31 de agosto de 2010

Meditação Diária

As sombras fazem da nossa trajetória humana. Na sombra estão os conteúdos rejeitados ou não aceitos pela nossa consciência. A sombra não deve ser rejeitada e nem reprimida... Ela deve ser integrada, chamada a fazer parte do todo. Na sombra existe uma quantidade incrível de energia psíquica que poderá nos ajudar a sermos melhores, mais inteiros, mais plenos.

O amor é o olhar incondicional e positivo de Deus. A essência da pessoa – seu verdadeiro ser – é o amor: coloque-o no seu centro existencial. Divida esse amor consigo e com os demais. Faça do amor um verbo: conjugue-o a todo instante. Permita-o fluir dentro de você...

Frei Paulo Sérgio de Souza, OFM

30 de agosto de 2010

Clara de Assis 2

No dia 18 de Março de 1212, Clara de Assis sai de sua casa e vai para a igreja de Santa Maria dos Anjos, a Porciúncula, encontrar-se com Francisco de Assis.

De modo que estamos numa caminhada jubilar, para celebrar em 2012 este encontro que marca para sempre a história da Ordem. É um momento privilegiado para, mais uma vez, redescobrir Santa Clara, a mãe, esposa e irmã de toda família franciscana. É muito comovente o reencontro com a mãe! A partir de então, a Ordem tem uma faceta feminina. Clara traz o brilho da personalidade e a força de seu carisma pessoal. Tem a mesma escolha de Francisco: o Evangelho. O que a move é o Amor a Jesus, Pobre e Crucificado. O Deus humilde, simples, despojado. A grandeza de um Deus que se fez servo. Ela também quer ser assim, de grande dama da sociedade assisiense, ser serva e irmã de inumeráveis irmãs. Quando o Amor é grande demais não dá para ser sozinha: arrasta consigo uma família de Irmãs que, assim como Clara, ganha juventude através dos séculos.
Com certeza, podemos dizer que, sem Clara, a experiência de Francisco não seria completa. Ela é uma testemunha excepcional da busca radical da vivência do Evangelho que abalou Assis a partir destes seus dois jovens cidadãos. Entre Francisco e Clara está um protótipo de um ideal, um modelo pleno de humano, uma conversão que mistura radicalidade e ternura, espírito e afeto. Escreve Caetano Esser, um dos grandes estudiosos do Franciscanismo: “Clara seguiu de perto São Francisco na sua nova vida e nas vivências do início da Ordem. Dele assimilou profundamente o Espírito, conservando em si o estado mais puro deste Espírito. O seu testemunho é digno da mais alta consideração” (Origem e Valores Autênticos da Ordem, Milão,1972).

Imagem do Painel no Colégio Nossa Senhora Aparecida - Consa - das Irmãs de Ingolstadt, em São Paulo.

SÃO FRANCISCO E A PÉROLA DE GRANDE VALOR

A pérola de grande valor

Dentre os dons espirituais recebidos da generosidade de Deus, Francisco obteve em particular o de enriquecer constantemente o seu tesouro de simplicidade graças ao seu amor pela extrema pobreza. Vendo que aquela que tinha sido a companheira habitual do Filho de Deus se tornara, nessa altura, objeto de uma aversão universal, tomou a peito desposá-la e devotou-lhe um amor eterno.

Não satisfeito em «deixar por ela pai e mãe» (cf. Gn 2, 24), distribuiu pelos pobres tudo o que pudesse ter (cf. Mt 19, 21). Nunca ninguém guardou tão ciosamente o seu dinheiro como Francisco guardou a sua pobreza; nunca ninguém vigiou o seu tesouro com maior cuidado do que o que ele colocou em guardar esta pérola de que fala o Evangelho.

Nada o magoava mais do que encontrar junto dos seus irmãos qualquer coisa que não fosse perfeitamente conforme à pobreza dos religiosos. Pessoalmente, desde o princípio da sua vida como religioso até à morte, não teve senão uma túnica, uma corda a servir de cinto e umas bragas (Calças largas e curtas) como única riqueza; não precisava de mais nada.

Acontecia-lhe muitas vezes chorar ao pensar na pobreza de Cristo Jesus e na de Sua Mãe. Dizia ele: «Aqui está a razão pela qual a pobreza é a rainha das virtudes: pelo esplendor com que brilhou no «Rei dos reis» (1Tm 6, 15) e na Rainha Sua Mãe.»

Quando os irmãos lhe perguntaram um dia qual era a virtude que nos torna mais amigos de Cristo ele respondeu abrindo-lhes, por assim dizer, o segredo do seu coração: «Sabei, irmãos, que a pobreza espiritual é o caminho privilegiado para a Salvação, visto que é a seiva da humildade e a raiz da perfeição; os seus frutos são incontáveis, embora escondidos. Ela é esse «tesouro escondido num campo», do qual nos fala o Evangelho, pelo qual é necessário vender tudo o resto e cujo valor deve impelir-nos a desprezar todas as outras coisas.»

Paz e Bem!

São Boaventura (1221-1274), franciscano, Doutor da Igreja
Vida de São Francisco, Legenda major, cap. 7 (a partir da trad. de Vorreux, Eds franciscaines 1951, p. 122)

Palavras de Fé

"Quando rezamos, falamos com Deus. Quando lemos a Sagra Escritura, Deus fala conosco."

**Santo Isidoro

24 de agosto de 2010

Santa Rosa de Lima, padroeira da América Latina

Santa Rosa de Lima, padroeira da América Latina - 24/08/2010
Isabel Flores y de Oliva nasceu em Lima, capital do Peru, coincidentemente no mesmo ano da aparição da Virgem Santíssima na cidade de Chiquinquira. em 1586. Seus pais eram espanhóis que se mudaram para o Peru.O nome Rosa foi o apelido dado pela empregada da família, a índia Mariana, maravilhada pela extraordinária beleza da menina. Ela exclamou: “Você é bonita como uma rosa!”
Desde pequena, teve grande inclinação à oração e à meditação. Um dia estava rezando diante de uma imagem da Virgem Maria, com Jesus Cristo ainda bebê nos braços, quando ouviu uma voz que vinha da pequena imagem de Jesus, que lhe dizia: "Rosa, dedique a mim todo o seu amor..."
A partir de então, tomou a decisão de amar somente a Jesus, mas devido à sua beleza, muitos homens acabavam se apaixonando por ela. Para não ser motivo de tentações, Rosa cortou seus longos e belos cabelos, e passou a cobrir o rosto constantemente com um véu.

Sua crisma foi ministrada por São Turíbio de Mongrovejo.

Levada à miséria com sua família, ainda na adolescência, ganhou a vida com o duro trabalho da lavoura e da costura, até altas horas da noite. Exatamente nessa situação de grande pobreza, apareceu-lhe a oportunidade de se tornar muito rica através de um casamento, mas Rosa o rejeitou por fidelidade a Jesus Cristo.
Através de rigorosas penitências, Rosa eliminou de sua vida todo orgulho, amor próprio e vaidade, cumprindo à risca o que Jesus disse: "Quem se humilha será exaltado". Entre as penitências estava o jejum contínuo: Rosa consumia o mínimo necessário para sua sobrevivência e quase não bebia água. Dormia sobre duras táboas e ao olhar para o crucifixo dizia: "Senhor, a sua cruz é muito mais cruel que a minha".


No jardim de sua casa, edificou um eremitério, uma pequena cela no fundo do quintal. A cama era um saco de estopa. Aos vinte anos entrou para a Ordem Terceira de São Domingos e fez os votos religiosos e passou a se chamar Rosa de Santa Maria. Foi modelo de vida penitente e de oração contínua na simplicidade da vida laical.

A partir deste dia, Rosa, que se espelhava em Santa Catarina de Sena como modelo de vida a ser seguido, passou a pedir diariamente a Deus para indicar-lhe em que ordem religiosa deveria ingressar. Percebeu que todos os dias, assim que começava a rezar, aparecia uma pequena borboleta nas cores branco e preta, e com este sinal chegou à conclusão que deveria ingressar na Congregação da Ordem Terceira de São Domingos, cujas vestimentas eram nestas cores. Tendo ingressado na ordem aos vinte anos, pediu e obteve licença de emitir os votos religiosos em casa - e não no convento - como terciária dominicana.

“Se não fosse mulher dedicar-me-ia inteiramente à salvação dos índios.”
Particularmente devota de Nossa Senhora, pediu a ela, de modo especial, pelo crescimento da Igreja, especialmente entre os índios americanos. Frequentemente visitava os enfermos e os pobres.

Sua vida foi rica em provações dolorosas, contudo Rosa jamais perdeu a serenidade, imitando Cristo pobre e crucificado. Quando doente, disse: “Se os homens soubessem o que é viver em graça, não se assustariam com nenhum sofrimento e padeceriam de bom grado qualquer pena porque a graça é o fruto da paciência.”
Vivendo fora do convento, renunciou a inúmeras propostas de casamento e de vida fácil, dizendo: "O prazer e a felicidade que o mundo pode me oferecer são simplesmente uma sombra em comparação ao que sinto". Alcançando um alto grau de vida contemplativa e de experiência mística, suas orações e penitências conseguiram converter muitos pecadores.
Como não conseguia explicar seus sentimentos, acrescentava: “Posso explicar só com o silêncio. O prazer e a felicidade que o mundo pode me oferecer são simplesmente uma sombra em comparação ao que sinto.” Ao mesmo tempo admitia: “Eu não acreditava que uma criatura pudesse ser acometida de tão grandes sofrimentos. Meu Deus, podes aumentar os sofrimentos, contando que aumentes meu amor por ti.”

Teve o conhecimento do dia em que morreria, por isso, a cada 24 de agosto, passava-o em oração e dizia: “ Este é o dia das minhas núpcias eternas.” Morreu em um deles, o do ano 1617, com 31 anos.

Muitos milagres aconteceram após sua morte. Ela foi beatificada por Clemente IX em 1667 e canonizada em 1671 por Clemente X, a primeira da América a ter essa honra. É padroeira da América do Sul e das Filipinas.

24/08 -Santo do Dia- São Bartolomeu

Bartolomeu, também chamado Natanael, foi um dos doze primeiros apóstolos de Jesus. É assim descrito nos evangelhos de João, Mateus, Marcos e Lucas, e também nos Atos dos Apóstolos.

Bartolomeu nasceu em Caná, na Galiléia, uma pequena aldeia a quatorze quilômetros de Nazaré. Era filho do agricultor Tholmai. No Evangelho, ele também é chamado de Natanael. Em hebraico, a palavra "bar" que dizer "filho" e "tholmai" significa "agricultor". Por isso os historiadores são unânimes em afirmar que Bartolomeu-Natanael trata-se de uma só pessoa. Seu melhor amigo era Filipe e ambos eram viajantes. Foi o apóstolo Filipe que o apresentou ao Messias.

Até esse seu primeiro encontro com Jesus, Bartolomeu era cético e, às vezes, irônico com relação às coisas de Deus. Porém, depois de convertido, tornou-se um dos apóstolos mais ativos e presentes na vida pública de Jesus. Mas a melhor descrição que temos de Bartolomeu foi feita pelo próprio Mestre: "Aqui está um verdadeiro israelita, no qual não há fingimento".

Ele teve o privilégio de estar ao lado de Jesus durante quase toda a missão do Mestre na terra. Compartilhou seu cotidiano, presenciou seus milagres, ouviu seus ensinamentos, viu Cristo ressuscitado nas margens do lago de Tiberíades e, finalmente, assistiu sua ascensão ao céu.

Depois de Pentecostes, Bartolomeu foi pregar a Boa-Nova. Encerradas essas narrativas dos evangelhos históricos, entram as narrativas dos apócrifos, isto é, das antigas tradições. A mais conhecida é da Armênia, que conta que Bartolomeu foi evangelizar as regiões da Índia, Armênia Menor e Mesopotâmia.

Superou dificuldades incríveis, de idioma e cultura, e converteu muitas pessoas e várias cidades à fé do Cristo, pregando segundo o evangelho de são Mateus. Foi na Armênia, depois de converter o rei Polímio, a esposa e mais doze cidades, que ele teria sofrido o martírio, motivado pela inveja dos sacerdotes pagãos, os quais insuflaram Astiages, irmão do rei, e conseguiram uma ordem para matar o apóstolo. Bartolomeu foi esfolado vivo e, como não morreu, foi decapitado. Era o dia 24 de agosto de 51.

A Igreja comemora são Bartolomeu Apóstolo no dia de sua morte. Ele se tornou o modelo para quem se deixa conduzir pelo outro ao Senhor Jesus Cristo.

Clara de Assis 1

Até inícios do século XX, a vida de Santa Clara era conhecida somente através de biografias cheias de devoção e baseadas em sua Legenda e em certos contos fantásticos. A vida de pessoas santas, sobretudo, aquelas que vêm do mundo medieval, não podem fugir da força legendária, uma narração feita unicamente para a edificação do espírito. Aos poucos, Clara de Assis vai revelando sua atraente vida, sua clara espiritualidade e mística, obra e escritos, sobretudo a partir destas ocasiões celebrativas:

1. Até 1912 o conhecimento de Clara estava mais no espaço fecundo dos Mosteiros e nas 21 mil Clarissas espalhadas pelo mundo todo. Neste ano de 1912, temos os 700 anos da VOCAÇÃO DE CLARA e da FUNDAÇÃO DAS CLARISSAS. Nascem aí estudos aprofundados, crescem as pesquisas e investigações. Lazzeri, entre os anos 1919 e 1920, descobre e publica o PROCESSO DE CANONIZAÇÃO.

2. Em 1953, temos os 700 anos da MORTE DE SANTA CLARA. Surgem as publicações das CARTAS DE SANTA CLARA PARA INÊS DE PRAGA, que passam a ser um marco para a Espiritualidade pessoal de Clara.

3. Em 1965, o Concílio Vaticano II faz a grande convocação para a VOLTA DAS ORIGENS. Conhecer os fundadores e fundadoras, seus Carismas específicos, escritos, biografias, literatura, enfim as FONTES, para colher desta riqueza a autenticidade e o ideal como base da renovação das famílias religiosas. O Franciscanismo na sua vertente Clariana descobre, com este impulso dado pelo Concílio, uma verdadeira e própria espiritualidade.

4. Em 2003, celebramos os 750 anos da MORTE DE SANTA CLARA. Vieram com isto publicações de muitos livros, artigos e muita divulgação da Legenda de Santa Clara.

5. De 2009 a 2012: 800 ANOS DA VOCAÇÃO DE CLARA! Estamos em pleno Tríduo deste grande JUBILEU e este é o motivo dos textos que apresento aos poucos neste blog. O Carisma Franciscano precisa da presença e inspiração de Santa Clara de Assis. Então comecemos a conhecê-la, amá-la e bem pensá-la em nosso coração:

23 de agosto de 2010

Pobreza e dinheiro no franciscanismo das origens

Publicamos aqui alguns trechos da conferência proferida pelo historiador italiano Roberto Lambertini no centro de espiritualidade franciscana Oasi Gesù Bambino di Greccio, naItália, por ocasião do encontro "Os franciscanos e o uso do dinheiro", organizado pelo Centro Cultural Aracoeli.

Lambertini é doutor em história pelaUniversidade de Bolonha e atual professor de história medieval naUniversità degli Studi di Macerata, naItália. O artigo foi publicado no jornalL'Osservatore Romano, 28-07-2010. A tradução é deMoisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Voltando o olhar aos testemunhos que se referem à relação entre pobreza e dinheiro nos primeiros anos de vida da
fraternitas francescana, salta aos olhos que a atenção à questão da relação entre a escolha do frade menor e o dinheiro é notável e significativa.

Relendo o texto crítico da regra mais antiga que chegou até nós, recentemente reproposto com grande cuidado por
Carlo Paolazzi, esse aspecto não pode não impressionar. Antes ainda de se chegar ao capítulo expressamente dedicado à possibilidade de receber dinheiro por parte dos freis, no capítulo II se proíbe que se aceite dinheiro diretamente ou por meio de intermediários por ocasião da entrada de qualquer um na "vida", enquanto se admite a possibilidade de receber qualquer outra coisa, em caso de necessidade, como acontece com os mais pobres.

No capítulo VII, se autoriza o recebimento de
omnia necessariacomo recompensa pelo trabalho prestado, mas não "pecúnia". O capítulo seguinte entra nos particulares, ordenando que não se leve consigo pecúnia ou dinheiro, que não sejam aceitos e que não se faça aceitar por nenhuma razão, senão pela necessidade manifesta dos freis doentes.

O preceito é justificado com a afirmação de que não se deve considerar que o dinheiro seja mais útil do que as pedras, enquanto a opinião contrária é resultado da sugestão do maligno. A insistência sobre esse ponto é significativa: a regra chega a afirmar que o dinheiro encontrado por acaso deve ser desprezado como o pó. O frei que contravenha a essa norma deve ser considerado falso, ladrão, bandido e é implicitamente comparado a Judas.

Mesmo pedindo esmola, os freis não devem aceitá-la sob a forma de dinheiro. Nem devem exigir ou fazer com que se peça dinheiro para as instituições assistenciais (hospitais, leprosários) junto aos quais prestam serviço. São, sim, autorizados a pedir esmola para os leprosos, mas sob a condição de que se "guardem muito do dinheiro".

Embora sejam mais sintéticas, as formulações da regra sucessiva, aprovada pelo
Papa Honório III em 1223, excluem não só o dinheiro como forma de compensação pelo trabalho prestado, mas proíbem até de modo absoluto o uso do dinheiro, deixando que os ministros e administradores se ocupem – por meio de amigos espirituais externos à ordem – dos co-irmãos doentes.

Nota-se que aqueles que têm funções diretivas na ordem são carregados com maiores responsabilidades com relação à questão do uso da moeda, mas é confirmada, de qualquer forma, a clara exclusão do dinheiro dos bens admitidos para o sustento de quem escolhe a pobreza dos menores.

Como
Giacomo Todeschini já bem evidenciou no seu livro"Ricchezza francescana", essa "recusa do dinheiro" é reconfirmada e até amplificada nas primeiras vidas de Francisco, reconhecido santo em 1228, a apenas dois anos da sua morte. Nas vidas de Francisco, as moedas são insistentemente colocadas ao lado não só do pó e das pedras, como na "Regula non bullata", mas também do esterco (particularmente o de burro), das moscas (pela sua inutilidade) e até das serpentes venenosas e do diabo, pelo caráter insidioso dos perigos que escondem.

Essa desconfiança franciscana com relação ao dinheiro tem tons e traços verdadeiramente peculiares, particularmente se for confrontada com o que encontramos nas fontes contemporâneas relativas a outra grande ordem mendicante, os freis dominicanos. Mesmo assumindo plenamente o conselho evangélico, segundo o qual os pregadores não devem levar dinheiro consigo durante as suas missões, os freis de Domingos não mostram uma semelhante sensibilidade negativa com relação ao dinheiro. O próprio
Domingos de Caleruega, descrito como modelo de austeridade e de pobreza, maneja o dinheiro, e as constituições da ordem, surgidas ainda nos anos 30, recomendam que priores e provinciais administrem o dinheiro de comum acordo com os co-irmãos.

Não sem uma ponta de polêmica, o grande erudito e historiador dominicano
Simon Tugwell observou que Domingos nunca sentiu "embaraço" com relação ao dinheiro, deixando entender que outros, especificamente Francisco e os seus seguidores, teriam sentido justamente uma "dificuldade de relação" com ele.

Com efeito, o impedimento normativo erigido por Francisco e pelos seus co-irmãos contra o uso do dinheiro foi muitas vezes relacionado com categorias psicológicas. Falou-se de "obsessão" e também de uma espécie de fetichismo – ao contrário, entende-se – com relação à fisicidade das moedas. O mercador "arrependido", "convertido", como Francisco – depois da escolha da pobreza radical – teria como que percebido que, do instrumento príncipe da atividade que havia abandonado, provinha uma espécie de fluido maléfico, ao ponto que até o contato físico com a moeda podia ser perigoso.

Intervindo recentemente em um encontro em
Assis, "A economia dos conventos dos Frades Menores e dos Pregadores até a metade do século XIII", Horst Enzensberger falou de uma resistência "anarcoide" ao dinheiro, que se caracteriza pela inadequação aos seus tempos e pela enorme ingenuidade. Os termos adotados pelo professor alemão são duros, mas não poucos se perguntam se Enzensberger não tem razão ao considerar a proibição do uso do dinheiro como uma espécie de fixação neurótica de Francisco, destinado, pela sua própria natureza, a ser desatendida na práxis concreta da ordem dos menores.

Na verdade, os estudiosos mais atentos souberam dar respostas mais convincentes e interessantes.
David Flood, destacando o aspecto social, sugeriu que os primeiros franciscanos viram no dinheiro o sinal e ao mesmo tempo o instrumento do poder aos quais os menores querem renunciar, para compartilhar o estado daqueles que são marginalizados da economia.

Em 2009, essa ideia foi retomada também por
Michael Cusato, por ocasião de um encontro de estudo dos franciscanos norte-americanos, de recentíssima publicação, com o título "Poverty and Prosperity": para Cusato, a recusa de manejar moedas é o gesto simbólico de renúncia aos privilégios sociais injustos que Francisco havia desfrutado antes da sua conversão.

David Flood destacou também que, excluindo o dinheiro dos bens que podem ser obtidos como esmola, os franciscanos queriam fugir do risco de converter aquilo que era oferecido para as suas necessidades em aquisição de bens não necessários. Por sua vez,
Giovanni Miccoli interpretou essa "drástica exclusão" do dinheiro como consciência do risco de acumulação por parte dos freis, um risco que se tornou particularmente forte a partir do momento da expansão da economia monetária.

Uma chave interpretativa posterior foi oferecida por
Giacomo Todeschini, que com felicidade intitulou um dos capítulos do seu livro de "La scoperta dell'altrove" [A descoberta do outro lugar], decifrando a proibição do dinheiro por parte dos franciscanos como uma medida fundamental para poder atingir uma esfera de valor dos "bens do mundo" diferente, outra em relação àquela da economia monetária, em resumo uma dimensão existencial em que o dinheiro não mede as coisas.

Essa escolha permite que os franciscanos não só declarem, mas façam a experiência do fato de que as riquezas deste mundo têm um outro valor, misterioso, "não redutível a um valor de troca facilmente monetizável". Portanto, para Todeschini, a prática da pobreza não é só um exercício ascético, mas também um modo alternativo de "ir além" dos bens deste mundo.

Desse ponto de vista, a renúncia ao dinheiro, em vez de ser um elemento "rigorístico" posterior que torna – perdoem o jogo de palavras – "mais pobre" a tradicional pobreza monástica, torna-se um modo para se chegar a "encostar com a mão" aquela dimensão da vida humana para a qual os bens (hoje diríamos os recursos) têm um valor que não é redutível ao seu valor de troca.

O valor de troca, aquele pelo qual tudo é equiparável por meio do dinheiro, não tem a última palavra: o pão com o qual se saciam os pobres não pode ser posto na mesma escala dos arreios de luxo de um cavalo, ou – para fazer um paralelo atual – uma garrafa d'água não pode ser considerada só a centésima milésima parte de uma caminhonete de qualidade média.

Enfim, a radical renúncia franciscana ao dinheiro não é uma fuga romântica da realidade, mas sim o modo para alcançar uma realidade mais profunda, mais verdadeira, a única dentre outras que permite que se julgue de modo competente o modo de usar os bens deste mundo. Justamente por essa razão, Giacomo Todeschini escreveu mais de uma vez que os franciscanos que, com a sua escolha de pobreza revelam "um outro lugar" com relação à economia monetária, tornam-se conselheiros confiáveis para quem, como os leigos cristãos, continuam vivendo, ao contrário, no mercado.

Escolher a pobreza como liberdade do dinheiro, além de um gesto penitencial, torna-se um modo para adquirir um ponto de vista mais claro com relação àquilo que verdadeiramente tem valor entre os bens dos homens.

Roberto Lambertini

22 de agosto de 2010

São Francisco de Assis, o 'Poverello' ainda nos fala

"O jovem Francisco é verdadeiramente um de nós, bem semelhante a nós na superficialidade da vida e dos sonhos. Todavia, e precisamente por ter vivido esta estação da utopia, impregnada pelas fugas para frente dos desejos e das pretensões, é que torna Francisco tão amplamente humano."

A opinião é do teólogo italiano Bruno Forte, arcebispo de Chieti-Vasto, na Itália. O artigo foi publicado no jornal Il Sole-24 Ore, 15-08-2010. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o texto.
“Mesmo numa observação superficial aparece com evidência como, por diversos séculos em toda a Itália, nenhum homem tenha gozado de um amor e de um obséquio tão desmesurados como o modesto e humilde Francisco... A divina mensagem, tenra e bem-aventurada, que chegara à Terra sob a forma dele, não se extinguiu com sua morte. Ele havia espalhado a mãos cheias uma boa semente e aquela semente germinou, cresceu e floresceu”. Estas palavras de Hermann Hesse, o autor de Sidarta, de Narciso e Boca de Ouro e tantos outros textos célebres, além de uma deliciosa vida de Francisco de Assis escrita na juventude (1904), suscitam a pergunta sobre por que Francisco tenha deixado uma tão profunda marca no coração dos italianos e de tantas mulheres e homens de todas as latitudes e culturas.

A resposta de Hesse – de tom antes sentimental e romântico – contém um núcleo precioso de verdade: “Somente poucos (como Francisco), em virtude da profundidade e do ardor de seu íntimo, tem doado aos povos, como mensageiros e semeadores divinos, palavras e sentimentos de eternidade e daquele antiqüíssimo anelo humano... de modo que eles, quais astros bem-aventurados pairam ainda acima de nós no puro firmamento, dourados e sorridentes, benévolos guias ao peregrinar dos homens nas trevas”. Para Hermann Hesse Francisco encarna uma mensagem capaz de dar razões de vida e de esperança ao coração de todos. Também aos da Itália de hoje, sacudida por uma crise que, antes que econômica e política, é espiritual e moral.

Na tentativa de captar esta mensagem, motivando assim também minha escolha de São Francisco como “personagem que poderia resolver a crise do nosso país”, veio em minha ajuda um testemunho singular. Sobre a auto-estrada que liga Roma a Chieti, - entre os mais belos da Itália em termos de paisagens e cores, - mais ou menos na metade da planura do Fùcino, sobre uma colina que outrora se espelhava no lago, dominado pelo imponente castelo medieval, surge Celano, pátria do bem-aventurado Tomás, seguidor e primeiro biógrafo de São Francisco de Assis, que presumivelmente passou por Celano em torno de 1220. Na primeira Vida de São Francisco de Assis, escrita por solicitação de Gregório IX como “Legenda” oficial para a canonização do Santo e apresentada ao Papa aos 25 de fevereiro de 1229, Tomás narra com encantadora pujança a história de Francisco desde seus inícios. Impressiona, acima de tudo, a apresentação do período antecedente à conversão: “Vivia em Assis, no vale spoletano, um homem de nome Francisco. Dos pais recebeu desde a infância uma educação inadequada, inspirada nas vaidades do mundo. Imitando os seus exemplos, ele mesmo se tornou ainda mais leviano e vaidoso”.

O jovem Francisco é verdadeiramente um de nós, bem semelhante a nós na superficialidade da vida e dos sonhos. Todavia, e precisamente por ter vivido esta estação da utopia, impregnada pelas fugas para frente dos desejos e das pretensões, é que torna Francisco tão amplamente humano. É quanto exprime a fulgurante resposta de Mark Twain à pergunta sobre aonde teria querido ir após a morte: “Ao paraíso pelo clima, ao inferno pela companhia...”: como a dizer que os pecadores suscitam uma imediata simpatia porque os sentimos familiares a nós, embora não possa deixar de nos atrair a beleza do céu... Francisco fala-nos principalmente porque parte daquilo que nos acomete a todos: a nossa fragilidade, a lista mais ou menos longa dos nossos defeitos, dos quais alguns – certas ambições, vaidades, a busca da imagem ao preço da verdade, a dependência dos índices de aprazimento, superficialidade em manter a fé aos empenhos – nos parecem tão dramaticamente atuais!

Ocorreu, no entanto, na vida do jovem de Assis algo novo e imprevisto: Tomás de Celano no-lo narra com traços tenríssimos de uma leitura guiada pelos olhos da fé: “Mas a mão do Senhor pousou sobre ele e a destra do Altíssimo o transformou para que, por seu meio, os pecadores reencontrassem a esperança de reviver para a graça, e se tornasse para todos um exemplo de conversão a Deus”. Além destas poucas linhas, que já abrem uma fissura sobre o indeterminado futuro, os fatos tiveram uma cerrada consequencialidade: “Golpeado por longa enfermidade ele começou a modificar o seu mundo interior... ainda não de modo perfeito e real, porque ainda não estava livre dos laços da vaidade... Francisco ainda procurava subtrair-se da mão divina, acariciava pensamentos terrenos, ainda sonhava com grandes empreendimentos para a glória vã do mundo”.

A ocasião da mudança foi daquelas que solicitam principalmente as ambições e precisamente assim expõem às desilusões mais ardentes: “Um cavaleiro de Assis estava então organizando preparativos militares contra as Púlias... Sabendo disso, Francisco tratou de alistar-se... Mas, na manhã em que devia partir, intuiu que sua escolha era errônea com respeito ao projeto que Deus tinha para ele”. Francisco renuncia à expedição e escolhe conformar sua vontade à vontade divina: “Afasta-se um pouco do tumulto do mundo, e procura guardar Jesus Cristo na intimidade do coração... Apronta um cavalo, monta na sela e, levando consigo os tecidos de escarlate, parte veloz para Foligno. Vende ali toda a mercadoria e com um golpe de sorte também o cavalo!”.

É o “não” ao passado. Todavia, ainda não lhe é claro a quê deverá dizer o seu “sim”. “No caminho do retorno, livre de todo peso, vai pensando na obra à qual poderia destinar aquele dinheiro... Aproximando-se de Assis, cruza com uma igreja muito antiga, fabricada á beira da estrada e dedicada a São Damião, e que está em ruínas... Vendo-a naquela miseranda condição, sente apertar-lhe o coração. Encontrando ali um pobre sacerdote, com grande fé lhe beija as mãos consagradas e lhe oferece o dinheiro, permanecendo ali a viver com ele”.

O que ocorreu no interior do coração não pode deixar de manifestar-se no exterior: prepara-se o desafio mais duro, a incompreensão e o juízo dos seus. “Seu pai toma conhecimento que ele morava naquele lugar e vivia daquela maneira. Profundamente amargurado, reuniu vizinhos e amigos e correu a prendê-lo; aprisionou-o numa fossa que ficava sob a casa e onde ele permaneceu por um mês inteiro... Francisco, com quentes lágrimas implorava a Deus que o libertasse... Negócios urgentes obrigaram o pai a ausentar-se por um tempo da casa... Então a mãe, permanecendo sozinha com ele e desaprovando o método do marido, falou com ternura ao filho; mas, deu-se conta que ninguém poderia dissuadi-lo de sua escolha. E o amor materno foi mais forte do que ela própria: soltou as amarras deixando-o em liberdade”.

Emerge aqui uma constante na vida de Francisco: o papel da mulher em sua existência. Primeiro a Mãe, tão terna quanto capaz de entender. Depois, Clara, irmã no amor por Cristo e discípula fidelíssima. E sempre a Mãe de Deus, custode do seu coração. “Entrementes o pai retorna à casa e, visto toda vã tentativa para demovê-lo do novo caminho, direciona seu interesse no sentido de fazer-se restituir o dinheiro... Então, impôs ao filho segui-lo até o bispo da cidade, a fim de que fizesse ante o prelado a renúncia e a restituição completa de quanto possuía. Francisco não hesita por nenhum motivo: sem dizer ou esperar palavras, tira suas vestes e as lança entre os braços de seu pai, permanecendo nu diante de todos”. Revela-se aqui o traço que torna Francisco irmão universal: a renúncia a toda posse e a todo poder, com seu ser nu e indefeso. Não se trata apenas de uma escolha de sobriedade, embora tão importante e necessária, então como hoje: é uma lógica que parece subversiva com respeito aos arrivismos e às avidezes deste mundo. “Não é a “audiência” que conta, nem o sucesso ou o dinheiro, mas a nua verdade daquilo que somos diante de Deus e para os outros! E é precisamente esta liberdade do essencial que o aproxima a todos e o torna inquietante para todos!

No período em que permanece em São Damião, Francisco reza intensamente. O Crucifixo que está naquela igreja lhe fala: “Vai e arruma a minha casa”. Num primeiro momento, Francisco pensa dever reparar a igrejinha na qual se encontra. Entende, depois, que Jesus se referia à Igreja toda inteira, a qual atravessava um período marcado por mundanismo e provas. Reconduzir a Igreja aos ensinamentos do Evangelho, libertá-la da sedução das riquezas e do poder, reaproximá-la dos pobres: esta é a missão da qual se sente investido.

Começa sua nova vida: “Coloca-se entre os leprosos e vive com eles para servi-los em toda necessidade por amor de Deus. Lava-lhes os corpos e cura suas chagas... A vista dos leprosos lhe fora antes tão insuportável, que mal enxergava de longe os seus redutos, tapava o nariz. Mas, eis quanto ocorreu: na época em que já havia começado, por graça e virtude do Altíssimo, a ter pensamentos santos e salutares: enquanto ainda vivia no mundo, um dia chegou diante dele um leproso e ele fez violência a si mesmo, aproximou-se dele e o beijou”. Seu modo de viver a serviço de Deus começou a fascinar os jovens de Assis, a ponto de vários deles o seguirem para servir o Senhor.

Em suas relações com os outros, Francisco segue uma regra precisa: “Quem não ama um só homem sobre a terra a ponto de perdoar-lhe tudo, não ama Deus”. Precisamente assim começa a incomodar: “Os poderosos de Assis viram sua cidadezinha esvaziada por via de Francisco e, num momento em que ele e seus coirmãos estavam em giro pela coleta de esmolas, alguns homens de Assis saquearam a igreja de São Damião matando um pobrezinho que se abrigava naquele lugar. Ao retornar, Francisco foi sacudido por profunda dor, a ponto de pensar que devia ir ao Papa em pessoa para perguntar se o caminho que havia iniciado para seguir o Cristo seria errado. Do encontro com o Papa, não foi Francisco que saiu com conselhos e admoestações, mas foram todos, o Papa Inocêncio III incluído, que se sentiram humilhados pela pobreza e obediência desse homem. A partir desse momento toda a Igreja foi renovada: existia finalmente alguém que reconduziria os pobres a Cristo”.

Francisco entra na escola de Jesus Crucificado e aprende humildade. Também nisto a provocação que ele lança ao nosso presente é escaldante: “Um frade pergunta a Francisco: ‘Padre, o que pensas de ti mesmo? ’ e ele responde: ‘Parece-me que sou o maior pecador, porque se Deus tivesse usado de tanta misericórdia com qualquer celerado, ele seria dez vezes melhor do que eu’. O despojamento de si há de caracterizar sempre mais o seu caminho: na Vida segunda de São Francisco, que Tomás de Celano estende entre 1246/1247, para corresponder à injunção do Capítulo geral de Gênova “de descrever os fatos e até as palavras de Francisco, este aspecto emerge de modo impressionante. “O ardor do desejo o arrebatava em Deus e um terno sentimento de compaixão o transformava Naquele que quis ser crucificado. Certa manhã, enquanto rezava no flanco da montanha, vê a figura como de um serafim, com seis asas tão luminosas quanto incandescentes, descer da sublimidade dos céus: o mesmo, com rapidíssimo vôo chegou junto ao homem de Deus e então apareceu a efígie de um homem crucificado, que tinha mãos e pés estendidos e pregados sobre a cruz... Vê-lo pregado na cruz lhe traspassava a alma. O amigo de Cristo estava para ser transformado inteiramente no retrato visível de Cristo Jesus crucificado... Assim o verdadeiro amor de Cristo havia transformado o amante na própria imagem do Amado”.

Os olhos de Francisco se fecharam rapidamente à luz do mundo: mas a luz da Sua fé e do Seu amor humilde continuará a resplandecer. Sua fuga não foi uma fuga do mundo. Se não tivesse amado profundamente esta terra, não teria composto o Cântico das criaturas. Sua espiritualidade é também uma espiritualidade de respeito e de amor do criado. Tudo em Francisco foi motivado por ter compreendido qual é a pérola preciosa a ser procurada a todo custo: sobriedade, pobreza, terníssima caridade, humildade, respeito por toda e qualquer criatura e por todo o criado são expressões deste amor. E não é disso que necessita a Itália de hoje, como a do seu tempo, e o mundo inteiro com ela? “Quando, enfim, se cumpriram nele todos os mistérios, aquela alma santíssima, desvinculada do corpo, foi submersa no abismo da claridade divina e o homem bem-aventurado adormeceu no Senhor. Um dos seus confrades e discípulos viu aquela alma bem-aventurada, na forma de uma estrela fulgentíssima, elevar-se sobre uma cândida nuvenzinha acima de muitas águas e penetrar diretamente no céu: nitidíssima pelo candor de sua excelsa santidade e cumulada de sabedoria celestial e de graça, pelas quais o santo mereceu entrar no lugar da luz e da paz, onde com Cristo repousa sem fim”. E ele fala a quem quiser escutá-lo...

A vida

João Francisco Bernardone nasceu em 1182, filho de um mercador de tecidos e de uma nobre senhora provençal. Instruído em latim, francês e na língua provençal, é um jovem estouvado e mundano. Participa da guerra entre Assis e Perúgia; é prisioneiro por um ano e sofre de uma grave enfermidade que o conduz a mudar de vida. Tendo retornado a Assis em 1205, se dedica a obras de caridade entre os leprosos e se empenha na restauração de prédios de culto, após uma visão de São Damião de Assis que lhe ordena recuperar a igreja a ele dedicada. O pai de Francisco, irritado pelas modificações na vida do filho, o deserda. Francisco se despoja de suas ricas vestimentas diante do bispo de Assis, árbitro da controvérsia. Dedica os três anos subseqüentes ao cuidado dos pobres nos bosques do monte Subásio. Na capela de Santa Maria dos Anjos, em 1208, certo dia, durante a Missa, recebe o convite a sair pelo mundo e a privar-se de tudo para fazer o bem. Francisco inicia assim sua pregação, agrupando em torno de si doze seguidores que se tornam os primeiros confrades de sua Ordem: sua primeira sede é a igrejinha da Porciúncula.

Os franciscanos

Em 1210 a Ordem é reconhecida pelo papa Inocêncio III. Em 1212 Clara de Assis toma o hábito monástico, instituindo a segunda Ordem franciscana, dita das Clarissas. Em 1212, Francisco parte para a Terra Santa, mas um naufrágio o constringe a retornar, e outros problemas o impedem de difundir sua obra missionária na Espanha. Em 1219 se dirige ao Egito, onde prega diante do Sultão, sem conseguir convertê-lo. Depois se dirige à Terra Santa, ali permanecendo até 1220. Em seu retorno encontra dissenso entre os frades e se demite do cargo de superior, dedicando-se ao que teria sido a terceira ordem dos franciscanos, os terciários [ou Ordem terceira]. Retira-se no monte da Verna em setembro de 1224: após 40 dias de jejum e sofrimento, recebe os estigmas, os sinais da crucificação, sobre as quais as fontes, no entanto, não concordam. Francisco é levado a Assis, onde permanece durante anos, marcado pelo sofrimento físico e por uma cegueira quase total. Em 1226, encontra-se em Bogogno, perto de Nocera na Úmbria, mas pede poder voltar para morrer no seu “lugar santo” preferido: a Porciúncula. Aí morre aos 3 de outubro. Seu corpo, depois de ter atravessado Assis e ter sido levado a São Damião, é sepultado na igreja de São Jorge. Daqui o corpo é transferido em 1230 à atual basílica. Francisco, padroeiro da Itália, é canonizado, em 1228, pelo papa Gregório IX.

As obras

As obras de São Francisco podem ser subdivididas em: Regras e exortações; Cartas, Louvores e preces. Quase todos estes escritos tem sido datados (não sendo por isso autógrafos), mas a atribuição não é posta em dúvida pelos estudiosos. Em Assis compõe em 1225 o Cântico das criaturas: o Sol e a natureza são louvados como irmãos e irmãs; o texto contém o episódio no qual o santo prega aos pássaros.

Em filmes

São Francisco inspirou numerosos registros: são filmes famosos como Francisco, menestrel de Deus, de Roberto Rossellini (1950); a encenação televisiva Francisco de Assis, de Liliana Cavani (1966); o filme Irmão sol, irmã lua, de Franco Zeffirelli (1972), com trilha sonora composta por Riz Ortolani, interpretada por Claudio Baglioni e por Donovan na versão inglesa); o mais recente: Francesco de Michele Soavi (2002) e a minissérie de TV (duas versões) Chiara e Francesco, direção de Fabrizio Costa (2007). Grande sucesso, em 1981, também teve o musical Forza, venite gente [Força, vinde gente], de Michele Paulicelli.

Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=35463 acesso em 19 ago. 2010.

20 de agosto de 2010

CLARA DE ASSIS E SUAS IRMÃS Uma vida para Deus e para os homens, a serviço da Igreja


Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Mês após mês, temos tentado seguir uma biografia de Clara acompanhando o texto de Chiara Giovanna Cremaschi, sob o título de Chiara di Assisi, Un silenzio che grida. Neste mês vamos interromper esse labor e fazer uma tradução-adaptação de um escrito de Engelbert Grau, OFM, onde ele traça um belíssimo perfil dessa mulher que honra o movimento evangélico franciscano. Estamos em agosto, mês em ocorre a festa de Clara. O franciscano alemão escreveu suas linhas em 1976 para o boletim semanal do bispado de Münster, Alemanha. Temos em mãos uma tradução para o espanhol que apareceu em Selecciones de Franciscanismo, n. 18, 1977, p. 240-247. Em setembro continuaremos a biografia escrita por Cremaschi.

1. Costuma-se citar de um mesmo fôlego os nomes de Francisco e Clara por serem uma dupla configuração de uma única e idêntica presença nova e dinâmica que a Providência quis suscitar: a vida segundo o Evangelho, segundo a alegre mensagem de Cristo, nosso Senhor e irmão, e de Deus, a quem chamamos de Abba Pai. Evangelho que Francisco não somente ouviu, não somente conheceu, mas que viveu e reviveu de forma a mais cabal, tanto interior quanto exteriormente. Este tal Evangelho encontra em Clara, por assim dizer, sua configuração e irradiação femininas. Destarte, a figura de Clara se torna exemplar para os cristãos de nossos dias, de modo especial para as mulheres que decidiram seguir Francisco tanto na Segunda quanto na Terceira Ordem.

2. Clara nasceu numa casa de nobres de Assis. Desde a infância se mostrou uma pessoa interiorizada. Quando tinha dezoito anos, seus familiares quiseram que ela se casasse. Neste momento já tinha ela se encontrado algumas vezes com Francisco, doze anos mais velho do que ela. Havia ouvido sua pregação e lhe aberto o coração. São largamente conhecidos os episódios de sua vida entre a saída da casa paterna e sua instalação em São Damião. Não precisamos aqui evocá-los. Anteriormente, já os analisamos per longum et latum em textos anteriores.

3. Separada da cidade, no pequeno conventinho de São Damião, Clara esteve ai fechada toda a sua vida numa áspera pobreza, naqueles espaços onde rezava, trabalhava e descansava. Fechada dentro daquelas paredes, ao mesmo tempo era uma claridade que iluminava lugares obscuros. No interior do conventinho, Clara estava longe de ser uma alienada, uma pessoa atrofiada, ou marginalizada. Tem um senso delicado e aguçado da beleza. A alva que confeccionara para Francisco é uma das peças mais preciosas do bordado medieval. Naquele espaço exíguo onde vive, onde livremente escolheu se “desterrar”, Clara é de uma liberalidade assombrosa e de uma surpreendente amplitude de visão. Para si reserva a austeridade, para as irmãs a liberalidade. Clara tem a pureza da compaixão verdadeira, é discreta ao corrigir, moderada nas determinações e ordens, prefere respeitar a ser respeitada. Ao lado disso, risonha e alegre, é mulher de penitência excepcional. Será preciso que Francisco ordene que ela aceite cuidados especiais no tempo da doença. Não prejudique a saúde.

4. Nas poucas cartas que foram conservadas, Clara manifesta uma profundidade madura e nada comum. Poderíamos designá-la de elevação de espírito claramente aristocrática. Sai vencedora pela amabilidade de sua nobreza interior e assombra pela firmeza com que persegue seus objetivos. “Uma vez, o Papa Gregório proibiu qualquer frade de ir sem sua licença aos mosteiros das senhoras. A piedosa madre, doendo-se porque ia ser mais raro para as Irmãs o manjar da doutrina sagrada, gemeu:”Tire-nos também os outros frades, já que nos privou dos que davam alimento de vida”. E devolveu ao ministro na mesma hora todos os irmãos, pois não queria esmoleres para buscar o pão do corpo, se já não tinha esmoleres para o pão do espírito. Quando soube disso, o Papa Gregório deixou imediatamente a proibição nas mãos do ministro geral” (Legenda 37). Clara resistiu ao Papa quando este queria persuadi-la a garantir sua subsistência e das irmãs com pequena posse: “Se temes pelo voto, disse o Papa, nós te dispensamos do mesmo”. Ao que Clara respondeu: “Santíssimo Padre, de maneira alguma quero ser dispensada do seguimento de Cristo” (Legenda, 14).

5. De maneira semelhante a esta autenticidade inquebrantável como pessoa, se mostrou também Clara em seu comportamento como mulher. Deixa de ser esposa e mãe. Não o faz por falta de espírito de sacrifício nem porque seu coração ignorasse o que fosse o amor, mas pela fé, por uma iluminação íntima, pelo fogo do coração de seu Senhor. Sabe ela que esse amor é sem limites. Em sua feminilidade, elevou-se às alturas da exemplaridade. Seu primeiro biógrafo, no Prólogo, afirma: “Que as mulheres imitem Clara, vestígio da mãe de Deus e nova guia das mulheres!”

6. Clara é toda mulher em sua sensibilidade para com os homens, para com tudo aquilo que a comove interna ou externamente, enchendo-a de tristeza ou de alegria. Acolhe a todos e cada um com profunda reverência e tudo em suas mãos se resolve miraculosamente. Com esta reverência acolhe todos os homens, sua individualidade particular, sua consciência, suas fragilidades e sua graça. Deixou que lhe chamassem de abadessa, segundo as prescrições eclesiásticas. Ela mesma se designa de “humilde e indigna serva e servidora”. Assim se designa e assim é. O que sabe e quer: amar servindo e mandar amando. Sua feminilidade se consuma num amor verdadeiramente materno e criador. Refugia-se na solidão, retira-se do mundo e é como se esse mundo se sentisse atraído na sua direção. Como a borboleta errante aspira pela luz, assim as pessoas se sentem atraídas por ela. Procuram-na carregadas de dificuldades e cheias de preocupações. Muitos são curados de enfermidades simplesmente quando Clara traça em suas frontes o sinal da cruz. As pessoas procuram sua sabedoria, suas orientações e instruções. Parece verdadeiramente emblemático que quando a cidade é atacada por bárbaros estes venham a ser derrotados, não pelas armas ou muralhas, mas pela fé, pela grandeza de uma mulher indefesa, uma Clara que reza na solidão. Clara é uma torre de paz, como uma rocha, contra a qual as ondas quebram. (Legenda 21-23).

7. Foi no silêncio da solidão que Francisco colheu toda a força para transformar o ambiente em que vivia, sobretudo um mundo que não tinha mais a harmonia com Deus. Sempre que estava a caminho para pregar a penitência, para proclamar o Reino de Deus e sua paz tinha sempre saudade da vocação à solidão. Certa vez, envolto por esta saudade do recolhimento, pediu que Clara “conversasse” com Deus para saber se seu caminho era o da contemplação retirada do trabalho no mundo. Clara fez saber a Francisco que esta não era a vontade de Deus. Francisco deveria anunciar o espírito e a riqueza vital do silêncio; ela com suas irmãs guardariam o silêncio.

8. Clara sabia muito bem, quando ingressou no silêncio tão sombrio e nada romântico de São Damião, que não se tratava de ganhar algo, mas tudo. Penetrou naquele silêncio porque buscava a proximidade com Deus. Deus não está no estrépito, nem no ruído (cf 1Reis 19,11ss). Ele ama o silêncio, a calma através dos quais se pode penetrar num mundo todo diferente. É o mesmo que acontece com os vitrais e suas cores. Vistos de fora parecem sem vida e escuros. Visto do interior, se iluminam e revelam um colorido e riqueza insuspeitados. De maneira semelhante, nesses muros e nessas paredes desnudas e insensíveis de São Damião se descobre todo um “mundo”. O mundo que está fora é também criação de Deus, é verdade: a beleza da paisagem umbra com suas linhas suaves que flutuam e suas cores discretas. Clara, como Francisco, guarda um olhar lúcido e embelezador diante de tal cenário. Mas, dentro, no interior de São Damião, está o mundo de Deus que não se pode comparar com tudo o que oferece a criação. Ali dentro há outro mundo, o mundo imediato de Deus. Dentro há imutabilidade e imortalidade, há verdade, espírito e vida. Clara foi muito exigente, como só pode ser um grande coração quando se entregou incondicionalmente a esse mundo interior e silencioso. No interior de São Damião ocorre algo curioso que não se costuma levar suficientemente em conta e que talvez não se queira compreender: Sobre este mosteiro das irmãs de São Damião, fechado, aparentemente alheio com relação ao mundo e à vida, parece que está aberto o céu; sobre esta parcela da terra, o céu de Deus, sua graça, sua fidelidade, sua longanimidade e sua misericórdia. No silêncio desta casa sopra aquela brisa ligeira (cf. Reis 19,12) que anuncia a proximidade de Deus. Na tranqüilidade de São Damião, Clara cria um espaço de eternidade com suas irmãs no meio do mundo e para o mundo, um lugar de paz de Deus e de sua salvação. Num tecido enfermiço que desliza para a corrupção, Clara preserva uma célula que é sadia e atua sanando.

9. Se falamos de uma enfermidade que afeta o mundo, referimo-nos à agitação, estrépito, desassossego sem motivo, procedimentos ruidosos. Diante deste mundo está Clara, calada, mas exortando e orientando. Clara está a dizer que existe um outro mundo, mundo da tranqüilidade silenciosa, de uma quietude cheia de Deus e com Deus, essa possibilidade de calar e de escutar. Quando o homem está envolto em seu ruído, não se dá conta que Deus faz mais ruído para se fazer ouvir. Experimentará que Deus escondido se esconderá mais ainda, que seu silêncio é como distância que não pode ser vencida, que seu próprio desassossego se coloca diante de um enigma em que Deus e mais e mais se distancia. Quem não é capaz de se calar, vive um aturdimento e está impedido de rezar, porque o núcleo do silêncio é precisamente o que se torna oração possível em nós. Clara esconde toda sua vida no envolvimento do silêncio porque o que contava para ela era encontrar na oração aquela manifestação primordial da vida, o impulso originário do amor que leva a Deus. A razão disto é que Clara aspira à intimidade e à união com seu Senhor. Por isso, a oração é coração de seu silêncio.

10. Clara vive mais de quarenta anos no retiro silencioso. Durante um bom momento, depois das Completas, continua orando com suas irmãs. Enquanto estas se retiram para descansas, ela permanece em oração (Legenda 19). Freqüentemente, Clara se levantava antes das irmãs para acender as lamparinas.

11. O trabalho também faz parte da jornada das irmãs. A esse respeito Clara exorta expressamente na Regra: “As irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar com fidelidade e devoção, depois da hora de Terça, em um trabalho que seja conveniente à honestidade e ao bem comum, de modo que afastando o ócio, inimigo da alma, não extingam o espírito da santa oração e devoção, ao qual outras coisas temporais devem servir (Cap.VII). Por isso, Clara quando estava enferma, se fazia recostar em almofadas, para poder costurar. O trabalho também será como que envolvido pela oração. Não se pode perder o espírito da santa oração e da devoção. Depois que as irmãs iam descansar, Clara ainda permanecia em oração. Celano, citando Jó, afirma que Clara, permanecendo em oração, queria perceber furtivamente o sussurro divino (Legenda 19).

12. Uma das características mais significativas de Clara e de suas irmãs é a pobreza estrita: precisamente neste ponto Clara compreendeu perfeitamente a Francisco. Diante dos olhos de Clara está o Evangelho. E o Evangelho proclama, uma página atrás da outra, a graça e a verdade de Jesus Cristo que repousa no seio do Pai, que se fez homem e viveu entre nós. Por meio do Evangelho, Clara se encontra com o Filho de Deus vivo e ele encontra a ela não na grandeza que oprime nem no esplendor que nos torna insensíveis, mas na pobreza e na humildade.

13. Clara, como Francisco, aprendeu do Senhor esta pobreza e humildade. A maneira rigorosa como Clara pratica a pobreza não é renúncia pela renúncia: sua pobreza e sua renúncia a toda propriedade são a proclamação e a expressão de uma dependência absoluta de Deus, de uma entrega total e incondicional a ele. Sua pobreza não é outra coisa senão confiança radical em Deus, em sua fidelidade e em seu amor. A pobreza, tal como Clara concebe e como a vive com suas irmãs, é renúncia incondicional a toda garantia natural e humana, uma renuncia mediante a qual, crendo e amando, desafia a onipotência misericordiosa de Deus. Sua “altíssima pobreza” como ela a designa da mesma forma de Francisco é a esperança perfeitamente entendida e vivida, é confissão cabal e sem reservas de que o ser humano é criatura e como conseqüência desta confissão, é entrega sem limites ao Criador e Senhor. Uma vida em tal tipo de pobreza se converte na concreta e maravilhosa realização das palavras do Senhor: “Buscai primeiro o Reino de Deus e sua justiça e tudo o mais vos será dado em acréscimo” ( Mt 6, 33).

14. Brotando do ser pobre genuíno de todo homem interior, cresce em Clara aquela atitude de humildade que provém do fato de considerar que o homem é criatura, e como tal, pobre. Somente assim pode a criatura permanecer ante o seu Senhor. Este ser pobre foi a forma e a lei do ser cristão de Clara, servir com toda reverência e tomar a sério o outro homem, porque Deus o leva a sério. Amar com a entrega total de si mesma e ser totalamente sincera neste amor. Ser tão firme neste amor que nada possa causar dor.

15. Por mais dura, pesada e isenta de todo romantismo que tenha sido esta vida de Santa Clara e de suas irmãs, nada tinha de sombria. Não se esvai em tristeza e descontentamento. Pelo contrário, fazia nascer alegria do homem redimido que pode ser “colaborador” de Deus na obra da redenção (Carta III,2). Também aqui Clara compreendeu cabalmente o pai espiritual, São Francisco, penetrando cada vez mais no segredo da perfeita alegria. Tal alegria alcançou sua expressão mais cabal da morte da santa. Durante dezessete dias, Clara não pode tomar alimento algum. Encontrava-se, no entanto, tão forte que podia confortar em seu serviço a todos os que chegavam até ela e despedi-los consolados. Nas últimas horas de sua vida, absorta em Deus, se podia ouvir: “Vá segura que você tem uma boa escolta para o caminho. Vá, porque aquele que a criou também a santificou; e guardando sempre como uma mãe guarda o filho, amou-a com terno amor. E bendito sejais vós, Senhor, que me criaste” (Legenda , 46).

16. Estas são as palavras de Clara moribunda. Diz isso depois de ter levado uma vida distante de toda acomodação ao espírito do mundo. Diz isso depois de ter renunciado a tudo que pudesse massagear seu egoísmo, e a todo humana pretensão, depois de uma vida de sofrimento e enfermidades. Ali, em São Damião, onde Clara viveu, podemos ainda vê-la e compreendê-la hoje. A casa, acanhada e desnuda, o coro onde as irmãs rezavam e sem ornamentação , a sala onde comiam, com mesas rústicas e piso gasto, a outra sala onde dormiam debaixo do madeirame do texto E como se isto não bastasse Clara usa uma saia de penitência confeccionada por ela mesma. Seu alimento era pão e água. Dormia sobre o chão duro e algumas vezes sobre galhos secos. Como apoio para a cabeça tinha uma pedaço de madeira. E esta Clara, na presença da morte, tendo um semblante sorridente, se encontra com estas palavras nos lábios: “Bendito sejas, Senhor, por haveres criado!”

17. Gostaria de terminar estas reflexões com palavras de André Vauchez, um grande medievalista e profundo conhecedor do movimento franciscano. “Clara não reivindicou para si e suas irmãs o direito de pregar ou ensinar, mas desejava ardentemente continuar vivendo em simbiose com os irmãos menores e rejeitava com veemência ver sua comunidade transformada num mosteiro de virgens fechadas e dotadas de rendas. Mesmo tendo aceito o estilo de vida semelhante à reclusas, conservavam contato com o mundo que as rodeava. Foi intransigente na questão da pobreza, porque o fato de viver numa precariedade permanente constituía o ponto sobre o qual sua fundação podia, diferenciando-se do monaquismo beneditino, permanecer fiel ao espírito do Pobrezinho e, através dele, às aspirações evangélicas que haviam animado os movimentos laicos dos séculos XII e começos do século XII”.

19 de agosto de 2010

19/08 - São Luís de Tolosa, Bispo

São Luís de Tolosa, Bispo

Filho de Carlos II, rei de Nápoles, e de Maria, filha do rei da Hungria, nasceu em 1274. Na juventude, quando, refém do rei de Aragão, vivia na Catalunha, muito se familiarizou com os Frades Menores. Tendo recuperado a liberdade, despediu-se do mundo e do trono real. Ao mesmo tempo que era feito bispo de Tolosa, recebeu o hábito franciscano. Distinguiu-se pela pobreza, humildade e amor pelos pobres. Morreu em 1297.

ORAÇÃO - Ó Deus, que ensinastes ao bispo São Luís de Tolosa a preferir o Reino celeste a um reino da terra, e o revestistes com pureza admirável e intensa caridade para com os pobres, fazei que, imitando suas virtudes na terra, mereçamos ser coroados com ele no céu. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.

13 de agosto de 2010

No sinal da pobreza: Francisco e a sua regra

Era provavelmente a primavera de 1209 quando um estranho grupo que se autodefinia "penitentes de Assis" se apresentou em Roma ao papa Inocêncio III, então no ápice da sua potência. Vestiam as pobres túnicas dos trabalhadores manuais e vestiam calças curtas, como se usava nas viagens. Liderava-os o filho de um mercador, Francisco, que alguns anos antes havia renunciado aos seus bens e abandonado as ambições cavaleirescas alimentadas até então. Queriam pedir ao papa a aprovação de um breve texto que reunia o seu propósito de viver "segundo o modelo do santo Evangelho".

A reportagem é de Giovanni Miccoli, publicada no jornal La Repubblica, 07-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Era o ponto de partida de um percurso nada breve, que Francisco havia iniciado sozinho. As etapas essenciais para ele foram evocadas no seu Testamento, uma raridade para aqueles séculos, ditado antes de morrer para deixar aos "irmãos", com as suas últimas vontades, a recordação das características da sua escolha evangélica. Francisco não explica: descreve um caminho colocado totalmente sob o sinal da graça: o Senhor me deu, o Senhor me mostrou. O início continha uma mudança radical. Não por acaso, para dar uma ideia plena disso, ele escolheu o seu encontro de misericórdia com os leprosos: com aquilo de mais horrendo que existia aos olhos dos homens daquele tempo. Para ele naturalmente também foi assim, ao ponto de fugir da sua vista. Mas depois daquele encontro, o que antes lhe parecia "amargo" mudou, como disse, "em doçura de alma e corpo".

São palavras que sugerem o radical revolução nos critérios comuns de juízo e de comportamento, que permanecerá para ele a conotação saliente do modelo evangélico a ser proposto aos homens. Era Cristo mesmo que, com a sua encarnação, havia oferecido os traços desse modelo: "Ele, que sendo rico sobre todas as coisas, quis escolher como sua mãe a pobreza", como Francisco escreve em uma carta aos fiéis.

O propósito de seguir "os passos de Cristo", de propor o modelo oferecido por ele, incluía portanto, para ser crível, a escolha da pobreza, uma pobreza que era concretamente vivida então pelos pobres: no último grau da sociedade, sem garantias nem culturas, humildes e submissos a todos, trabalhando com as próprias mãos ou recorrendo até à mendicância, mas oferecendo em todo encontro a saudação de paz ("O Senhor te dê a paz") que reunia todo o sentido de uma vida de testemunho cristão, cuja única pretensão era a de mostrar "os novos sinais do céu e da terra que são grandes e excelentes aos olhos de Deus e que não são considerados assim por muitos religiosos e por outros homens".

Trataram-se de escolhas e convicções sobre características desse modelo amadurecidas pouco a pouco, mas que Francisco situou no seu momento culminante, ou seja, "depois que o Senhor lhe deu irmãos". Não era uma escolha previsível. Desde sempre, aqueles que pretendiam abraçar a vida religiosa para "seguir a Cristo" renunciavam aos seus próprios bens: os versículos do Evangelho pedem isso explicitamente. Isso implicava a pobreza pessoal, mas não uma vida de pobre entre os pobres. Tradicionalmente, monges e canônicos, habituais autores dessa renúncia, se colocavam na mais alta das hierarquias sociais, protegidos pelos seus privilégios concedidos por Roma. Para Francisco, não era nem devia ser assim. A clausura de um rico convento não era a sede adaptada para dar testemunho de Cristo: ele devia ser oferecido com a própria vida pelas estradas do mundo.

Nesse projeto, isso não era a única dificuldade aos olhos de Roma. Naquelas décadas, de fato, o Evangelho se tornou a marca de movimentos que contestavam a riqueza e o poder. Porém, Francisco não queria nem mesmo isso: explícita é a sua escolha de ortodoxia e de submissão à Roma. Prova disso, dentre outras coisas, é o seu pedido ao papa de aprovar o seu projeto. Toda forma de rebelião teria contradito, aos seus olhos, essa escolha de humildade e submissão, essa renúncia à própria vontade que não fosse a de seguir a Cristo.

Depois de muitas incertezas, o seu pedido foi acolhido: tratava-se, no fundo, de um pequeno grupo sem pretensões. Teve início assim um novo percurso totalmente imprevisto. Em poucos anos, de fato, aquele pequeno grupo cresceu em alguns milhares, configurando aos olhos de Roma um inesperado instrumento para suprir as carências do cuidado pastoral e para fazer frente à crescente ameaça herética.

Nascia uma nova ordem religiosa, que devia se uniformizar aos modelos oferecidos pela tradição. Francisco, mesmo aceitando, viveu esse processo com grande sofrimento. O Testamento o expressa claramente. Segundo um biógrafo seu, ele teria assim se dirigido aos "irmãos" no seu leito de morte: "A minha tarefa, eu a realizei. A de vocês, que Cristo lhes ensine". São palavras que marcam a separação ocorrida, a consciência de que o caminho que ele havia percorrido era diferente daquele que a ordem já havia iniciado

Leitura Orante da Palavra de Deus

"Meditar dia e noite na Lei do Senhor". Uma prática antiga, sempre nova

SUBSÍDIO 1 - Leitura Orante da Palavra de Deus

Uma prática antiga, sempre nova

"A Palavra está perto de ti, em tua boca e em teu coração" (Dt 30,14)

Há pessoas que acham a Bíblia um livro difícil. Dizem que ela só serve para o estudo das coisas de Deus, mas não para rezar e fazer a pessoa crescer na intimidade com Deus. No AT, já havia gente que pensava assim achando que só alguns poucos seriam capazes de descobrir e entender a Palavra de Deus. Por exemplo, pessoas estudadas e viajadas, capazes de entender as coisas do céu e da terra. O livro do Deuteronômio responde para eles e para nós:

"Este mandamento que hoje lhe ordeno não é muito difícil, nem está fora do seu alcance. Ele não está no céu, para que você fique perguntando: 'Quem subirá por nós até o céu para trazê-lo a nós, a fim de que possamos ouvi-lo e colocá-lo em prática?' Também não está no além-mar, para que você fique perguntando: 'Quem atravessará por nós o mar, para trazer esse mandamento a nós, a fim de que possamos ouvi-lo e colocá-lo em prática?' Sim, essa palavra está ao seu alcance: está na sua boca e no seu coração, para que você a coloque em prática" (Dt 30,11-14).

A Palavra de Deus não é uma doutrina distante de difícil acesso, nem um catecismo de verdades a serem estudadas e decoradas. A Palavra de Deus é o próprio Deus querendo comunicar-se conosco como Pai amoroso. O valor da Bíblia não está só naquilo que ela diz e ensina. O seu valor está também e sobretudo em Deus, Ele mesmo, a sua pessoa e a sua bondade, que pronuncia com muito amor aquilo que é dito e ensinado na Bíblia. Era a experiência de Deus como Pai que revelava a Jesus o sentido pleno das palavras da Escritura.

Descobrir e experimentar esta dimensão interpessoal da Bíblia é o objetivo da Leitura Orante da Palavra de Deus. A própria Bíblia é fruto desta prática antiga e sempre nova da leitura orante da Palavra de Deus.

A Bíblia, ela mesma, é fruto da Leitura Orante da Palavra de Deus

O texto da Bíblia não caiu pronto do céu. A Palavra de Deus, antes de ser escrita, era transmitida oralmente. Antes de ser transmitida, era vivida. Antes de ser vivida, era recebida no coração e revelada na prática do Povo de Deus. O texto da Bíblia nasceu aos poucos, ao longo dos séculos, como fruto de um demorado processo de interpretação dos fatos da vida e da história, nos quais o povo foi descobrindo a presença escondida da Palavra de Deus.

O ambiente desta leitura e descoberta da Palavra de Deus era o ambiente da liturgia, a celebração, os santuários, as romarias, o Templo, as rezas, as reuniões do povo. Por exemplo, entre os textos mais antigos da Bíblia estão os cânticos litúrgicos atribuídos a Miriam (Ex 15,20), a Débora (Jz 5,2-31) e a Ana (1Sam 2,1-10) e a profissão de fé do livro do Deuteronômio (Dt 26,5-9). A Bíblia nasceu e cresceu num ambiente de celebração. É neste mesmo ambiente orante que deve ser lida e meditada.

No tempo de Jesus era neste ambiente orante que o povo meditava a Palavra de Deus. Quando aquela mulher "levantou a voz no meio da multidão, e lhe disse: "Feliz o ventre que te carregou, e os seios que te amamentaram", Jesus fez o maior elogio à sua mãe quando respondeu dizendo: "Mais felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática" (Lc 11,27-28). De fato, Maria meditava a Palavra de Deus presente nos fatos da vida e nas palavras do anjo e das pessoas (Lc 2,19.51). O resultado desta meditação orante é o Cântico do Magnificat, feito com frases quase todas tiradas do livro dos Salmos (Lc 1,46-55). Sinal de que ela sabia rezar a vida e seus acontecimentos.

Desde os tempos do Servo de Javé e do próprio Jesus até hoje, é sempre a mesma palavra de Deus que é buscada e meditada. São muitas as maneiras de se ler a Bíblia, muitos os métodos para se interpretar a Palavra que Deus nos dirige de tantas maneiras diferentes. Mas o que há de comum em todos eles é a vontade de ouvir a Palavra de Deus e de colocá-la em prática (Lc 11,27). Como fazer isto?

O Testemunho do Servo de Javé

Foi na meditação orante da Palavra de Deus que o Servo de Javé, na época do cativeiro da Babilônia, encontrava a força para descobrir e realizar sua vocação como Servo. Ele mesmo descreve como fazia a leitura orante da Palavra de Deus:

"O Senhor me concedeu o dom
de falar como seu discípulo,
para eu saber dizer uma palavra de conforto
a quem está desanimado.
Cada manhã, ele me desperta,
para que eu o escute,
de ouvidos abertos,
como o fazem os discípulos.
O Senhor me abriu os ouvidos
e eu não resisti, nem voltei atrás (Is 50,4-5).
Quatro pontos chamam a atenção da gente neste breve testemunho do Servo

1) Ser Discípulo. Por duas vezes ele se apresenta como discípulo. Ele aprender a falar e a escutar como fazem os discípulos. E ele quer ser discípulo do Senhor. Discípulo é a pessoa que tem consciência de não saber tudo, de não ser dono d verdade, de estar disposto a aprender.

2) Palavra de conforto. Ele está preocupado não em agradar aos grandes, mas em saber encontrar e dizer uma palavra de conforto a quem está desanimado. E no cativeiro da Babilônia havia muita gente desanimada que estava precisando de uma palavra de conforto.

3) De ouvidos abertos. A maneia como ele consegue ser discípulos e aprender como encontrar a palavra certa de conforto ara quem está desanimado era colocar-se diante de Deus, todas as manhãs, de ouvidos bem abertos para escutar o que Deus lhe tem a dizer.

4) Atitude de entrega. Quem se abre para Deus, tem a certeza de que Deus vem e responde, mas ele não saber o que Deus vai responder. O Servo se coloca às ordens de Deus para o que der e vier. Ele não volta atrás diante de uma palavra imprevista.

O Testemunho de Jesus

Os textos do Servo de Javé (cf Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12; 61,1-2) foram a ção para Jesus descobrir e assumir sua vocação como Messias. Este texto do Servo que acabamos de ler (Is 50,4-5) é uma espécie de auto-retrato do próprio Jesus. Como o Servo do livro de Isaías, Jesus meditava e escutava a Palavra de Deus. Diz o evangelho de Marcos: "De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto" (Mc 1,35). Jesus passava noites em oração, meditando a Palavra de Deus (cf. Lc 5,16; 6,12; 9,18.28; 11,1).

Na raiz da leitura que Jesus fazia da Palavra de Deus estava a sua experiência de Deus como Pai. A intimidade com o Pai dava a ele um critério novo, um olhar mais penetrante, que o colocava em contato direto com Deus, o autor tanto da Bíblia como da vida. Por isso São Paulo recomenda: "Procurem ter em vocês os mesmos sentimentos que animavam Jesus" (Flp 2,5). Pois se tivermos em nós os mesmos sentimentos de Jesus, teremos também o mesmo olhar com que Jesus lia a Bíblia. A seguinte comparação ajuda para entender este assunto.

Numa roda de amigos alguém mostrou uma fotografia, onde se via um homem de rosto severo, com o dedo levantado, quase agredindo o público. Todos ficaram com a idéia de se tratar de uma pessoa inflexível e antipática que não permitia intimidade. Enquanto comentavam a fotografia, chegou um rapaz, viu a fotografia e exclamou: "É meu pai!" Os outros olharam para ele e disseram: "Pai severo, hein!" Ele respondeu: "Não é não! Meu pai é muito carinhoso. Ele é advogado. Aquela fotografia foi tirada no tribunal na hora em que ele denunciava o crime de um latifundiário que queria despejar uns pobres para apropriar-se do terreno deles e construir um prédio grande para alugar e assim ganhar mais dinheiro". Meu pai defendeu os direitos dos pobres e ganhou a causa. Até hoje os pobres continuam morando em suas casas. Graças a Deus!" Todos olharam de novo a fotografia e alguém comentou: "Que fotografia simpática!" Como por um milagre, a fotografia se iluminou por dentro e começou a tomar um outro aspecto. Aquele rosto tão severo adquiriu os traços de uma grande ternura! A experiência do filho, sem mudar um traço sequer, mudou tudo.

Olhando as fotografias do Antigo Testamento, o povo no tempo de Jesus imaginava Deus como alguém distante, severo, de difícil acesso, cujo nome nem sequer podia ser pronunciado. Em vez de Javé diziam Adonai, isto é, Senhor. Jesus chegou e disse: "É meu Pai!" As palavras e gestos de Jesus, nascidas da sua experiência de Filho, sem mudar uma letra ou vírgula sequer (cf. Mt 5,18), mudaram todo o sentido do Antigo Testamento. A Bíblia se iluminou por dentro. O mesmo Deus que parecia tão distante e severo adquiriu os traços de um Pai bondoso de grande ternura, sempre presente, pronto para acolher e libertar! O Novo Testamento é uma releitura do Antigo Testamento feita à luz da nova experiência de Deus como Pai e Mãe, revelada e partilhada a nós por Jesus.

A chave para descobrir a Palavra de Deus na vida é esta: alimentar em nós "os mesmos sentimentos que animavam Jesus" (Fl 2,5); buscar uma profunda experiência de Deus e, ao mesmo tempo, como Jesus e como Servo, estar muito atento aos problemas das pessoas desdanimadas que precisam de uma palavra de conforto.

"Ter em nós os mesmos sentimentos que animavam Jesus" (Fl 2,5)

Como conseguir esta atitude, este olhar? Como criar em nós os mesmos sentimentos que animavam Jesus? Aqui seguem três sugestões ou conselhos: 1. Seguir Jesus; 2. Usar o método de Jesus; 3. Criar um contexto comunitário orante.

1. Seguir Jesus

O seguimento de Jesus tinha três dimensões que perduram até hoje e que formam o eixo central do processo de formação dos discípulos e da assimilação do jeito de viver de Jesus:

* Imitar o exemplo do Mestre:

Jesus era o modelo a ser recriado na vida do discípulo ou da discípula (Jo 13,13-15). A convivência diária com o mestre permitia um confronto constante. Nesta "escola de Jesus" só se ensinava uma única matéria: o Reino! E este Reino se reconhecia na vida e na prática do Mestre. Isto exige de nós leitura e meditação constantes do evangelho para olharmos no espelho da vida de Jesus.

* Participar no destino do Mestre.

A imitação do Mestre não era um aprendizado teórico. Quem seguia Jesus devia comprometer-se com ele e "estar com ele nas tentações" (Lc 22,28), inclusive na perseguição (Jo 15,20; Mt 10,24-25). Devia estar disposto a carregar a cruz e a morrer com ele (Mc 8,34-35; Jo 11,16). Isto exige de nós um compromisso concreto e diário de fidelidade com o mesmo ideal com que Jesus, fiel ao Pai, se comprometia.

* Ter a vida de Jesus dentro de si.

Depois da Páscoa, surge uma terceira dimensão, fruto da ação do Espírito de Jesus na vida das pessoas que levava os primeiros cristãos a dizer: "Vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20). Eles procuravam refazer em suas vidas a mesma caminhada de Jesus que tinha morrido em defesa da vida e foi ressuscitado pelo poder de Deus (Fl 3,10-11). Isto exige de nós uma espiritualidade de entrega contínua, alimentada na oração.

2. Usar o método de Jesus na leitura e interpretação da Bíblia

No episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35), Lucas apresenta Jesus como intérprete da Bíblia e nos ensina como devemos ler a Escritura. O processo de interpretação seguido por Jesus tem os seguintes passos, misturados entre si:

1º Passo: partir da realidade (Lc 24,13-24)

Jesus encontra os dois discípulos numa situação de medo e dispersão, de descrença e desespero. Eles estavam fugindo. A morte de Jesus na cruz, tinha matado neles a esperança: "Nós esperávamos que ele fosse o libertador, mas..." (Lc 24,21). Jesus se aproxima e caminha com eles, escuta a conversa e pergunta: "De que vocês estão falando? Por que estão tristes?" Mas eles não o reconheciam. Não percebiam a presença da Palavra de Deus que já estava com eles, na vida deles.

O 1º passo é aproximar-se, caminhar junto, escutar a realidade, os problemas; ser capaz de fazer perguntas que ajudem a pessoa a olhar a realidade com um olhar mais crítico.

2º Passo: usar a Bíblia (Lc 24,25-27)

Jesus usa a Bíblia não para dar uma aula sobre a Bíblia, mas para iluminar o problema que fazia sofrer os dois discípulos, para esclarecer a situação que estavam vivendo e para mostrar que a história não tinha escapado de mão de Deus.

O 2º passo é este: com a ajuda da Bíblia, iluminar os fatos e situá-los dentro do conjunto do plano de Deus, transformar a cruz, sinal de morte, em sinal de vida e de esperança. Assim, aquilo que os impedia de caminhar, tornou-se a força principal na caminhada, a nova luz no caminho.

3º Passo: partilhar na comunidade (Lc 24,28-32)

A Bíblia, ela por si, sozinha, não abriu os olhos dos dois, mas a sua leitura e interpretação fizeram arder neles o coração (Lc 24,32), e isto é muito importante. O que faz enxergar mesmo, é o gesto comunitário da hospitalidade, da oração em comum, da partilha do pão ao redor da mesa. No momento em que é reconhecido, Jesus desaparece, e eles mesmos ressuscitam e renascem.

O 3º passo é este: saber criar um ambiente de fé, de fraternidade e de partilha, onde possa atuar o Espírito Santo que nos faz entender o sentido das coisas que Jesus falou, e produz em nós uma experiência de ressurreição e de vida nova (cf. Jo 14,26; 16,13).

Objetivo: Ressuscitar e voltar para Jerusalém (cf Lc 24,33-35)

Imediatamente, eles levantam e voltam para Jerusalém. Tudo mudou: coragem, em vez de medo; retorno, em vez de fuga; fé, em vez de descrença; esperança, em vez de desespero; consciência crítica, em vez de fatalismo frente ao poder; liberdade, em vez de opressão! Em vez da má noticia da morte, a Boa Notícia da Ressurreição!

O objetivo da leitura orante da Bíblia, é este: criar coragem e voltar para Jerusalém, onde continuam vivas as forças de morte que mataram Jesus. Os dois discípulos, eles mesmos ressuscitaram. Venceram o medo da morte e das forças da morte.

3. Criar um contexto comunitário orante que abre os olhos

O que abriu os olhos dos discípulos foi o contexto comunitário: a hospitalidade, a oração antes de comer, a mesa comum, a partilha do pão. A comunidade que se formava ao redor de Jesus tinha o seu ritmo de vida diário, semanal e anual, dentro do qual os discípulos recebiam a sua formação:

O ritmo diário em casa, na família:

No tempo de Jesus, nas casas de família e nos pequenos grupos, todas as pessoas rezavam três vezes ao dia: de manhã, ao meio dia e à noite. Eram os três momentos em que, no Templo em Jerusalém, se oferecia o sacrifício. Junto com o incenso e a fumaça dos sacrifícios subia até Deus a oração do seu povo. Estas orações, tiradas da Bíblia ou por ela inspiradas, marcavam o ritmo diário da vida de Jesus e da sua comunidade ao longo dos três anos de formação.

O ritmo semanal na comunidade, sinagoga:

Um escrito antigo da Tradição Judaica, chamado Pirquê Abot, dizia: "O mundo repousa sobre três colunas: a Lei, o Culto e o Amor". Ou seja, a Bíblia, a Celebração e o Serviço. Era o que o povo fazia todos os Sábados na sinagoga. Mesmo durante as viagens missionárias, Jesus e os discípulos tinham o "costume" (Lc 4,16) de, aos sábados, se reunirem com a comunidade local na sinagoga para ouvir as leituras da Bíblia (Lei), para rezar e louvar a Deus (Culto) e para discutir os serviços a serem realizados para a edificação da comunidade e a ajuda a ser oferecida às pessoas (Amor) (Lc 4,16.44; Mc 1,39). Até hoje, este ainda é o ambiente formador das nossas Comunidades Eclesiais de Base: ouvir em comunidade a leitura da Palavra de Deus (Lei, Bíblia), rezar juntos (Culto, Celebração) e combinar entre si o que fazer para melhor a vida dos irmãos e das irmãs (Serviço, Amor).

O ritmo anual no Templo, no meio do povo:

Cada ano, o povo tinha que fazer três romarias para visitar a Deus no seu Templo em Jerusalém nas três grandes festas, que marcavam o ano litúrgico e nas quais se celebravam os momentos importantes da história do Povo de Deus: Páscoa, Pentecostes, ou festa das semanas e a festa das Tendas (Ex 23,14-17; Dt 16,9). Jesus e os discípulos participavam das romarias e visitavam o Templo de Jerusalém (Jo 2,13; 5,1; 7,14; 10,22; 11,55).

Através deste tríplice ritmo (diário, semanal e anual), criava-se um ambiente familiar e comunitário, impregnado pela leitura orante da Palavra de Deus. A formação, que os discípulos assim recebiam, não era, em primeiro lugar, a transmissão de verdades a serem estudadas e decoradas, mas sim a comunicação da nova experiência de Deus e da vida que irradiava de Jesus para os discípulos e as discípulas. A própria comunidade que se formava ao redor de Jesus era a expressão desta nova experiência de Deus e da vida. A formação levava as pessoas a terem outros olhos, outras atitudes. Fazia nascer nelas uma nova consciência a respeito da sua vocação e a respeito de si mesmas. Fazia com que fossem colocando os pés do lado dos excluídos. Produzia aos poucos a "conversão" como conseqüência da aceitação da Boa Nova (Mc 1,15). Sem esta experiência comunitária da Leitura Orante, o estudo da Bíblia cairia no vazio.

A comparação dos dois Livros de Deus

Uma comparação esclarecedora de Santo Agostinho dizia: Deus escreveu dois livros. O primeiro livro é a criação, a natureza, a vida, tudo que existe e acon tece. É pelo Livro da Natureza que Deus quer comunicar-se conosco. Mas por causa do nosso pecado as letras deste primeiro livro se atrapalharam e já não conseguimos descobrir a fala de Deus no livro da Vida, da Natureza. Por isso, Deus escreveu um segundo livro, que é a Bíblia. A Bíblia foi escrita, não para substituir o livro da vida, mas para ajudar-nos a interpretá-lo melhor. E Agostinho enumera os três objetivos desta leitura orante da Bíblia: a Bíblia nos devolve o olhar da contemplação; ela nos ajuda a decifrar o mundo; faz do universo uma teofania, uma revelação de Deus.

Clemente de Alexandria, Séc. IV, tinha a mesma intuição quando dizia: "Deus salvou os judeus judaicamente, os gregos, gregamente, os bárbaros, barbaramente". E podemos continuar: "Os brasileiros, brasileiramente". A convicção de fé subentendida nesta afirmação é a de que todos temos o nosso Antigo Testamento, temos nossa história, tanto pessoal como comunitária e nacional. Como o AT do povo hebreu, também o nosso AT, a nossa história, está orientada pelo mesmo Espírito do Deus Criador para desembocar na vida plena que nos foi revelada pela paixão, morte e ressurreição de Jesus. O que importa na interpretação de um texto bíblico é descobrir, através do estudo da "letra", esta mesma orientação para Jesus dentro da nossa vida e história, para que possamos crescer e desabrochar em Jesus e na vida ressuscitada da Comunidade. Este mesmo convite chega agora até nós através da mensagem do Sínodo dos bispos.

A Mensagem final do Sínodo dos Bispos

Esta maneira tão antiga de ler e interpretar a Bíblia - tão antiga quanto a própria Bíblia - renasce hoje, tanto na prática tão simples das nossas comunidades, como na palavra abalizada dos bispos reunidos no Sínodo sobre "A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja".

Nas intervenções dos bispos durante o sínodo sobre A Palavra de Deus na Vida e na Missão do Povo de Deus, havia uma insistência muito grande nestes quatro pontos: 1) A Bíblia deve voltar na mão do povo, sobretudo dos pobres; 2) A Leitura Orante diária deve ser retomada sobretudo pelos ministros que animam a fé do povo e pelos que se preparam para servir ao povo como presbíteros; 3) A exegese científica e o estudo acadêmico da Bíblia devem estar voltados para a teologia e a pastoral; 4) É importante retomar e valorizar a visão que os Santos Padres da Igreja tinham da Bíblia.

Na mensagem final do Sínodo ao Povo de Deus, os bispos sintetizaram todo o processo da descoberta, interpretação e meditação orante da Palavra de Deus em quatro símbolos muito sugestivos: a Voz da Palavra, o Rosto da Palavra, a Casa da Palavra e o Caminho da Palavra.

A Voz da Palavra

ressoa não só na Bíblia, mas também se faz ouvir na natureza, no universo, na vida, nos fatos, "sem fala e sem palavras, sem que sua voz seja ouvida" (Sl 19,4). "De fato, desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, tais como o seu poder eterno e sua divindade, podem ser contempladas, através da inteligência, nas obras que ele realizou" (Rom 1,20).

O Rosto da Palavra

é Jesus de Nazaré, sua vida, seus gestos, suas palavras, seus ensinamentos. Ele é a revelação do Pai. Nele a Palavra se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14). Ele podia dizer: "Quem me vê, vê o Pai" (Jo 14,9).

A Casa da Palavra

é a Comunidade, a Igreja. É onde o povo se reúne em torno da Palavra de Deus: "Como pedras vivas, vocês vão entrando na construção do templo espiritual, e formando um sacerdócio santo, destinado a oferecer sacrifícios espirituais que Deus aceita por meio de Jesus Cristo" (1Pd 2,5). Jesus dizia: "Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles" (Mt 18,20)

O Caminho da Palavra

é a missão que recebemos como discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida. "Caminho" é a palavra usada no livro dos Atos para identificar os cristãos (At 9,2; 19,9; 22,4; 24,14). Indica o compromisso assumido de levar a Boa Nova pelo mundo afora.

Este é o sentido e o objetivo do convite que nos é feito hoje pela mensagem dos bispos. Os bispos retomaram o antigo convite feito a nós pelo salmo para praticar a Leitura Orante da Palavra de Deus:

"Feliz o homem,

que não segue os conselhos dos ímpios,
não anda no caminho dos maus,
nem freqüenta a companhia dos gozadores.
Pelo contrário,
encontra seu prazer na lei do Senhor,
e nela medita dia e noite.
Ele é como árvore plantada junto d'água corrente:
dá fruto no tempo devido,
e suas folhas nunca murcham.
Tudo o que ele faz é bem sucedido.
Feliz este homem!" (Salmo 1,1-3).

A Leitura Orante da Lei do Senhor faz a pessoa crescer e amadurecer, pois traz consciência crítica frente "aos conselhos dos ímpios", ajuda a evitar o "caminho dos maus", torna fecunda a vida que, "como árvore, plantada à beira da água, dará fruto a seu tempo. Sua folhagem não secará, e terá êxito em todos os seus empreendimentos". Deste modo, se abre para nós o caminho da felicidade: "Feliz este homem!"

[Texto escrito por Frei Carlos Mesters, da Ordem do Carmo, por ocasião da celebração do Ano Vocacional Carmelitano, da Província Carmelitana de Santo Elias-Carmelitas].