30 de junho de 2011

30/06 - Bem - aventurado Raimundo Lulo, Mártir

Raimundo Lulo nasceu pelos anos de 1235 na cidade de Palma, da Ilha de Maiorca, nas Baleares. Abandonando tudo que é da terra, entrou na Ordem Franciscana Secular. Inflamado do zelo das almas, tratou da fundação de um colégio em sua pátria, destinado à conveniente formação de missionários. Escreveu sobre quase todas as disciplinas humanas, sendo chamado de doutor iluminado. Tendo feito uma viagem para a Bugia, na África, foi encarcerado e, depois de muitos maus-tratos, foi apedrejado. Recolhido quase exânime, por um navio, expirou quando aportava à Ilha de maiorca, aos 29 de junho de 1315.

ORAÇÃO - Ó Deus, que distinguistes o mártir Bem-aventurado Raimundo com o zelo pela propagação da fé, concedei-nos, por sua intercessão, manter firme até a morte a graça da fé que de vós recebemos. Amém

22 de junho de 2011

NOSSA REGRA É NOSSA VIDA

Revendo os passos dados

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM (*)

A Regra e a vida dos franciscanos seculares é esta: observar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo o exemplo de São Francisco de Assis, que fez do Cristo o inspirador e centro de sua vida com Deus e com os homens ( Regra n.4).

E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu devia fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo Evangelho (Testamento 14).

Introdução

De 25 a 27 de março de 2011, os irmãos e irmãs da Ordem Franciscana Secular estarão reunidos em Capítulo Avaliativo na cidade do Rio de Janeiro. Franciscanos seculares de todo o país se deslocarão para viverem juntos a experiência do Capítulo. Foi escolhido como tema do encontro, assunto importante para a vida dos seculares: Nossa Regra é nossa vida. Os terceiros franciscanos dispõem de um texto “inspiracional” de sua caminhada e que se traduz na Regra aprovada por Paulo VI, em 1978. Necessário se faz voltar sempre a este documento básico. Normal que num capítulo avaliativo sejam examinados os passos dados nos últimos tempos e que, retomando o fôlego, os irmãos possam olhar com coragem para a meta que está diante de seus olhos. O que queremos? Para onde vamos? O que deu certo? O que precisa ser melhorado? Momento de revisão e de avaliação.

1. Viver é uma graça. O Senhor nos tirou do não existir, teceu as fibras de nosso corpo no seio de nossa mãe e tivemos a ventura de conhecer o mundo, as pessoas, a vida e fazer parte deste cortejo de homens e mulheres que percorrem os caminhos do mundo. Sentimo-nos, literalmente, peregrinos e forasteiros, na busca da plena realização de nossos dias. Sentimo-nos chamados a viver intensamente e não passar em brancas nuvens. Muitos de nós, no seio da família e da primeira infância, junto com o leite e o pão, o carinho e o afeto, viemos a encontrar a adorável figura de Jesus, o Cristo ressuscitado. Somos discípulos de Cristo e essa característica faz parte de nossa identidade. Não cansamos de dizer a nós mesmos que somos cristãos e que precisamos viver à altura. Hoje, a Igreja nos pede que vivamos intensamente o seguimento do Senhor, no sentido de sermos discípulos missionários. Tivemos ainda a graça de conhecer um caminho todo especial. Quisemos ser cristãos à maneira de Francisco e de Clara. Por uma graça toda particular, no seio da família franciscana, os seculares constituem a presença do carisma no meio do mundo, na organização de uma sociedade que seja prefiguração do reino. Somos franciscanos seculares e selamos esta decisão com a profissão solene que emitimos de viver a busca da santidade à maneira de Francisco em nosso estado secular. E vamos fazendo nossa caminhada. O Conselho Nacional acompanha esta caminhada em todo o país.

2. Estamos para realizar um capítulo de âmbito nacional, momento de bênção, de diálogo, de graça. Não se trata de uma reunião formal e fria. Mas um momento importante para o amanhã da vida dos franciscanos seculares. Éloi Leclerc, comentando a importância dos capítulos no tempo de São Francisco, assim se exprime: “Uma ou duas vezes por ano todos os frades se reúnem em capítulo. Esses encontros desempenham um papel importantíssimo na vida da fraternidade. Os capítulos não são somente um tempo forte durante o qual os irmãos, na alegria do reencontro, se reabastecem na oração e no louvor, mas também ocasião de tomada de consciência comum: todos e cada um se sentem solidários e responsáveis pela vida do grupo e por sua missão no mundo (...). Nessas assembleias democráticas, onde reina a grande liberdade dos filhos de Deus, os irmãos discutem seus problemas, comunicam suas experiências e escolhem seus responsáveis. Elaboram, redigem e promulgam leis, definem orientações e tomam grandes decisões que nortearão o futuro da comunidade” (em Francisco de Assis. O Retorno ao Evangelho, p. 60-61). Quais as luzes e as sombras que levaremos ao Capítulo? O tempo é de renovação e de reinvenção. O que propomos concretamente para o revigoramento de nossa Ordem no Brasil? Que análise fazemos de nossas regiões e áreas? O que acontece nas visitas fraterno-pastorais? Qual a qualidade de nossos capítulos em todos os níveis?

3. Vivemos no mundo, vivemos na Igreja, vivemos na Ordem, vivemos transformações. Não é aqui o lugar de elencar todos os desafios e preocupações que habitam em nós, franciscanos, na Igreja e no mundo. Nesse contexto é que a Regra é nossa vida. Nada está terminado. Temos que recomeçar, como dizia Francisco, porque até aqui pouco ou nada fizemos. Há questões que precisam ser respondidas. Há sombras: individualismo exacerbado, indiferença para com o próximo, exclusão, marginalização, drogas, esvaziamento de nossas paróquias, proliferação de seitas, ministros da Igreja nem sempre cheios de entusiasmo, envelhecimento dos membros de nossa Ordem, dificuldades em alimentar a fé das pessoas, falta de um atendimento sistemático aos jovens, desmotivação, leigos que não conseguem chegar a uma maturidade humana e cristã, um número razoável de irmãos e irmãs que pedem “afastamento”. Por vezes, uma pergunta nos trabalha: Até que ponto nossa Ordem consegue exprimir-se? Que significado têm nossas fraternidades franciscanas nas paróquias e dioceses?

4. Algumas convicções e luzes nos estimulam e nos fazem pessoas esperançosas. Vemos surgir aqui e ali movimentos de renovação evangélica. Há fraternidades franciscanas promissoras. Francisco de Assis continua atraindo. Nesse contexto nos lembramos da Regra que é nossa vida. Precisamos nos deter em seu texto que é alimento para nossa vocação e a vivência da Regra será nossa contribuição para o surgimento de um mundo renovado. Não podemos desvincular a Regra de Paulo VI à vivência profunda do Evangelho. Quando um Capítulo escolhe como tema Nossa Regra é nossa vida está apontando para um sério retorno ao Evangelho. Num mundo burocratizado, diante de expressões religiosas fixistas e imóveis, diante de um mundo que parece levar as pessoas a terem como sentido de sua vida o viver o presente, o usufruir das coisas, o esquecimento do leproso, nós temos a obrigação de viver a Regra do Evangelho. Não podemos deixar de dizer que a Regra ainda não foi assimilada pela Ordem. Precisamos sempre de novo mergulhar em suas riquezas para chegar a viver uma identidade franciscana secular.

5. Os franciscanos seculares são leigos que buscam a santidade. Não querem ser cristãos de repetição de gestos e ritos, orações e ações nem sempre nascidas no fundo do coração. Os que buscam nossas fileiras são pessoas (ou deveriam ser) apaixonadas pelo fogo do Evangelho. Esta paixão se traduz na vivência do duplo amor: amar o Senhor e os irmãos. Na vida de todos os dias, na família, na fraternidade franciscana, no trabalho dedicado à implantação, chamado Reino, os franciscanos seculares, “impulsionados pelo Espírito a atingir a perfeição da caridade no próprio estado secular, são empenhados pela Profissão a viver o Evangelho à maneira de Francisco e mediante esta Regra confirmada pela Igreja” (n.2). Sempre temos saudades do Evangelho. O Evangelho nos “picou” e deixou em nós seu “vírus”.

6. Querer refletir sobre o tema da Regra que é nossa vida forçosamente nos leva a reencontrar, redescobrir a força do Evangelho. O peso, o conservadorismo das instituições, uma tradição com t minúsculo, o espírito das aparências, o dogmatismo frio talvez tenham feito com que as pessoas se afastassem da força do Evangelho. Um autor franciscano afirma que a Palavra é dita a partir dos púlpitos e ambãos, em talkshows e reuniões religiosas com forte presença do povo. Não basta isso. Na verdade, Jesus é a boa nova, o Evangelho. Faz bem ler e reler os Atos dos Apóstolos, as epístolas de Paulo onde o tudo é perpassado pelo fogo do Evangelho. Nossa Igreja, depois de Constantino, sempre teve a tentação de se identificar com os grandes e com o poder. Francisco de Assis redescobriu o evangelho das grutas, da simplicidade, da pobreza, do amor que precisa ser amado, do leproso que necessita de cuidados.

7. Um documento antigo da Ordem Franciscana Secular na França se compraz em colocar em relevo o viver o Evangelho. Viver o Evangelho é viver a Regra. “Como São Francisco, queremos fazer do Evangelho a fonte de nossa vida. A ele nos referimos constantemente. Tal empenho não acontece apenas no começo, mas ao longo de toda a nossa vida, não ocasionalmente, mas o mais frequentemente possível, persuadidos de que nunca esgotaremos a riqueza do Evangelho. Frequentando o Evangelho é a Cristo que queremos acolher e encontrar: o Cristo vivo simplesmente presente no meio dos homens, presente no mundo, nos acontecimentos, na história, o Cristo, rosto humano de Deus, Filho único do Pai e testemunha de seu amor pelos homens; o Cristo tipo acabado do homem, em relação com seu Pai e com os homens; o Cristo, cumprindo e realizando através de tudo o que constitui sua vida a salvação do mundo e a glória do Pai”.

8. A Regra da OFS, feita de pedaços da Escritura e de orientações oficiais da Igreja, contém essencialmente o Evangelho. Por isso, no rosto dos franciscanos aparecerão traços evangélicos: uma vida pessoal e familiar de singeleza e simplicidade, vida de despojamento sem requintes competitivos e posturas que humilham; pessoas que vivem para servir e servem para viver; verdadeiros irmãos de seus irmãos de dentro e de fora, irmão não de discursos, mas de fato; gente laboriosa que trabalha sem perder o espírito da santa oração; pessoas que se alimentam cotidianamente da Palavra e da Eucaristia; pessoas que salpicam com a água do Evangelho tudo o que tocam e fazem, ou seja, seu trabalho pastoral, sua missão de pai e de mãe; pessoas que sabem acolher a cruz e que vivem no meio das provações o espirito da perfeita alegria; pessoas que se achegam dos mais simples e pobres; gente que não existe para si mas para que o amor seja amado. Essa é a nossa vida.

9. Retomamos uma reflexão de Éloi Leclerc. Ele nos fala de um espírito evangélico capaz de fazer cair as barreiras entre os homens. “Qual é esse espírito capaz de destruir os muros da separação e reaproximar os homens? O ponto nevrálgico de toda ação evangélica, como também seu melhor critério de autenticidade será sempre o empenho de mostrar abertamente o que a Boa Nova encerra de mais admirável, talvez até mesmo de “escandaloso” para certos homens “religiosos”: Deus, em seu Filho, quis aproximar-se dos pecadores, dos excluídos, dos condenados. Veio buscar os que estavam perdidos, aproximar-se dos que estavam mais afastados, fazer-se amigo deles, sentar-se à mesa em sinal de reconciliação. Este é o cerne da Boa Nova. Tal mensagem não pode ser mero assunto de um discurso. Não pode ser apenas captada por uma pregação no alto de um púlpito ou de uma tribuna. É percebida através de modos de comportamento e no engajamento de uma existência. Exprime-se na cotidiana sensibilidade e atenção para com as angústias dos homens. Comunica-se através da amizade, qualquer coisa como uma cumplicidade fraterna. É precisamente isto que os contemporâneos descobrem em Francisco. Este homem de Deus nunca se colocava acima de ninguém” (Francisco de Assis. Retorno ao Evangelho, p 54-55).

10. Estamos sempre girando em torno do Evangelho. Nossa vida é nossa regra e nossa regra é o evangelho, de modo muito particular o evangelho dos excluídos, dos sofredores, dos mais abandonados. Não somos uma associação piedosa, mas leigos evangélicos que se aproximam do que é mais frágil. Jean-François Godet Calogeras fala da experiência franciscana fundadora: “Todas as aventuras humanas começam por uma experiência fundadora. A experiência fundadora do movimento franciscano está vinculada aos leprosos. Foi servindo aos leprosos e deles cuidando que Francisco fez a experiência de Deus e da felicidade, experiência que ele descreve no seu Testamento como uma passagem do amargo para o doce. Foi, então, que ele compreendeu que estava na trilha errada aderindo aos princípios da nova Comuna de Assis, cuja paz e felicidade estavam fundadas na apropriação e acumulação de bens materiais, sem levar em conta os que não eram contados, não pertencendo a uma minoria privilegiada. Foi aí que Francisco compreendeu que devia mudar e voltar ao Evangelho, a boa nova proclamada aos pobres. A experiência fundadora de Francisco foi a de que irmãos e irmãs humanos ali estavam e que não podiam ser deixados de lado. Não era justo. Isso era importante para Deus porque Deus estava ali. Para os primeiros franciscanos construir uma vida segundo o Evangelho não queria dizer fugir para longe, mas oferecer uma sociedade alternativa fundada sobre a economia evangélica do serviço e da partilha, nas portas de Assis, no país de Deus”. Sem privilegiar este ou aquele tópico da Regra, talvez se pudesse aqui chamar atenção para algumas orientações fundamentais da Regra que é nossa vida:

11. Como irmãos e irmãs da penitência, em virtude de sua vocação, impulsionados pela dinâmica do Evangelho, conformem seu modo de pensar e de agir ao de Cristo, mediante uma transformação interior que o Evangelho chama de conversão ( cf. Regra n. 7). Trata-se de viver em estado de conversão, acolhimento do perdão, transformar o doce em amargo, aproximar-se daquilo que faz o encanto do Cristo pobre e não querer servir ao próprio ego. Importância do sacramento da reconciliação na vida e no exame constante de nossa consciência.
  • No espirito das bem-aventuranças se esforcem para purificar o coração de toda inclinação e avidez de posse e de dominação, como peregrinos e forasteiros a caminho da casa do Pai (cf. Regra 10). Franciscanos leves, caminhando, sempre a caminho, no mundo, com outros...sem peso, sem prosa, sem superioridade.
  • Estejam presentes pelo testemunho da própria vida humana, com iniciativas corajosas, pessoais ou comunitárias promovam a justiça com ações concretas (cf. Regra 15). Criarão condições dignas para os mais pequeninos (cf. Regra 13).
  • Assim como o próprio Jesus foi o verdadeiro adorador do Pai, façam da oração e da contemplação a alma de seu ser e de seu agir (cf. Regra n.8). Não podemos negligenciar a vida de oração: missa, oficio diário, crescimento na contemplação, no meio do trabalho não perder o espirito da santa devoção e da oração.

12. Assim, os franciscanos sempre sentem saudades do Evangelho e a Regra de Paulo VI colocou em nossas mãos o Evangelho na ótica franciscana. Gostaria ainda de fazer alusão a uns poucos tópicos da vida da OFS que merecem ser avaliados neste Capítulo. Nas visitas fraterno pastorais, verificamos lacunas e brechas que precisam ser sanadas:

  • Sempre de novo será preciso trabalhar na busca da identidade franciscana. O tema vem sendo tratado há anos: respirar espiritualidade evangélica, valorizar aquilo que nos torna cristãos discípulos de Francisco, não priorizar outras atividades e outras espiritualidades, vestir a camisa do carisma. Muitas deficiências nascem da falta de vocação e de identificação franciscanas.

  • Palavra importante é fidelidade. Fidelidade à verdade de cada um. Fidelidade ao Cristo vivo. Fidelidade à profissão emitida. Sempre de novo a fidelidade. Fidelidade à sua fraternidade local. Fidelidade a tudo que diz respeito à Ordem. Não aceitar que as coisas corram e aconteçam.

  • Difícil construir a maturidade humana, cristã e franciscana. Nosso tempo é feito de pessoas imaturas. Imaturidade no casamento, na paternidade, na administração dos bens. Há uma maturidade de comportamento, de respeito ao que é dos outros, na hora de assumir um encargo. Há pessoas imaturas que serão eternos adolescentes incapazes de fazer escolhas com seriedade e profundidade. Quantas vezes notamos certa sede de poder, vontade de aparecer, suscetibilidades infantis. Quanta imaturidade no caminho da espiritualidade quando as pessoas não são capazes de assumir a cruz em suas vidas.

  • Estamos preocupados com o elevado número de irmãos e irmãs que pedem afastamento. As mais das vezes o afastamento é solicitado por causa de melindres e suscetibilidades. Os irmãos precisam ser corrigidos fraternalmente para que eles não joguem fora o tesouro da vocação, da profissão e assim tirem o brilho de nossa Ordem.

  • Estamos fazendo um esforço de revitalização das reuniões gerais e de nossa fraternidade local. Será estamos convencidos da importância da qualidade de nossas reuniões do ponto de vista da oração, do estudo, de expressão de fraternidade, de estratégias para a missão?

  • As visitas fraterno-pastorais regionais e locais não podem ser apenas o cumprimento de formalismos. Irmãos, mensageiros da paz e do bem, visitam irmãos, corrigem o que está torto, cobram carinhosamente. Nestas visitas haverá de se insistir no espírito de serviço e de corresponsabilidade em todos os âmbitos.

Conclusão

O Capítulo Avaliativo de março de 2011 deve colocar diante de nossos olhos uma vez mais a perspectiva de vivermos nosso dia-a-dia à luz do Evangelho e da força do Evangelho que é Cristo de tal sorte que, no final da caminhada pessoal e das fraternidades, possamos dizer que vivemos, como Francisco, a aventura do Evangelho. Deus abriu caminhos que seguimos com generosidade e o amargo se tornou doce.

Questões a serem discutidas em fraternidade

  • O que mais chamou sua atenção neste texto preparatório para o Capítulo avaliativo de março de 2011?
  • Quando se estuda a Regra o que, a seu ver, parece fundamental?
  • Como a Regra pode responder a certas sombras de nossos tempos sobretudo as que se referem ao individualismo, indiferentismo,
  • Que traços deveria ter um franciscano secular que vive a Regra?
  • Como andam nossas reuniões gerais e a vida de nossas fraternidades locais?
  • Como se pode chegar a uma maturidade humana, cristã, franciscana e missionária?
(*) Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Assistente Nacional da OFS pela OFM e Assistente Regional do Sudeste III

21 de junho de 2011

Especial - Santa Clara de Assis 800 anos,


CLARA HOJE
Uma voz que não se cala

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Preste atenção no princípio do espelho: a pobreza daquele que, envolto em panos foi posto no presépio! Admirável humildade, estupenda pobreza! O Rei dos anjos repousa numa manjedoura. No meio do espelho considere a humildade, ou pelo menos a bem-aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano. E, no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonhosa (4ª. Carta a Inês de Praga).

Cada geração é salva pelo santo que a contradiz (Chesterton).

Dou graças ao Senhor por todas as vezes que, exatamente junto a um mosteiro, desde frade jovem pude fazer a experiência de “cura” recolocando em ordem harmoniosa os valores evangélicos de minha vocação e missão, graças à ajuda das irmãs clarissas. Muitas vezes pedi hospitalidade em seus mosteiros para dar novo tom espiritual à minha vida. Obrigado a todas vós, irmãs clarissas, por esta função “terapêutica” tão importante para a caminhada vocacional de uma pessoa consagrada (Fr. Giacomo Bini, OFM, Ex- Ministro Geral).

1. Estamos nos preparando para celebrar em 2012 os oitocentos anos da existência da Ordem das Clarissas. Clara entrou na história ao nascer em 1193 e continua presente no até nossos dias depois de sua morte ocorrida em 1253. Celebrar o centenário das Irmãs Pobres de São Damião é ocasião de revisão da vida das irmãs hoje e tentativa de ver como o carisma de Clara e de suas primeiras companheiras pode enriquecer a vida dos frades, dos franciscanos seculares e do mundo. Constituímos uma família, uma bem-aventurada família, uma família franciscano-clariana. Laços espirituais nos unem e, na reciprocidade de nossos contatos, tornamo-nos espiritualmente mais robustos. O que Clara tem a dizer aos nossos tempos? Como as Irmãs Pobres poderão ser um grupo significativo nesses nossos tempos? Como os franciscanos seculares poderão beber da fonte que brotou ( e continua jorrando) desse abençoado espaço que se chama São Damião, por onde circulavam Clara de Assis e suas irmãs? O que tem Clara a dizer aos nossos tempos?

2. O carisma franciscano se completa admiravelmente no binômio Francisco-Clara. Em Carta dirigida às Clarissas por ocasião de outro jubileu da santa, o Ministro Geral dos Menores assim se exprimia: “Irmãs, minha profunda convicção é esta: necessitamo-nos reciprocamente. Mutilaríamos o carisma se caminhássemos separadamente. Não desejamos e não podemos percorrer estradas paralelas. Caminhando unidos, respeitando nossas diferenças, jogamos tudo: a fidelidade a Francisco e a Clara; a eficácia evangélica de nossa missão na Igreja e no mundo; a credibilidade diante daqueles que, hoje como ontem, estão convencidos de que Francisco e Clara são duas almas gêmeas inseparáveis”. Admirável e delicadamente feminino e masculino se encontram na busca ardorosa do seguimento do Cristo todo despojado.

3. Os Ministros Gerais da Primeira Ordem e da TOR publicaram Carta por ocasião do jubileu de 2012. As clarissas são as guardiãs do carisma clariano: “Chamadas pelo Espírito a seguir o Cristo pobre, crucificado e ressuscitado, vivendo o santo Evangelho em obediência, sem nada de próprio e em castidade, vós sois as guardiãs do carisma clariano, mulheres consagradas que interagem com o mundo, contemplando os sinais que o Espírito semeia e difunde na história. Na escuta de Deus, vós falais hoje ao coração dos homens e das mulheres do nosso tempo com a linguagem do amor, cujas palavras se fundam na raiz da existência habitada por Deus” (...). As irmãs saberão conjugar as raízes do passado com a profecia do futuro: “Aos consagrados e consagradas se pede manifestar o absoluto de Deus. Vós, de um modo particular, sois chamadas a viver uma vida fundada sobre os sinais e símbolos que não remetem ao vazio de um estéril doutrinamento, ritualismo ou ativismo, mas que saibam conjugar hoje as raízes do passado e a profecia do futuro: estruturas, sinais e símbolos que simplesmente fazem ver a Deus”. Há, pois, um apelo a que, também, as clarissas sejam fiéis criativamente. O carisma de Clara não pode ser blindado a uma época. O Espirito não se deixa amarrar. Coloca-se sempre essa questão: Como as clarissas, nesse mundo que é o nosso, saberão unir o passado e o presente?

4. Houve naquela noite do domingo de ramos a fuga noturna de Clara. Ela ouve a voz do Amado que a chama ao deserto. Ela se dá conta que um caminho se abre diante dela. A decisão podia ser tomada, mesmo que comportasse desafios. Estava na hora de sair e procurar uma terra distante como havia feito Abraão, caminhar sem mapa na mão para uma terra que Deus haveria de mostrar. Claire-Pascale Janet, numa biografia original, coloca as seguintes palavras na boca de Clara: “Está decidido. Como esperar mais ainda aquele que se entregou totalmente? Nesse tempo da Quaresma ouço o convite que ele me faz: 'Vem, eu vou te levar ao deserto para falar ao teu coração, e tu me responderás com todo o teu ser, com todo o teu coração e com todas as tuas forças. Sinto como que uma queimadura o amor que levou Francisco de ruptura em ruptura. Eis o que eu procuro: a pobreza de Cristo. Um caminho novo diante de meus passos”.

5. Na história de nosso seguimento de Cristo à maneira de Francisco também deixamos para trás tudo e lançamo-nos na aventura franciscana. Uma quase menina ousa deixar a família, vender os bens, seguir um caminho que lhe é sugerido pelo Altíssimo sem maiores indicações. Acredita, tem fé no Senhor. Vislumbra em Francisco e seus irmãos a porta por onde deve passar. Cada franciscano e cada cristão à luz dessa fuga da nobre Clara iluminará sua própria vocação. Não se pode apenas dizer-se franciscano mas ir em frente, esperar que o Senhor nos mostre seus desígnios, estar atento à loucura e insensatez do coração e à terrível tentação do desencorajamento e do desencanto. A fuga de Clara leva-nos a rever o modo como estamos vivendo a nossa aventura espiritual. Clara saindo de casa, foi à Porciúncula, depois esteve em São Paulo das Abadias e Santo Ângelo de Panzo... e São Damião. E ali, no exíguos espaços de uma clausura teve um coração de forasteira e peregrina repetindo a ladainha do “queres de mim Senhor?”

6. Hoje vivemos o tempo da pós-modernidade. Nessa era da liberdade contra as imposições, do respeito pela pessoa, do diálogo, da tolerância assiste-se também à degradação dos valores absolutos surgindo a era do vazio e o crepúsculo do dever, como dizem os especialistas. A sociedade dita do vazio é fraca, fragmentada, descontroladamente pluralista, que aplaude os valores como o hedonismo, o uso imediato das coisas e das pessoas, essa era do relativismo. Os que contemplam Clara ficam admirados de ver o modo como ela concebeu a vida, a leitura que faz dos acontecimentos e de amá-los em Cristo. Clara fascina pela nitidez no seguimento de Cristo e, sobretudo, na busca desse valor absoluto que é o Senhor na incansável busca de seus desígnios.

7. Pobreza e alegria – Quando Clara escolhe seguir radicalmente o Cristo abandona realmente a tudo: segurança da família, as riquezas e os privilégios de linhagem nobre, o casamento, a possibilidade de ajudar melhor os pobres. Liberta-se de tudo e ganha um coração alegre e livre, aberto e transparente. Nenhum tipo de posse pode cobrir de nuvens sua alegria. A pobreza de Clara e de Francisco é seguimento radical do Cristo. O caminho de Cristo em sua humilhação é o que revela a Clara a grandeza da altíssima pobreza. Identificar-se com Cristo pobre dá acesso à alegria do Reino e a seus tesouros. “Esta é a sublimidade da altíssima pobreza que vos fez, minhas irmãs caríssimas, herdeiras e rainhas do reino dos céus, pobres em coisas, mas sublimadas em virtudes. Seja esta a vossa porção que vos conduz à terra dos vivos” (Regra 8). Clara não canoniza a miséria e a pobreza, mas abraça a pobreza de Cristo. Num mundo que não conhece a verdadeira alegria, mas o ruído e agitação, num mundo marcado por um consumismo devorador, num mundo insatisfação e de vazio, mundo em que o fundo dos olhos dos homens revelam desencanto Clara brilha como mulher alegre em seu despojamento. A grande maioria dos mosteiros de clarissas tem espaços de beleza na singeleza da pobreza. Eis aí uma grande lição!

8. Dirigindo-se às clarissas, os Ministros Gerais escrevem: “Cada fraternidade se torna sinal alternativo nos lugares de opulência e sinal de esperança entre aqueles que vivem na precariedade, através do testemunho e da própria entrega e da confiança no Pai revelado por Jesus Cristo. Não uma pobreza ideológica ou intelectual, mas um estilo de vida que testemunha a confiança total no Pai, que toma forma no cotidiano da existência. Não faltam de fato no mundo algumas experiências de fraternidades que escolhem testemunhar uma vida extremamente sóbria, para serem solidárias com os pobres e confiarem somente na Providência, viver cada dia da Providência, na confiança de colocar-se nas mãos de Deus” (...). “Vós nos ajudais a degustar a alegria da liberdade porque, contemplando, vedes a Deus em cada aspecto da vida. Demonstrais que não seguis as modas de hoje, que não estais em concorrência com o mundanismo, onde as aparências, a exageração exposição do ego, o individualismo, a auto-referência colocam na sombra a obra de Deus. Vós nos contais a vossa história com Deus que se nutre do silêncio, da escuta e da profundidade espiritual”. A pobreza de Clara e de Francisco atribuem a Deus toda força e todo louvor. Só ele é o bom, o sumo bem... Só ele é o Senhor.

9. O amor em fraternidade - A fraternidade é outra das marcas do carisma clariano. A pobreza brota do Amor. Amor que vem de Deus que une as irmãs, promove a estima pelos de fora, pela criação. Amar aos homens e ao mundo porque Deus os ama. Para Clara, o sopro do Espírito do Deus-Amor é quem reúne as irmãs em fraternidade para a partilha da vida evangélica sugerida por Francisco. Cada irmã é um presente do amor do Pai e todas constituem a fraternidade para construir a unidade no mútuo amor. O amor verdadeiro é o oposto do individualismo e o egocentrismo. É amor para dar amor. Clara sabe viver o mútuo amor feito de prestações de serviço e da reciproca obediência. Ela e suas irmãs tinham a consciência de terem sido chamadas a construir uma Igreja viva, construída do amor fraterno, vocação de ser fraternidade, porque o projeto de Deus Pai é criar uma família de filhos e irmãos. Por isso, a fraternidade para Clara será tecida de relacionamentos de amor que unem as irmãs de um modo familiar, fraterno, materno com uma tão grande profundidade que só pode brotar do Evangelho. “Se uma mãe ama e alimenta a sua filha segundo a carne com quanto mais solicitude não deverá amar e nutrir sua irmã espiritual” (Regra 8).

10. A Fraternidade é o âmbito privilegiado em que se dá testemunho de um Deus que é comunhão na diversidade e diversidade na comunhão. Por isso, a fraternidade será sempre um elemento irrenunciável do projeto franciscano-clariano. A fraternidade se manifesta em gestos marcados pelo afeto que mostram uma relação transparente, sem duplicidade, baseada na simplicidade, na familiaridade e no reconhecimento dos dons que Deus deu a cada um. Corações puros como os de Francisco e de Clara são capazes de descobrir com admiração e respeito a obra do Espírito nos outros. “Se a Fraternidade é dom que se acolhe com fé e gratidão é, ao mesmo tempo, uma tarefa e, como tal deve ser construída e guardada. Por uma lado, edificamo-la em base a relações humanas profundas, através do cultivo das qualidades requeridas em todas as relações humanas. Por outro lado, por ser a Fraternidade um tesouro que trazemos em vasos de barro é necessária guardá-la atentamente. Nesse contexto, não nos admiramos que Clara faça suas as exortações de Francisco. Quer que as irmãs se guardem de toda soberba, vanglória, inveja, avareza, cuidado e solicitude deste mundo, da detração e da murmuração, da dissenção e da divisão” (Regra 10). Será preciso uma colaboração entre o dom de Deus e o esforço pessoal.”.

11. O Ministro José R. Carballo observa ainda: “Para ser uma proposta de vida evangélica, a Fraternidade deve ser autêntica, concreta, íntima. Por esse motivo, ao mesmo tempo que pede às irmãs que uma manifeste à outra com confiança suas necessidades (Regra de Clara 8; cf. Regra Bulada 6), Clara as exorta a manifestar através de obras, o amor que professam: “Amando-vos umas às outras com a caridade de Cristo, demonstrai-vos por fora, por meio de boas obras, o amor que tende por dentro, para que provocadas por este exemplo, as Irmãs cresçam sempre no amor de Deus e na mútua caridade (Testamento 59-60). E se entre elas houve alguma desavença ou algum escândalo, as Irmãs não devem deixar-se levar pela ira ou pela perturbação, mas devem manter a paz no coração e apressar-se em perdoar para curar as feridas (cf. Regra 8; cf;. Regra Bulada 6), conscientes sempre do fato de que a unidade no amor mútuo é o vinculo da perfeição” (Regra 10) e que a fraternidade se constrói a preço da reconciliação e do perdão” (Vida Fraterna em Comunidade). (Clara de Assis e de hoje. Um coração conquistado e seduzido pelo Senhor. No 750º aniversário da morte de Santa Clara e da aprovação de sua Regra).

12. Vivemos numa sociedade onde impera o egoísmo, temos que reconhecer os efeitos demolidores do individualismo que nos assedia de todos os lados. O amor fraterno de Clara em fraternidade é tão atual quanto necessário. Trata-se de um espírito de família. As irmãs possuem o espírito de amoroso serviço, tentativa de converter o afã de dominação de uns sobre os outros pelo espirito de doação. “Neste mundo dessolidarizado da pós-modernidade, em que cada um cuida de suas coisas, em que se reivindica a ambiguidade como estilo, em que o hedonismo é tido como valor, onde o homem quer o mínimo de coações e o máximo de escolhas particulares, o mínimo de austeridade e o máximo de desejo, Clara nos oferece a mensagem do amor em fraternidade, amor solidário com todos os homens, para realizar o projeto de Deus Pai: uma família solidária que viva relacionamentos de amor, que viva o amor na fraternidade” ( El legado carismático de Clara en um mundo postmoderno, Maria del Carmen Elcid , revista Vida Religiosa, n. 3, 1994, p. 228).

13. O valor do Absoluto - Clara é essencialmente uma grande contemplativa, toda a sua vida consistiu em amar absolutamente, em viver face a face com o Absoluto para ir conformando-se com ele cada vez mais. Para ela, a oração vivida como um relacionamento esponsal e pessoal é como a respiração da alma, é diálogo de amor, é o querer e realizar as coisas de seu Amado Jesus. Unida intimamente a Jesus quer apresentar ao Pai toda honra e toda a sua glória. A contemplação foi constante em sua vida. Embora ela não consistisse para ela em fenômenos extraordinários, Clara recebeu iluminações excepcionais a respeito do mistério de Deus. Compreendeu existencialmente o que quer dizer abertura à graça e docilidade ao Espírito. Para poder adorar o Pai em espírito e verdade será preciso cuidar do centro vital do espírito que conecta com o Absoluto: o coração como lugar e diálogo amoroso da frágil criatura com o Deus Altíssimo.

14. A oração é um exercício de amor. Que as irmãs trabalhem e trabalhem diligentemente. Assim evitarão o ócio que é inimigo da alma. Mas que não percam o espírito da santa oração (cf. Regra 7). Antes de tudo a oração. Vivendo intensamente esse relacionamento íntimo, Clara não deixou nenhum tratado sobre a oração, não sistematizou seu relacionamento pessoal com o Cristo Pobre. Através de seus escritos, no entanto, descobrimos a contemplativa, a orante por excelência que convida ao silêncio interior e exterior como espaço privilegiado para perceber e acolher o Absoluto.

15. O coração de Clara nunca se saciava. Tanto na saúde quanto na doença, entregava-se à oração. A Bula de Canonização diz que ela consagrava à oração a maior parte do dia e da noite. Clara se serve do vocabulário bíblico para descrever a união com Cristo, seu amor esponsal: “Arrasta-me atrás de ti! Corramos no odor dos teus bálsamos, ó esposo celeste! Vou correr sem desfalecer, até me introduzires na tua adega, até que a tua direita me abrace toda feliz, e me dês o beijo mais feliz de tua boca” (4ª. Carta a Inês).

16. O que é a contemplação? Frei José Rodriguez Carballo assim fala sobre o assunto: “Partamos de um texto da virgem Clara. A Santa escreve para Inês com o intuito de ensinar-lhe a contemplar. Não lhe pede que fale, cante ou reflita, mas somente que ponha a sua mente, sua alma e seu coração em Jesus Cristo: “Ponha a mente no espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da gloria. Ponha o coração na substância da figura divina e transforme-se inteira pela contemplação, na imagem da divindade” (3ª. Carta a Inês 12-13). Nisso consiste a contemplação: pôr, colocar, ordenar a mente, a alma e o coração que estejam constantemente “voltados para o Senhor”, como diz São Francisco. Ele, e só Ele, deve ser o centro da capacidade de compreensão (a mente), o centro da capacidade de amar ( o coração) e o centro da capacidade de viver no mundo de Deus ( a alma). Desse modo, a contemplação abarca toda a pessoa” (Carta às Clarissas do ano de 2006).

17. Pela contemplação de Cristo, Clara se tornou imagem da divindade e com todas as veias de seu coração escrevia a Inês de Praga: “Tomara que você se inflame cada vez mais no ardor dessa caridade, ó rainha do Rei Celeste! Além disso, contemplando suas indizíveis delícias, riquezas e honras perpétuas proclame, suspirando com tamanho desejo do coração e tanto amor: Arrasta-me atrás de ti. Corramos no odor dos teus bálsamos, ó esposo celeste! Vou correr sem desfalecer, até me introduzires na tua adega, até que a tua esquerda esteja sobre a minha cabeça, sua direita me abrace toda feliz e me dês o beijo mais feliz de tua boca” (4ª. Carta a Inês, 27-32). Em seus escritos e suas cartas, Clara levanta o véu de sua contemplação marcada pelo ardor do desejo e o experimentar a doçura escondida que Deus revela aos que o amam.

18. Essa centralidade do Absoluto em Clara está em contradição com a época pós-moderna em que busca coisas e satisfações fragmentadas. Não existe a história, mas acontecimentos isolados. Não existe o absoluto, mas o relativo. Tudo é provisório. Tudo é parcial. A vida de oração e, sobretudo de contemplação, é uma contribuição de Clara para os nossos tempos. Essa imersão no Amado lança luz sobre nossa oração tão separada de nossa vida e de nosso projeto de vida, oração tão mecânica e tão pobre. Somos convidados a rever nossa vida de busca do Absoluto. Clara grita aos nossos ouvidos.

Concluindo

A. Clara viveu a aventura de Deus. Entregou-se nas mãos do Senhor. Saiu de casa sem o mapa do caminho. Entregou-se sem reservas à maneira de Abraão. Ele quer que hoje questionemos o “nosso ponto” de partida, a vivência de nossa vocação que haverá de fazer numa entrega irrestrita ao Senhor dentro das condições de seculares que são os terceiros franciscanos e de religiosos que são os frades. Por sua vida, Clara grita esse testemunho. Não somos donos de nós. Que o Senhor possa fazer uma obra de arte em cada um de nós! As coisas não estão acabadas.

B. Os franciscanos, sejam eles quais forem, são pessoas despojadas, sem trunfos, sem exigências, sem reivindicações na linha do poder, do prestígio, do ter. Clara e as irmãs de São Damião viviam em total simplicidade e modéstia, viviam de esmolas e, nos começos, as pessoas não eram generosas nas esmolas. Casa modesta, cama modesta, comida modesta, muitas vezes vida de penúria. Clara ensina os franciscanos da Ordem 1ª a levar a sério o compromisso de pobreza evangélica. Sugere que as Fraternidades Seculares sejam constituídas de pessoas simples, sem pose, sem pompas. Gente que não dá importância às aparências, aos aplausos e todo tipo de superioridade, gente com um estilo de vida pobre. Muitas irmãs clarissas, em nossos dias, vivem realmente a pobreza e espelham a alegria de terem pouca bagagem na caminhada da vida.

C. Ser franciscano é ser cultivador da fraternidade. Desafio constante. Nunca matamos completamente o Caim que existe em nós. Vemos Clara cuidando das irmãs, cobrindo-as no tempo do inverno, acolhendo com carinho as que saíam para esmolar, sendo mãe e irmã. Tudo se passa no exíguo espaço dos lugares de São Damião. O nome verdadeiro das clarissas é o de irmãs pobres. O exemplo de Clara e as observações de sua Regra pedem que nos interessemos mais uns pelos outros, que preparemos cuidadosamente nossos encontros fraternos. Os franciscanos seculares, no momento atual, estão empenhados e rever a qualidade de sua vida fraterna e, de modo particular, a maneira como realizam os encontros fraternos. Clara grita que precisamos viver o bem-querer concreto.

D. A grande atividade de Clara e de suas irmãs era a da oração: ofício, missa, longas horas de meditação, contemplação da Paixão de Jesus e do Crucifixo bizantino. Clara, como Francisco, pede que as irmãs, no meio de seus trabalhos, não venham a perder o espírito da santa oração. As cartas dirigidas a Inês de Praga nos falam de uma oração de união. Os franciscanos, tanto os seculares quanto os da Ordem 1ª, gostam de passar um tempo junto ao mosteiro das clarissas. Clara está gritando que toda esse nossa correria, esses discursos e essa nossa fala pouco adiantam. Sentimos que precisamos rever a qualidade de nossa oração. Não é possível viver sem saudades do Senhor. Precisa haver lugar em nossas agendas a tentativa, nem sempre fácil, de buscar o Esposo que não quer partes de nós mas a inteireza de nosso ser.

E. Os Mosteiros de clarissas serão cada vez mais próximos das pessoas, sem que percam o essencial o carisma. Suas liturgias serão eloquentes. Momentos de oração e tarde de retiro podem ser feitos em nossos Mosteiros. Franciscano seculares poderiam melhor haurir as riquezas desses Mosteiros.

F. De toda nossa reflexão ficou claro que os franciscanos e as clarissas precisarão descobrir caminhos novos a serem trilhados. Não cansamos de repetir que se torna urgente uma fidelidade criativa. Renovar ou morrer.

G. “Hoje somos vítimas de tensões, do “stress” e da depressão que ameaçam nossa ‘saúde’ espiritual. Talvez uma das tarefas de Santa Clara poderia ser a de ajudar-nos a reencontrar a harmonia dos valores franciscano-clarianos, a gratuidade e a beleza de nossa vida, sem pretensões de eficiência. É fácil sermos instrumentalizados pelas necessidades imediatas e perdermos a visão de conjunto, a capacidade de discernir aquilo que é urgente, daquilo que é necessário; preocupamo-nos com muitos projetos que programamos ou que nos são propostos pelo mundo consumista em que vivemos e corremos o risco de esquecer o compromisso primário de ser “projeto de Deus”. Creio que seja urgente, hoje, renovar e continuar a colaboração entre Clara e Francisco para evitar toda forma de “insânia”, de “esquizofrenia” que destrói a própria vida consagrada” (Frei Giacomo Bini, OFM).

Clara não reivindicou para ela e suas irmãs o direito de pregar ou ensinar, mas desejava ardentemente continuar vivendo em simbiose com os irmãos menores e recusava a ideia de ver a sua comunidade transformar-se em um mosteiro de virgens reclusas e dotadas de rendas; se parece não ter tido dificuldade em aceitar a estabilidade e a clausura, à semelhança das reclusas, que, aos mesmo tempo que se dedicavam à contemplação, guardavam contato como mundo que as rodeava, Clara sempre recusou ceder no capítulo da pobreza, porque o fato de viver numa precariedade permanente constituía o ponto sobre o qual a sua fundação podia, diferenciando-se do monarquismo beneditino clássico, permanecer fiel ao Espírito do Poverello e, através dele, com as aspirações evangélicas que haviam animado os movimentos leigos do século XI e começos do século XIII.

André Vauchez
Santa Clara y los movimientos religiosos femininos de su tiempo
Selleciones de Franciscanismo, 1977, vol 26, p. 452

20 de junho de 2011

PÁGINAS FRANCISCANAS

FRANCISCO, APAIXONADO
PELO ABSOLUTO

Francisco de Assis, ao longo de toda sua vida, foi alguém que buscou apaixonadamente o Absoluto. Esta é uma das características de seu temperamento. Depois de sua conversão será também marca de seu jeito espiritual de ser. Alguém que escapa da mesmice e da mediocridade. Esta página poderá muito bem ser um texto para ser colocado nas mãos de eventuais vocacionados franciscanos.

Um temperamento humano orientado para o absoluto

Múltiplas são as situações evocadas por seus biógrafos que revelam como Francisco de Assis era, por natureza, uma apaixonado. Não queria fazer as coisas pela metade. Particularmente significativo a esse respeito foi o seu comportamento por ocasião de uma peregrinação que fez a Roma, nos primeiros anos de sua conversão (Três Companheiros 10). Diante da falta de generosidade dos que visitavam o túmulo de São Pedro, ele se revolta e, num gesto teatral que podemos bem visualizar, atira na direção dos mendigos punhados de moedas que tira de sua bolsa. Depois, saindo da igreja, troca suas roupas com as de um pobre e coloca-se a mendigar em seu lugar para experimentar a gama de sentimentos que podiam existir no coração daquele que nada tem: humilhação aos olhos dos homens, ação de graças pela generosidade providencial de Deus.

Em outros lugares, seus biógrafos, quando uma ocasião se apresenta, se comprazem com gosto em chamar atenção para a radicalidade de suas decisões. Assim lemos em Tomás de Celano (1Celano 17). Francisco ficou com remorsos de não ter dado esmola a um pobre e fez o propósito, dai em diante, “na medida do possível não negar alguma coisa a quem lhe pedisse por amor de Deus. E isto ele fez e cumpriu com maior diligência até oferecer-se totalmente a si mesmo de todos os modos tornando-se antes cumpridor do que ensinador do conselho evangélico”.

Com um tal temperamento numerosas foram as ocasiões em que exprimiu seu voluntarismo tanto no plano espiritual quando no plano humano. Duas realidades de vida constituem os traços maiores desta busca incessante do absoluto: o retiro e a itinerância peregrinante.

Experiência primordial do retiro

As origens de sua vocação, lembramo-nos bem, estão ligadas à voz que havia feito com que ele se detivesse na estrada de Espoleto, ordenando que voltasse a Assis: “Lá eu te mostrarei o que tens a fazer”. Depois deste acontecimento emocionante, durante longos meses, dirigiu-se para cavernas e lugares retirados “ para tomar distância pouco a pouco do tumulto do mundo”, procurando saber a vontade de Deus. “Procurava guardar em seu interior a Jesus Cristo e quase todos os dias ia frequente e secretamente fazer orações. Sentia-se atraído pela doçura que experimentava e que penetrando em sua alma, mesmo nas praças e outros lugares públicos, o impelia à oração” (Três Companheiros, 8).

Esta forte experiência da doçura de Deus, longe do mundo, está em conexão com a experiência fundamental da escolha eremítica porque é no silêncio, mais precisamente no íntimo de si mesmo, que Deus se revela na figura d’Aquele à imagem e semelhança de quem fomos feito, o Cristo (cf. Admoestação 5). Não vale a pena consagrar a tal bem todos os nossos bens? Não somente os bens materiais (Francisco renuncia á herança), mas ainda aos bens relacionais (rompe com seu pai) chegando à renúncia de si mesmo (enfrenta deboches e a desaprovação de todos que pensam ter ele ficado maluco, mas ignorando que ele assim agia por identificação amorosa com o crucificado, numa loucura de amor). Três aspectos da pobreza, três renúncias que Francisco evoca explicitamente no começo de sua Regra (1Regra 1).

A itinerância

Graças ao episódio subsequente ocorrido na festa de São Matias, sabemos que Francisco tinha optado pelo habitus de eremita (quer dizer, tanto o hábito-roupa quanto os hábitos de vida) e que, no momento em que ouviu ao evangelho do envio dos 72 discípulos, dizendo “É isso que quero viver” ele se conformou à palavra evocada optando por um outro habitus fazendo dele um eremita pregador.

Lembramo-nos como, depois, voltando de Roma com seus primeiros companheiros, conseguindo aprovação do Papa para seu gênero de vida, os irmãos se puseram a mesma questão: viver no ermo ou ir pelas estradas e pregar? Esta questão ficará sempre ardente ao longo de sua vida. Um dia, não aguentando mais, enviou a Clara, a contemplativa, e a frei Silvestre, o primeiro sacerdote do grupo, alguns irmãos para que os dois o ajudassem a esclarecer a escolha que deveria fazer. Recebeu a inequívoca resposta de que deveria partir em pregação da Boa Nova.

A acreditar no testemunho deixado pela existência de um grande número de conventinhos, que em razão de sua colocação, eram eremitérios, fica claro que Francisco levava os dois tipos de vida: nos eremitérios e na pregação. Segundo os cálculos feitos por alguns historiadores, Francisco passava 200 dias por ano retirado nesses lugares de silêncio. A outra parte do tempo, estava nas estradas, servindo-se de todas as ocasiões que apareciam para pregar, como aliás, era costume de muitos eremitas dos séculos XI e XII. Alguns se tornaram muito conhecidos como Roberto de Abrissel e seus companheiros.

François, un chercheur passioné de l’absolu
Jean-Baptiste Auberger, OFM
in Évangile d’aujourd’hui, n. 178, 1998, p.25-27

Perguntas para reflexão com jovens e vocacionados

1.
As poucas linhas do texto acima falam de um Francisco apaixonado. Dá para captar essa dimensão no texto?
2. Será que jovens que querem ser franciscanos experimentam um apelo ao eremitério?
3. Como os jovens que optam pelo caminho da vida franciscana consagrada imaginam sua vida de missionários?

Meditação Diária


“O amor é a asa veloz que Deus deu à alma para que ela voe até o céu”

(Michelangelo Buonarroti)

O amor não é simplesmente um sentimento sublime, mas uma fagulha divina em nós. Fomos criados por amor e no amor eterno de Deus. O amor é fogo que arde em nós, impelindo-nos a vivenciá-lo, a partilhá-lo, a oferecê-lo. Somente o amor de Deus em nós é capaz de vencer o medo, as incapacidades e o ódio que foi tomando conta de nossos corações. O amor é fogo ardente, o ódio é frio insensível...

Cultive esse fogo do amor dentro de ti. Ame, apesar dos riscos de amar. Ame, apesar das incompreensões. Ame seus pais, seus irmãos, seus amigos, sua família, a vida! Concretize seu amor em gestos e atitudes. Deus nos ama por que Ele, sendo amor em si, precisa expandir-Se em nossa direção. Ele á amor que se doa sempre, sem esperar retribuições...

Frei Paulo Sérgio de Souza, OFM

17 de junho de 2011

Meditação Diária


"A vida é esta aventura emocionante, porque o tempo e o espaço nos ocupam, porque nós não temos, nunca a menor idéia do que está por acontecer"

(TELES, Lygia Fagundes)

Aventura é sempre algo emocionante. E a emoção pode ser positiva ou negativa. Nós temos o poder de construir emoções positivas quando abrimos espaço para uma sinergia com o mais profundo de nós mesmos (SI-MESMO). Quando conectamos com nosso arquétipo (fonte de energia do Si-Mesmo) vamos descortinando um universo totalmente novo e inexplorado.

Apesar de nossa consciência não saber o que está para nos acontecer, podemos perceber ou intuir pela energia da alma. Esta conhece o tempo e a eternidade, pois é a fagulha do divino em nós. A alma é nosso contato com o Transcendente. Portanto, busquemos contacto com nosso mundo interior. Aí está a chave para nossa plenitude!

Frei Paulo Sérgio de Souza, OFM

13 de junho de 2011

ESPECIAL SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA



Bênção e Santo Antônio
Eis a Cruz do Senhor,
afastem-se para longe de nós
todos os inimigos da salvação.
Venceu o Cristo Jesus,
nosso Senhor e Salvador.
Em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo, Amém.

Apresentação

O século XII foi o século dos santos. Entre eles, São Bernardo, São Domingos, São Francisco e Santo Antônio; este último natural de Lisboa (Portugal), onde nasceu a 15 de agosto de 1195. Ele também ficou conhecido como Santo Antônio de Pádua, porque faleceu na cidade italiana no dia 13 de junho de 1231.

Em oito séculos, Santo Antônio ganhou milhares de devotos no mundo inteiro, especialmente no Brasil, Portugal e Itália. Neste Especial de Santo Antônio, mostramos um pouco de sua vida por ordem cronológica e registramos algumas frases e ditos do Santo.

Publicamos a carta de Pio XII que o tornou Doutor da Igreja e a Carta de João Paulo II por ocasião das festividades do oitavo centenário do nascimento deste franciscano.

Conheça também a iconografia antoniana, as lendas e milagres que cercam a devoção. Entenda o porquê da devoção às terças-feiras.

Por último, uma galeria de imagens mostra como os grandes pintores da humanidade retrataram este frade português, além de fotos do Santuário de Pádua, e as programações das Trezenas nas paróquias e conventos da Província da Imaculada Conceição.


Devoção das terças-feiras

Santo Antônio foi sepultado no dia 17 de junho, terça-feira. Teve então início o costume de lembrá-lo nesse dia. Com o decorrer do tempo o costume passou para o esquecimento.

Reapareceu no século XVII, como explicam os Bollandistas num caso de 1616. Um casal de Bolonha não conseguira ter filhos durante vinte e dois anos, por mais que o desejassem. Foi aí que entrou Santo Antônio. Os esposos apelaram para sua intercessão.

O santo apareceu à esposa, mandando-a visitar por nove dias sua imagem na igreja de São Francisco na dita cidade. Ela conseguiu engravidar, mas deu à luz uma criança deformada. Cheia de confiança levou o filhinho à igreja e o colocou sobre o altar de Santo António.

Tocada apenas a pedra do altar, desapareceu a deformidade. Após isso, espalhou-se a notícia e a devoção das nove terças-feiras, acrescida com o tempo de mais quatro dias, formando o número treze, em lembrança do dia da morte do santo.

Há ainda muitas igrejas, nas quais, às terças-feiras, o movimento de fiéis é considerável. Horários especiais de celebrações eucarísticas, muita gente na fila do confessionário e, ao fim da missa, a bênção de Santo António, com aspersão dos fiéis. Algumas também distribuem pãezinhos de Santo Antônio.

Um exemplo muçulmano - Conta o Ministro Geral dos Frades Menores Conventuais que, em suas passagens por Istambul, impressionou-o o que ocorre às terças-feiras na igreja conventual de Sent Antun. "Nesse dia, todas as semanas e já desde o começo deste século, a bonita e ampla igreja fica sobretudo à disposição dos turcos, e estes, desde a manhã até à noite, sem pausa nem mesmo na hora do almoço, passam em ordem e com devoção diante do altar do Santo e exprimem, cada um segundo a própria sensibilidade religiosa, os próprios pedidos. Fazem-no sem contar as horas, com profunda compreensão, em silêncio e com respeito, com muita compostura e sinceridade. Depois de percorrerem o templo, pausadamente, e muitos tendo até assistido à missa, celebrada em turco, antes de saírem exprimem, em um livro volumoso, os próprios sentimentos, na multiplicidade das línguas médio-orientais..."

Do livro "Santo Antônio Popular", de Frei Ildefonso Silveira, ofm


Cronologia

1195 - Segundo a tradição mais corrente, nasce em Lisboa, filho de Martim Afonso e Maria. De família "nobre e poderosa". Batizado com o nome de Fernando.

1202-1209 - Durante aproximadamente sete anos, estuda na escola episcopal anexa à Catedral de Lisboa.

1210 (?) - Ingressa no Mosteiro de São Vicente, dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho, nos arredores de Lisboa.

1212 (?) - Passa para o Mosteiro da Santa Cruz, pertencente também aos Cônegos Regulares de Santo Agostinho. O mosteiro atendia a uma paróquia na cidade e a outra no meio rural, dirigia dois hospitais, dava hospedagem e tinha outros trabalhos pastorais e assistenciais.

1220 - É ordenado sacerdote. Como encarregado da hospedaria, recebe os primeiros franciscanos provenientes de Assis que o impressionaram profundamente. Pouco depois, estes são martirizados em Marrakesh, no Marrocos, e seus restos mortais são sepultados na Igreja dos Cônegos de Santa Cruz. Deixa a Ordem Agostiniana para ingressar na Ordem Franciscana, mudando de nome: chamar-se-á Frei Antônio. Pelo fim do ano, viaja a Marrocos. Apenas chega, adoece gravemente.

1221 - Na primavera, embarca de regresso a Portugal para tratar da saúde, mas um furacão arrasta a nave, e Frei Antônio desembarca na Sicília, sendo hospedado pelos franciscanos de Messina. Em maio, viaja para Assis, onde participa do famoso "Capítulo das Esteiras". Encontra São Francisco, que havia renunciado ao governo da Ordem, e ouve suas edmoestações. Ao final do Capítulo, Frei Graciano, "Ministro e Servo" dos irmãos menores da Romanha, leva Frei Antônio consigo e o envia ao Eremitério de Monte Paolo, nos arredores de Forli, para celebrar a missa, fazer a limpeza e participar do ofício coral. Permanece ali uns quinze meses.

1223 - Em setembro, por ocasião da ordenação sacra de alguns irmãos, Frei Antônio revela sua doutrina bíblica, seu ardor e sua arte oratória. A partir deste momento, é destinado à pregação itinerante e à formação teológica dos irmãos. Pelo final do ano ou início do ano seguinte, recebe um bilhete de São Francisco, que o autoriza a ensinar a sagrada Teologia em Bolonha.

1224 (?) - Encontramos Frei Antônio em Vercelli.

1225 (?) - Passa para a França e prega em Montpeilier, Aries, Toulouse, Limoges e Bourges.

1226 - É nomeado "Custódio" dos frades menores da região de Limoges, guiando-os na difícil tarefa da evangelização, do trabalho pastoral e do combate à heresia. Dedica-se ainda ao ensino teológico e à redação de subsídios para a pregação. Entrega-se a uma intensa vida contemplativa.

1227 - No fim deste ano ou no princípio do ano seguinte, está novamente na Itália, exercendo o cargo de "Ministro Provincial" das regiões setentrionais.

1229-1230 - Pregação itinerante de Frei Antônio na Marca de Treviso e em Pádua, onde redige os Sermões dominicais, marianos e festivos.

1230 - Participa do Capítulo Geral de Assis, no fim do qual, com outros irmãos, se dirige a Roma para expor ao Papa os problemas da Ordem, que estava em plena crise de identidade, crescimento e adaptação.

1231 - Prega a famosa quaresma de 1231, que foi uma refundação cristã de Pádua. Pregação catequética diária e confissões em massa. Esta pregação-catequese foi o início de uma imponente evangelização da cidade e de seus arredores. Sua saúde está irremediavelmente comprometida. Em fins de maio, está em Camposampiero, onde completa alguns manuscritos e se dedica à contemplação. Ao meio-dia de 13 de junho, sofre um colapso. Quer regressar a Pádua, mas durante a viagem teve que se deter em Arcella, onde morre.

1232 - O Papa Gregório IX canoniza-o no dia 30 de maio, na catedral de Espoleto. É venerado com o título de Doutor da Igreja até 1568, tradição que é confirmada pelo Papa Pio XII no dia 16 de janeiro de 1946. Seu título litúrgico é Doctor Evangelícus.


Pensamentos de Santo Antônio

1. A vida contemplativa não foi instituída por causa da ativa, mas a vida ativa por causa da contemplativa.

2. A fé se compara ao peixe. Assim como o peixe é batido pelas freqüentes ondas do mar, sem que morra com isso, também a fé não se quebra com as adversidades.

3. Quem está cheio das glórias do mundo se assemelha à bexiga que, cheia de vento, parece maior do que é; basta uma picadinha da agulha da morte e se verá o pouco que é.

4. Não é o temor que faz o servo nem é o amor que faz o livre; mas antes o temor é que faz o livre, o amor que faz o servo.

5. Em todo o corpo do homem o diabo não encontra nenhum membro tão conveniente para ser caçado, para espiar, para enganar, como o coração, porque dele procede a vida.

6. A paciência é melhor maneira de vencer.

7. Quanto mais profundamente lançares o alicerce da humildade, tanto mais alto poderás construir o edifício.

8. Jerusalém tinha uma porta chamada "Buraco da Agulha", pela qual não podia entrar um camelo, porque era baixa. Esta porta é Cristo humilde, pela qual não pode entrar o soberbo ou o corcunda avarento. Aquele que pretende entrar por ela tem de se humilhar.

9. Maria não afugenta nenhum pecador, antes, recebe a todos os que se refugiam nela e, por isso, é chamada Mãe de Misericórdia: é misericordiosa para com os miseráveis, é esperança para os desesperados.

10. O coração profundo é o coração do que ama, do que deseja, do contemplativo, do desprezador das coisas inferiores. Quando te aproximas de tal coração com passos devotos. Deus é exaltado, não em si, mas em ti; a sua exaltação é a intensidade do teu amor, é a elevação do teu espírito.

11. Feliz aquele que arranca de si o coração de pedra e toma um coração de carne, capaz de se doer compungido das misérias dos pobres, de modo que a sua compaixão lhe sirva de consolo e este consolo lhe dissipe a avareza.

12. Oscula com a boca a própria mão quem louva o que faz.

13. Acredita o estulto no conselho da raposa, fiado em que o bem transitório e mutável seja verdadeiro e duradouro.

14. Não poderás levar os fardos de outrem, se não depuseres primeiro os teus. Alivia-te primeiro dos teus, e poderás levar os fardos de outrem.

15. O que o Senhor faz em nós com a nossa cooperação é maior do que tudo o que faz sem nós.

16. Assim como o vento que entra pela boca aberta não mata a sede, mas aumenta-a mais, o mesmo sucede com a vaidade da dignidade.

17. Assim como a flor, quando espalha o odor, não se corrompe, também o verdadeiramente humilde não se eleva quando louvado pelo perfume da sua vida de bondade.

18. A mentira reside na língua, o roubo na mão, as extorsões no coração.

19. Aquele que segue a outro no caminho, não olha para si, mas para aquele a quem constituiu guia da sua vida.

20. Antes de entrar um raio de sol em casa, não aparece dentro, no ar, o pó; se, porém, entrar um raio de sol, parece cheia de pó.

21. Todo enfermo diz: Amarga é a poção para os que a bebem, mas quando se afastar a enfermidade, então se gloriará.

22. O insensato, como um asno, ouve somente o som da palavra divina, mas o sábio percebe-lhe a força e leva-a ao coração.

23. Dizem que o filho da cegonha ama tanto o pai que, ao vê-lo envelhecer, sustenta-o e alimenta-o. Isso faz por instinto. Também nós devemos sutentar o nosso Pai nos seus membros débeis e doentes e alimenta-los nos pobres e necessitados.

24. A soberba, para não ser desprezada, procura encobrir-se na preciosa humildade.

25. Usa mais vezes os ouvidos do que a língua.

26. O hipócrita se assemelha ao pavão: ao ser provocado pelas crianças, mostra o esplendor das suas penas e, quando faz rodar a cauda, descobre torpemente o traseiro.

Pensamentos extraídos do livro "Ensinamentos e Admoestações", da Editora Vozes; e "Obras Completas de Santo António de Lisboa", Editorial Restauração, Lisboa.


Um dos sermões de Santo Antônio

O tentador aproximou-se de Jesus e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães” (Mt 4,3). O diabo em circunstâncias semelhantes procede de maneira semelhante. Com a mesma tática com que tentou Adão no paraíso terrestre, tentou também a Cristo no deserto e continua tentando qualquer cristão neste mundo. Tentou o primeiro Adão pela gula, pela vanglória e pela avareza e, tentando-o, venceu-o. Ao segundo Adão, isto é, Cristo, ele tentou de maneira semelhante, mas no foi vencido no seu intento porque quem ele tentava então não era somente um homem, mas era também Deus! Nós, que somos participantes de ambos, do homem segundo a carne e de Deus segundo o espírito, despojemo-nos do homem velho com suas obras que são a gula, a vanglória e a avareza e vistamo-nos do homem novo, renovados pela confissão, para frearmos, com o jejum, o desenfreado ardor da gula, para abatermos, com a humildade da confissão, a altura da vanglória, para pisarmos, com a contrição do coração, o denso lodo da avareza. “Bem aventurados, diz o Senhor, os pobres em espírito”, isto é, os que têm o espírito dolorido e o coração contrito, “porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3).

Procure ainda observar que, assim como o diabo tentou de gula o Senhor no deserto, de vanglória no templo, de avareza no cimo do monte, assim também faz conosco todos os dias: tenta-nos de gula no deserto do jejum, de vanglória no templo da oração e do ofício, de tantas formas de avareza no monte dos nossos cargos. Enquanto fazemos jejum, ele nos sugere a gula, com a qual pecamos em cinco maneiras, como diz o verso: “antes do tempo, abundantemente, demais, com voracidade e com delicadeza exagerada” (São Gregório). ANTES DO TEMPO, isto é, quando se come antes da hora; ABUNDANTEMENTE, quando se excita a gulosice da língua e se quer aumentar um apetite fraco com temperos, especiarias e toda espécie de comida; DEMAIS, quando se come mais comida do que o corpo necessita; pois dizem alguns gulosos: temos que fazer jejum, então vamos comer para suprir de uma só vez tanto o almoço quanto a janta. Estes são como o bicho-da-seda que não sai da árvore em que está até não devorá-la completamente. O “bruco” (bicho-da-seda) é chamado assim porque é feito quase só de boca e simboliza muito bem os gulosos que são tudo, gula e barriga, e assaltam o prato como se fosse uma fortaleza e não o deixam se antes não o devoraram todo: ou se estoura a barriga ou se esvazia o prato! COM VORACIDADE quando o homem se joga sobre qualquer comida como se fosse assaltar uma fortaleza, abre os braços, estica as mãos, come com todo seu corpo; à mesa é como um cão que, na comida, não quer ter rivais. COM DELICADEZA EXAGERADA quando se procura só comidas deliciosas e preparadas com grande esmero.

Como se lê no primeiro livro dos Reis, sobre os filhos de Heli, que não queriam aceitar a carne cozida, mas só a crua, para poderem prepará-la com mais temperos e outras iguarias. Semelhantemente, o diabo nos tenta de vanglória no templo. Com efeito, enquanto estamos em oração, enquanto recitamos o ofício e estamos ocupados na pregação, somos assaltados pelo diabo com os dardos da vanglória e, infelizmente, muitas vezes feridos. Existem efetivamente alguns que, enquanto oram e dobram os joelhos e soltam suspiros, querem ser vistos. E há outros que, quando cantam em coro, modulam a voz, fazem falsetes e desejam ser ouvidos. Enfim, há também os que, quando pregam, elevam a voz como trovão, multiplicam as citações, interpretam-nas a seu modo, giram-se pra cá e pra lá e desejam ser louvados. Todos esses mercenários – acreditem-me – “já receberam sua recompensa” (Mt 6,2) e colocaram sua filha no prostíbulo. Diz Moisés no Levítico: “Não profanes a tua filha, fazendo-a prostituir-se” (19,29). Filha minha é a minha obra e eu a prostituo, quer dizer, a coloco no prostíbulo quando a vendo pelo dinheiro da vanglória. Por isso é que o Senhor nos aconselha: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora ao teu Pai que está lá no segredo” (Mt 6,6). Tu, quando quiseres rezar ou fazer alguma coisa de bom – e é nisto que consiste o “orar sem cessar” – entra em teu quarto, isto é, no segredo do teu coração, e fecha a porta dos cinco sentidos para não desejar nem ser visto nem ser escutado nem ser louvado. Com efeito, diz Lucas (1,9) que Zacarias entrou no templo do Senhor na hora do incenso. No tempo da oração ‘que se eleva à presença do Senhor como o incenso’ (Salmo 140,2). Tu deves entrar no templo do teu coração e orar ao teu Pai e “o teu Pai, que vê no segredo, te recompensará” (Mt 6,6). Além disso, do alto dos nossos encargos, da nossa passageira dignidade, somos tentados a cometer muitos pecados de avareza. Não existe só a avareza do dinheiro, mas também aquela do querer ser mais do que os outros. Os avarentos, mais têm mais desejam possuir.

Aqueles que ocupam altos postos, quanto mais sobem mais querem subir e assim acontece que caem com numa queda muito mais ruidosa, já que “os ventos sopram mais nos lugares altos” (Ovídio) e “aos ídolos é que são oferecidos sacrifícios nas alturas” (4 Reis 12,3). Diz Salomão a propósito: “O fogo não diz nunca: basta!” (Prov 30,16). O fogo, quer dizer, a avareza do dinheiro e das honrarias não diz nunca: basta! Mas o que é que diz então? “Mais, mais!” þ Senhor Jesus, tirai, tirai estes dois “mais, mais” dos prelados de vossa Igreja, que se pavoneiam no alto de suas dignidades eclesiásticas e gastam o vosso patrimônio, por Vós conquistado com os tapas, com as flagelações, com as cusparadas, com a cruz, com os cravos, com o vinagre, com o fel e a lança. Nós, portanto, que somos chamados cristãos por causa do nome de Cristo, imploramos todos juntos, com a devoção da alma e ao mesmo Jesus Cristo, e pedimos insistentemente que ele, do espírito de contrição, nos faça chegar ao deserto da confissão, a fim de que, nesta Quaresma, mereçamos receber o perdão de todas as nossas maldades e, renovados e purificados, nos tornemos dignos de gozar da alegria da sua santa Ressurreição e ser colocados na glória da felicidade eterna. No-lo conceda Aquele a quem se deve toda honra e toda glória por todos os séculos dos séculos. Amém.

Tradução: Frei Geraldo Monteiro, OFM Conv


Homem do Evangelho e da Solidariedade

Fernando nasceu em Lisboa, Portugal, em 15 de agosto de 1191. Seus pais eram de nobre linhagem: Fernando Martins Afonso de Bulhões e Maria Taveira. Moravam bem de frente à catedral. Nessa escola episcopal, Fernando recebeu a instrução cristã e elementar. Adolescente ainda entrou para o seminário dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho, de onde ele mesmo pediu transferência para Coimbra (a quase 200 quilômetros de distância) a fim de continuar seus estudos. com mais sossego, sem a atrapalhação das contínuas visitas de parentes e amigos que queriam persuadi-lo a desistir da "sua" vocação. Fernando era um jovem que sabia o que queria: dedicar-se de corpo e alma a Deus e aos estudos da Bíblia Sagrada. Na cidade universitária - Coimbra ­porém, ele encontrou uma outra dificuldade no seu desejo de seguir em radicalidade a Palavra de Deus. Na época, o mosteiro de Santa Cruz, onde morava e estudava, era palco de intrigas, fuxicos e brigas por bens materiais entre prelados e reis, monges e leigos. Fernando se empenhou fortemente por estar alheio a toda essa dura, mas triste realidade. Mais do que nunca, dedicou­se a seus estudos escriturísticos e ao seu crescimento espiritual. Um dia encontrou-se com 5 frades franciscanos. Amor à primeira vista: viu neles todo o Evangelho vivido na simplicidade, na alegria, na humildade e na generosidade.

Estavam de saída para Marrocos, para pregar a "PAZ" e o "BEM", como dizia o fundador deles, Francisco de Assis, ainda vivo, na Itália. Tempos depois, diante das relíquias dos 5 primeiros mártires franciscanos, Fernando não teve mais dúvidas: trocou todo aquele aparato clerical cheio de hipocrisia que ele conhecia pela simplicidade do Evangelho vivido na fraternidade e no anúncio do Reino de Deus a povos pagãos. Trocou até o nome. De Fernando passou a ser chamado Antônio, frei Antônio e, jovem ainda, teve um só desejo: morrer mártir como aqueles 5 frades e "merecer, assim, junto com eles, a coroa da glória."

Não havia soado ainda, a hora de Deus! O homem propõe. Deus dispõe. Uma febre sem tamanho, na África, deixou-o prostrado meses na cama. Aos poucos também aprende ­com que fadiga! - a seguir o projeto de Deus. Decide voltar a Portugal, sua ter­ra natal. Qual novo Pentecostes, porém, os ventos sopram seu navio na direção da Itália e ali ele começa co­locar-se definitiva­mente nos passos de Deus. Na grande reunião dos frades (3.000) em Assis, encontra-se com Francisco, com milhares de irmãos que segui­am o mesmo ideal e, mais tarde, com Clara de Assis... Mu­dança radical na sua vida, no seu desejo. Antônio não toma mais ' a iniciativa ­talvez pela decisão dura e pedagógica de Marrocos -, mas se entrega incondicionalmente, embora também com certo medo, nas mãos de Deus. Terminada a grande assembléia, em maio de 1221, escolhe o silêncio: nada mais diz sobre sua preparação, seus estudos, sua competência. Ninguém o conhece. Ninguém se interessa por ele. "As almas humildes - escreverá mais tarde com conhecimento de causa -, desconhecidas e felizes por serem esquecidas, são aquelas que imitam mais perfeitamente a vida escondi­da de Jesus de Nazaré" (Sermões). E, assim, a pedido de frei Graciano, ministro provincial da Romanha, no centro da Itália, lá vai frei Antônio fazer parte de um conventinho eremitério situado no cimo do Monte Paulo. Como sacerdote, reza missa aos confrades, mas faz outros serviços necessários à comunidade, como lavar pratos, cuidar da horta, da limpeza, etc.

Dedica-se a longos tempos de oração - contemplação, jejum e penitência. “Em águas turvas, escreverá mais tarde, não se vê espelhado o próprio rosto. Se quiseres que o rosto de Cristo se espelhe em ti, sai do barulho das coisas e guarda tranqüila tua alma "(Sermões).

Finalmente chega a hora de Antônio, que é a hora de Deus. Na cidade de Forli, durante uma ordenação sacerdotal, na catedral lotada de padres, irmãs, freis e fiéis, é convocado pelo superior a fazer a pregação. Daqueles lábios há tanto tempo calados surgem, de repente, como de uma fonte viva de água cristalina, as palavras mais comoventes, os exemplos mais convincentes, os estímulos mais penetrantes. Todos, do bispo ao provincial frei Graciano, dos frades às irmãs, dos padres aos fiéis, to­dos ficam admirados pela eloqüência, pela sabedoria e pela profundidade daquele frade até então desconhecido. Dali para frente, todos chamam a frei Antônio e ele passa a percorrer as estradas, sobretudo as do norte da Itália e as do sul da França e, nos últimos anos, (1229-1231), os caminhos de Pádua, anunciando o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Percorrendo as estradas da Europa, frei Antônio percebe a fraqueza do povo na prática da fé, vítima às vezes das inúmeras heresias e erros da época. Francisco o admira e envia-lhe um bilhete pedindo que a mesma sabedoria que lhe deu uma profunda experiência de Deus, ele a transmita a seus confrades.

"A frei Antônio, meu bispo: Saudações! Muito me agrada que tu ensines a sagrada teologia aos frades, contanto que não se extinga o espírito da santa oração e devoção ao qual tudo deve estar submisso, conforme está escrito na Regra frei Francisco".

Coisa admirável, maravilhosa. Antonio unia em si a sabedoria e a humildade, a cultura e a simplicidade, a oração e a caridade. Confrades e povo o "adoravam" nesse sentido. Tão alto em sua cultura e tão simples no trato com a gente, Doutor da Igreja e amigo dos simples e dos pobres! E o povo ouve suas palavras. Segue seus conselhos. Sente­-se reconfortado em suas lutas. Crianças são por ele abraçadas e abençoadas. Mulheres e esposas são defendidas em seus direitos. Lares são reunidos pela força do amor que ele tão bem sabe suscitar.

E o povo continua a contar: "a mula se ajoelhou diante da Eucaristia. O coração avarento foi encontrado no cofre do seu tesouro. Ele curou o pé decepa­do de um jovem. Ele pregou aos peixes. Ele defendeu os agricultores diante do terrível Ezzelino da Romano...'

E, assim, passou frei Antônio seus últimos anos, curando e consolando os outros e tendo, para si, cansaço, doenças e penitência. Após uma intensa atividade de pregações e confissões de Quaresma em Pádua, retira-se na tranqüilidade da localidade de Camposampiero.

Mas, em junho de 1231, sente as forças faltarem-lhe completamente. Pede para voltar a Pádua. Percorre os 20km em carro de boi, moribundo. Em Arcella, às portas da cidade de Pádua, num quartinho humilde do convento das Irmãs Clarissas Franciscanas, exala o último suspiro, cantando com voz tênue: "Gloriosa Senhora - sobre as estrelas exaltada - alimentaste em teu seio Aquele que te criou". Olhando um ponto fixo, consegue ainda exclamar: "Estou vendo o meu Senhor". E morre. Não chegara aos 40 anos. Onze meses depois, em 30 de maio de 1232, na catedral de Espoleto, Itália, foi proclamado Santo pelo papa Gregório IX.

Mensageiro de Santo Antônio




O Pão de Santo Antônio

À luz da Teologia do culto dos santos, podemos perceber que Santo Antônio, por ter sido um "homem enamorado de Cristo e do seu Evangelho", apresenta uma mensagem muito rica. Poderíamos desdobrá-la a partir dos símbolos com os quais ele é representado, como o Livro dos Evangelhos. o Menino Jesus sobre o Livro, a Cruz, o lírio.

Aqui gostaríamos de deter-nos no símbolo do pão. O pão constitui um elemento inseparável de toda a devoção a Santo Antônio, independente de sua origem. Ele até se chama "Pão de Santo Antônio".

A história do "Pão de Santo Antônio" remonta a um fato curioso que é assim narrado: "Antônio comovia-se tanto com a pobreza que, certa vez, distribuiu aos pobres todo o pão do convento em que vivia. O frade padeiro ficou em apuros, quando, na hora da refeição, percebeu que os frades não tinham o que comer: os pães tinham sido roubados".

Atônito, foi contar ao santo o ocorrido. Este mandou que verificasse melhor o lugar em que os tinha deixado. O Irmão padeiro voltou estupefato e alegre: os cestos transbordavam de pão, tanto que foram distribuídos aos frades e aos pobres do convento.

Até hoje na devoção popular o "pãozinho de Santo Antônio" é colocado, pelos fiéis nos sacos de farinha, com a fé de que, assim, nunca lhes faltará o de que comer.

Mais do que a lenda da origem do "Pão de Santo Antônio", importa perceber toda a riqueza do seu simbolismo. Sem dúvida ele revela toda a riqueza da dimensão apostólica da vida de Santo Antônio.

Por curiosidade interessei-me em saber se havia alguma estátua de Santo António com o pão em sua figuração. Assim, certo dia, entrei por acaso na igreja de Santa Luzia no Castelo, no Centro do Rio de Janeiro. Encontrei no fundo da igreja uma Imagem de Santo Antônio, tendo sobre o braço esquerdo o Livro dos Evangelhos, com o Menino Deus sentado sobre o livro, segurando um cesto repleto de pães, enquanto Santo Antônio com a mão direita oferece um pão a alguém. Era o que procurava.

Fato é que, através de Santo Antônio, Jesus continua a realizar o grande milagre da multiplicação dos pães. Jesus tem compaixão da multidão faminta e multiplica o pão para saciar-lhe a fome.

Mas se olharmos para as narrações da multiplicação dos pães, vemos que Jesus nunca age sozinho. Pede a colaboração dos apóstolos: "Dai-lhes vós mesmos de comer; quantos pães tendes, ide ver". Voltando de sua procura, trouxeram-lhe cinco pães e dois peixes. Deu ordens para que fizessem sentar-se à multidão, em grupos, na relva verde. Jesus dá graças sobre os pães e os peixes e dá aos discípulos para distribuí-los. E no fim foram ainda os apóstolos que recolheram doze cestos cheios de pedaços de pão e restos de peixe (cf. Mc 6,35-44).

O grande milagre de Jesus está em multiplicar sua presença e sua ação nos seus discípulos. Através deles é que Jesus quer saciar a fome da multidão faminta, tanto da fome corporal como espiritual. Através dos seus discípulos Jesus deseja ser alimento, deseja ser o pão para a vida do mundo.

O pão simboliza tudo. Simboliza a vida. simboliza a fraternidade. Quando se diz que falta o pão, dizemos que falta a comida, falta o alimento, falta o necessário para a vida. Por isso, Jesus ensina a pedir o pão de cada dia, em outras palavras, que Deus nos conceda a vida, para que possamos realizar a sua vontade, para que o seu Reino venha, e, assim, seu nome seja santificado, ele que é nosso Pai.

Como diz Santo Irineu: A glória de Deus é a vida do ser humano. Por isso, diz São Tiago em sua carta: "A religião pura e imaculada diante de Deus Pai é visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e conservar-se sem mancha neste mundo" (1,27).

Há duas maneiras de se fazer a memória e assim tomar presente Jesus Cristo hoje na Igreja, nos cristãos, no mundo: A primeira é a memória ritual ou celebrativa, principalmente pelos sacramentos e de modo especial pela Eucaristia. O segundo modo é pela memória testamentária.
É viver o testamento de Jesus Cristo transmitido na última Ceia, isto é, viver o sentido do lava-pés: viver o novo mandamento, ser também Corpo dado e Sangue derramado, a exemplo de Jesus Cristo.

São duas expressões da ação de graças, da Eucaristia, são duas maneiras de se viver a Eucaristia. Uma sem a outra é estéril; uma alimenta a outra. Não há verdadeira Eucaristia celebrada sem que também sejamos pão partilhado para a vida do próximo, a exemplo de Jesus Cristo.

Talvez o maior milagre que Santo Antônio continua realizando é justamente que sua mensagem, sua caridade, continuam presentes em tantas obras de caridade, em tantas "Pias Uniões de Santo Antônio", em tantas mulheres e homens também, capazes de dedicarem toda a sua capacidade de amor e de serviço ao próximo necessitado junto a igrejas dedicadas a Santo Antônio através do pão de Santo Antônio.

Quantas senhoras que dão seu tempo, sua dedicação para assistirem famílias e pessoas necessitadas! As contribuições em dinheiro oferecidas pelos fiéis para o "Pão de Santo Antônio" ou entregues aos frades "para os seus pobres".

Tudo isso poder-se-ia acusar de paternalismo. Não. Nosso Senhor mesmo disse: Pobres sempre tereis entre vós (cf. Jo 12,8). Penso que em relação a eles devemos distinguir dois aspectos: As obras de misericórdia fazem parte da vida evangélica, da vida cristã.

Contando a parábola do bom samaritano, Nosso Senhor nos ensina claramente que cada um deve aproximar-se do necessitado, ser próximo daquele que necessita de compaixão. Fazer o que estiver em nossas mãos para auxiliá-lo em sua necessidade.

Poderão dizer: Devemos promover a pessoa, dar-lhe o anzol para que possa pescar. Contudo se não tiver força nem para segurar o anzol será preciso dar-lhe também e, em primeiro lugar, o peixe. Claro que num segundo momento, ou simultaneamente, vem a promoção, que consistirá em criar todo um conjunto de condições para que a pessoa tenha condições de se autopromover. Através de suas imagens se percebe que Santo Antônio não retém o Menino Deus para si.

Apresenta-o, oferece-o a todos. Esta oferta transforma-se concretamente em pão, em alimento, e promoção das pessoas, principalmente das mais necessitadas.

Santo Antônio foi, sem dúvida, o grande pregador do Evangelho, o anunciador da verdadeira doutrina sobre Jesus Cristo. Encontrou Jesus Cristo e o seu mistério no estudo e na meditação dos Santos Evangelhos. Mas não o reteve para si.

Ele continua revelando esta faceta da vida evangélica e apostólica à Igreja dos nossos dias, convocada para a nova evangelização. Importa, porém, que os pregadores do Evangelho hoje também o vivam, também tenham encontrado nele o Cristo Jesus.

Só assim, o testemunho, o anúncio de Jesus Cristo será proclamado com novo ardor, será autêntico, e, por isso, eficaz. Como Antônio, o grande pregador, o missionário incansável, o homem de oração, todos os cristãos que aderem a Cristo, que são batizados e recebem o Espírito Santo como Dom do Pai e do Filho, no Sacramento da Crisma, também são chamados a viver sua vocação profética.

Ser profeta significa antes de tudo dar o testemunho do novo mandamento da caridade. Significa imitar Deus que é amor. É viver o amor na comunidade conjugal, na comunidade familiar, na comunidade social. Ser profeta e profetisa é revelar Deus neste mundo através do amor e apontar para Deus, imitando-o no seu amor em todas as circunstâncias da vida, é levar uma vida segundo o Evangelho.

Não só os apóstolos, não só os Bispos e os sacerdotes e os religiosos e religiosas devem pregar ou anunciar o Evangelho. Também o fiel leigo participa desta missão da Igreja. Desta forma ele se transforma em pão multiplicado para saciar a multidão faminta.

Quais as modalidades de sua pregação? Primeiro, sendo fiel à sua vocação cristã de viver na graça de Deus. Na medida em que ele estiver em comunhão com Deus, já está realizando um apostolado. Mas não basta evangelizar-se.

O cristão leigo também é chamado a evangelizar: pelo exemplo de vida cristã, ou pelo testemunho; pela palavra de exortação e de edificação quando se lhe oferecer a ocasião; pela ação, participando das diversas Pastorais da Igreja em suas diversas dimensões: a comunhão e a participação, nos ministérios leigos, nos diversos serviços da Comunidade, na Pastoral vocacional; na colaboração com as missões da Igreja, indo eventualmente para terras de missão; na Catequese; nos diversos serviços na Liturgia; no Ecumenismo; na dimensão sóclo-transformadora, ajudando a construir um mundo mais justo e fraterno.

Mas é próprio do apostolado ou da evangelização do cristão leigo, a consagração do mundo através de sua ação, nos diversos estados de vida, nos diversos campos de trabalho e nas mais variadas profissões: no mundo do trabalho, do esporte, da arte, das ciências, da política, da justiça, da promoção da Paz, da Justiça, da Ecologia.

São fundamentalmente dois os modos de agir do Divino Espírito Santo na vida do cristão. Ele suscita vida, faz surgir a vida. Eis o sopro de Deus na manhã da criação, o sopro de Jesus Cristo, na manhã da ressurreição. Mas, por outro lado. ele faz com que a vida se desenvolva e chegue à perfeição. No Batismo ele nos faz filhos de Deus, nos faz renascer pela água, símbolo de vida. Mas esta vida não pode permanecer como uma semente.

Deve germinar, nascer, crescer e produzir frutos, ser fecunda, multiplicar-se. Eis o sentido da Crisma. Para que possa realizar sua vocação e missão batismals, o cristão é ungido pelo Espirito Santo na Crisma.

Assim como a Páscoa é a celebração do Batismo, o Pentecostes celebra a Crisma, reavivando na Comunidade Eclesial o Dom do Espirito Santo, para que possa realizar em sua vida a mensagem do Evangelho como discípulo e discípula de Cristo, e contribuir para a construção de um mundo mais justo e mais fraterno. Não está aqui também o "Pão de Santo Antônio" multiplicado nos cristãos, o própio Cristo Jesus como Corpo dado e Sangue derramado para que o mundo tenha vida e a tenha em abundância?

Através de Santo Antônio. Nosso Senhor está convidando continuamente os cristãos a pensarem no bem do próximo, a amarem o próximo como a si mesmos e a darem uma atenção especial ao necessitado, ao pobre. Claro que não se trata apenas do pão de Santo Antônio, da esmola oferecida ao frade ou ao Convento, com as palavras: "para os seus pobres".

Esta doação tem também o valor de um símbolo, de uma celebração, como a contribuição material colocada na salva na hora da preparação das oferendas. Através da esmola ou da contribuição colocada em comum, o cristão que deseja ser discípulo de Cristo, que deseja viver segundo a mensagem do Evangelho, celebra a generosidade e a dadivosidade do Deus Criador, e a de Jesus Cristo, o Redentor que deu a própria vida para que os seres humanos tenham vida.

Através de sua oferta, o cristão celebra a própria vocação de poder imitar a dadivosidade e a generosidade de Deus criador e de Jesus Cristo, pois como diz Jesus: "Recebestes de graça, de graça dai" (Mt 10,8). É uma graça poder dar. poder partilhar.

Dar de graça, ser generoso, pensar no bem comum, no bem do próximo, promover a vida do próximo, eis o mistério revelado no símbolo do pão de Santo António. Não se dá apenas uma esmola. Podemos e devemos dar o trabalho, o tempo, a atenção, o perdão, a seriedade e a honestidade em nossa ação profissional que vale muito mais do que o dinheiro.

Sim, o milagre do Pão de Santo Antônio continua até hoje em seus devotos. Ele nos ensina e nos ajuda a sermos mais cristãos. Nele manifesta-se a espiritualidade pascal, dos atos de amor, das ações de serviço ao próximo, da promoção do ser humano, para que tenha vida e a tenha em abundância.

A devoção a Santo Antônio constitui elemento integrante da tradição religiosa do povo brasileiro. Esteve presente desde o Inicio de sua evangelização e continua vivo em nossos dias. Por isso, na nova evangelização e no aprofundamento da fé cristã do povo brasileiro, a devoção aos santos em geral e, especialmente, a Santo Antônio, terá que ser respeitada e cultivada na Pastoral da Igreja no Brasil.

Importa estar atenta ao que o nosso povo tem como seu e valoriza, para, a partir daí, ajudá-lo a encontrar sempre mais intensamente a Cristo e chegar por Cristo ao Pai em comunhão com o Espírito Santo

A nova evangelização no Brasil passa pelo culto dos santos, e, de modo especial por Santo Antônio, quando este santo vem apresentado por João Paulo II como um homem "enamorado de Cristo e do seu Evangelho".

Extraído da Revista "Grande Sinal", autoria de Frei Alberto Beckhauser, ofm



Entre milagres e lendas

A vida de Santo Antônio está envolta numa constelação de milagres e fatos prodigiosos: são curas, profecias, bilocações, exorcismos e até ressurreições. Muitos teriam acontecido durante sua vida e outros, numa cadeia incontável, depois da morte. Esta tradição já está consagrada no antiquíssimo responsório "Si quaeris miracula":

Se milagres desejais
Contra os males e o demónio,
Recorrei a Santo António
E não falhareis jamais.

Pela sua intercessão
Foge a peste, o erro e a morte,
Quem é fraco fica forte,
Mesmo o enfermo fíca são.

Rompem-se as mais vis prisões,
Recupera-se o perdido,
Cede o mar embravecido
No maior dos furacões.

Penas mil e humanos ais
Se moderam, se retiram:
Isto digam os que viram,
Os paduanos e outros mais.

Grande número desses milagres foram imortalizados por artistas, famosos ou populares, entre os quais, a pregação aos peixes em Rimini; o coração do avarento encontrado no cofre; a mula em adoração diante do Santíssimo; o recém-nascido que fala em favor da mãe inocente; o pé decepado que o santo une à perna, etc.

E difícil dizer com certeza por onde passa a linha divisória entre a verdade histórica e a fantasia religiosa; tanto mais que boa parte desses milagres só vêm relatados em legendas tardias, certamente eivadas de elementos lendários. Mas nem tudo é tardio.

Poucos meses depois da morte de Antônio, um documento, assinado pelo Bispo diocesano e os professores da Universidade de Pádua, é apresentado ao papa Gregório IX pedindo sua canonização.

No extenso relatório são elencados os inacreditáveis milagres que vinham ocorrendo desde a morte de Antônio, ocorrida meses antes: são inúmeras curas, entre elas, cinco paralíticos, sete cegos, três surdos, três mudos, dois epilépticos, etc. "São poucos entre os muitos, e os mais seguros entre os conhecidos", destaca a legenda Assídua, acrescentando que, no dia dos funerais do Santo, muitos enfermos deixados fora da Igreja, na praça, foram curados aos olhos de todos.

A fama de tantos milagres constitui um dos incentivos mais fortes ao culto de Santo Antônio. Um antigo sermonista tentou interpretar esses prodígios no prisma da simbolização. Cada milagre teria um conteúdo simbólico.

Assim, no caso da criança afogada que o santo recupera, se afirma o poder de sua intercessão para devolver a vida do espírito a quem a perdeu; no caso da barca naufragada que ele socorre, se afirma o poder que tem para fazer emergir do pecado os que nele naufragaram. E assim por diante.

Aliás, a própria lenda tem seu jeito de dizer a verdade, simbolicamente, um pouco à maneira do provérbio que diz: "Onde tem fumaça tem fogo". Mas não se deve exagerar o sentido milagreiro da devoção antoniana.

O povo que vai ao Santo não vai, sem mais, em busca de milagres. Sobretudo não vai para pedir milagres impossíveis ou coisas absurdas. O que pede são geralmente as coisas normais da vida: o alimento, a saúde, a casa e o casamento, um emprego bom com salário digno, a paz e harmonia na família, a ajuda para encontrar coisas perdidas ou superar situações difíceis; enfim, o milagre de uma vida normal, do jeito que Deus pensou e quer, mas que hoje está cada vez mais difícil. É este o maior milagre do santo e também o mais desejado de todos.

Devoções, tradições e crenças
As primeiras manifestações de culto deram-se logo após a morte do santo, desdobrando-se depois, passo a passo, numa constelação de práticas, devoções e crenças, algumas das quais, mais conhecidas, são elencadas a seguir.

Santo casamenteiro
Assim é invocado pelas moças que desejam casar e assim é lembrado pelo nosso folclore. Não se sabe qual a origem da devoção. Talvez se ligue a algum milagre feito pelo santo em favor das mulheres, por exemplo, quando fez um recém-nascido falar para defender a mãe acusada injustamente de infidelidade pelo pai.

Mas há outro episódio com explicação mais direta. Certa senhora, no desespero da miséria a que fora reduzida, decidiu valer-se da filha, prostituindo-a, para sair do atoleiro. Mas a jovem, bonita e decidida, não aceitou de forma alguma. Como a mãe não parasse de insistir, ela resolveu recorrer à ajuda de Santo Antônio. Rezava ela com grande confiança e muitas lágrimas diante da sua imagem quando das mãos do Santo caiu um bilhete que foi parar nas mãos da moça. Estava endereçado a um comerciante da cidade e dizia: "Senhor N..., queira obsequiar esta jovem que lhe entrega este bilhete com tantas moedas de prata quanto o peso do mesmo papel. Deus o guarde! Assinado: Antônio".

A jovem não duvidou e correu com o bilhete na mão à loja do comerciante. Este achou graça. Mas vendo a atitude modesta e digna da moça colocou o bilhete num dos pratos da balança e no outro deixou cair uma moedinha de prata. Mas qual! O bilhete pesava mais! Intrigado e sem entender o que se passava, o comerciante foi colocando mais uma moeda e outras mais, só conseguindo equilibrar os pratos da balança quando as moedas chegaram a somar 400 escudos. O episódio tornou-se logo conhecido e a moça começou a ser procurada por bons rapazes propondo-lhe casamento, o que não tardou a acontecer, e o casamento foi muito feliz. Daí por diante, as moças começaram a recorrer a Santo António sempre que se tratava de casamento.

Santo das coisas perdidas
Esta tradição é antiquíssima, encontrando-se menção dela no famoso responsório "Si quaeris miracula", extraído do ofício rimado de Juliano de Espira. Popularmente o "Siquaeris" é mencionado como uma oração taumaturga para encontrar objetos perdidos. A crença pode estar ligada a episódios como este, da vida de Santo António. Quando ensinava teologia aos frades em Montpeilier, na França, um noviço fugiu da Ordem levando consigo o Saltério de Frei António, com preciosas anotações pessoais que utilizava nas suas lições. Rezou o santo pedindo a Deus para dar jeito de reaver o livro e foi atendido deste modo: Enquanto o fugitivo ia passando por uma ponte, foi subitamente tomado pelo pavor, parecendo-lhe ver o demônio na sua frente que o intimava: "Ou você devolve o Saltério ao Frei António ou vou jogá-lo da ponte para o rio!" Assustado e arrependido, o jovem voltou ao convento com o saltério e confessou ao Santo sua culpa.

O "pão dos pobres"
É ao mesmo tempo uma piedosa devoção e uma instituição assistencial benemérita. Consiste em doações para prover de pão os pobres, honrando assim o "protetor dos pobres" que é Santo António. Uma tradição liga esta obra ao episódio de uma mãe cujo filho se afogou dentro de um tanque mas recuperou a vida graças a Santo António. Ela prometera que, se o filho recuperasse a vida, daria uma porção de trigo igual ao peso do menino. Por isso, no começo, esta obra foi conhecida como a obra do pondus pueri (peso do menino). Outra tradição relaciona a obra do pão dos pobres com uma senhora de Tbulon, chamada Luísa Bouffier. A porta do seu armazém tinha enguiçado de tal modo que não havia outro remédio senão arrombar a porta. Fez então uma promessa ao Santo: se conseguisse abrir a porta sem arrombá-la, doaria aos pobres uma quantia de pães. E deu certo. Daí por diante, as petições ao Santo foram se multiplicando em diferentes necessidades.Tbda vez que alguém era atendido, oferecia certa quantia de dinheiro para o pão dos pobres. A pequena mercearia de Luísa Bouffier tornou-se uma espécie de oratório ou centro sócial. A benéfica obra do "pão dos pobres" teve extraordinário desenvolvimento, com diferentes modalidades, e hoje é conhecida em toda parte.

Trezena
E uma "novena" de 13 dias lembrando a data da morte de Santo António. Também se lembra o dia 13 de cada mês, porque "Dia 13 não é dia de azar, é dia de Santo António". Outros lembram Santo António nas quartas-feiras, dia em que foi sepultado.

Breve de S. Antônio
Consiste numa medalha ou imagem do Santo que se leva consigo, com esta sentença escrita no verso: "Ecce Crucem Domini, fugite partes adversão! Vicit Leo de Tribu Juda, radix David. Alleluia, alleluia!" (Eís a Cruz do Senhor, afastai-vos forças adversas! Venceu o Leão da tribo de Judá, da raiz de Davi. Aleluia, aleluia). Esta sentença teria sido revelada pelo Santo a uma senhora que estava possessa, a fim de ser por ela libertada. É uma devoção que remonta ao século XIII.

Extraído dos Cadernos Franciscanos, "Santo Antônio e a devoção Popular", de Frei Adelino Pilonetto, ofmcap