1. Itinerário de vida
Antes de empreender uma grande viagem, começa-se por organizar o itinerário: o termo que se deseja alcançar, o caminho a seguir, e os diversos meios necessários e apropriados para chegar ao fim. Ora, o homem é um viageiro sobre a terra; vai passando por um tempo muito breve, sempre a caminho da eternidade, para onde o impele uma força irresistível, uma necessidade insuperável.
O que será para mim essa eternidade, esse abismo em que tenho que cair inevitavelmente, depois da carreira veloz da vida? Como será essa eternidade: feliz ou infeliz? E se eu posso escolher a felicidade ou a infelicidade sem fim: não será de importância suprema estabelecer bem o itinerário que conduz à felicidade, evitando assim a infelicidade eterna?
A vida presente termina com a morte, e com a morte começa a eternidade: como será para mim essa eternidade? Eis a questão que se põe a todo homem, ainda que não queira! Todos desejam naturalmente a felicidade eterna: mas, qual será caminho? Muitos o ignoram. Todavia, o cristão o conhece, conhece o caminho da felicidade. Foi Jesus quem disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Só Jesus pode indicar o caminho a seguir, porque só é Ele é o caminho; só Jesus pode conduzir ao termo, porque só Ele é a verdade; só Jesus pode levar-nos a esse termo, porque é sobrenatural, porque só Ele pode comunicar-nos a sua vida sobrenatural, que nos fará participante da vida divina e da divina eternidade à qual somos chamados.
2. Diversas espiritualidades
Jesus indicou a todos os seus discípulos o itinerário da felicidade: Jesus é, pois, o caminho a seguir. Entretanto, são diversos os modos de seguir a Jesus: alguns, abandonando tudo por seu amor, consagram-se ao seu serviço, mediante os três votos de pobreza, obediência e castidade; outros, porém, o seguem no mundo, sem abandonarem os próprios bens, sem se ligarem com voto de obediência a um superior, vivendo no matrimônio. O itinerário é diferente, no entanto, uns e outros, com maior ou menor facilidade, com maior ou menor segurança, poderão alcançar o termo.
Esta diferença de itinerário é, sobretudo, material e exterior, e na escolha de um itinerário pode haver uma diferença interior e espiritual que se chama precisamente espiritualidade.
Assim, há na Igreja de Cristo: uma espiritualidade beneditina, uma espiritualidade dominicana, uma espiritualidade inaciana, uma espiritualidade franciscana, etc.; cada qual é boa e santa e logra as suas vantagens e têm produzido os seus santos.
Uma espiritualidade não se distingue doutra em razão da doutrina fundamental, que é a mesma em todas: a doutrina de Cristo, a doutrina do Evangelho; no entanto existe um modo e uma maneira de seguir a Cristo; na identidade da doutrina pode haver uma variedade de interpretação, uma variedade de espírito; é isso que constitui a espiritualidade particular.
A espiritualidade franciscana terá, pois, muitos pontos comuns com as outras espiritualidades cristãs, pelo fato de todas professarem a mesma doutrina, mas distinguir-se-á das outras em razão de seu espírito, e da importância que atribui este ou àquele ponto da mesma doutrina. Enquanto que as outras espiritualidades atribuem particular importância ao esforço pessoal para chegar à união com Deus, a espiritualidade franciscana busca, acima de tudo, aquela união com Deus no amor, e desta união tira toda sua atividade; enquanto que aquelas tendem primeiramente ao desenvolvimento das atividades e das possibilidades naturais, para chegar depois à perfeição sobrenatural, esta renúncia à natureza, logo de início, e entrega-se toda, inteiramente, à ação sobrenatural de Deus, sob a qual somente pretende agir e da qual somente espera toda perfeição natural e sobrenatural. E, assim, enquanto que as outras espiritualidades são principalmente ativas, a espiritualidade franciscana é caracteristicamente passiva, unicamente sobrenatural, fora de todo dualismo de vida natural e vida sobrenatural; a espiritualidade franciscana é mística, inteiramente e por princípio, quer dizer, sobrenatural, porquanto inteiramente por princípio pretende desenvolver-se pela ação sobrenatural ou mística do amor divino.
Por isso, enquanto as outras espiritualidades assentam na base do espírito espiritual a obediência, o silêncio, a especulação e o esforço pessoal, a espiritualidade franciscana fundamenta-se na pobreza, considerada em toda a sua profundidade mística de renúncia, desapego de tudo, desapego pessoal, a fim de que a alma, despojada completamente e aniquilada em Deus, permita que Deus venha viver e operar em si. Desta pobreza, procederá a obediência, pois a alma vazia de si mesma, já não tem vontade própria. A especulação , sendo atividade demasiado pessoal e humana, cederá ao amor que é dom de si mesmo, é passividade mística sob o império do Amado.
Ora, o Amado é Jesus que, pela espiritualidade franciscana concreta, constitui toda a perfeição: portanto, nada de virtudes abstratas a conquistar, uma após outra, com a meditação e a vontade própria: mas conquistar Jesus, concretização de toda virtude, amando-o, contemplando-o e imitando-o! Quer dizer: será perfeito quem se transformar no objeto amado, como exige a lei do amor. “O amor transforma o amante no Amnado” (São Boaventura, III S., 26; III, 270). “Pela força do amor, serás transformado naquilo que amares”, diz nosso Doutor Seráfico (Sermo XI, Vig. Nat. IX, 98).
3. Espiritualidade franciscana
A espiritualidade franciscana – mística, concreta e afetiva – não conhece outra regra de perfeição, que não seja observar Jesus, amá-lo de afeto e de fato, e assim transformar-se nele até poder dizer com São Paulo: “Já não sou eu quem vivo, mas Jesus que vive em mim” (Gálatas 2,10). Para São Francisco, todas as coisas eram intuitivas, obra espontânea do amor; contudo, ajudará o crescimento de nossa vida espiritual investigar a profundidade de doutrina que se esconde sob esta simples intuição de amor: toda a doutrina do aniquilamento próprio e transformação em Cristo, visa a nossa incorporação no seu Corpo Místico.
O aniquilamento é obra da pobreza, levada às suas últimas consequências de renúncia e desapego absoluto, conforme o ideal de São Francisco; a transformação e a incorporação é obra do amor de Jesus, e Jesus crucificado, fundamento e centro de espiritualidade franciscana, fonte da sua pobreza e do seu amor; ou mais simplesmente: fonte do amor à pobreza, que é o amor a Jesus crucificado. São Francisco encontrou o seu caminho, quando o Crucificado lhe apareceu na solidão: “Ante aquela visão, a sua alma ficou inundada de amor; a lembrança da paixão de Cristo imprimiu-se-lhe no coração de tal modo que nunca mais pode pensar em Cristo e na sua cruz, sem se desfazer em lágrimas e suspiros” ).
Foi a cruz que inspirou a São Francisco o amor da pobreza, da humildade, do aniquilamento; tendo estabelecido o vácuo dentro de sua alma, o mesmo amor de Cristo o transformara, comunicando-lhe as virtudes e a própria vida de Cristo, vida humano-divina, que é toda a perfeição sobrenatural a que devemos aspirar.
Deste amor sobrenatural por Jesus procedem todas as outras características da espiritualidade franciscana: o amor de Maria, inseparável do amor de Jesus; mas um amor filial, íntimo, profundo, porquanto na identificação com Jesus deve-se amar Maria com o mesmo amor de Jesus, para quem Maria não é simples mãe adotiva, mas vida de sua vida e sangue de seu sangue.
O amor às criaturas é também consequência do amor a Cristo, o Verbo encarnado para quem e em quem tudo foi criado e cuja imagem anda impressa em todas as coisas; o amor de São Francisco pelos homens é o seu amor por Cristo em cujo Corpo místico todos formam ou devem formar um só Cristo.
Todavia, o amor de São Francisco não se detém em Cristo; tornado um com ele, São Francisco participa de seu amor inefável pelo Pai, ao qual devem regressar todas as criaturas, pelo Verbo encarnado, em um dar-se contínuo de amor no Espírito Santo. São Francisco sentiu a primeira centelha de amor, quando foi repelido por seu pai; então pôde dizer, com o enlevo que depois havia de ir crescendo por toda a vida e que seria o seu respirar profundo: “Pai nosso que estais nos céus...!”
Se Jesus é o fundamento e centro de toda a espiritualidade franciscana, o termo derradeiro do seu itinerário é o Pai, no oceano infinito do amor da Santíssima Trindade que a franciscana Santa Verônica de Giuliani cantou com profunda elevação: “Parece que a alma se encontra como que nadando em Deus! Lida, lida sem parar e sempre se encontra em Deus; lida para encontrar Deus, conquanto sinta que está em Deus, busca a Deus no próprio Deus, e buscando-o em si o encontra” (Diário, 21, VIII, 1705: VI, 762)."Tudo isto se passa no íntimo de minha alma, a qual se encontrava naquele mar imenso e infinito de Deus, que não é compreendido e de quem não se pode compreender a grandeza e imensidade. Deus possui em si a alma que se perde nele, e nele está nadando como o peixe n'água e não encontra vida senão em Deus, para Deus, e com Deus. O coração amoroso comunica então à alma o seu próprio amor, desprende-a e tudo, e nela quer operar sozinho” (Diário 5, V, 1715; VI, 805).
Qual é o homem que não sente vibrar o coração, perante a simples narrativa destas experiências de amor a que ele próprio é chamado? O homem foi criado para o amor, e o amor é a razão do seu ser e de toda a sua atividade. O Itinerário franciscano conduz a esse amor, pelo caminho de renúncia da santa pobreza, a qual despoja de tudo para dar Tudo, isto é, para dar o Amor: Meu Deus e meu Tudo!
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