis a vida eterna. Renunciai a vida eterna e nem mesmo esta vida tereis, pois não existe maior desgraça para o homem do que afastar-se de seu Criador e colocar-se na condição de um ser autossuficiente, senhor de si e de seus desejos, podemos confirmá-lo nos vários sistemas políticos de autoritarismo.
A união com Cristo, como lembrará o Santo Bispo ao final de sua colocação, não é algo que assemelhá-Lo-á a mim, mas eu assemelhar-me-ei a Ele. A iniciativa foi dada por Cristo: Ele veio ao nosso encontro; tomemos agora a iniciativa de irmos ao encontro d’Ele, de sairmos das trevas, de amá-lo sem reservas. Indubitavelmente a falta de amor no mundo é consequência da falta de Deus, não porque Ele tenha se afastado do mundo, mas o mundo afastou-se d’Ele.
“O povo, que andava na escuridão, viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9,1). Assim escutamos nesta noite santa por meio do Profeta Isaias. Também o mundo de hoje caminha em meio a uma forte escuridão. A cultura moderna está impregnada por “sombras da morte”. Nós parecemos não enxergar nenhum sinal que venha nos animar, parecemos atordoados pelas fadigas derivadas do peso que a sociedade impõe. Nosso Senhor, no entanto, sempre aparece como Aquele que conforta-nos e soluciona as nossas tribulações. Confiemos em Deus! Não perece quem confia em Deus, mas aquele que nele não põe sua esperança logo será abatido pelos ventos contrários. Em quem colocamos a nossa confiança? Em Deus ou no mundo? No bem ou no mal? No que fortalece ou no que atribula?
Dominus dixit ad me filius meus es tu ego hodie genui te – O Senhor me disse: Tu és meu filho e hoje te gerei” (Sl 2, 7). Essas palavras a Igreja canta no Introito da Santa Missa da Noite Santa de Natal. Sim, “gerado, não criado; consubstancial ao Pai”, assim professamos no símbolo de fé niceno-constantinopolitano. Gerado desde toda a eternidade, Jesus, cumprindo o salvífico desígnio do Pai, restaura a condição humana decaída pelo pecado, reata os laços do homem com Deus, cortados por Adão e Eva.
“Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito” (Lc 2, 6). Com esta frase, absolutamente sóbria, São Lucas narra o maravilhoso acontecimento que teve lugar na manjedoura. Mas que significado tem aqui o termo “primogênito”? Indicaria uma sucessão de filhos? A primogenitura, deste ponto de vista da Sagrada Escritura, na Antiga Aliança, não significa uma sucessão de filhos, mas é um título de honra. Jesus é sim o primogênito de Deus, de Maria e da História. Nele Deus concretiza o seu desígnio em relação a sua graça salvadora na humanidade. São Paulo usará desta palavra ao afirmar que Cristo é “o primogênito de toda a criatura” (Cl 1, 15). Sim, tendo cumprido a sua obra salvífica podemos afirmar que Ele torna-se também o primogênito de muitos irmãos. Maria, assim, poderíamos associar como mãe de muitos filhos. Aqui estão os outros filhos de Maria! Derivam da filiação adotiva, daquele que é Filho de Deus por excelência: Jesus Cristo.
“Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2, 7). Não havia lugar para o Senhor e para sua mãe naquela época. Também hoje muitos corações estão fechados à receptividade do Reino de Deus que vem na pessoa desta frágil criança. No frio daquela noite de Belém nasce Aquele que iria aquecer todos os corações com a chama do seu amor misericordioso. Pedimos que os corações sejam abertos a este menino salvador. Abram-se os corações e possam acolher aquele que a dois mil anos foi rejeitado.
Que lugar Jesus ocupa em nossos corações hoje? Esta pergunta deve fazer com que possamos melhor vivenciar o verdadeiro espírito natalino. Muitos corações estão endurecidos à mensagem que esta noite tem a transmitir-nos a Igreja. Enquanto a efemeridade e o secundário forem postos como necessários os homens não encontrarão a paz tão almejada. Não pode abrir-se ao mundo e aos irmãos quem antes não estiver aberto a Deus, quem não se tornar portador de sua Palavra e fizer de sua vida um Evangelho.
“Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho” (Lc 2, 8). Quem eram os pastores? Por que a eles o anúncio é dirigido primeiramente? Devemos dizer, em primeiro lugar, que os pastores eram pessoas humildes, tidas à margem da sociedade. Eram desconhecedores da Lei e, portanto, não a vivenciavam-na; andavam com suas ovelhas por diversos campos, inclusive campos pagãos; por tudo isso, eram julgados pelos fariseus e considerados impuros e indignos de participar das cerimônias de culto.
Mas se por um lado lhes pesava o fardo da exclusão, por outro, todo este sacrifício deu-lhes uma consolação maior que qualquer outra: Contemplar a face do Salvador feito homem; contemplar um Deus que é tão pequeno, tão humilde, tão frágil e quis necessitar do nosso amor. Não há na mitologia grega e nos deuses romanos nenhum Deus que tenha se feito homem; mas há para nós, homens e mulheres, testemunhas do Evangelho. O nosso Deus não constitui parte de uma literatura mítica. Ele existe! Ele vive! E hoje Ele inclina-se dos altos céus não para condenar-nos, mas para nos mostrar quão grande é o seu amor; um amor capaz de doar-se, capaz de não apenas inclinar-se para olhar-nos, mas descer para estar conosco.
Precisamente esta impressão, pela qual hoje somos tomados, acometeu os pastores que contemplaram maravilhados o menino. Deixaram tudo, ao escutar o anúncio do anjo. Certamente houve um grande temor por parte deles, afinal não lhes era comum ver aquele personagem vindo do céu. O que os pastores nos ensinam? Esta resposta nos é dada pelo Papa Bento XVI: “Deles queremos aprender a não deixar-nos esmagar por todas as coisas urgentes da vida de cada dia. Deles queremos aprender a liberdade interior de colocar em segundo plano outras ocupações – por mais importantes que sejam – a fim de nos encaminharmos para Deus, a fim de O deixarmos entrar na nossa vida e no nosso tempo. O tempo empregue para Deus e, a partir d’Ele, para o próximo nunca é tempo perdido. É o tempo em que vivemos de verdade, em que vivemos o ser próprio de pessoas humanas” (Homilia do Natal do Senhor, 2009). Ademais ensinam-nos que só o amor pode nos dar coragem para vencer o medo. Só o amor nos dá coragem para seguir a Cristo. Quem tem uma fé fraca e deixa-se abalar pelas coisas do mundo ainda não está apto para tal seguimento. Por vezes há momentos de queda, mas a força que vem de Deus dá-nos a certeza de que não estamos abandonados. Deus está conosco!
Deixemos tudo, como fizeram os pastores. Coloquemo-nos a caminho de Belém e enquanto caminhamos, rezemos: Vem, ó Senhor! Toca os corações endurecidos; renova os nossos corações; dissipa o ódio e o mal da face da terra; reafirmai vossa primazia e poder sobre todos os homens e em todos os tempos. Renovai vosso ardente desejo de sermos Evangelhos vivos para os homens de nossos dias. Revigora o ânimo dos entristecidos; conforta os tristes; curai os enfermos; acolhei os abandonados. Tornai-nos corações vigilantes na expectativa de que, habitando Cristo em nossos corações, possamos abitar igualmente no coração amoroso d’Ele. Concede paz ao mundo dilacerado pela guerra, paz verdadeira e duradoura. Paz a todos os cristãos nos mais diversos países, perseguidos por causa do vosso nome. Livrai-nos da tentação de colocar-Vos em último lugar, mas que possais crescer enquanto nós, assim como João Batista, possamos diminuir.
A todos os meus votos de um Feliz e Santo Natal. Que a luz de Cristo resplandeça em vossos corações e em vossas famílias.

"O Novo surgiu em nosso meio"

Padre Fernando Santamaria
Comunidade Canção Nova



"Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: 'Eis que a virgem ficará grávida e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus-conosco'" (Mt 1,22s).

Através desta revelação, São José tomou a livre decisão de acolher a Virgem Maria, até então sob suspeita de traição ou qualquer outra realidade que naturalmente não deixava hipótese para uma intervenção direta do Espírito Santo, ao menos que lhe fosse revelado e acreditado.

De fato foi isto que aconteceu e o plano salvífico da Santíssima Trindade pôde contar com uma "manjedoura", que precedeu aquela noite bendita em Belém. Este lugar propício para o Menino Deus ser acolhido é e será sempre um coração que ousa crer na Palavra de Deus através dos meios escolhidos pela Providência Santíssima.

Foi através de um anjo do Senhor e em sonho que o patrono da Igreja pôde acolher a Boa Nova da primeira vinda do Messias, ou seja, meios extraordinários para comunicar o acontecimento imprevisto pela mente humana, a Encarnação do Verbo Divino, no seio da Virgem Maria.

Sabemos que aos olhos humanos, a Virgem Maria era considerada uma mulher comum de Nazaré e São José um carpinteiro de Nazaré, mas aos olhos do Deus Misericordioso e Todo-Poderoso, eles foram e continuam a ser mais do que os outros constatavam pelos sentidos e uma convivência superficial. E você pode estar já se perguntando o que esta face do Natal diz de mim e para mim?

Penso que para além de percebermos o testemunho que a Sagrada Escritura nos deixa do acolhimento de tantos, inclusive os pais de Jesus Cristo, a Palavra de Deus também revela o quanto que eles puderam, cada um a seu modo, participar da história da salvação. Nisto está o desafio do Natal cristão, onde somos chamados a celebrar participando, tomando consciência pela fé de que este mistério acontecido lá na Palestina a mais de 2000 anos pode e precisa ter ressonância também na nossa existência relacional.

Numa visão superficial, Jesus surgiu na vida daquele casal para negativamente desinstalá-lo. Mas não foi assim, pois o amor de Deus quando se manifesta no nosso meio é para enriquecer os nossos relacionamentos, dando um sentido extraordinário àquilo que ficaria preso ao comum e acabaria na rotina e monotonia.

Por isso que o consumismo e o materialismo tem reduzido o Natal numa data de festa puramente social, cultural e até familiar, onde a mediação central e o acontecimento esperado são realidades tanto passageiras quanto perecíveis. A comida e os presentes são bem-vindos, verdadeiro espírito natalício, quando eles não surgem para ofuscar ou distrair-nos dos sinais, como o da estrela, que nos guiam para a Luz do Mundo, Jesus Cristo.

O Natal é tempo de crer que também eu posso fazer a experiência do extraordinário amor de Deus no cotidiano dos meus relacionamentos. É tempo propício de acolher com ousadia a vontade amorosa de Deus, deixando-se que o amor nos instale no positivo da salvação que o Menino Deus veio nos revelar plenamente. É tempo de participar ou retomar o projeto que Deus tem para cada um, para os nossos relacionamentos e familiares, plano que passa pela gratuidade nos relacionamentos e reconciliação quando as pessoas próximas ou distantes nos ofendem.

O exemplo do pai adotivo de Jesus, São José, nos ajuda a acolher a Boa Nova e nela participar livremente a partir dos meios acessíveis a nós, como a Sagrada Escritura, a Sagrada Tradição, Igreja, o testemunho dos santos, a vida de oração e sacramental, principalmente a Santa Missa aos domingos e dias santos. Assim o Natal será sempre e a manjedoura ficará sempre habitada por não vir para incomodar, mas para revelar um amor completo e santo que nos leva a nos conhecermo-nos e nos relacionarmo-nos com uma profundidade somente alcançada n’Ele, como garante o Concílio Vaticano II: "Na realidade, só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem" (Gaudium et Spes, n. 22).

A todos um Feliz Natal com o Cristo que deseja ser acolhido antes de tudo na "manjedoura" do nosso coração e a partir daí todo o ordinário cria espaço para o extraordinário que renova.

NATAL DE JESUS

“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós e nós vimos a sua glória…” (Jo 1,14).

A encarnação do Verbo de Deus assinala o início dos “últimos tempos”, isto é, a redenção da humanidade por parte de Deus. Cega e afastada de Deus, a humanidade viu nascer a luz que mudou o rumo da sua história. O nascimento de Jesus é um fato real que marca a participação direta do ser humano na vida divina. Esta comemoração é a demonstração maior do amor misericordioso de Deus sobre cada um de nós, pois concedeu-nos a alegria de compartilhar com ele a encarnação de seu Filho Jesus, que se tornou um entre nós. Ele veio mostrar o caminho, a verdade e a vida, e vida eterna. A simbologia da festa do Natal é o nascimento do Menino-Deus.

No início, o nascimento de Jesus era festejado em 6 de janeiro, especialmente no Oriente, com o nome de Epifania, ou seja, manifestação. Os cristãos comemoravam o natalício de Jesus junto com a chegada dos reis magos, mas sabiam que nessa data o Cristo já havia nascido havia alguns dias. Isso porque a data exata é um dado que não existe no Evangelho, que indica com precisão apenas o lugar do acontecimento, a cidade de Belém, na Palestina. Assim, aquele dia da Epifania também era o mais provável em conformidade com os acontecimentos bíblicos e por razões tradicionais do povo cristão dos primeiros tempos.

Entretanto, antes de Cristo, em Roma, a partir do imperador Júlio César, o 25 de dezembro era destinado aos pagãos para as comemorações do solstício de inverno, o “dia do sol invencível”, como atestam antigos documentos. Era uma festa tradicional para celebrar o nascimento do Sol após a noite mais longa do ano no hemisfério Norte. Para eles, o sol era o deus do tempo e o seu nascimento nesse dia significava ter vencido a deusa das trevas, que era a noite.

Era, também, um dia de descanso para os escravos, quando os senhores se sentavam às mesas com eles e lhes davam presentes. Tudo para agradar o deus sol.

No século IV da era cristã, com a conversão do imperador Constantino, a celebração da vitória do sol sobre as trevas não fazia sentido. O único acontecimento importante que merecia ser recordado como a maior festividade era o nascimento do Filho de Deus, cerne da nossa redenção. Mas os cristãos já vinham, ao longo dos anos, aproveitando o dia da festa do “sol invencível” para celebrar o nascimento do único e verdadeiro sol dos cristãos: Jesus Cristo. De tal modo que, em 354, o papa Libério decretou, por lei eclesiástica, a data de 25 de dezembro como o Natal de Jesus Cristo.

A transferência da celebração motivou duas festas distintas para o povo cristão, a do nascimento de Jesus e a da Epifania. Com a mudança, veio, também, a tradição de presentear as crianças no Natal cristão, uma alusão às oferendas dos reis magos ao Menino Jesus na gruta de Belém. Aos poucos, o Oriente passou a comemorar o Natal também em 25 de dezembro.

No Natal de 1223, três anos antes de morrer, São Francisco de Assis quis apresentar ao vivo a cena do presépio. Apresentação que devia logo repetir-se na história da Igreja mediante a sugestiva iniciativa do presépio.

São Boaventura na vida de São Francisco escreve: “Três anos antes de sua morte, na região de Greccio, Francisco quis fazer algo com a maior solenidade possível para reviver a devota memória do nascimento do Menino Jesus”.

A tradição atribui a São Francisco de Assis a introdução do Presépio no amplo ciclo das tradições natalinas. Como narrou São Boaventura, na noite de Natal de 1223 em Greccio, Francisco teria construído uma manjedoura com a palha, com o boi e o asno, e celebrou a Santa Missa, diante de uma multidão proveniente de toda a região.

Na realidade, em Greccio não estavam representados os personagens da Natividade de Belém, nem havia atores encenando a Virgem, São José e o Menino; portanto, mais do que um Presépio, a representação de Greccio deve ser interpretada como uma evolução do cerimonial litúrgico natalino, evocando os mistérios e dramas sacros como eventos comuns, baseados em episódios do Antigo e do Novo Testamento, expressões da religiosidade laica das Confraternidades, muito comuns naquele período, especialmente nas regiões da Umbria e Toscana.

Nas encenações sacras, a partir do século XIV cada vez mais luxuosas, eram constantes os personagens móveis, considerados por alguns como antenados das estátuas atuais.

A progressiva degeneração do drama litúrgico em formas pagãs, quase vulgares, levou a Igreja a condená-lo no Concilio de Treviri, e ao contrário, a favorecer a representação estática da Natividade e do Presépio, contribuindo assim para a sua sucessiva difusão.

Passados mais de dois milênios, a Noite de Natal é mais que uma festa cristã, é um símbolo universal celebrado por todas as famílias do mundo, até as não-cristãs. A humanidade fica tomada pelo supremo sentimento de amor ao próximo e a Terra fica impregnada do espírito sereno da paz de Cristo, que só existe entre os seres humanos de boa vontade. Portanto, hoje é dia de alegria, nasceu o Menino-Deus, nasceu o Salvador.

Fonte: “Santos Franciscanos para cada dia”, Ed. Porziuncola

24 de dezembro de 2011

O Milagre de Natal na Vida de Clara de Assis

A Grande experiência de Clara com Deus foi em março de 1212. Na noite do domingo de Ramos, Clara di Favarone foge de casa e é recebida na Porciúncula por Francisco de Assis. Talvez em maio Clara fica alguns dias no mosteiro de São Paulo e algumas semanas no mosteiro beneditino de Panzo (perto de Assis) e por fim recolhe-se a São Damião, onde fica até a sua morte, em 1253.
Clara viveu uma vida de discipulado, oração e jejum. Foi um exemplo de discípula dedicada ao Ministério da Oração e Intercessão.
Certa vez Clara estava gravemente enferma. Por causa de sua enfermidade, não pode ir a igreja com as suas irmãs em Cristo.
Estava chegando o grande dia da solenidade do Natal de Cristo. Todas as irmãs foram ao Culto da Madrugada (Matinas);
Clara ficou sozinha no leito, triste por não poder ir ao Culto de Natal que simbolizava para ela uma consolação espiritual.
O Senhor Jesus Cristo não querendo deixá-la assim desconsolada, fê-la miraculosamente transportar à igreja e assistir a todo o ofício e o à missa da meia-noite; e além disto, receber a santa ceia e depois ser trazida ao leito. Foi um acontecimento espiritual.
Voltando as irmãs para junto de Clara, acabado o oficio na Igreja, disseram-lhe: "Ó nossa mãe, Clara, que grande consolação tivemos nesta noite de santa Natividade! Prouvesse a Deus que houvésseis estado conosco!"
Clara respondeu: "Graças e louvores rendo ao meu Senhor Cristo bendito, irmãs minhas e filhas caríssimas; porque a todas as solenidades desta santíssima noite e maiores do que as que assististes, assisti eu com muita consolação de minha alma; porque, estive presente na igreja; e com os meus ouvidos corporais e mentais ouvi o canto e o som dos órgãos que aí tocaram; e lá mesmo recebi a santa comunhão. E por tanta graça a mim concedida rejubilai-vos e agradecei a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Clara participou do Culto de Natal na Igreja, mesmo não podendo estar presente opor causa das enfermidades.
É assim que Deus opera na vida da pessoa que crê em Jesus Cristo. Nada pode limitar nossa caminhada na fé, mesmo as maiores lutas e enfermidade.

Oração:
Senhor Jesus. Nesta santa noite de Natal desejamos reafirmar nossa fé perseverante no Senhor. Em ti transpomos barreiras e obstáculos. Com o Senhor conseguimos caminhar mesmo estando em lutas e aflições. O Senhor nasceu. Por causa do Seu nascimento, vida, morte e ressurreição, temos o perdão dos pecados e a vida eterna. Louvado seja o Pai, Filho e espírito Santo. Amém

Rev. Edson Cortasio Sardinha

Fonte Biográfica: OS FIORETTI DE S. FRANCISCO DE ASSIS: Capítulo 35. Como, estando enferma, S. Clara foi miraculosamente transportada, na noite de Natal, à igreja de S. Francisco e aí assistiu ao ofício.

EXTRAÍDO DE: http://brasilfranciscano.blogspot.com/2011/12/o-milagre-de-natal-na-vida-de-clara-de.html

Especial - Greccio, a nova Belém (parte 3)


A ENCARNAÇÃO DO VERBO ETERNO DE DEUS

Na noite luminosa do Natal celebra-se o mistério central da nossa fé: o Verbo eterno de Deus, “subsistindo na condição de Deus, não pretendeu reter para si ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo por solidariedade aos homens” (Fl 2,6-7). Esse hino sublinha o empenho pessoal do Filho de Deus que renuncia absolutamente a si mesmo e assume a condição de servo (natureza humana), embora subsistindo na condição divina.

O Verbo eterno (Lógos em grego), o Filho de Deus Pai, assume a natureza humana de Jesus, ao encarnar-se no seio da Virgem Maria. Não pode haver maior paradoxo à razão humana do que dizer que o Deus experimentado e vivido pelo cristianismo não é somente o Deus transcendente, eterno e infinito, mas é também o Deus que se autocomunica, por Sua livre graça, na pequenez e na fragilidade de uma criança. Como entender que este homem, criado no tempo, seja ao mesmo tempo Deus? Isso é um escândalo para os judeus e para todos os que adoram e veneram um Deus totalmente inobjetivável.

O Deus experimentado e vivido pelo cristianismo é, sim, santo, absoluto, eterno e infinito, mas bem porque Ele é o máximo que se pode pensar, tem o poder de revelar-se “para fora” de forma tão desconcertante e paradoxal. Ou será que não há nada de desconcertante na declaração joanina de que o Verbo eterno de Deus tornou-se “carne” (Jo 1,14)? A palavra “carne” indica, por um lado, a fragilidade e mortalidade próprias da pessoa humana e, por outro, indica a grandeza do abaixamento (kénôsis) de Deus. A alteza e profundidade do mistério quenótico, que se radicaliza na entrega de Jesus na cruz, transcende infinitamente ao máximo que se pode pensar. Por outras palavras, parafraseando Leonardo Boff, o Deus que em e por Jesus se revela é tão humano e o homem que em e por Jesus emerge é tão divino que a linguagem humana não pode dizer adequadamente.

O Verbo (Filho) eterno do Pai assumiu a natureza humana, conservando a Sua divindade. Isso quer dizer que Jesus Cristo, em pessoa, é humano e divino. Enquanto pessoa, Ele é essencialmente relação. A pessoa toma consciência de si e constrói sua individualidade no relacionamento de doação e de recepção da alteridade do outro. Ora, sabe-se da mútua implicação das três pessoas divinas e do quanto Jesus Cristo doou-se incondicional e gratuitamente a todos, bem como abraçou a cada um em seu amor ilimitado (Mc 2,13-17), inclusive aos inimigos (Mt 5,43-44). E devido ao Seu absoluto desprendimento e inominável receptividade, o eu humano de Jesus foi de tal maneira assumido pelo Lógos, a ponto de dizer, como Paulo: ”Já não sou eu que vivo, mas Cristo [o Lógos] vive em mim” (Gl 2,20). Jesus viveu uma relação tão íntima com Deus, invocado por Ele pelo termo “Abba” (Paizinho), que se igualou a nós em tudo, exceto no pecado.

Pensadores clássicos da Filosofia e da Teologia cristãs colocaram muitas questões acerca da criação do mundo e da encarnação do Filho de Deus. Destacamos primeiramente a seguinte: Por que Deus criou o universo? Entre as muitas respostas figurava a idéia de que Deus criou o mundo porque quis, por pura e absoluta gratuidade do amor, manifestar-se ad extra, isto é, para fora de si mesmo. O Sumo Bem cria o mundo contemplando o Verbo, pois é Nele que se encontram as razões ideais (rationes idealis) de todas as coisas criadas e criáveis no tempo. Assim, o Filho de Deus é o princípio; é o primogênito de toda a criatura porquanto todas as coisas visíveis e invisíveis são criadas à luz do Verbo: “Todas as coisas foram feitas por ele [Verbo] e sem ele nada se fez de tudo que foi feito” (Jo 1, 1-3).

Todavia, a suprema comunicação ad extra de Deus não se dá na criação, mas na encarnação do Seu próprio Filho. Poder-se-ia então pensar que Deus criou o cosmos para possibilitar a Sua encarnação em Jesus de Nazaré. Por isso, ao se colocar a questão da criação do mundo indaga-se também pelo motivo da encarnação do Verbo eterno. Onde se fundamenta a decisão divina de encarnar-se em Jesus Cristo? Teria o Verbo se encarnado simplesmente para resgatar a humanidade do pecado? Tradicionalmente afirma-se que a encarnação foi condicionada pelo pecado humano. Mas será que essa é uma resposta exaustiva à questão: Cur Deus homo? (Por que um Deus-homem?). Será que Deus poderia ter-se utilizado de outros meios para realizar a obra da redenção?

Para Santo Agostinho, Deus poderia, sem dúvida, ter-se utilizado de outros meios para realizar a obra da redenção. Porém, “não existia nenhum outro modo mais conveniente para remediar nossa miséria” (De Trinitate, XIII). Também Santo Anselmo e Santo Tomás de Aquino entendem que o motivo da encarnação é a redenção do pecado do homem. Conseqüentemente, sem o pecado, a encarnação não teria acontecido.

No entanto, para o pensador franciscano João Duns Scotus, a encarnação não é só um pressuposto para o sacrifício redentor, mas é um acontecimento que faz parte do plano de amor do Pai. Duns Scotus afirma que o Verbo seria encarnado, mesmo se o homem não tivesse pecado, visto ser a encarnação totalmente incondicionada. Ao encarnar-se, evidentemente quis a salvação de todos, pois, era conveniente que o fizesse por amor a cada pessoa na sua singularidade. Não se nega, portanto, que a encarnação do Verbo tem também a finalidade redentora. Sabiamente Scotus acentua que a segunda pessoa da Santíssima Trindade se encarnou, por Sua livre graça, para demonstrar o profundo amor salvífico de Deus pela humanidade pecadora e para conduzir a criação toda à sua plenitude. O Verbo encarnado é simultaneamente o princípio da criação e o fim último para o qual tende a pessoa humana, integrada ao cosmos.

Assim, acenamos para a imensidade do mistério do Natal de Jesus Cristo. A Igreja alerta-nos de que devemos nos preparar adequadamente para a celebração de tão grande mistério. O Deus revelado por Jesus Cristo encarnado é essencialmente um mistério transbordante de amor e, portanto, somente apreensível na experiência (ascese) da liberdade e do amor. E o esforço ascético que precede a solenidade do Natal do Senhor é liturgicamente denominado de “advento”. No advento a humanidade prepara-se para a vinda do Filho de Deus na carne humana de Jesus Cristo. No entanto, o Filho de Deus já veio; o Verbo já se encarnou. Qual é, então, o sentido do advento, se o tempo da espera e das trevas já passou e se o Esperado já veio?

É verdade que Deus veio de forma definitiva para dentro de nossa história, mas apesar disso, Ele é sempre aquele que ainda deve vir para cada um de nós. A natureza humana é assumida pelo Verbo não só por um momento, mas por meio de um ato que se realiza constantemente em cada filho e filha de Deus. O Verbo eterno quer encarnar-se em cada um de nós a ponto de também podermos dizer, como Paulo: ”Já não sou eu que vivo, mas Cristo [o Lógos] vive em mim” (Gl 2,20). No advento espera-se, portanto, que o amor de Deus se revele maximamente em cada criatura humana. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13).

Cada ser humano vive no desejo da redenção e na ânsia do Libertador. Porém, não somente os seres humanos, mas toda a criação espera pela chegada do Reino da Liberdade: “A criação toda geme e sofre em dores de parto até agora e nós também gememos em nosso íntimo esperando a libertação” (Rm 8, 22-23). De fato, o sonho de harmonia cósmica do profeta Isaías ainda não se realizou. O lobo ainda não é hóspede do cordeiro, a pantera não se deita ao pé do cabrito, nem o touro e o leão comem juntos; não é verdade ainda que a vaca e o urso se confraternizam e o leão come palha com o boi; não é ainda verdade que a criança brinca à toca da serpente e o menino mete a mão no buraco do escorpião (Is 11, 6-8). Em suma: a harmonia entre os seres humanos e entre estes e todos os seres da natureza, é ainda um sonho muito distante da realidade. No entanto, Jesus proclamou a grande novidade de que o Reino de Deus já chegou e atua nesta nossa história (Mt 12,28). O Reino de Deus, muito sutilmente, já “está no meio de vós” (Lc 17,21). Mas, enquanto Deus não for tudo em todas as coisas, enquanto não se restabelecer a paz entre todos os seres do universo, continuaremos na expectativa, suplicando como os primeiros cristãos: Vinde, Senhor Jesus!

Enfim, ressaltamos a especial ternura que nosso pai e irmão Francisco de Assis nutriu pela festa do nascimento do Filho de Deus (2Cel 199). Para ele, o Natal do Menino Jesus era a festa das festas porque nesse dia Deus revelou todo o Seu amor para com a humanidade, tornando-se criança pequenina, e porque no Filho encarnado encontramos um modelo para o nosso viver e o nosso agir segundo a vontade de Deus. O “Filho amado” do Pai convoca a todos os seus irmãos e irmãs a responderem amorosamente Àquele que tanto nos amou e a louvá-Lo com todas as criaturas. Então, sim, não será mais advento, mas NATAL.

Frei João Mannes, OFM

O NATAL DE FRANCISCO

Um pobre andarilho de Deus no ano de 1223, vagava entre os bosques da região. No seu coração, carregado de amor, palpitava uma idéia que cintilava renitente naquele tempo das proximidades do Natal de Jesus.

Pés no chão, roupa remendada de tecido áspero, entre os cabelos a tonsura. Segue o peregrino de Deus com o coração irrequieto. O que dar aos pobres na noite da festa do nascimento do Senhor? Ora, festas e banquetes, presentes e roupas novas, celebrações litúrgicas sofisticadas, apenas para os ricos da nobreza e da burguesia, porém Francisco e sua companheira Clara já haviam deixado este mundo para trás há algum tempo e não voltariam para ele.

O pobrezinho de Assis, ora meditava, ora dançava ao som das estrelas, ora pregava às borboletas, silenciava às vezes e noutras conversava com seus irmãos. Estava em comunhão plena com o Criador e todas as criaturas, e via em cada pobre o rosto de seu amado Jesus. Mas o Natal se aproximava e o que dar aos pequeninos?

Inspirado como ele só, pois Francisco respirava o Espírito, pensou então em reconstituir a noite luminosa de Belém; mas antes, antes de tudo o que faria daquele instante em diante, ele armou seu presépio interior.

Esvaziou-se de tudo o que não fosse amor (se bem que para ele isso não fosse tão difícil, pois ele assim já vivia), e num movimento de respiração, expirou as preocupações, as aflições, os medos e anseios, a tristeza e a dor, e em moto contínuo inspirou todo o bem que existe no mundo. Foi quando percebeu a linha que une todas as coisas e criaturas entre si e que as une ao Criador, num só movimento, como um sopro translúcido. Percebeu o mistério insondável que se manifestara naquela noite de Belém, quando um Deus incomensurável e glorioso revestiu-se de compaixão pelos humanos e armou sua tenda numa criança frágil e pobre.

Francisco que havia abraçado o leproso, Francisco que havia abandonado todas as riquezas e glórias humanas, Francisco que se escandalizou com o luxo e o poder da Igreja e tomando para si viver na pobreza extrema como a maior forma de contestar este luxo, Francisco que se tornou pobre com os pobres, Francisco que ainda não havia recebido as chagas, neste momento começou a armar o presépio exterior, reflexo e espelho do seu presépio interior.

Dizem que esta noite foi radiante. Os pobres, como em Belém, acorreram todos os da redondeza de Greccio. Alegres armaram o presépio vivo. Certamente as estrelas que ouviram a pregação do louco de Assis e receberam seu brilho, ainda brilham sobre nós. O presépio que Francisco montou perdura e jamais deve ser desmontado dentro de nós, mesmo e principalmente no decorrer dos anos de nossas vidas, pois quando estivermos cansados, deprimidos, amedrontados, inseguros, em meio a uma tempestade ou mesmo numa calmaria, sempre poderemos olhá-lo e ver um menino envolto em panos pobres, ao lado da Mãe e de José, mergulhado em profunda comunhão com a natureza, a nos acenar e sorrir docemente. Então nos sentiremos mais perto de Deus, tão perto como nunca nenhum outro se sentiu.

Um Natal pleno de luz e repleto de paz dentro de nós e nas nossas casas, transbordando de compromisso com os marginalizados. Um Deus que se fez criança acena e sorri com ternura para todos e se faz natal todos os dias do ano. Paz e bem!

Assuero Gomes
Médico escritor

ORAÇÃO DIANTE DO PRESÉPIO

Menino das palhas, Menino Jesus,
Menino de Maria, aqui estou diante de ti.
Tu vieste de mansinho, na calada da noite,
no silêncio das coisas que não fazem ruído.

Tu é o Menino amável e santíssimo,
deitado nas palhas porque não havia lugar
para ti nas casas dos homens
tão ocupados e tão cheios de si.

Dá a meus lábios a doçura do mel
e à minha voz o brilho do cantar da cotovia,
para dizer que vieste encher de sentido
os dias de minha vida.

Não estou mais só: tu és o nosso companheiro
de minha vida. Tu choras as minhas lágrimas
e tu te alegras com minhas alegrias
porque tu és meu irmão.

Tu vieste te instalar feito um posseiro
dentro de mim e não quero que teu lugar
seja ocupado pelo egoísmo que me mata
e me aniquila, pelo orgulho que sobe à cabeça,
pelo desespero.

Sei, Menino de Maria, que a partir de agora,
não há mais razão para desesperar
porque Deus grande, belo,
Deus magnífico e altíssimo
se tornou meu irmão.

Santa Maria, Mãe do Senhor e Palácio de Deus,
tu estás perto do Menino que envolves
em paninhos quentes.

José, bom José, carpiteiro de mãos duras,
e guarda de meu Menino das Palhas,
protege esse Deus que se tornou
mendigo de nosso amor.

Menino Jesus,
Hoje é festa de claridade e dia de luz.
Tu nasceste para os homens na terra de Belém.

EXTRAIDO DE: http://www.franciscanos.org.br



O Natal ao modo de Francisco de Assis

Por Frei Edson Matias, OFMCap.

A espiritualidade franciscana está fundamentada em três momentos da vida de Jesus: nascimento, eucaristia e cruz. Aproximamos nesses dias de um desses pilares que é o Natal. Francisco quis celebrar o Natal diferentemente. Quis vivenciá-lo. Na espera da solenidade pediu para organizar a festa.

Francisco colocou animais e pessoas em um presépio vivo para despertar em si e em todos as sensações daquele momento. Ele quis vivenciar, ‘fazer experiência’. Quis sentir em seu próprio corpo como foi/é o nascimento do salvador. O santo não busca simplesmente entender com a mente, com construções teóricas e/ou doutrinais estabelecidas. Em sua simplicidade quer ‘ver’. Francisco é afeto. Quer vislumbrar, sentir em si a doçura do menino Deus.

Ao debruçar sobre a manjedoura devia querer/fazer a mesma vivência que teve com o leproso. Quis se colocar no lugar, ‘ver’ nos olhos do menino, como nos do leproso, o reflexo de Deus revelado. Na manjedoura pôde contemplar – sem formular qualquer ideia – a gratuidade de Deus e estende-la a toda criação.

A gratuidade de todas as coisas no resplendor do modo de ser de Deus. O rio que corre, a flor que desabrocha, o pássaro que voa, etc.. Todas as coisas em harmonia. Essas não procuram ser vistas ou admiradas, simplesmente são. Assim se apresentou Deus a Francisco. Um Deus diferente dos dogmas, dos grandes discursos, mas um Divino de poucas palavras e de grande envolvimento afetivo.

O natal é este tempo do resgate dessa vivência originária de nosso carisma. Aquilo que foi despertado em Francisco de Assis está bem ali em ‘Belém’. Em um estábulo, gratuitamente, nasce nosso Salvador. Não é um deus-rei rico ou poderoso. Não nasce em berço de ouro ou em palácio. O Reino de Deus se fez na manjedoura, no lava pés e na cruz. Na ‘história’ de Jesus não há trono, não há ‘reino’, nem servos subservientes. O imaginário religioso franciscano deve purificar-se de toda tentativa de fazer de Jesus um Imperador aos moldes dos cargos imperiais e estadistas. Somente assim se conseguirá adentrar no modo de operar do Espírito intuído pelo pobrezinho de Assis.

A celebração do natal nos leva a contemplar os grandes mistérios de Deus. Este Jesus próximo, humano, que nos dignifica, humaniza e diviniza. Presépio, lava pés e cruz, nosso modo de ser franciscano, revelando a maneira de agir de Deus: a gratuidade.

Que neste natal possamos aprender com a gratuidade de Deus revelado no presépio. Que nosso coração esteja aberto para esse menino que nasce. Feliz nascimento a todos!

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EXTRAÍDO DE: http://www.reflexoesfranciscanas.com.br/2011/12/o-natal-ao-modo-de-francisco-de-assis.html

23 de dezembro de 2011

Especial - Greccio, a nova Belém (parte 2)


FRANCISCO E O PRESÉPIO

Nós todos aprendemos a gostar de São Francisco ao longo de nossa vida. Encontramos vestígios dele no rosto de certos irmãos e de muitas irmãs. Difícil dizer o que mais encanta. Tudo nele é força na fragilidade e ternura vigorosa. Por vezes, por vezes mesmo, ele nos lembra Cristo Jesus. Os dois se parecem demais.

Gostamos de vê-lo, simples, despojado, caminhando pelas ruas, dizendo que o Amor não é amado. Vai gastando todas as suas energias para dizer a todos os homens que será preciso mudar o coração, fazer penitência.

Ficamos extasiados ao vê-lo passar horas, noites e dias em oração. Ele é o amante das grutas e dos espaços virgens onde a mão humana pouco se faz presente. A impressão que se tem é que Francisco faz sua vida desenrolar-se continuamente na presença de Deus. Ele não é homem de oração. No dizer de Celano, ele é a própria oração. Tarefa alguma pode fazer com que venhamos a perder o espírito de oração e da santa devoção. Por sua vida, ele assim nos ensina.

Gostamos de freqüentar Greccio, nossa Belém. Nunca ninguém soube tão bem festejar o nascimento de Deus na terra dos homens: palha, despojamento, frades encantados e extasiados, homens e mulheres com tochas acesas e Francisco, feito um dançarino de Deus, cantando a glória do Menino das Palhas, no Menino Pobre, do Deus que se toma criança.

Gostamos de nos sentar contemplativamente diante da rudez e majestade do La Verna. Frei Francisco, Frei Leão, o irmão falcão, os abismos, o verde, o serafim e as chagas de Jesus na carne de Francisco nos envolvem e nos encantam.

Gostamos de ver Francisco caminhando pelas terras da Úmbria atrás dos leprosos, dos mais abandonados, fazendo-se amorosamente presente na vida das pessoas.

Por vezes, gostamos de imaginar esse bando de gente simples, de pés no chão, de braços alevantados, estes frades com Francisco, louvando o Senhor, deixando que o sol, que o Irmão Sol lhes queimasse o rosto e sendo acariciados pelo suave Irmão vento ou pela Irmã Brisa. Gostamos de ver chegar Irmã Jacoba nos derradeiros momentos, trazendo a mortalha do Pai e aqueles doces de amêndoa que só ela sabia fazer e de que ele tanto gostava. Gostamos do Francisco humano, verdadeira e belamente humano.

Gostamos de ver Francisco como aquele que tudo descomplica: sem preocupações mundanas, sem bens materiais, sem cultivo do ego, sem vontade de aparecer, não reclamando nada.

A impressão que se tem é que Cristo veio outra vez viver entre nós na delicada e vigorosa figura de Francisco de Assis.

Texto extraído do livro “Por que todos andam atrás de ti?”, de Frei Almir Ribeiro Guimarães. Publicação da FFB, 2005

Frei Almir Ribeiro Guimarães, ofm

PRESÉPIO E EUCARISTIA

A conjunção Belém-Greccio, manjedoura-altar já estava presente na liturgia natalina e também na tradição literário-eclesiástica. De fato, percorrendo o tesouro dos escritos eclesiásticos que nos foram legados pelos séculos anteriores, ficamos impressionados em encontrar repetidas vezes a presença da ligação entre Belém e o altar eucarístico. Como em Belém, assim também Jesus desce entre os homens. Em Belém os pastores trouxeram seus dons. Os fiéis, por sua vez, acorrem com suas ofertas ao altar.

A aproximação entre Belém e eucaristia, aliás, é facilmente intuível. “Belém” significa “casa do pão”. O próprio Jesus se tinha definido como “pão descido do céu”, o “pão da vida”, destinado a nutrir seus fiéis no santo sacrifício. Logo que nasceu foi colocado no presépio, isto é, na manjedoura dos animais. Parece que esta circunstância tenha levado antes de tudo os escritores sacros e os oradores da época a vislumbrar ali uma imagem da eucaristia.

Na liturgia do Natal do assim dito Sacramentário gregoriano anualmente ocorria o seguinte texto: “Este que é o pão dos anjos, no presépio da Igreja se tomou alimento dos animais que crêem”.

De fundamental importância também, porque muito usada, é a glosa ordinária a respeito da Sagrada Escritura (século IX) que, comentando São Lucas, explica: “posto no presépio, isto é, o corpo de Cristo no altar”. Aelredo de Rielvaux (abade cistercense do século XII) escreve: “O presépio de Belém, o altar da Igreja… Não temos nenhum sinal tão grande e evidente do nascimento de Cristo, quanto seu corpo e sangue que diariamente comemos no santo altar. Aquele que uma vez nasceu da Virgem, vemo-lo cotidianamente imolado por nós. Por isso, irmãos, acorramos com presteza ao presépio do Senhor….”. A analogia entre Belém e o altar eucarístico ocorre ainda em outros autores do século XII, como Honório de Autun, Hugo de São Vítor, São Bernardo, Zacarias Crisopolitano, Guarnério de Rochefort, Guerrico de Igny. Este último assim se exprime num sermão natalino: “Irmãos, vós também hoje encontrareis um menino envolto em panos e colocado no presépio do altar”. Pedro de Blois, quase contemporâneo de São Francisco, exprime-se mais ou menos com as mesmas palavras: “Irmãos, embora não sejais pastores, hoje vereis o nosso pequeno, que muitos reis e muitos profetas quiseram ver, havereis de vê-lo colocado no presépio do altar, não em aparência de glória, mas envolto em panos”. A idéia do presépio eucarístico, comum a escritores e oradores daquela época, foi retomada, como é fácil perceber, por miniaturistas e artistas, escultores e pintores. A originalidade de Francisco foi de traduzir de forma plástica, simples e realista, ao alcance de todos, a atualização do mistério do nascimento histórico no mistério sacramental da eucaristia.

Não se pode dizer que, para Francisco bem como para os outros autores citados a esse respeito, a atualização do nascimento de Cristo no mistério da Eucaristia seja entendida em sentido indireto, porque o sacramento da eucaristia atualiza direta e propriamente o sacrifício da cruz e o mistério da ceia.

Texto do “Dicionário Franciscano”, uma publicação da Editora Vozes/Cefepal

Por Frei Vitório Mazzuco Fº

A MENSAGEM FRANCISCANA DO PRESÉPIO

Segundo a tradição, a primeira representação visualizada, teatralizada e celebrada de um presépio aconteceu no ano de 1223, num bosque próximo de Greccio, na Úmbria, região italiana. Quem tomou esta iniciativa foi Francisco de Assis, e ,com isso, ele passa a ser o primeiro a organizar de um modo plástico a cena da Encarnação do Filho de Deus.

Não é de se discutir se o fato é verídico ou legendário, pois Francisco de Assis foi um apaixonado pelo modo como Deus fez morada no mundo dos humanos, e certamente, mais do que palavras quis mostrar o maior evento de todos os tempos: na carne de um Menino, Deus está para sempre no meio de nós. Vejamos o texto das Fontes Franciscanas: “A mais sublime vontade, o principal desejo e supremo propósito dele era observar em tudo e por tudo o Santo Evangelho, seguir perfeitamente a doutrina, imitar e seguir os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo com toda a vigilância, com todo o empenho, com todo o desejo da mente e com todo o fervor do coração.

Recordava-se em assídua meditação das palavras e com penetrante consideração rememorava as obras dele. Principalmente a humildade da encarnação e a caridade da paixão de tal modo ocupavam a sua memória que mal queria pensar outra coisa. Deve-se, por isso, recordar e cultivar em reverente memória o que ele fez no dia do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo, no terceiro ano antes do dia de sua gloriosa morte, na aldeia que se chama Greccio. Havia naquela terra um homem de nome João, de boa fama, mas de vida melhor, a quem o bem-aventurado Francisco amava com especial afeição, porque, como fosse muito nobre e louvável em sua terra, tendo desprezado a nobreza da carne, seguiu a nobreza do espírito. E o bem-aventurado Francisco, como muitas vezes acontecia, quase quinze dias antes do Natal do Senhor, mandou que ele fosse chamado e disse-lhe: ‘Se desejas que celebremos, em Greccio, a presente festividade do Senhor, apressa-te e prepara diligentemente as coisas que te digo. Pois quero celebrar a memória daquele Menino que nasceu em Belém e ver de algum modo, com os olhos corporais, os apuros e necessidades da infância dele, como foi reclinado no presépio e como, estando presentes o boi e o burro, foi colocado sobre o feno’. O bom e fiel homem, ouvindo isto, correu mais apressadamente e preparou no predito lugar tudo o que o santo dissera.

E aproximou-se o dia da alegria, chegou o tempo da exultação. Os irmãos foram chamados de muitos lugares; homens e mulheres daquela terra, com ânimos exultantes, preparam, segundo suas possibilidades, velas e tochas para iluminar a noite que com o astro cintilante iluminou todos os dias e anos. Veio finalmente o santo de Deus e, encontrando tudo preparado, viu e alegrou-se. E, de fato, prepara-se o presépio, traz-se o feno, são conduzidos o boi e o burro. Ali se honra a simplicidade, se exalta a pobreza, se elogia a humildade; e de Greccio se fez com que uma nova Belém. Ilumina-se a noite como o dia e torna-se deliciosa para os homens e animais. As pessoas chegam ao novo mistério e alegram-se com novas alegrias. O bosque faz ressoar as vozes, e as rochas respondem aos que se rejubilam. Os irmãos cantam, rendendo os devidos louvores ao Senhor, e toda a noite dança de júbilo. O santo de Deus está de pé diante do presépio, cheio de suspiros, contrito de piedade e transbordante de admirável alegria.” (Cel 30,4).

Sob a inspiração deste fluo, baseando-se nas Fontes Franciscanas, toda a celebração de Natal ganha um novo vigor interpretativo e celebrativo em toda Itália, da Itália para a Europa e da Europa para o mundo. A cidade de Nápoles transforma a cena de Natal num movimento artístico, e a partir dali e dos anos 1700, o presépio é pura arte.

Unindo a Palavra de Deus, a representação artesanal e o folclore, os presépios vão destacando as típicas figuras regionais, e unem fé e beleza estética. As missões franciscanas levam o presépio para o mundo, e assim, cultura local e tradição cristã mostram o maior feito histórico da cristandade.

O presépio tem a forma dos momentos culturais: barroco, colonial, rococó, renascentista, moderno, vanguardista, arte popular, oriental, latino-americano, indiano e africano. O Deus Menino está no campo, na cidade, nas tendas, favelas e arranha-céu; está no centro urbano e na periferia. Une a força do sinal, do sacramental, do sagrado, da teologia da imagem, a fala da fé.

Nos presépios temos a harmonia das diferenças. O mundo do divino encontra-se com o mundo do humano. A grandeza, a onipotência de um Deus revela-se na fragilidade de uma criança. Ali o mundo animal, ovelhas, boi, burro, queda-se contemplativo abraçado pelo silêncio do mundo mineral: pedras e presentes. Há também o toque brilhante daquela Estrela Guia aproximando o mundo sideral.

As plantas formam o colorido arranjo do mundo vegetal. Anjos e pastores, um pai sonhador e uma mãe silente que guarda tudo no coração; afinal todos são conduzidos pelo mesmo mistério. O curioso e controlador mundo do poder representado pelos Reis Magos vem conferir. Fazer presépios é unir mundos! Aquele Menino fez-se Filho do Humano: veio experimentar a nossa cultura, o nosso jeito, a nossa consangüinidade.

Num presépio cabe todos os rostos! É o grande encontro dos simples, dos normais, dos marginais, dos ternos, fraternos, sofridos e excluídos. Quando o diferente se encontra temos a mais bela paisagem do mundo. Tudo se torna transparente na unidade das diferenças. Num presépio não existe preconceito, existe sim aquela silenciosa e calma contemplação da beleza de cada um, de cada uma. Encarnar-se é morar junto e respeitar o diferente! Paz na Terra aos Humanos de vontade boa e bem trabalhada! Isso é que encantou Francisco de Assis!

O presépio nos lembra que Deus não está no mercado das crenças, nem no apelo abusivo do comércio natalino que faz uma profanização deste universo de símbolos: pinheiros e estrelas, animais e pastores, presépios variados. Deus nem sempre está nas igrejas e nem nas bibliotecas; mas Ele está num coração que pulsa de Amor. Esta é a sacralidade inviolável do Natal: Deus está no seu grande projeto, que é Humanizar-se, fazer valer o Amor, Encarnar o Amor!

Deus não está na violência e nem onde se atenta contra a vida. Deus não está no orgulho dos poderosos nem entre os caçadores de privilégios hierárquicos. Mas Ele está na leveza deste Menino, Filho do Pai Eterno, a grande síntese das naturezas humana e divina.

Ele está aqui na mais bela doação do Sim de José e de Maria. Quando há disponibilidade, todo sonho é fecundo. Ele está onde se faz um presépio: lugar do Bem e da Beleza. É o grande momento de refletir este presente que ele nos dá. Isso é que encantou Francisco de Assis!

O Amor tem que ser Amado! A Verdade e a Beleza têm que ser apreciadas. Este é o lugar de Luz no meio das sombras humanas. A luz vale mais do que todas as trevas. Deus está ali com você e com Francisco diante do presépio, e abraçando você com silêncio, paz, harmonia, serenidade; acolhendo você e passando-lhe Onipresença, Onipotência eterna para a fragilidade da criatura. No presépio, Deus olha você, pessoa humana, contemplando a suprema humildade da Pessoa Divina.

Artigo “A Mensagem Franciscana do Presépio, da Revista Franciscana, uma publicação da FFB

Por Frei Vitório Mazzuco Fº

NATIVIDADE

Até o fim de sua vida, Francisco foi solícito em desejar acima de tudo o Espírito do Senhor. E o Espírito não cessou de conduzi-lo num caminho de renúncia de si sempre mais profunda. Mas este despojamento íntimo, longe de ser um empobrecimento de sua verdadeira personalidade, abria nele um espaço cada vez maior de acolhimento, uma capacidade crescente de comunhão e de fraternidade. Nada retendo para si, ele tornou-se presente a toda criatura. Sua pobreza era sua riqueza, a chave do Reino. No espírito de doçura, Francisco nascia ao mesmo tempo para Deus, para o mundo e para si mesmo.

Não há melhor maneira de compreender esse itinerário do que invocando aquele acontecimento que iluminou seus últimos anos. Mais que um simples episódio maravilhoso na sua vida, o Natal que ele celebrou, três anos antes de sua morte, entre as pessoas simples da montanha, foi uma experiência mística, um novo nascimento. Seu primeiro biógrafo não se enganou. Naquela noite, diz ele, Francisco se fez “menino com o Menino (2Cel, 35). O Espírito do Senhor renovava nele seu “advento de doçura”, no auge do rude inverno da natureza e dos homens.

Estamos no fim do ano de 1223, numa pequena aldeia da montanha que domina o vale de Rieti, no centro da Itália. Esta aldeia se chama Greccio. Para seus habitantes, parece que o ano deve terminar como todos os outros: no frio, no isolamento e na pobreza. A primeira neve começou a cair. E a aldeia tomou seu aspecto invernal.

As pequenas casas se escondem sob sua capa branca. As atividades externas vão se tornando raras. As mulheres fiam a lã dentro de casa. Os homens cortam e racham a lenha… E, quando cai a noite, todos reunidos diante da lareira contemplam em silêncio o fogo que crepita e faz sonhar. Eles esperam. O que esperam? O retorno de dias melhores, a primavera, o sol? Sem dúvida, mas acima de tudo um pouco de calor humano, um pouco de amizade e de alegria. Sonham com um sopro de inocência e de ternura. Mas o que pode trazer-lhes naquele instante a verdadeira felicidade?

Em toda a cristandade, através da liturgia do advento, eleva-se de novo a voz suplicante do profeta, o insistente pedido que vem do fundo dos tempos: “Ah! Javé, oxalá rasgasses os céus e descesses…” (Is 63,19). “Céus, destilai orvalho lá do alto; nuvens, fazei chover o Justo…” (Is 45,8). E eis a resposta lá do alto, radiosa, cheia de esperança: “Consolai-vos, consolai-vos, meu povo, diz o vosso Deus, falai ao coração de Jerusalém
e gritai-lhe que seu tempo de escravidão terminou…” (Is 40,1-2).

Mas, em Greccio, não há ninguém para falar ao coração das pobres. Por mais que as pesadas nuvens se abaixem sobre a montanha, caindo em flocos de neve, o céu não se abre e o Justo não dá sinais de descer.

De manhã, não se vê ninguém vindo sobre a neve intacta. E de noite, muito menos, quando as encostas brancas e desoladas se tingem de cor de malva sob os passos da noite. Ninguém. É a imensa solidão do inverno. E como são longas as noites de inverno na montanha! Ouve-se apenas o gemido e o rachar das árvores sob o peso da neve, ao sopro do vento, no bosque vizinho. E às vezes também o uivar dos lobos. Terra regela-
da, terra ansiosa, à expectativa de um pouco de amor, “quando enfim verás nascer a aurora divina?”

Entretanto, os habitantes desta pequena aldeia não ignoram que por todos os cantos do país se fala muito de um homem chamado Francisco, ou o Pobre de Assis. Sua reputação de santidade é grande. Filho de um rico negociante de tecidos, converteu-se ao Evangelho depois de uma juventude um pouco desvairada e esbanjadora. Renunciou à riqueza, às honras, ao poder, à violência. Fez-se pobre por amor de Cristo e para ser o irmão de todos.

Muitos jovens se juntaram a ele, às dezenas, depois às centenas. Agora são milhares. Vêm de todas as camadas da sociedade, de todas as condições. Francisco ensina-lhes a viver segundo o santo Evangelho, em grande fraternidade entre eles e com todos as pessoas. Revela-lhes o verdadeiro rosto de Deus. Não do Deus dos domínios da Igreja, nem das cruzadas, nem do dinheiro, mas do Deus dos pequenos que vêm a nós com doçura. “Vede a humildade de Deus!” – gostava Francisco de dizer-lhes, mostrando-lhes o exemplo de Cristo humilde e pobre.

Mas eis que naquele mês de dezembro de 1223, às vésperas do Natal, Frei Francisco foi como que tomado por um grande desejo. Revelou este desejo aos seus irmãos: “Quero lembrar o menino que nasceu em Belém, os apertos que passou, como foi posto num presépio, e ver com os próprios olhos como ficou em cima da palha, entre o boi e o burro” (ICel, 84).

Naquele tempo ainda não existiam os presépios de Natal, principalmente os presépios vivos. A idéia era completamente nova e até ingênua. Tinha surgido de repente no coração de Francisco, como uma chama de amor. Era uma idéia extraordinária como só os poetas podem ter, pois são eles que nos fazem voltar aos olhos da infância. E, de súbito, reencontramos os segredos perdidos. Um boi e um burro na penumbra de um estábulo, e o Natal nos é restituído com o realismo de sua ternura.

“Ver” e “fazer ver” o altíssimo Filho de Deus, nascendo ao mundo na humildade e na pobreza de um presépio entre animais, nada era mais importante para o futuro do mundo. Numa sociedade de cunho mercantil, onde o soberano era o dinheiro, o que podia ser mais útil do que fazer brilhar a gratuidade de Deus? Num mundo de clérigos ávidos de honra e poder, o que podia ser mais salutar do que lembrar a humildade de Deus? E num tempo de violências, de cruzadas e de guerras santas, o que podia ser mais urgente, mais necessário do que fazer ver a doçura, a mansidão de Deus?

Não, não se tratava simplesmente de uma idéia tocante. Era toda a vida ardente de Francisco, todo o seu ser, toda a sua busca de Deus que se expressava neste desejo de ver o Menino divino na penúria do presépio.

“Reinventar” o Natal, reencontrar a humanidade de Deus, a ternura de Deus, eis o que Francisco queria para si e para seus irmãos e para o mundo inteiro, imaginando aquele presépio vivo. Ele via longe, muito longe. E a coisa mais simples do mundo. Fora dos caminhos comuns, dos caminhos batidos, ele encontrava a fonte oculta da ternura e da fraternidade.

E quem melhor do que as pessoas simples da montanha poderia compreender e acolher esta mensagem? Como outrora os pastores de Belém, eles serão os primeiros a ouvir a Boa Notícia. Sem hesitar, Francisco decide então fazer o presépio em Greccio.

Apressa-se em confiar seu projeto a seu amigo, o Sr. João Velita, que, apesar de sua alta linhagem e seus cargos importantes, é muito simples e achegado aos irmãos. Francisco tem muita estima por ele e lhe diz: “Se quiseres, é em Greccio que vamos celebrar a festa do Natal este ano. Sim, quero ver o Menino divino, com meus olhos de carne, assim como estava no presépio de Belém, dormindo na palha, entre um boi e um burro… Vai, começa a fazer os preparativos…”(ICel, 84)

O Sr. João, inteiramente de acordo com o projeto de Francisco e feliz pela confiança que o Poverelio depositava nele, apressa-se e vai à humilde aldeia da montanha. Que alegria para os habitantes de Greccio e que orgulho também, quando souberam que Frei Francisco, aquele de quem todo mundo fala com veneração, escolheu sua aldeia para lá celebrar a festa da Natividade que se aproximava! E que surpresa e deslumbramento quando o Sr. João lhes fez saber que Fr. Francisco quer que se prepare um estábulo, exatamente como em Belém, com uma manjedoura provida de palha e com um burro e um boi.

No mesmo instante, toda a aldeia acordou de sua letargia. Todos queriam ajudar o Sr. João a preparar a festa. O lugar escolhido foi uma gruta bem grande, no flanco da montanha. Ali foi instalada uma manjedoura com feno. Foi levado para lá um burro e um boi. Em pouco tempo tudo estava pronto. No dia 24 de dezembro ao anoitecer chegou Frei Francisco com alguns frades.

Havia chegado enfim a noite abençoada em que toda a cristandade celebra o nascimento do Salvador. Os moradores de Greccio e das redondezas acorrem em massa com tochas e lanternas. Nos bosques, ressoam seus cantos. E uma noite extraordinária, toda iluminada com centenas de luzes que enchem a gruta e tudo em redor dela. “Uma noite tão deliciosa para os homens como para os animais”, conta Tomás de Celano (ICel, 85).

Francisco “passa a vigília de pé diante do presépio, comovido e cheio de uma indizível alegria” (ICel, 85). Na verdade, ele experimentou naquela noite um longo momento de êxtase. Com os olhos fixos na manjedoura, parecia ver o Menino Deus deitado no feno, entre os animais. Com toda certeza, seu espírito estava em Belém.

Mas o que via então o Poverelio naquela noite de Natal? Não era apenas uma cena maravilhosa. Ele contemplava o mistério do Natal em sua profundidade. Se ele quis este presépio, não foi para oferecer uma representação simplesmente comovedora. Sua visão ia muito mais longe: via toda a criação com Deus num mistério profundo. Queria tudo que existia, tudo que vivia para este instante único, para esta comunhão com a vida divina no Deus-Menino.

Portanto, a vida divina não devia ser buscada fora das fragilidades da vida humana e de suas raízes obscuras, fora da criação material. No Deus-Menino tudo se encontrava. E o que estava oculto se tomava visível. O sentido do mundo se tornava bem claro. A unidade da criação se revelava. Era uma epifania de luz. Não se podia acolher a vida divina sem respeitar toda vida: a vida humana é claro, mas também as formas de vida mais humildes. Não se podia comungar com a vida divina sem fraternizar com toda vida, com toda criatura. Com toda a criação.

E o caminho desta comunhão e desta fraternidade era a humildade do presépio, aquela humildade original que nos aproxima das mais humildes criaturas, aquela proximidade e doçura que nos fazem reintegrar o vasto círculo da criação. Não era exatamente esta a mensagem dos anjos aos pastores na noite de Natal: “Hoje vos nasceu um Salvador. Este é o sinal pelo qual o reconhecereis: encontrareis um recém-nascido, envolto em panos e deitado num presépio…” A criação inteira, com suas criaturas mais humildes, se havia tomado o “berço divino”. Só podia aproximar-se do Menino, só podia encontrá-lo, quem entrasse no presépio, quem se fizesse a si mesmo bem próximo das criaturas mais humildes.

Nesta noite de Natal, em que Deus mesmo vinha a nós na humildade de um estábulo, era pois preciso manifestar um infinito respeito e uma grande ternura para com toda a vida, por humilde que fosse. Francisco queria que, naquele dia, os pobres e esfomeados fossem saciados pelos ricos, e que se concedesse uma ração maior e mais feno para os bois e burros (2Cel, 200). E não esqueceu os passarinhos: “Se eu pudesse falar com o imperador, pediria que promulgasse esta lei geral: que todos que puderem joguem pelas mas trigo e outros grãos, para que nesse dia tão solene tenham abundância até os passarinhos, e principalmente as irmãs cotovias” (ICel, 200).

Toda esta ternura transbordava do coração de Francisco, enquanto contemplava, extasiado, a manjedoura, como se estivesse de fato em Belém e visse o Menino com seus próprios olhos. Renovou-se então para ele, de uma maneira sensível, o mistério de um Deus nascendo nas profundezas da terra, entre os animais. “Uma das testemunhas – conta Tomás de Celano – viu, deitado na manjedoura, um bebê dormindo que acordou quando o santo chegou perto”.

Não devemos deter-nos neste lado maravilhoso do evento sem ver seu significado profundo. Se quiséssemos traduzir de uma maneira simbólica a experiência espiritual de Francisco naquela noite, sem dúvida nada seria melhor do que relatar este traço maravilhoso. Tomás de Celano não se enganou a este respeito. Ele escreve em sua “Vita Secunda”: “Foi nesse lugar [Greccio] que Francisco recordou pela primeira vez o Natal do Menino de Belém, fazendo-se menino com o Menino”. Assim, para o seu biógrafo, esta celebração externa traduzia uma transformação interna: “Fazendo-se menino com o Menino, factus cum Puero puer” (ICel, 86).

Este presépio vivo, no fundo de uma gruta onde acorda um lindo bebê quando Francisco se aproxima, simboliza o nascimento oculto do Deus-Menino nas profundezas da alma, num homem plenamente reconciliado com sua arqueologia. O presépio é a expressão
sensível de uma aproximação interna de Deus por caminhos de humildade e de reconciliação: por caminhos de encarnação.

Atribuem-se ao teólogo Bultmann estas palavras: “Eu quero Cristo sem o presépio”. Querer Cristo sem o presépio é querê-lo sem suas humildes inserções naturais, sem sua matriz cósmica. Numa tal perspectiva idealista, o evento da salvação nada mais tem a fazer com a Terra-Mãe, com tudo que nos liga ao cosmos e à vida; ele se desenrola à primeira vista na pura interioridade, acima de qualquer condição carnal; não nos atinge em nossas raízes vitais e psíquicas. Numa palavra, não assume o destino total do ser humano, deste ser “que lança raízes na natureza animal e, ultrapassando o que é simplesmente humano, se eleva até à divindade” (Jung). A criação material e animal é deixada de lado. Ela não é atingida pelo evento da salvação. Portanto não há reconciliação do homem com suas forças obscuras, nem transfiguração da agressividade, nem da libido. Cristo não desceu às nossas profundezas. A paz do Natal ficou pendurada nas estrelas.

Completamente diferente é o caminho de Francisco. Ele encontra o Menino-Deus na humildade do presépio, fraternizando com nossos irmãos os animais e com toda a vida. Ele o encontra lá onde estão as nossas raízes. Deus, para nascer no homem, tem necessidade do homem todo e primeiramente de suas raízes obscuras, vitais e cósmicas. É com isto que ele conta: “Vede a humildade de Deus”, dizia Francisco aos seus irmãos.

Depois desta longa vigília de oração e de canto na gruta transformada em estábulo, a missa do Natal foi celebrada na manjedoura como altar. Francisco, que tinha vestido a dalmática em sua qualidade de diácono, cantou o Evangelho da Natividade. Com sua voz “vibrante e doce, clara e sonora”, proclamou a Boa-Nova: “Não temais, pois eu vos anuncio uma grande alegria que será para todo o povo: hoje vos nasceu um Salvador…” (Lc 2,10-11).

Depois deste anúncio, Francisco dirigiu-se ao povo, convidando todos a regozijar-se com o evento. Não era um sermão que ele fazia, era sua própria vibração interior que lhes transmitia. Em palavras bem simples, evocou a pequena cidade de Belém e o nascimento do Menino-Deus na pobreza do presépio. Ouvindo-o, tinha-se verdadeiramente a impressão de que naquela noite o céu havia perdido todo o seu orgulho e se havia tomado próximo e fraternal. O Deus de majestade se havia feito nosso irmão em Maria sua Mãe.

Pode-se encontrar um eco da homilia de Francisco na oração que ele compôs para as vésperas de Natal, em seu Oficio:
Naquele dia Deus nosso Senhor concedeu a sua graça
e de noite ressoou o seu louvor.
Este é o dia que o Senhor fez,
alegres exultemos por ele.
Pois foi-nos dado um Menino amável e santíssimo,
nascido por nós à beira do caminho
e deitado numa manjedoura,
porque não havia lugar na estalagem.
Glória a Deus nas alturas
e paz na terra aos homens de boa vontade.
Alegrem-se os céus, rejubile a terra,
ressoe o mar com tudo o que contém,
rejubilem-se os campos e o que neles existe!…

“Paz na terra!” A mesma paz que Francisco foi anunciar aos cruzados, depois ao sultão, no Oriente Próximo, foi nesta pequena aldeia da montanha que ela floresceu naquela noite de Natal. Não era necessário correr para o país de Jesus para encontrá-la: Greccio se havia tomado uma nova Belém. O Menino-Deus nasce em toda parte onde há seres humanos bastante humildes para reconhecer-se irmãos uns dos outros e de toda criatura.

Trecho do livro “O Sol Nasce em Assis”, de Éloi Leclerc, Vozes, 2000

Éloi Leclerc

EXTRAIDO DE: http://www.franciscanos.org.br/