31 de maio de 2013

Francisco de Assis, modelo referencial do humano - II

FRANCISCO E O ARQUÉTIPO DA SÍNTESE

 Por Frei Vitório Mazzuco Fº.

Francisco de Assis nasce em 1182, na atraente cidade de Assis, na região da Úmbria, Itália. É filho de Pedro Bernardone, rico comerciante, mercador, homem determinado, que sonhava para o filho as glórias da Cavalaria Medieval e o salto para o status da alta nobreza. De seu pai, Francisco herdou o nome, em homenagem à França, que era o centro cultural e econômico do século XII, e também o espírito de liderança, ambição e rigor consigo mesmo. Da mãe, Joana de Bourlemont, uma dama francesa da região da Picardie, norte da França, conhecida em Assis com o cognome de Dona Picà (a madame que veio da Picardie), Francisco recebeu esmerada educação, a nobreza de costumes, os rudimentos da fé e da língua francesa. Pelos anos 1201 a 1205, ele vai dando um salto em sua vida. Inicia um lento e gradual processo de conversão, não apenas a mudança de mentalidade, mas a radical mudança de lugar. Ele é um convertido e nisto se enquadra a sua forte personalidade, a sua conversão não é um ardor momentâneo, mas sua perene identidade de busca.

Sai do espaço da casa e dos projetos de seu pai para ser um humano despojado que não queria ter nada de específico a não ser dispor-se a viver algo de grandioso, algo que fizesse dele um homem realizado. O pai, dono de uma loja de tecidos e uma tinturaria em Assis, queria que ele conhecesse o sucesso do mercado. Francisco não quer o sucesso, quer a realização. O sucesso é efêmero, a realização é para sempre.

Num determinado momento de sua vida, tira as suas roupas em praça pública e, sozinho, nu, livre e feliz com sua decisão empreende um caminho de ir à dimensão originária do verdadeiro humano: buscar o espírito do Senhor e o seu santo modo de operar; fazer valer os desejos, ter uma vida orientada por uma forte busca, dizendo para si mesmo e para quem quisesse ouvir: “É isto que eu quero, é isto que eu procuro, é isto que eu desejo de todo coração!” Despojou-se das vestes e vestiu-se da simplicidade, faz a medieval investidura: colocar na vida a adequação que a torna mais leve. Não mais a armadura de guerreiro que sonhava seu pai, mas a coragem e fortaleza, a fidelidade e lealdade, a obediência dos cavaleiros. Toma por vestimenta a túnica dos camponeses, dos mendigos e penitentes, tornando-se assim um mendicante de sentidos. Na cidade foi amado e incompreendido, abraçado e apedrejado, este limiar entre os que o consideram um santo ou um louco. Francisco é um louco apaixonado pela sua identidade: ser arauto do Grande Rei, fazer o Amor ser amado e ir onde ninguém queria estar.

Continua...

Extraído de: http://carismafranciscano.blogspot.com.br/

29 de maio de 2013

Francisco de Assis, modelo referencial do humano - (Parte 1)


Por Frei Vitório Mazzuco Fº.

Na efervescência da crise da modernidade ou pós-modernidade em que vivemos, na mudança de época e de paradigmas, estonteados como a pluralidade cultural e religiosa, na dependência das novas mídias, na fragmentação das relações, na aceleração dos processos, nas múltiplas necessidades instauradas pelo mercado, livres no pensamento, mas presos num consumo escravizante, aqui estamos nós no novo patamar civilizatório. Na esperança de que a política volte a ser o arranjo existencial para o bem comum e não tráfico de influências; de que escolas moldem um humano forte e não subjetividades fracas; de que as religiões desçam da sedução hierárquica das fortes estruturas e voltem a revelar a mais pura mística e o inspirador sopro do Espírito, aqui estamos nós gritando que precisamos ser olhados com prioridade em nosso ser pessoa, em nossa mais nítida identidade.

Na diversidade de pensamentos, no conhecimento interdisciplinar, no pensar a existência de um modo holocentrado, de ações articuladas na rapidez da comunicação, da globalização que traz o mundo para os quintais e conviver com os problemas que antes estavam distantes, e que, hoje, acotovelam-se na calçada de nossa casa; deste jeito cansado de dormir anônimo e acordar célebre sonhando o bem-estar que vem  do econômico, do social, do político e cultural, ou talvez da mega-sena que pagará nossas dívidas com os megaprocessos, aqui estamos nós  sobreviventes do novo século.

Não, não somos trágicos e nem cultores do pessimismo, mas amamos os desafios de bons sonhos e excelente realidade. Questionamos para crescer e sabemos que perguntas existenciais esquentam a busca. Temos um cabedal de perguntas técnicas que, cada dia, vivem em nós e mostram como isto funciona; porém, precisamos de perguntas comprometidas com o modo de ser humano para, se não tivermos respostas, que ao menos apontem caminhos de todos os porquês. Sabemos como fazer, nem sempre como Ser. Na busca de sendas precisas, com o mapa orientador na mão e na mente, queremos sair da imensidão da floresta e encontrar clareiras que apontem: é por aqui! Nas luminosas clareiras, onde paramos para tomar fôlego, como réstias indicadoras de luz, aparecem a mística, a alteridade, o feminino, o diálogo Inter-religioso e a questão ambiental, a grande síntese dos paradigmas do século XXI.  Seguir as indicações destes sentidos nos ensinará a ler, analisar, pensar, perceber e se comprometer com o que se passa ao nosso redor e no mundo. É um conjunto de setas que nos apontam a direção neste momento histórico atual. Não podemos caminhar sozinhos, precisamos olhar os modelos vivos, os modelos referenciais de ontem e de hoje; e, por isso, vamos sentar aos pés das testemunhas da humanidade, do século XII ao século XX, e escutá-las. Testemunhas são parâmetros para elevar o nível da nossa existência e convocar ao seguimento e imitação. Quem tem modelos de referência, tem futuro. Nosso tempo tem professores demais e poucos mestres. Professores trazem conhecimento e ensinamento, os mestres trazem a compreensão da vida.

Vamos ouvir, ver e reler as testemunhas de ontem, humanos plenos e, por isso, sempre atuais, para que possamos reencantar a vida, redescobrir valores, acertar o ritmo de nossos passos no caminho seguro, e assim purificar as nossas escolhas. Voltemos aos mestres! Os novos gurus cobram, os mestres estão na gratuidade da partilha. Hoje, nós, que pagamos para ouvir e escutar, vamos ouvir mais a terapêutica transparência das testemunhas. São nossos exemplos os arquétipos, o resgate dos valores neste  nosso atual processo civilizatório. Nós, que gritamos e lutamos pelo que estamos perdendo: espaços e espécies, da falência dos biomas à falência do caráter, que salvamos orquídeas, capivaras e ararinha azul, mico-leão dourado e prédios decadentes, devemos perguntar: e o verdadeiro humano? Será que não é uma espécie em extinção?

Em meio a isso tudo, renasce sempre a figura frágil e forte, santa e simpática, medieval e moderna, despojada e atraente, heroica e holística, poética e mística, aglutinadora e provocadora, a sempre presente e profética vida de São Francisco de Assis. É sobre ele que discorre esta despretensiosa reflexão.

Continua.

Extraído de: http://carismafranciscano.blogspot.com.br/

28 de maio de 2013

“Os franciscanos seculares e a família”

Construindo a casa sobre a rocha

Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as põe em prática, será  como um homem prudente que construiu  sua casa sobre a rocha (Mt 7, 24).

Em sua família vivam o espírito franciscano da paz, da fidelidade e do respeito à vida, esforçando-se por fazer dela o sinal de um mundo já renovado em Cristo.  Os esposos, em particular, vivendo as graças do matrimônio, testemunhem no mundo, o amor de Cristo à sua Igreja. Por uma educação cristã simples e aberta, atentos à vocação de cada um,  caminhem alegremente com seus filhos em seu itinerário humano e espiritual  (Regra da OFS, n. 17).

Por Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

1. A família vem merecendo especial a atenção por parte da Ordem Franciscana Secular. O último Capitulo Geral, realizado em São Paulo,  no Centro Santa Fé, em outubro de 2011, escolheu a família com uma de suas prioridades. O Capitulo Nacional de Brasília (agosto de 2012)  também optou por priorizar a evangelização da família dos terceiros bem como a pastoral das famílias. Nossas famílias e as famílias à nossa volta são convidadas a construir o casamento sobre a rocha do amor e o fundamento de uma fé lúcida.  Famílias, espaços onde os filhos encontrem rocha firme para colocar os pés e construírem  sua vida. Desejaríamos que nossas Fraternidades seculares tivessem um bom número de casais. Que os filhos  pudessem, efetivamente, viver no seio de uma família que fosse regida pelos valores  evangélico-franciscanos. Para evitar todo mal-entendido, dizemos logo de início:  não queremos uma família fechada, isolada, nada de familismo. Queremos uma família nova para novos tempos.

2. Há coisas importantes em nossas vidas e outras que não são tão fundamentais. Há fatos, feitos e pessoas que marcaram definitivamente nossa vida:  um professor competente e cativante, um colega que se tornou amigo, encontros que nos permitiram reorientar nossa história. Uma das realidades importantes em nossa vida, indubitavelmente, é a família, a nossa família. Pensamos em nossa família de origem e naquelas que vão sendo constituídas quando os filhos têm asas fortes e deixam o ninho. O amanhã do mundo depende, em boa parte, da qualidade de vida da família e do teor dos relacionamentos familiares. Uma criança, ao entrar no mundo, necessita do olhar, das atenções, do carinho, do trabalho, dos empenhos, da dedicação, da lucidez de um pai e de uma mãe. Se ao chegar ao mundo uma criança não encontrar uma família, de preferência sólida e organizada, terá muita dificuldade em se tornar uma pessoa equilibrada em sua caminhada existência.

3. “O ser humano não se contenta com relacionamentos meramente funcionais. Tem necessidade de tratos interpessoais, ricos de interioridade, gratuidade e oblação. Entre estes últimos, o relacionamento que se tece no seio da família é fundamental: relações entre os cônjuges, entre pais e filhos. Todo o vasto tecido de relações humanas que nasce e se regenera incessantemente a partir desta relação através da qual um homem e uma mulher se reconhecem feitos um para o outro e decidem unir sua vida num único projeto de existência. Por isso, o homem deixará  seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher e há de tornar-se uma só carne” (João Paulo II, Homilia por ocasião do Jubileu das Famílias,  Roma  2000).

4. Família é comunidade de pessoas, espaço de expressão do amor de um homem e de uma mulher, espaço de acolhida da vida,  lugar de educação dos filhos e de proposta da vida cristã. A família é berço da humanidade, encruzilhada do diálogo entre as gerações,  escola de solidariedade, espaço de aprendizado das coisas mais elementares da vida, Igreja doméstica. Não nos referimos, aqui, a família qualquer. Pensamos em famílias de qualidade. Nossos tempos conhecem delicadas transformações no seio das famílias. Não queremos e não podemos canonizar os modelos antigos de família com tantas sombras. Nem sempre elas eram expressões de amor verdadeiro e respeitoso e nem espaços de verdadeiro crescimento humano e cristão.  Muitas famílias de hoje são espaços de beleza e de grandeza. Há, no entanto,   preocupações. Vemos constituições extremamente frágeis. Rapidamente paixões ardentes se transformam em ódio visceral.  Há pessoas que se unem por um tempo, por um certo tempo, sem compromisso, sem palavra dada.  Há não poucos que se casam beirando os quarenta anos e não querem filhos. Há casais que, também perto do quarenta, sob o influxo do “diabo do meio dia” se desfazem.  Há uniões mal cultivadas que vão se deteriorando que terminam simplesmente terminando ou com raios e trovoadas.   Há casais que não chegam ao divórcio, mas vivem uma vida familiar e  religiosa sem brilho, sem viço. Há muitos recasamentos em que a emenda é pior do que o soneto. Com medo da solidão, os que se separam se casam sem pensar…  Não se trata de continuar casados por continuar casados. Queremos construir famílias sólidas, edificadas sobre a rocha.

5. Acaba bem o que começa bem. O casamento precisa começar bem. Um homem, uma mulher, duas histórias que se unem. Uma tal união deverá ter como base um sólido bem querer, um querer bem de pessoas maduras.  Antes de se tomar a decisão do casamento será fundamental dar tempo ao tempo:  conhecer bem o outro, a outra, sua famílias, os traços maiores de sua personalidade.  Tudo começa com uma palavra dada, um sim que  “arruma” o interior da pessoa.  Sim, palavra dada, promessa de bem querer, compromisso alegre assumido até mesmo diante de outras pessoas que nos estimam. Estas serão testemunhas do amor do casal. E as pessoas que se casam assumem um projeto.

6. Claro, há um  projeto conjugal. O casal precisa construir-se. A maturidade do amor não acontece automaticamente.  Não se trata apenas da justaposição de um homem e de uma mulher, mas da construção do casal, da conjugalidade. Ele vem de sua família, com sua história, um determinado tipo de educação. Ela, por seu lado, tem outro passado de referência. Quando arriscam unir suas histórias vão construir o novo. Há muito que fazer: desejo de acolher as diferenças, multiplicação de conversas, abertura de coração a coração, empenho em superar divergências que possam tirar brilho da unidade, elaboração da vida profissional, revisão constante do relacionamento sexual do casal, auscultação dos desejos mais profundos de quem vive a seu lado é um mistério.

7. Há o projeto dos filhos. Quantos? Qual o melhor momento de colocá-los no mundo? Que tipo de educação, de orientação fundamental de vida lhes oferecer? Quando se tornam pai e mãe, ele e ela amadurecem. Não parece razoável, sem justos motivos, reduzir ao mínimo o número dos filhos. Filhos únicos e filhos com muitos irmãos não  podem ser educados e treinados a partir do consumismo, do lucro e do gozo. Marido e mulher fazem um projeto humano e cristão de educar os filhos. Não se trata de colocar os filhos no mundo e deixar que a sociedade da  gastança e do consumismo os deteriorem. Será preciso extrair de suas entranhas as mais ricas e escondidas potencialidades e possibilidades. O Evangelho penetra o projeto conjugal  e familiar. Precisamos de famílias que vivam a partir do Evangelho.

8. A família vai se criando no cotidiano das coisas cotidianas:  encontros em torno à mesa  das refeições, conversas no canto da sala, na varanda, debaixo da mangueira, na mútua prestação de serviços, na atenção especial prestada aos mais fracos, doentes e envelhecidos, no perdão dado e recebido. Família é convivência. Esta convivência ou confabulação acontecerá espontaneamente, mas também será buscada, programada, nutrida e revista.  O projeto familiar conhece redimensionamentos e, por vezes, pede correção de rota. Quando não tem mais vontade de conviver  em casal e em família acaba o casamento. Quando são armados e arquitetados esquemas de  fuga o amor acaba e a família fica feito um barco perdido no oceano.

9. Não podemos concordar com famílias fechadas, girando em torno de suas coisas, de suas viagens para cá e para lá, consumista e elitista, do dinheiro, das aparências…  As famílias  serão abertas a outras famílias, a famílias bem constituídas ou incompletas, a casais recasados, a casais que precisam de catequese e de formação na paróquia. Nada mais empobrecedor do que famílias  fechadas ou abertas apenas para seus “parecidos”.

10. Os cristãos se unem no Senhor, depois de um tempo de conhecimento. Ao buscarem o Sacramento do Matrimônio, os cristãos não realizam um rito qualquer. Não buscam apenas uma bênção. Não querem apenas dar uma satisfação à sociedade. Celebram sua fé. Desejam que o amor de Cristo, do Cristo ressuscitado envolva seu amor. São eles, esposo e esposa, os ministros do sacramento. Fidelidade e indissolubilidade marcam o sacramento que não dura apenas um momento, mas perdura ao longo da vida. Marido e mulher se estimam e se amam na qualidade  do amor de Cristo pela Igreja.

11. O Sacramento do Matrimônio esteve sempre no plano do Senhor. “Não é bom que o homem fique só”, lemos no  Gênesis. Deus quer que ele e ela  realizem uma Aliança que permaneça até o fim. O casal cristão  passa a ser encarnação viva do amor de Cristo pela Igreja. Tudo o que se passou na páscoa do Senhor é vivido sacramentalmente  no matrimônio. A qualidade do amor conjugal é a qualidade do amor morte e ressurreição de Jesus.

12. Marido e mulher são o animadores da Igreja doméstica que é a casa. Ali os que se estimam familiarmente buscam juntos a Deus.  Há toda uma liturgia doméstica. Na família se reza. Ouve-se a Palavra. Uns acolhem os outros. Uns carregam o peso dos outros. Os mais frágeis e os envelhecidos são tratados com especial atenção. Ecoam as palavras do Evangelho e atingem o mais íntimo dos membros dessa Igreja do lar.

13. São  João Crisóstomo fala da família como sendo  Igreja doméstica: “Voltando às vossas casas, preparai duas mesas: uma para o alimento do corpo, outra para o alimento da Sagrada Escritura. O marido repita o que foi dito na assembleia santa, a mulher se instrua e os filhos escutem. Cada um de vós faça de sua casa  uma igreja. Não sois responsáveis pela salvação de vossos filhos? Não deveis um dia prestar conta desta missão? Como nós  pastores deveremos prestar contas de vossas almas, assim vós, pais de família, deverão responder  diante de Deus  por todas as pessoas de vossa casa”

14. Marido e mulher fazem do Evangelho a luz de sua caminhada. Maduramente, com o coração cheio de sede de Deus vão lendo e absorvendo as páginas do Testamento de Jesus. Dão mais do que pedem. Simplificam seu modo de viver.  Deixam de lado todo espírito de competição. Vivem dignamente. Recusam ser discípulos do consumismo. Não hesitam em deixar de lado seus projetos pessoais para cuidar daqueles que mais deles precisam. Criam à sua volta, no círculo familiar e fora dele, um ambiente diferente. São pessoas sempre bem-vindas porque simples, amigas, prestativas e sobretudo pessoas que se estimam e sabem estimar os outros. Não seria exatamente assim que deveriam viver  as famílias franciscanas?

15. Os que se casam no Senhor procuram criar um clima tal que  favoreça a santidade dele, dela e da família. Sofre esse ou aquele quando se dá conta que o outro não tem sede de Deus, não participa da vida da Igreja, vive voltado sobre si mesmo. No dia a dia, ele e ela, e  por vezes os filhos, se alegram por estar juntos diante de Deus saboreando um salmo, desfiando as  contas de uma dezena do terço, fazendo a preparação para participação na missa dominical.

16. Em busca da santidade, estão  os casais que acolhem o negativo da vida sem desespero: um filho doente, um outro que dependente das drogas, uma filha grávida antes da hora,  maldades perpetradas contra  o casal até mesmo por parentes ou amigos, um longo tempo de desemprego. Há casais que dão gigantes passos no caminho da santidade quando se associam à cruz de Cristo.

17. “O casal tem a sua liturgia. É no seu viver cotidiano que se desenvolve a sua espiritualidade conjugal, seu modo peculiar de  se relacionar com Deus. É no dia a dia que o casal se aprofunda no seu amor e no amor de Deus e procura descobrir e pôr em prática o plano de amor que Deus lhe confiou. As ações corriqueiras de cada dia são manifestações da liturgia do casal, e não apenas aqueles momentos em que o casal se une para rezar. Proporcionar ao cônjuge as coisas pequenas e simples que o façam feliz: um agrado, um sorriso, palavras de ânimo, dedicar-lhe mais tempo quando está  mais cansado ou aborrecido, surpreendê-lo com algo inesperado, incentivar a lutar par vencer a preguiça, o orgulho, o egoísmo, desinstalar-se para prestar pequenos serviços, nunca deixar o cônjuge mal perante outras  pessoas… Todas essas ações  fazem parte da liturgia do casal e são verdadeiros ritos  que expressam o amor, o que é sinal sensível do sacramento da sua união”  (Casamento, sacramento do dia a dia,  ENS, p. 50).



Questões e questionamentos:

 1. O que seria, efetivamente, um casamento e uma família construídos sobre a rocha?

2. Quais a linhas fundamentais de um projeto conjugal?

3. Quais as questões que preocupam de verdade quando queremos educar nossos filhos?

4. O que mais chama sua atenção neste texto?

5. Ler  e comentar em grupo  os artigos 24 e 25  das Constituições Gerais que abordam o tema da  família.

6. Ler e comentar em grupo ou na reunião o texto que transcrevemos abaixo:  A Escada de Jacó



A Escada de Jacó

Cristãos seguidores de Jesus Cristo, membros da Igreja católica, o casal percebe sua família com dom de Deus e sabe aonde quer chegar e para onde quer orientar sua caminhada e de seus filhos. Sabe que  a família é o único lugar  onde se transmite não somente a vida, mas seu sentido, seu significado, onde, com amor, se adquirem e se passam “valores e critérios de orientação de conduta, que fazem perceber a existência  com o digna de ser vivida em vista de uma participação positiva na realidade social.

Neste processo, cada família  cria seu espírito, seu estilo de vida. A maneira como nos comunicamos, como passamos o tempo  juntos  e celebramos os momentos importantes; como tomamos nossas decisões; como consideramos as falhas  dos outros e como  nos perdoamos mutuamente, como deixamos agir  Deus, tudo vai definir e conduzir a aventura de nossa família.

A escada que Jacó viu em sonho  (Gn 28, 12) pode ser a imagem das famílias  humanas que, geração após geração,   cumprem o plano que Deus propõe  aos homens e sobem em sua direção. Os valores que se adquirem na família, e que põem em prática na sociedade  -  com o amor, a fraternidade, a confiança, a partilha a superação  dos desafios, a justiça e a responsabilidade  pelos atos praticados, a verdade – que contribuem  para  a caminhada e para a escalada, degrau a degrau, da escada que leva ao Pai.

(A Aventura Familiar,  Hélène e Peter Nadas, in  Casamento, sacramento do dia a dia, Equipes de Nossa Senhora, São Paulo,  p. 44-45).

Extraído de: http://www.franciscanos.org.br/

25 de maio de 2013

A experiência de Deus Pai em São Francisco




Fr. José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
“Observemos, portanto, as palavras, a vida e a doutrina, o Santo Evangelho daquele que se dignou rogar por nós a seu Pai e manifestar-nos o seu nome”. (RnB 22,41)
Francisco descobre o Pai ouvindo Jesus

São Francisco viveu uma profunda experiência espiritual de Deus Pai porque, acima de tudo, viveu Jesus Cristo. No seu tempo, era comum as pessoas chamarem a Deus de Pai, mas pensando na figura de Jesus Cristo. O que havia era uma idéia ampla de Deus, chamado de Pai, mas reconhecido na figura de Jesus (1).
No relativamente demorado processo de conversão de Francisco, são fatos marcantes o desencanto com as carreiras de comerciante e cavaleiro e, como ele mesmo afirma no Testamento, o encontro com os leprosos, de onde saiu transformado.

A experiência dos leprosos

Parece-me fundamental notar que a transformação que aconteceu na experiência com os leprosos está ligada a uma experiência de Deus Pai. Francisco disse que “com eles fiz misericórdia e, por isso, o que antes para mim era amargo, tornou-se doce” (Test 3). Misericórdia, a ”hesed hahamin” da Bíblia, é o amor que só Deus tem. No Novo Testamento, Jesus a atribui ao Pai. São Francisco amou os leprosos com o amor que é de Deus, foi transformado pela presença do Pai. E a presença sensível do Pai é sempre a pessoa do Filho. E não acontece sem a presença abrasadora do Espírito Santo, que é o amor entre o Pai e o Filho. Foi por esta razão que Francisco disse: “Assim, o Senhor me deu de começar a fazer penitência”; ele começou a mudar, a se transformar, a ter consciência da ação da Trindade nele quando se abriu para servir os leprosos.

A partir do encontro com os leprosos, Francisco sabe que tem que fazer um “nostos”, um caminho de volta para o Pai. Sua vida de conversão é iluminada pela parábola de conversão do Filho Pródigo, em que Jesus mostra o que aconteceu e o que ainda deve acontecer conosco. Saímos de casa, pensando que o importante era só levar o dinheiro do Pai, porque o mundo tinha tudo de bom com que poderíamos sonhar.

Voltamos, porque percebemos que o importante é estar com o Pai. Mais ainda: o importante é continuar o caminho que o Pai está fazendo, porque ele não terminou a criação. Ainda tem uma parte enorme, a ser feita conosco.

Faço notar que a linguagem neotestamentária e patrística nos habituou a falar em Deus “Pai”. Na sensibilidade de hoje, poderíamos dizer, como João Paulo I, que é “Deus Mãe”. O que importa é que toda a nossa vida flui a partir de Deus, Pai ou Mãe, pois é quem gera Jesus, o Filho.


A experiência da cripta de São Damião

sdÉ interessante observar que tanto a Primeira Vida de Celano quanto a Legenda dos Três Companheiros colocam logo em seguida à experiência com os leprosos um fato que me parece notável para toda a sua experiência posterior da Santíssima Trindade. Contam que ele convenceu um rapaz de sua idade de que tinha encontrado um tesouro. Dizem que os dois iam com freqüência a uma caverna, que o rapaz ficava esperando fora, mas Francisco entrava e orava profundamente. Cito do texto da Legenda dos Três Companheiros:
“Francisco o levava muitas vezes a uma caverna perto de Assis, e, entrando sozinho, deixava do lado de fora o companheiro, desejoso de possuir o tesouro; e assim, tomado de novo e singular espírito, orava ao Pai, às escondidas, cuidando que ninguém soubesse o que estava fazendo lá dentro a não ser Deus” (LTC 12). O texto correspondente de Celano diz: “O homem de Deus, que já estava santificado pelo santo propósito, entrava na gruta enquanto o companheiro ficava esperando do lado de fora e, tomado pelo novo e especial espírito, orava a seu Pai na solidão” (1Cel 6).
Em primeiro lugar, gostaria de chamar a atenção do leitor para uma observação de Frei Marino Bigaroni(2) de que, em latim, tanto o texto de 1Cel quanto o da LTC não falam em caverna ou gruta, mas em uma “crypta”. É verdade que foi dessa palavra grega (que quer dizer “lugar escondido”) que veio a nossa “gruta”, mas o termo é usado há muito tempo para designar um espaço subterrâneo reservado para sepultar os mortos nas igrejas. Bigaroni argumenta que este local era a cripta que ficava embaixo do altar da Igreja de São Damião antes da grande reforma que Francisco nela fez para preparar o Mosteiro de Santa Clara.
Mais importante é lembrar que o texto é uma evidente lembrança da passagem bíblica: “Ao contrário, quando você rezar, entre no seu quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente; o seu Pai, que vê no escondido, recompensará você” (Mt 6,6).
Ressalto, então, que Francisco estava aprendendo a tratar com o Pai revelado por Jesus Cristo e que era levado a isso pela intervenção do Espírito Santo, sem a qual ninguém é capaz de rezar, ninguém é capaz de reconhecer o Senhor.

Também chamo a atenção para o fato de que, se a oração era feita na cripta de São Damião, Francisco já tinha tido o seu famoso encontro com Jesus Crucificado, que foi omitido na Primeira Vida de Celano, certamente porque se tratava de um segredo até então só conhecido por Santa Clara ou Frei Leão. Talvez seja melhor pensar que os encontros foram múltiplos, seguidos, constantes, produzindo aos poucos a oração mais antiga de Francisco que chegou a nós:
“Altíssimo e glorioso Deus, iluminai as trevas do meu coração e dai-me uma fé direita, esperança certa, caridade perfeita, bom senso e conhecimento, Senhor, para que faça vosso santo e verdadeiro mandamento. Amém”.
Com muitos dos autores mais recentes, podemos ver nesta oração um dos pontos fundamentais da espiritualidade de São Francisco: ele quer cumprir o mandamento, isto é, obedecer a Deus Pai como Jesus crucificado obedeceu. Ora, fazer a vontade do Pai, que é “todo o Bem”, implica tanto uma volta para Deus quanto um comprometimento com a construção da utopia.

Deve ter sido nesses incontáveis tempos de oração em São Damião, na cripta ou diante do Crucifixo, que Francisco aprendeu a rezar como a Igreja sempre tinha feito em sua liturgia desde os primeiros séculos: dirigindo-se ao Pai através da Palavra de Jesus Cristo, com o qual podemos nos unir graças à atuação do Espírito Santo. Uma oração exemplar, nesse sentido, é a que São Francisco colocou no fim de sua Carta a toda Ordem:
“Onipotente, eterno, justo e misericordioso Deus, dai a nós, miseráveis, fazer, por vós mesmo, o que sabemos que vós quereis, e sempre querer o que vos apraz, para que, interiormente purificados, interiormente iluminados e acesos no fogo do santo espírito, possamos seguir os vestígios do vosso dileto Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, e chegar só por vossa graça a vós, Altíssimo, que na Trindade perfeita e na Unidade simples viveis e reinais e sois glorificado, Deus onipotente, por todos os séculos dos séculos. Amém”.

A experiência do Pai-nosso 

dpOs primeiros biógrafos viram em Francisco um outro Cristo. Uma das coisas que mais os impressionou foi o fato de Francisco ter os estigmas, como Jesus crucificado. Na realidade, os estigmas foram apenas um sinal exterior: Francisco foi um outro Cristo porque realizou profundamente a sua vocação humana e porque ouviu Jesus para rezar com ele. Foi ouvindo Jesus Cristo que ele aprendeu a conhecer o Pai.
Em todas as suas orações, ele procura rezar ao Pai com Jesus Cristo. Ele tenta entrar na oração de Jesus. Vamos tomar como um ponto alto o seu “Comentário ao Pai-nosso”. Fazemos notar que a oração, ensinada por Jesus, é toda dirigida ao Pai criador. Ora, Deus Pai não foi criador, ele é, continua a ser criador. Ainda está construindo o seu Reino. Nós estamos fora desse processo de criação pelo pecado e precisamos voltar para a casa paterna se quisermos ter parte na construção do Reino. Mas Jesus, em sua oração, fala primeiro do Reino, que é a nossa esperança, para depois falar da volta, que está baseada na memória do nosso pecado e na memória da misericórdia de Deus.

Nosso trabalho 

Vamos desenvolver este nosso estudo sobre a experiência de Deus Pai vivida por Francisco dividindo-o em duas grandes partes. Na primeira, que tem o subtítulo ”Venha a nós o vosso Reino”, vamos falar da incessante obra criadora de Deus Pai, que continua a ser feita. Poder tomar parte nela é a nossa grandeza e é também o nosso sonho. Vamos ver como Jesus a ensinou e como Francisco a viveu. Na segunda, que tem o subtítulo “Perdoai as nossas ofensas”, vamos considerar que deixamos de tomar parte na obra criadora do Pai porque nos afastamos dele. Como o filho pródigo, temos que voltar para o Pai.

1. “Venha a nós o vosso Reino”

Viver a Bíblia como um povo é caminhar no sentido da Esperança. Esta parte é um aprofundamento da “esperança” que marca a meta da história. Acredito que Jesus nos inculcou profundamente o seu sentido quando nos ensinou a primeira parte do Pai-nosso. Francisco demonstra ter compreendido muito bem a lição, como podemos ler no seu “Comentário ao Pai-nosso”, como podemos considerar em toda a sua vida de oração e no seu sonho de ver Deus, com uma clareza cada vez maior.
Quando chegamos a viver Deus Pai, somos criadores com Ele e como Ele. Nossa criatividade encontra seu verdadeiro sentido e nos traz a mais profunda realização como pessoas e como povo.

Francisco inverte a nossa posição de céu

Pensamos, habitualmente, no céu como um lugar imenso, a casa de Deus, onde vamos todos estar com Ele. No seu Comentário, Francisco diz:
“Que estais nos céus: nos anjos e nos santos, iluminando-os para o conhecimento, porque vós, Senhor, sois luz: inflamando-os para o amor, porque vós, Senhor, sois amor; morando neles e plenificando-os para a bem-aventurança, porque vós, Senhor, sois o sumo Bem, eterno Bem, do qual nos vem todo bem, sem o qual não há nenhum bem”.
Não estamos dentro do céu, mas o céu estará dentro de nós na medida em que descobrirmos Deus em nós.

Deus Pai é essencialmente criador. Nunca deixa de ser criador

O atributo de Deus Pai é a criação. Ele é sempre criador e isso se manifesta em nossa criatividade. Já usamos muito mal a criatividade no mundo que estamos construindo através dos séculos. Temos que aprender a usá-la construindo o Reino de Deus.

Deus Pai está construindo a nossa utopia: o seu Reino

O Reino de Deus não é o mundo que criamos à nossa imagem e semelhança trabalhando segundo o “espírito da carne”. É o mundo que criamos com Deus quando trabalhamos segundo o “espírito do Senhor”.
É impossível compreender as posições concretas de Francisco se não percebermos que todas se fundamentam nessa opção pelo “espírito do Senhor” e não pelo “espírito da carne”. Ele repete isso muitas vezes e de muitas formas, mas acredito que o texto fundamental é o que está no capítulo 17 da Regra não-bulada, que afirma:
“Guardemo-nos da sabedoria deste mundo e da prudência da carne. Pois o espírito da carne tem grande interesse em fazer muito em palavras e pouco em obras, nem procura a piedade e santidade interior de espírito, mas antes visa e deseja uma piedade e santidade que apareça por fora diante dos homens … Porém, o espírito do Senhor exige que a nossa carne seja mortificada e desprezada, vil, abjeta e desprezível; e ele procura a humildade e a paciência e a pura, simples e verdadeira paz do espírito; e acima de tudo deseja sempre o temor de Deus, a sabedoria de Deus e o divino amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (RnB 17,11-16).
rcO “espírito da carne”, expressão já usada por São João e São Paulo, mas fundamentada no uso clássico da palavra “corpo” ou “carne” na literatura grega, expressa o que nós somos sem Deus ou por oposição a Deus: isto é, refere-se ao nosso egoísmo e ao mundo que construímos à nossa imagem e semelhança depois de nos termos afastado de Deus. Conseqüentemente, o “espírito do Senhor” é aquele impulso interior que nos faz enxergar as coisas como Deus enxerga e realizá-las como Deus as realiza. Quem tem o “espírito do Senhor” não fica em palavras e exterioridades e também não constrói castelos de areia, porque é criador com Deus Pai.

No seu Reino, estamos no “não lugar” e no “não tempo”

Se nós passamos para o Reino de Deus, saímos do nosso lugar. Francisco disse que “saiu do século”. Ele ficou no mundo (do pecado) sem ser do mundo. Ficou como um agente do mundo de Deus no “mundo dos homens”. Sair do século, além de nos libertar do “nosso” espaço fazendo-nos estar no espaço de Deus, liberta-nos do “nosso” tempo, fazendo-nos entrar, desde agora, no “tempo” de Deus, que é a eternidade.
A palavra “utopia”, usada por S. Tomás More, é altamente significativa. Quer dizer “não-lugar”. E a situação em que fica, diante do mundo criado pelos homens à sua imagem e semelhança, quem passa para o mundo criado por Deus à imagem e semelhança de Deus.
Quem já reconheceu Deus como Pai passa a ser um contemplativo. Isto é, é capaz de enxergar com nitidez, no meio de tantas obras dos homens sem Deus, o que foi feito por Deus, sozinho ou com os humanos.

O seu reino não terá fim

Continuando a sua “Paráfrase ao Pai-nosso”, Francisco deseja que o Nome de Deus seja santificado. Nosso desejo mais profundo é conhecer Deus. É vê-lo face a face. É isso que Deus continua a criar.
A expressão “nome” é devida ao respeito que o povo judeu sempre teve por Deus. Até hoje, eles não dizem “Bendito seja Deus!”, mas “Bendito seja o nome!”, a fim de “não tomar o nome de Deus em vão”.
Pedir que o “nome” de Deus seja santificado é pedir que compreendamos e vivamos tudo o que for possível da santidade de Deus. Francisco disse:
“Santificado seja o vosso nome: fique clara em nós a vossa notícia, para que conheçamos qual é a largura de vossos benefícios, a extensão de vossas promessas, a sublimidade da majestade e a profundidade dos juízos” (EPN 4).
Francisco parece ter gostado da maneira de falar de São Paulo:  ”Vocês se tornarão capazes de compreender, com todos os cristãos, qual é a largura e o comprimento, a altura e a profundidade … para que fiquem repletos de toda plenitude de Deus” (Ef 3,18-19). Mas ainda falou em: a) largura dos benefícios, b) extensão das promessas, c) sublimidade da majestade e d) profundidade dos juízos. Ele quis mostrar que Deus não tem fim em nenhuma direção. Projetou uma figura infinita em todos os sentidos para dar-nos uma idéia do Reino que ainda podemos construir unindo nossa criatividade a todo o poder do Pai criador pelos séculos sem fim.

Orar com Jesus, pedindo que o Reino venha

Em seu sentido mais freqüente, as orações que Francisco faz para rezar com Jesus acompanham a primeira parte do Pai-nosso e pedem que o Reino venha. Mas eu vou destacar, aqui, dois pontos principais: as orações de ação de graças e o uso da oração sacerdotal do evangelista João (cap. 17).

a) São Francisco e a ação de graças

A maior parte das orações de São Francisco que chegaram até nós tem um profundo sentido de ação de graças. São “eucarísticas”. É fácil perceber que ele está sempre dando graças ao Pai por tudo o que vai descobrindo, porque aprendeu a rezar com Jesus que disse: “Pai, eu vos dou graças porque escondestes estas coisas aos sábios e aos prudentes e as revelastes aos pequeninos” (Lc 10,21).
Chamo a atenção para o Cântico de Frei Sol, mas também para algumas outras orações, como a Exortação ao Louvor de Deus, os Louvores a serem ditos em todas as Horas, os Louvores a Deus Altíssimo e mesmo a Saudação às Virtudes e a Saudação à Bem-Aventurada Virgem Maria, que podem ser vistas como preparações para o Cântico de Frei Sol. Mas um destaque especial merece a Oração a Deus Pai Criador que está no capítulo 23 da Regra não-Bulada. É um capítulo que deveríamos rezar com freqüência, embora não me seja dado, aqui, mais do que citar o começo:
“Onipotente, altíssimo, santíssimo e sumo Deus, Pai santo e justo, Senhor e Rei dos céus e da terra, damo-vos graças por causa de vós mesmo, porque por vossa santa vontade e pelo vosso único filho criastes do Espírito Santo todos os seres espirituais e corporais, nos fizestes à vossa imagem e semelhança e nos colocastes no paraíso … ” (RnB 23,1-3).
Creio que é fundamental percebermos o seu sentido profundo: ao dar graças, Francisco está pedindo ao Pai que o seu Reino venha. Ele está descobrindo com os seus “olhos do espírito” como o Pai constrói o seu mundo e, reconhecido, louva como se estivesse aplaudindo ou “animando” Deus Pai a continuar essa obra tão maravilhosa.
Francisco, que iniciou suas orações pedindo a iluminação das trevas interiores, sempre procurou a luz, porque viu na luz o maior símbolo de Deus. Jesus é luz porque veio revelar a luz que é o Pai. Francisco tem a maior celebração da luz no Cântico de Frei Sol, quando, cego nos olhos do corpo, só enxerga com os “olhos do espírito”.

b) São Francisco e a oração sacerdotal

Francisco reza ao Pai com Jesus três vezes seguindo a “oração sacerdotal”, que encontramos no capítulo 17 do Evangelho de São João. Nas três vezes, ele a usa livremente, selecionando trechos, saltando e mudando a ordem. Na Carta aos Fiéis (lCtFi e 2CtFi) é mais curto do que na Regra não-Bulada (22,39-50). Alguns trechos coincidem. Tudo isso demonstra que ele deve ter rezado muitas vezes essa oração de Jesus de cor, adaptando-a às circunstâncias. Também podemos ver, especialmente nestas duas passagens de seus escritos, possíveis trechos de sermões que ele costumava fazer ao povo.
Mas o mais importante é que essa e outras orações de Jesus foram formando Francisco como um filho verdadeiro do Pai eterno.
Nessa grande oração do final de sua vida, Jesus fala com o Pai sobre a glória a que todos nós estamos destinados. Nós precisamos estar com Ele onde Ele estiver, isto é, junto do Pai e do Espírito Santo. Não somos tirados do mundo, mas já não somos do mundo. Só ficamos nele para ajudar o Pai a continuar a sua obra criadora.
Francisco colocou os frades e os irmãos penitentes nessa mesma perspectiva trinitária em que já tinha colocado as clarissas quando lhes deu a Forma de Vida para Santa Clara. Algo que ele lembrava pelo menos quatorze vezes por dia ao rezar a Antífona a Nossa Senhora que está no Ofício da Paixão.
É claro que, para Francisco, nós estamos fazendo a vontade de Deus aqui na terra como vamos fazê-la um dia com todos lá no céu. Nós somos criadores com o Pai.

2. Perdoai as nossas ofensas

Viver a Bíblia como um povo é também ter uma ampla memória histórica. Esta seção do nosso trabalho é um aprofundamento da “memória” como ponto de partida da história. Jesus deixou-a para a segunda parte do seu Pai-nosso e nos deu uma excelente lição quando contou a parábola do filho pródigo. Francisco viveu isso tudo na sua penitência e na sua oração, ensinando-nos a nos libertar do pecado que nos deixou órfãos do Pai.

Temos que fazer um “nostos” – somos o filho pródigo

Jesus nos deixou um parâmetro para esta parte do Pai-nosso quando contou a parábola do filho pródigo. Nós somos pecadores e estamos sempre na volta para a casa do Pai. É interessante observar, na literatura universal, como a humanidade sempre sentiu um desejo profundo e inexplicável de voltar. Mesmo sem saber direito para onde tinha que voltar. Foi Jesus que veio mostrar com clareza que nossa volta é para os braços do Pai.
Em português, temos uma palavra nossa muito característica e original: “saudades”. A nossa lírica sempre encontrou um de seus grandes temas nas saudades. Ora, essa palavra é substituída nas outras línguas ocidentais por “nostalgia”, e em todas as línguas por alguma expressão semelhante. Em grego, ao pé da letra, “nostalgia” quer dizer “dor da volta”. “Nostos” é volta, e “algos” é dor. Quem não sentiu esta dor profunda com o desejo de voltar: voltar a algum lugar, a uma situação, aos braços de alguma pessoa?
A segunda parte do Pai-nosso é dominada por essa dor da volta. Temos que voltar ao paraíso, quando o Pai ainda passeava amigavelmente conosco naquelas tardes gostosas, porque não tínhamos resolvido sair de casa para construir o nosso mundo, um mundo em que pudéssemos ser deuses sem nos lembrar de que há um outro Deus tão grande.
Na realidade, como lembra São Francisco, nós nos tornamos tantas vezes “miseráveis” ou míseros, isto é, pessoas que precisam da compaixão que só Deus pode ter, porque só Ele sabe o que é a “hesed hahamim”, a misericórdia, pois só Ele tem aquelas entranhas maternas capazes de sentir e de fazer voltar os filhos ausentes.

Como fazer misericórdia

Na sua Paráfrase ao Pai-nosso, Francisco diz:
“E perdoai-nos as nossas ofensas por vossa inefável misericórdia, pela força da Paixão de vosso dileto Filho e pelos méritos e intercessão da beatíssima Virgem Maria e de todos os vossos eleitos. Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido: e o que nós não perdoamos totalmente, fazei vós, ó Senhor, que perdoemos plenamente, para que por vós amemos de verdade os nossos inimigos e intercedamos por eles devotamente diante de vós, a ninguém pagando o mal com o mal e em tudo procuremos ser proveitosos em vós” (EPN 9-10).
Para nos reconhecermos filhos do Pai eterno, é fundamental reconhecermos: a) que somos pecadores, b) que somos perdoados e c) que também temos que perdoar.
a) Somos pecadores. São João diz muito claramente: “Se dizemos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós. Se reconhecemos os nossos pecados, Deus que é fiel e justo perdoará nossos pecados e nos purificará de toda injustiça. Se dizemos que nunca pecamos, estaremos afirmando que Deus é mentiroso e a sua palavra não estará em nós” (lJo 1,8-10).
b) Somos perdoados. Em vez de ser uma pessoa triste e desconsolada porque não está conseguindo ter tantas coisas que desejaria, todo cristão deveria ser uma fonte transbordante de alegria por saber que foi perdoado: que estava longe e foi recebido em festa na casa paterna. Era essa a alegria constante de Francisco. Ele sabia que, para ele, já tinham sido movidas a “inefável misericórdia do Pai”, a “força da Paixão do Filho”,  os “méritos e a intercessão da beatíssima Virgem Maria e de todos os eleitos”.
Nós estamos muito mal acostumados a pensar que todas as nossas grosserias podem ser lavadas com um simples pedido de desculpas e não compreendemos que, para podermos fazer o caminho de volta à casa do Pai, foi preciso que se movimentasse tudo isso, inclusive que o Filho de Deus se encarnasse e morresse na cruz.
Precisamos gritar ao mundo: “Nós somos perdoados”. Já deveria ser uma razão mais do que suficiente para movimentarmos todos os povos para que se convertessem à boa-nova do Evangelho.
c) Temos que perdoar, como o Pai perdoa. Segundo o testemunho de São Lucas, Jesus ensinou: “Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados: perdoai e sereis perdoados” (Lc 6,36-37). No Evangelho de São Mateus, Jesus disse algo até mais incisivo: “Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, vosso Pai celeste também vos perdoará. Mas se não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoará” (Mt 6,14-15). A “hesed hahamin” é característica do Deus do Antigo Testamento, revelado por Jesus, como o Pai.
Na Carta a um Ministro, São Francisco deu uma das melhores demonstrações de como entendia a prática da misericórdia:
“E nisto reconhecerei que amas realmente o Senhor e a mim, servo dele e teu, se fizeres o seguinte: não haja irmão no mundo, mesmo que tenha pecado a não poder mais, que, após ver os teus olhos, se sinta obrigado a sair de tua presença sem obter misericórdia, se misericórdia buscou. E se não buscar misericórdia, pergunta-lhe se não a quer. E se, depois disso, ele se apresentar ainda mil vezes diante de teus olhos, ama-o mais do que a mim, procurando conquistá-lo para o Senhor. E tem sempre piedade de tais irmãos” (CtMi 5-7).
Francisco devia estar muito consciente de toda a misericórdia que já tinha recebido pessoalmente de Deus quando teve a oportunidade de partilhá-la com os outros. Por isso, quando ele “fez misericórdia” com os leprosos, sua vida mudou. Ele até precisou “sair do mundo”. Na Carta a um Ministro, ele também disse que tudo o que acontece conosco é graça: Deus está nos ajudando a voltar para a casa do Pai.
Por isso, acredito que o fato de Francisco e Clara terem mandado seus irmãos e irmãs rezarem tantos Pai-nossos como um Ofício alternativo não deve ser devido só a um costume que já existia antes deles e em outros grupos religiosos. Eles tinham consciência de que era preciso estar recordando o dia inteiro que o Pai é misericordioso e nós temos que ser misericordiosos com Ele (3).

Orar com Jesus pedindo misericórdia – o Ofício da Paixão

Francisco já reconheceu que precisava da misericórdia do Pai quando rezou diante do Crucifixo de São Damião pedindo que o Senhor “iluminasse as trevas do seu coração”, e soube reconhecê-lo até o fim, quando insistiu na oração que conclui a Carta a toda Ordem: ” … misericordioso Deus, … dai a nós, miseráveis … “. Aliás, ele sempre esteve querendo sair das trevas do pecado para a luz da misericórdia do Pai.
No Ofício da Paixão, temos o melhor exemplo de como São Francisco procurava rezar com Jesus Cristo ao Pai, pedindo misericórdia ou celebrando o fato de ter recebido misericórdia. Ele compôs todos os seus salmos como se estivessem sendo rezados pelo próprio Jesus: com orações do Antigo Testamento, entremeadas por expressões que só o Filho de Deus veio revelar no Novo Testamento. Creio que é importante examinar os passos mais significativos dessa oração ao Pai que Francisco e Clara rezavam todos os dias.
Na Antífona de Nossa Senhora, o Pai é chamado de “Altíssimo sumo Rei Pai Celeste, e Nossa Senhora é saudada como sua “filha e serva”.
No Salmo 1, versículo 5, Francisco e Jesus rezam assim: “Santo Pai meu, rei do céu e da terra, não vos afasteis de mim porque a tribulação está perto e não há quem me ajude”. E no versículo 9 insistem: “Pai santo, não afasteis de mim o vosso auxílio; Deus meu, vinde me socorrer”.
No Salmo 2, versículos 11 e 12, rezam assim: “Vós sois o meu Pai santíssimo, meu Rei e Deus meu. Vinde em meu auxílio, Senhor Deus de minha salvação”. O Salmo 3, que começa pedindo: ”Tende compaixão de mim, ó Deus, tende compaixão … “, continua no versículo 3: “Clamarei ao meu santíssimo Pai altíssimo; ao Senhor 1ue me encheu de benefícios”.
No Salmo 4, versículo 9, rezam assim: “Pai santo, não afasteis de mim a vossa ajuda, cuidai da minha defesa”. No Salmo 5 , reconhecem-se na posição de pecadores quando, no versículo 9, dizem: “Pai santo, o zelo de vossa casa me devorou, e os insultos dos que vos ofendem caíram em cima de mim … “. E mais à frente, nos versículos 15 e 16, vão completar: ”Vós sois o meu Pai santíssimo, meu Rei e meu Deus. Vinde depressa me ajudar, Senhor Deus de minha salvação”.
No Salmo 6, depois de reconhecer que “reduziram-me ao pó da morte, e aumentaram a dor de minhas chagas” (v. 10), voltam-se com confiança para dizer ao Pai: “Fui dormir e me levantei, e meu Pai santíssimo me recebeu com glória. Pai santo, vós me tomastes pela mão direita e me guiastes em vossa vontade e me acolhestes com honra” (vv. 11-12).
O Salmo 7 reconhece o pecado de toda a terra, mas proclama: “Porque o santíssimo Pai do céu, nosso Rei antes do começo do mundo, enviou lá do alto seu Filho amado e realizou a salvação em toda a terra” (v. 3). No tempo da Ascensão, Francisco acrescentava: “Subiu aos céus e está sentado à direita do santíssimo Pai celestial” (v. 10).
O Salmo 9 é cheio de alegria pela ressurreição de Jesus, mas lembra que foi preciso sacrificar o Filho de Deus: “A seu Filho amado sacrificou a sua destra e seu santo braço” (v. 2).
O Salmo 11 canta a misericórdia de Deus diante dos pecadores, pois celebra: “Agora, eu reconheci que o Senhor enviou Jesus Cristo, seu Filho, e ele julgará o universo com justiça” (v. 6).
O Salmo 14 já reza assim no primeiro versículo: “Eu vos dou graças, Senhor, Pai santíssimo, Rei do céu e da terra, porque me consolastes”. E, finalmente, o Salmo 15, que celebra o Natal, proclama no versículo 3: “Pois o santíssimo Pai do céu, Rei nosso antes de todos os séculos, mandou do alto seu amado Filho e nasceu da bem-aventurada Virgem Santa Maria”, concluindo no versículo 5: “Naquele dia concedeu o Senhor a sua misericórdia”.
É fácil perceber que todo o Ofício da Paixão é um pedido de misericórdia feito ao Pai e cheio de esperança-certeza.

Conclusões

Clara, que a família francisclariana está começando a redescobrir, ilumina fortemente a espiritualidade que partilhou com Francisco, porque sabe expressá-la de uma maneira quase sempre muito original e muito livre. É interessante observarmos, mais do que ela diz sobre Deus Pai, sua práxis constante de viver com Jesus no caminho que leva ao Pai.
Celano apresentou Francisco como um “homem novo”, justamente porque o viu como alguém que retornara à casa do Pai e estava colaborando com a nova criação, já tinha observado isso quando afirmou, na Legenda de Santa Clara:
“Quando ouviu falar do então famoso Francisco que, como homem novo, renovava com novas virtudes o caminho da perfeição, tão apagado no mundo, quis logo vê-lo e ouvi-lo, movido pelo Pai dos espíritos, de quem um e outra, embora de modo diferente, tinham recebido os primeiros impulsos” (LSC 5).
É claro que foi esse “Pai dos espíritos” que se tornou a meta de Clara na sua vocação, que ela mesma descreve como um dos maiores benefícios recebidos do Pai, que nos dá Jesus como o caminho e o espelho para chegar até ele:
“Entre outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da generosidade do Pai de toda a misericórdia e pelos quais temos que agradecer ao glorioso Pai de Cristo, está a nossa vocação que, quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida” (TestC 2-4).
É empolgante ler o Processo de Canonização e ir percebendo como Clara conseguiu passar para suas irmãs a sua convicção viva de que toda a nossa vida é um constante voltar para a casa paterna e um empenhativo compromisso de continuar com o Pai a obra da criação até a consumação dos séculos.

Quem tem um Pai no céu é pobre

Uma das primeiras conclusões práticas que podemos tirar da descoberta de Deus como Pai é que podemos ser pobres e livres. As próprias pessoas divinas são essencialmente pobres porque dão tudo de si sem precisar segurar nada. Têm a liberdade de dar tudo sem precisar guardar nada para nenhuma eventualidade, pois não pode acontecer nenhum imprevisto para quem só vive o Amor. Tudo o que pode acontecer é só um dar-se sem restrições.
Por isso, Clara e Francisco só podiam ser pobres e livres. Quem está vivendo o Pai-nosso só pode ser pobre e livre porque não precisa se apropriar de nada, não precisa mandar em ninguém e não precisa ter importância reconhecida pelos outros.
Quem é filho de Deus sempre vai ter tudo o que precisar, sempre vai ter o melhor relacionamento possível com todas as pessoas sem ter que coagi-Ias a nada, sempre vai ter o melhor reconhecimento possível por parte de quem melhor sabe fazê-lo: Deus.

Estamos seguindo os passos de Jesus crucificado 

Outra conclusão prática e concreta é que não precisamos nos preocupar com nada. Sabemos que, no fim da caminhada, o que vamos encontrar é a plenitude do que estamos descobrindo aos pouquinhos cada dia: o Pai. Para isso, Francisco ensinou que basta “seguir os passos de Jesus crucificado”. Podemos ir até como cegos que deram a mão e confiam no seu guia.
Quando lemos os jornais ou escutamos os noticiários, somos invadidos pelo terrível sofrimento do mundo. De um mundo de órfãos que, não reconhecendo que têm um Pai nos céus, têm que passar a vida brigando por coisinhas e se matando por idéias que são mais efêmeras do que as moscas. Será que este mundo não está precisando da segurança que deveria brotar e jorrar de nossa confiança viva no Pai?

Vivemos a esperança da utopia 

Mas os filhos do Pai das misericórdias não são omissos. Estão na luta da construção do Reino, e o Reino é uma utopia que só virá com muito trabalho. Muita gente já trabalhou por ele no passado, muita gente ainda vai trabalhar no futuro, e nós somos os trabalhadores do presente. Jesus disse que até o Pai trabalha e que ele também não pára de trabalhar.
Francisco falou na “graça do trabalho”. É a graça de poder transformar o sonho em realidade. Homem que “tinha sido transformado na própria oração”, ele insiste muito mais na necessidade de agir. Achava que não era verdadeira oração de quem não tornava realidade as obras do Pai.
Só consegue transformar o sonho em realidade quem vive cultivando o sonho do Pai, quem tem toda a força dele para transportar montanhas. Foi isso que o pobrezinho Francisco aprendeu com Jesus e nos ensinou.
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1. Sobre isso, nada melhor que ler a primeira parte do livro de Nguyen Van Kahnah, Gesu Cristo nel pensiero di San Francesco secondo i suoi scritti. 
2. “San Damiano – Assisi: La prima Chiesa di San Francesco”, em Atti Accademia Properziana del Subasio, ser. VI, 7 (1983) 49-87.
3. Sobre o perdão em São Francisco e Santa Clara, há um capítulo interessante no livro de Adriano Parenti, La scuola di preghiera da Francesco e Chiara d’Assisi, p. 85-89
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Fr. José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap 

É diretor do Centro Franciscano de Espiritualidade de Piracicaba. É autor de vários livros de espiritualidade e franciscanismo. É historiador e pesquisador na área fransciscana, profundo conhecedor da vida e obra de São Francisco de Assis e Santa Clara.
Este texto foi publicado nos “Cadernos Franciscanos”, da FFB e Editora Vozes.

21 de maio de 2013

E se falássemos mais um pouco da fé?


É urgente atravessar a soleira da fé

No contexto do Ano da Fé multiplicam-se artigos, estudos e textos sobre este delicado e fundamental tema. Vamos  nos deter em alguns aspectos do assunto tendo em mãos reflexões de Frei José Rodriguez Carballo, ex-Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores, em sua Carta aos Frades, escrita por ocasião da Páscoa de 2013, como também meditações de nosso confrade francês Michel Hubaut, homem fecundo em estudos sobre  a espiritualidade franciscana.


À guisa de introdução

Começou o reino da vida e foi dissolvido o império da morte. Apareceu um novo nascimento, uma vida nova, um novo modo de viver; a nossa própria natureza foi transformada. Que novo nascimento é este? É o daqueles que não nasceram do sangue nem da vontade do homem, mas de Deus mesmo (Jo 1, 13).  Tu perguntas: como isto pode acontecer? Escuta-me, vou te explicar em poucas palavras. Este novo ser é concebido pela fé; é dado à luz pela  regeneração do batismo; tem por mãe a Igreja que o amamenta com sua doutrina e tradições. Seu alimento é o pão celeste, sua idade adulta é a santidade; seus filhos são a esperança; sua casa é o reino; sua herança e riqueza são as delícias  do paraíso; seu fim não é a morte, mas aquela vida feliz e eterna que está preparada para aqueles que são dignos dela” (Gregório de Nissa, Liturgia as Horas II, p. 743). Muitas vezes se diz que o problema das Igreja são os  “afastados”. Pessoalmente penso que não só eles são o problema, mas também os “de perto”  podem ser  um problema quando permanecem na soleira da “Porta da fé” sem nunca atravessá-la. (Frei José Rodriguez Carballo, OFM)


1. Nos albores de sua trajetória espiritual, Francisco de Assis descobre que a fé é uma chama muito frágil no meio da noite. Vai andar ao seu encalço como alguém que procura um poço no deserto ou tesouro escondido num campo. O Poverello, na perquirição da fé, sente que o velho homem vai morrendo, fazendo barulho estridente, desvencilhando-se de amarras e de falsos apoios. Os primeiros anos da conversão de Francisco foram marcados pela busca da fé. “O evangelho fazia-lhe sofrer tanto quanto o bisturi de um cirurgião. A pacífica homilia que mantinha adormecida a assembleia dominical se converteu para ele em um evangelho de fogo. O medo é precisamente o contrário da fé. Esta aponta para a coragem de tudo arriscar. Renunciar ao desejo de manejar a própria vida, seus talentos, seus bens e seguir cada um, solitariamente, seu caminho para se entregar à vontade de Deus,  para entrar em seu projeto amoroso para conosco: esse é todo o mistério da fé (…). Nada se pode compreender de sua vida se se esquece este fundamento inicial. A conversão de Francisco consistiu  no desejo do homem se abrir ao desejo de Deus” (El camino franciscano, Estella, p. 19). O carisma de Francisco não é a pobreza, mas a fé viva.

2. Esse trabalho de fé-conversão demanda tempo. Dídimo de Alexandria fala da ação do Espírito nesse desejo de Deus e no cultivo da fé: “Precisamos, pois, do Espírito Santo para nossa perfeição e renovação. Pois o fogo espiritual sabe também regar, e a água batismal é também capaz de queimar como o fogo” (L. Horas II, p. 795).

3. “Durante toda a sua vida, Francisco cultivará uma fé desperta e vigilante, aberta ao apelo de Deus e do Espírito do Senhor. Seu cuidado foi o de desobstruir as fontes interiores, escutar o Senhor, deixar-se amar e plasmar por Deus; deixar-se conduzir na noite pela esperança que ganhou um rosto em Jesus Cristo; despertar de um torpor espiritual. Este é o projeto de Francisco que se enraíza na fé. Fé de quem descobre Deus como um dinamismo de amor que não ameaça nossa liberdade, mas nos estrutura, nos constrói, nos realiza” (Hubaut, Chemins d’intériorité avec saint François, Paris, p.31).

4. Tomamos as reflexões de Frei Carballo: “Penso dizer a verdade  ao afirmar  que a crise da fé vivida dentro da Igreja, como muitas vezes denunciou o Papa, também é palpável  entre nós. Ao afirmar isso não penso tanto numa fé teórica e conceitual, mas naquela celebrada, vivida e confessada na vida cotidiana. Sem negar que a maior parte dos irmãos dão constantemente, sem holofotes, sem aplausos e sem grandes discursos, testemunho humilde de uma fé confessada, vivida e celebrada, permanecendo fiéis contra toda esperança e fazendo em sua vida experiência do mistério pascal, também é verdade que o secularismo, entendido como um conjunto de  atitudes hostis à fé e que afeta vastos setores da sociedade, pode ter penetrado em nossas fraternidades e em nossas vidas; e que o desaparecimento do horizonte da eternidade e a redução do real à única dimensão terrena tem sobre a fé o efeito da areia jogada sobre o fogo: sufoca-o e acaba por apagá-lo”.

5. O ex-Ministro Geral retoma ideias e questionamentos feitos pelo Papa Bento XVI em algumas de suas audiências. Eis algumas de  suas  interrogações:  Ter fé no Senhor não é um fato que interessa só à inteligência, mas leva a uma transformação que atinge toda a vida, a totalidade do ser humano: sentimento, coração, corporeidade, vontade, inteligência, relações humanas. O então Papa Bento XVI perguntava: “A fé é realmente uma força transformadora em nossa vida, em minha vida? Ou é só um dos elementos que fazem parte do pano de fundo de minha existência, sem ser  a determinante que a envolve totalmente?”

6. “A atestação da fé dos discípulos e a biografia dos santos não deixam dúvida: a fé cristã se dá sempre como conversão. O reconhecimento-acolhida de Jesus como verdade da vida acontece em termos de conversão. O contexto atual do desaparecimento de uma “sociedade  cristã” pede atenção especial no tocante à questão da fé. Não se nasce mais cristão, será preciso tornar-se cristão. Falamos, então, de  um itinerário espiritual de iniciação” (“Mario Antonelli,  La fede radice de la vita Cristiana, in Rivista de Clero Italiano 11/ 2012, p.757).

7. Converter-se e crer são verbos que são sempre associados. Isso já se dava no Antigo Testamento. “Converter-se é essencialmente e antes de tudo crer nesse acontecimento inaudito que mal podemos crer. Em todo o Antigo Testamento, a fé era um ato de confiança nas promessas do Deus da Aliança que revela progressivamente aos homens seu grandioso desígnio de amor. A fé era, já então, resposta do homem a esta iniciativa de Deus. Converter-se é sempre voltar para ele com confiança. Jesus pede a mesma confiança nele como a que era prestada ao Deus da Aliança. Pede que nele creiamos  porque ele é o Reino, a força do Amor de Deus que se aproximou de nós.

8. Converter-se é acolher na fé esta iniciativa gratuita, imprevisível de Deus que decidiu em Jesus nos visitar em pessoa para nos salvar, quer dizer, nos fazer ingressar numa felicidade sem fim. Converter-se é aceitar de ser salvo  gratuitamente  e fazer com que a vida seja colocada em sintonia com este acontecimento. Converter-se é mudar a direção da vida, é renunciar a viver como centro do mundo e como autossuficiente. É arriscar ou apostar nossa vida, nosso futuro, nossa busca de plenitude em Jesus que nos chama para seu seguimento. É caminhar com certeza que não são vistas.

9. A conversão não quer dizer, em primeiro lugar, passar do vício à virtude, mas viver uma mudança radical:  aceitar nunca mais querer fazer a vida sozinho, à força de teimosia, mas acolher em Jesus a iniciativa de Deus, a gratuidade de seu amor.  No começo de tudo, não há mais o eu, o homem, mas o Amor de Deus.

10. A fé é descentralização de si. É morte a si mesmo. Supõe o combate, como esse corpo-a-corpo de Jacó com Deus. Como aconteceu com São Paulo, mais dia menos dia, somos convidados a consentir que sejamos “desarrumados” por Alguém em nossos projetos, em nossas ideias feitas a respeito de Deus. É Deus que procura o Homem. “Adão, onde estás?”.

11. Em sua reflexão, Frei José Carballo faz alusão a uma palavra de São Boaventura. “São Boaventura, no Prólogo do Brevloquium, define a fé com três imagens que considero muito esclarecedoras em relação ao que estamos dizendo: “fundamentum stabiliens”, fundamento que dá estabilidade; “lucerna dirigens”, lâmpada que dirige;  “ianua introducens”, porta que introduz.  Enquanto fundamento, a fé é o que dá estabilidade à nossa vida; enquanto lâmpada, a fé é a luz que  permite ver e indica a direção correta;  enquanto porta, é a que permite ir mais além e que introduz à comunhão com o Santo dos santos”.  Belas imagens: fundamento, luz e porta.

12. “Tentando sintetizar ao máximo, penso que a resposta à pergunta, o que é a fé?, seja adesão. Adesão cordial a uma pessoa, à pessoa de Cristo, e adesão gozosa aos conteúdos, os que a Igreja nos propõe no Credo e através do Magistério. A adesão à pessoa de Jesus Cristo, essencial na vida da pessoa que crê, comporta um encontro pessoal com Jesus através de uma intensa vida de oração, de uma rica vida sacramental e da Leitura orante da Palavra. Temos que ser muito conscientes que no campo da fé jogamos tudo no encontro com a  pessoa de Jesus. Sem este encontro, nossa adesão será uma ideia ou uma ideologia, nunca a uma pessoa e a uma forma de vida” (Frei José R. Carballo).

13. “A adesão aos conteúdos da fé que nos apresenta a Igreja comporta o conhecimento de tais conteúdos e uma reflexão profunda sobre eles, assim como uma visão de fé sobre a própria Igreja. Não se trata de professar “a minha fé”, mas de fazer minha a fé da Igreja (…) faço meu o convite do último Sínodo para reanimar o nosso entusiasmo de pertencer à Igreja (cf. Inst. Laboris 87). Somente com este entusiasmo poderemos restaurá-la, como fez Francisco”.

14. Quase no final de sua Carta Apostólica Bento XVI escrevia: “Já no termo de sua vida, o Apóstolo Paulo pede ao discípulo Timóteo que “procure a fé” (cf. 2Tm 2,22) com a mesma constância de quando era novo (cf. 2Tm 3,15). Sintamos esse convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé. Esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a se tornar sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo  tem hoje particular necessidade é o testemunho credível  de quantos iluminados na mente e no coração pela Palavra do Senhor são capazes de abrir o coração e a mente de muitos ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem fim” (. 15).

15. Retomamos a citação de Gregório de Nissa. O cristão, esse novo ser é concebido pela fé, vem à luz pelo batismo, ele tem por mãe a Igreja. Esta o alimenta com sua doutrina e suas tradições. O alimento dos renascidos é o pão celeste, sua idade adulta é a santidade, seu matrimônio é a familiaridade com a sabedoria; os filhos do que creem é a esperança, sua riqueza são as delícias do paraíso, seu fim não e a morte, mas a vida feliz e eterna. A beleza de nossa vida cristã é conviver com pessoas que caminhando entre nós têm os olhos fitos no Senhor. Somos peregrinos que juntos acreditamos.

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Extraído de: http://www.franciscanos.org.br/

20 de maio de 2013

Mês de Maria, Mãe do Redentor - Iconografia de Nossa Senhora


A iconografia de Nossa Senhora varia de acordo com as fases da sua vida:
Imaculada Conceição ou Nossa Senhora da Conceição – a virgem ainda jovem com as mãos junto ao peito, os anjos, a serpente e a meia-lua. Conforme a época e o lugar, Aparecida, Lujan e Fátima.

Nossa Senhora da Expectação ou Nossa Senhora do Ó – aguardando a vinda do Salvador

Nossa Senhora com o Menino – abrange a maioria das invocações. As mais antigas mostram Nossa Senhora sentada, tendo no seu colo o Menino Jesus e nas mais novas, Nossa Senhora está em pé, com o Menino geralmente no seu braço esquerdo.
Conforme os atributos que a Virgem e o Menino trazem em suas mãos, varia a devoção: Nossa Senhora do Rosário, do Carmo, do Desterro, da Luz, da Purificação, da Glória, da Ajuda, do Bom Sucesso, da Fartura, da Guia, da Graça, da Escada, das Brotas, da Penha, da Boa Viagem, dos Navegantes, da Abadia, do Amparo, da Cabeça, da Ponte, etc.
Nossa Senhora das Dores e da Piedade – são as imagens ligadas à Paixão Cristo. As Dolorosas têm as mãos sobre o peito e o coração dilacerado por setas, e as Piedades sustentam o corpo de Cristo sobre o colo.

As Alegrias de Nossa Senhora

As Alegrias de Nossa Senhora são em número de sete: Anunciação do Anjo, Saudação de Santa Izabel, Nascimento de Jesus, Visita dos Reis Magos, Encontro de Jesus no Templo, Aparição de Jesus após a Ressurreição e Coroação no Céu após a Assunção.
A devoção de Nossa Senhora dos Prazeres foi muito intensa nos primeiros tempos de São Paulo.
Sua representação, muito comum no século XVII, mostra Nossa Senhora sorrindo, afagando os pés de seu Filho, e todos os Anjos, colocados na base, também sorridentes.

FONTE: http://www.franciscanos.org.br/

19 de maio de 2013

PENTECOSTES - A força do Espírito rompe barreiras e renova o mundo!


Por Frei Jacir de Freitas Faria, OFM

I. INTRODUÇÃO GERAL

Na era da internet, uma notícia chega aos quatro cantos do mundo em frações de segundos. Através das teclas do computador, vemos o mundo e nos comunicamos com ele, nos mobilizamos para coisas boas e ruins. Tudo se parece a um espírito que corre veloz nas ondas invisíveis e nas fibras óticas de um mundo globalizado, que, apesar dos avanços tecnológicos, persiste ainda em mostrar o incômodo da miséria, do racismo, da exploração sexual e das injustiças sociais que assolam grande parte do nosso planeta. A globalização ainda não acontece satisfatoriamente na promoção da solidariedade, da cultura da paz, do acesso aos bens necessários à vida, da promoção da justiça.
É nesse contexto de século XXI que continuamos celebrando Pentecostes como acontecimento profundamente aglutinador, pois nele todos os povos são reunidos por Deus para desfrutar da páscoa de seu Filho, fonte de paz, salvação e vida plena para todos. Pentecostes não é o oposto de Babel (Gn 11,1-9), pois ali não se trata de multiplicação de línguas, mas é a plenitude da comunicação entre o divino e o humano e evento basilar do cristianismo primitivo, ao reler a manifestação de Deus no monte Sinai. É o que veremos nas leituras de hoje.

II. COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (At 2,1-11): Pentecostes é a releitura simbólica do Sinai

Haviam se passado os cinquenta dias entre as festas da Páscoa e Pentecostes. Era o quinquagésimo dia da festa das semanas, daí o nome hebraico da festa: pentecostes. Era o dia 06 do mês de Sivan – 22 de maio no nosso calendário. Jerusalém estava repleta de peregrinos. Todos teriam trazido as primeiras colheitas para serem ofertadas no templo. A peregrinação até Jerusalém teria sido linda. Imagine grupos de pessoas caminhando juntos com cestos de uva, trigo, azeitonas, tâmaras, mel… Imagine o povo sendo acolhido em Jerusalém ao som de harpa, flauta e recitação de Salmos. Todos carregavam dentro de si o desejo de agradecer a Deus pelas primeiras colheitas e de comemorar o “dom da Torá”, da Lei dada ao povo no monte Sinai tantos séculos atrás. Nisso consistia a festa judaica de Pentecostes: comemorar o recebimento da Torá no monte Sinai e afirmar, com isso, que no dia de sua revelação “Eu também estava lá” (Dt 5, 24). O ontem se torna hoje (Lc 4).
Em Jerusalém estavam todos. E todos presenciaram a vinda do Espírito Santo. Como podemos interpretar esse episódio narrado por Lucas em Atos? Não estaria aí uma releitura do evento Sinai? Lucas descreve o acontecido em Pentecostes tendo na memória a narrativa do Sinai. Era preciso demonstrar que um novo Sinai estava acontecendo para legitimar a ação da comunidade de Jerusalém. Jesus teria dito para voltar a Jerusalém e lá eles receberiam o Espírito Santo. Pentecostes passa a ser o batismo da comunidade cristã, o qual a confirma na missão de ir para o mundo e evangelizar. Mais do que um dado histórico, estamos diante de uma profissão de fé. Sem Pentecostes, a Páscoa (passagem) em Jesus para uma nova vida não estaria completa. É belíssima a simbologia usada por Lucas para falar de uma experiência tão importante que marca o início da missão das comunidades cristãs.

Em At 2,1-13 temos dois relatos unidos: um mais antigo (vv. 1-4 + 12-13) e um mais desenvolvido redacionalmente (vv.5-11). O objetivo do primeiro é chamar a atenção para o fato carismático e apocalíptico de Pentecostes, e o segundo, demonstrar o caráter profético e missionário do evento. Vamos considerar o texto como um todo e interpretá-lo simbolicamente e como releitura do Sinai (cf. Faria, Jacir de Freitas, In.: O Espírito de Jesus rompe as barreiras, São Leopoldo: CEBI, 2001 p.13-16).
Eis os símbolos:

a) Casa em Jerusalém: a vinda do Espírito Santo ocorre, segundo a tradição, em uma casa de dois andares na cidade de Jerusalém, que está situada sobre o monte Sião. Esses dois detalhes evocam claramente o monte Sinai, local onde Moisés recebeu as Dez Palavras de Deus. No Primeiro Testamento, os montes eram considerados lugares privilegiados da manifestação de Deus.

a) Língua/linguagem: Lucas substitui o termo voz, que aparece na narrativa do Sinai, para língua. Esses termos são semelhantes e ambos se referem à Palavra. E cada um entende na sua própria língua. A Palavra é a presença de Deus. Língua (idioma) e linguagem (modo de se comunicar) têm o mesmo sentido no texto. O milagre de Pentecostes consiste no fato de os presentes poderem entender os apóstolos a partir de sua própria cultura. É o mesmo que dizer: a evangelização está sendo realizada com sucesso. Por isso, esse fenômeno de “falar em línguas” – também encontrado em At 10,46; 19,6; 1Cor 12,10.28.30; 14,2.4-6.9 -, aparece nessa leitura com o acréscimo de “outras línguas”, com a intenção de demonstrar que a evangelização era para “todos no mundo todo”. Evangelizar não é falar em língua que ninguém entende, mas justamente o contrário. Não importa o idioma (língua mãe), mas a linguagem comum, o modo como é transmitida a proposta do reino.

b) De fogo: representa a manifestação de Deus; é um modo apocalíptico para dizer que Deus se manifestou – Ex 3,2-3; 13,21; 19,18) -, (Cf. Comblin, José, Atos dos Apóstolos vol. 1:1-12. Petrópolis: Vozes, 1988, p.89). Deus acompanha o povo pelo deserto numa coluna de fogo que iluminava a noite (Ex 13,20-22). Deus desce para falar com o povo e Moisés no Sinai por meio de um fogo (Ex 19,18). A comunidade de Mateus conservou a memória da fala de João Batista que anuncia o batismo no Espírito Santo e no fogo que Jesus deveria realizar (Mt 3,11). E é isto que ocorre em Pentecostes, segundo a interpretação da comunidade de Atos dos Apóstolos. O Espírito Santo é o fogo da Palavra de Jesus que deve ser anunciada pelos seus seguidores. Também a tradição rabínica associa a palavra de Deus com o fogo. O comentário rabínico da passagem de Ex 20,18 “todo o povo ouviu trovões” diz: “Note-se que não é dito o trovão, mas ‘trovões’. Por isso, Rabi Johanan disse que a voz de Deus, apenas pronunciada, dividiu-se em 70 vozes, em 70 línguas, para que todas as nações pudessem compreender. Quando cada nação entendeu a voz na própria língua, a sua alma desfaleceu, salvo Israel que a ouviu, mas não ficou perturbado”( Cf. FABRIS, Rinaldo, Os Atos dos Apóstolos, São Paulo: Loyola, 1991, p.62. ). Falar em línguas, então, significa anunciar a palavra comprometedora de Jesus e não, balbuciar palavras indecifráveis.

c) Multidão: simboliza o povo no deserto que recebeu as tábuas da Lei. No dia de Pentecostes, três mil pessoas estavam em Jerusalém. Não se trata aqui de uma cifra exata. A comunidade de Atos quis, com isso, afirmar que a comunidade dos convertidos era uma multidão, proveniente de doze povos e três regiões. Basicamente, estavam em Jerusalém três grupos: a) nativos do oriente (partos, medos e elamitas); 2) habitantes do leste (Mesopotâmia), norte (Ásia), sul (Líbia) e os da Judeia, Capadócia, Ponto, Frígia, Panfília e Egito; 3) estrangeiros (romanos, judeus e prosélitos, cretenses – povo marítimo – e árabes – povos do deserto). Curioso é o fato de que Lucas não menciona o território das igrejas paulinas (Síria, Macedônia e Grécia). Na menção aos povos, Roma está em último lugar. De onde Lucas herdou essa lista? Questão debatida. A lista dos vv. 9-10 Lucas herdou de uma fonte, mas a modificou, provavelmente. “Judeia” fora do lugar, no meio da Mesopotâmia e “Creta e arábia” parecem ser composição lucana.

d) Vendaval impetuoso: simboliza a manifestação de Deus. É a “violência” do Espírito que leva a comunidade a ser profética e missionária. Deus fala no Primeiro e Segundo Testamentos.

e) Estão cheios do vinho doce: essa acusação simboliza os que não estão abertos ao novo da comunidade cristã. Segundo os Rolos do Templo (Cf. FITZMYER, J., The Acts of the Apostles, The Anchor Bible, vol. 31, p.235.), gruta 11, os judeus de Qumrã celebravam três pentecostes: a) Festa das Semanas e do Novo Trigo (50 dias após a Páscoa); b) Festa do Novo Vinho (50 dias após a festa do Novo Trigo); c) Festa do Novo Óleo (50 dias após a Festa do Novo Vinho). Essa sequencia de festas nos mostra que, depois da Páscoa, de cinquenta em cinquenta dias, era celebrada uma festa. Sendo uma das festas a do Novo Vinho, podemos entender melhor essa zombaria no texto: “estão cheios de vinho doce”. Lucas pode ter conhecido múltiplos Pentecostes entre os contemporâneos Judeus e fez alusão ao Pentecostes do Novo Vinho, quando fala, mais propriamente, do Pentecostes do Novo Trigo.

f) Discurso de Pedro: Como Moisés, Pedro faz um discurso para fortalecer na fé os que aceitaram a proposta de Jesus e desmascara os que não estão dispostos a seguir o novo. Pedro, como liderança do grupo dos apóstolos, convoca a comunidade a acreditar em Jesus de Nazaré que foi morto e ressuscitou dos mortos por intervenção divina. Diante da reação atônita da comunidade, só resta a conversão para obter a salvação.

2. Evangelho (João 20,19-23): Pentecostes é a nova páscoa para os seguidores de Jesus, na paz e no anúncio do Espírito Santo.
A comunidade está reunida e com medo. O ressuscitado ultrapassa a barreiras físicas e aparece diante dela. Ele lhes diz: ‘a paz esteja convosco’. “Paz se diz em hebraico Shalom, o qual, por sua vez, tem sua origem no verbo Shlm que, no tempo verbal piel, significa pagar, devolver, ressarcir, indenizar, conservar. Da mesma raiz, o adjetivo Shalem significa estar completo, inteiro. Pagar em hebraico tem o sentido de completar o valor justo. É uma forma simbólica de completar o vazio deixado pelo objeto tirado. Quem compra e não paga mutila o outro. Paz é um eterno estar em harmonia com Deus, o outro e o universo. Os judeus acreditam que o Messias só virá, quando a justiça social estiver implantada em nosso meio. Jerusalém, a cidade (Yeru) da paz (Shalem), é protótipo desse sonho, dessa esperança. Jerusalém, em hebraico se escreve, na verdade, Ierushalaim. Duas vezes aparece o i (em hebraico yod), sendo que na segunda vez ele não é pronunciado, pois representa o nome de Deus, Iahweh. Os outros povos, não compreendendo o significado do i no nome dessa cidade santa, traduziram o seu nome para Jerusalém. O yod representa, para o semita, a esperança. E é nesse contexto que podemos entender a fala de Jesus: “Nem um i sequer será tirado da Lei” (Mt 5,18). A esperança de paz, de voltar ao tempo de Deus, jamais acabará para quem sabe esperar. Jesus pôde dizer Paz a vós, pois ele é a paz. A sua presença já é paz e esperança. Quando, na missa, saudamos o outro com a expressão paz de Cristo, desejamos que Cristo esteja dentro dele e que ele seja qual outro ressuscitado. A expressão “Paz de Cristo” reúne os elementos do ser completo, da harmonia e, mais do que isso, da presença duradoura de Deus transmitida por Jesus aos seus” (Cf. Faria, Jacir de Freitas, As origens apócrifas do cristianismo, comentários aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 2003, p.??).

Para as comunidades joaninas, Pentecostes, como dom do Espírito, se realiza na Páscoa. Jesus, na sua morte de cruz, entrega o Espírito (Jo 19,30). Jesus ressuscitado aparece aos discípulos e lhes oferece o Espírito Santo, como nos atesta o evangelho de hoje (v.22). A comunidade pascal é portadora da paz e da força do Espírito do Ressuscitado que deve ser levado ao mundo. Ela é sinal da ação do Espírito que faz passar da morte para a vida todo o universo. Por isso, Jesus envia a comunidade ao mundo, com a missão de reconciliá-lo com Deus, combatendo as forças do mal. A nova comunidade dos judeus cristãos é portadora do projeto de Deus para a verdadeira unificação do mundo. Esse segredo chama-se: páscoa do ressuscitado. Sua força é a mesma de Pentecostes: reunir a diversidade na unidade. O desafio da comunidade é abrir as portas da ‘casa’: sair de si para reconhecer no universo o “vendaval” do Espírito que tudo renova, tudo recria e que sopra onde quer.

3. II leitura (I Coríntios 12,3b -7.12-13): O Espírito, fonte de diversidade e de comunhão
Tendo aprofundado o caráter simbólico da solenidade de Pentecostes, nos deparamos com a segunda leitura de hoje, a qual é um desafio proposto à comunidade de Corinto, em meio às divisões que ela sofria. Paulo insiste na comunhão no mesmo Espírito, na diversidade de ministérios, atividades, raças, culturas e povos. Diversidade é sinal da riqueza do único corpo de Cristo e condição para a unidade. O Espírito distribui os dons e reúne tudo e todos em Cristo. Assim, todos devem ser responsáveis e contribuir para o crescimento da comunidade, o Corpo do Senhor. Essa unidade só é possível porque envolve três realidades: 1) a ressurreição de Jesus que reúne o corpo e a comunidade; 2) a força do Espírito que impulsiona esse corpo e 3) a diversidade de dons necessários à vida do corpo.
Na Comunidade de Corinto e nas de hoje, reconhecer Jesus como Senhor, título do Ressuscitado, é abandonar toda e qualquer divisão entre os irmãos. É ser sinal do amor de Deus para o mundo, deixando a energia do Espírito nos conduzir ao diferente, ao novo, manifestando a todos a vida que Deus dá. É o que expressa o prefácio litúrgico de Pentecostes: “…é ele quem dá a todos os povos o conhecimento do verdadeiro Deus e une, numa só fé, a diversidade das raças e línguas”. A unidade dos cristãos é um desafio constante para todos nós. É nesse espírito que somos convidados a viver a Páscoa do Senhor como fator de unidade entre todas as Igrejas e entre todo o gênero humano. Pentecostes, assumido pela tradição cristã como plenitude da Páscoa de Jesus, é a força capaz de nos fazer compreender e viver em profundidade o projeto universal de vida para todos. Faz-nos enxergar no diferente, e até no estranho, a força da vida divina. A vida nova em Cristo tem força “simbólica”, unificadora: supõe abandonar tudo o que divide, afasta e cria abismos na convivência humana e ecológica, para abraçar outra norma de vida: o amor que reúne, aproxima e refaz a convivência na humanidade. É o Espírito, força de vida e de unidade, o único capaz de nos conectar com todo o universo e com a fonte da vida.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO
1. Demonstrar que o Espírito Santo é o coração palpitante que animou a vida das primeiras comunidades cristãs no anúncio do evangelho e na fé em Jesus ressuscitado. Somos herdeiros dessa fé intrépida que rompeu barreiras e ganhou o mundo.
2. Demonstrar que a grande mensagem de Pentecostes é a evangelização e não o falar línguas. A vivacidade de nossas comunidades é um exemplo de um novo Pentecostes acontecendo.
3. O Espírito de Deus em Pentecostes enche todo o universo e mantém unidas todas as coisas; gera novas relações na comunidade e no mundo; realiza a plenitude da Aliança do Sinai: o amor sem fronteiras.

18 de maio de 2013

Algumas ideias sobre a Teologia Franciscana - Final


Texto de Frei Vitório Mazzuco Fº.

Existência e Essência são a mesma coisa em todo ser criado. Como sabemos que uma coisa existe? Através do Ver = o imediato visível. A intuição. A maneira imediata de constatar a existência de tudo aquilo que é. O Tocar: tocar o objeto é um modo de ver. O Ouvir: escutar a fala de todas as coisas. Isto tudo traz a percepção pela mediação. É um caminho de fé subjetiva muito maior que as crenças. Crença é o que os outros ouviram e relataram, fé sou eu mesmo que verifico. Ver, pensar, crer e provar não se separam. É deixar vir as interrogações: Vocês duvidam que existe? Alguém já viu a alma? Existe em nós algo que não é corpo, que não é matéria? O Espírito pode ser uma realidade permanente pensado em nossa identidade e consciência? Como lembramos de fatos passados?  Como o nosso hoje é um ontem de lembranças? Porque alguma coisa guardou para nós ou se guardou em nós. A grande questão medieval: como podemos estar certos da existência de Deus?

Teologia e Filosofia medieval sentam-se aos pés uma da outra e escutam-se mutuamente. Tanto a serva filosofia como a serva teologia querem mostrar que Deus é um Ser e uma Essência existencializada. Que Ser?

O Ser Possível = a Essência não inclui uma existência visível. O Ser Necessário = a Essência inclui uma existência. Deus é um Ser que passa da não existência para a existência. Deus existe por ser o que é! Ele existe pelo fato de ser Deus. Ele é “prius natura” = anterior por natureza. Ele não existia e passa a existir.

Deus é um Ser absolutamente Necessário. É forçoso que exista algo absolutamente necessário. Enquanto a Obra, a Criação, o Mundo existir, Deus existe necessariamente. A criação (o mundo) é eterna e necessária. A criação só pode provir de Deus que gera este processo necessário. O mundo é causado por Deus!
A Teologia Medieval, que vai gerar uma Teologia  Franciscana, inaugura o confronto  Fé e Razão. É a Teologia Medieval que traz o conceito da “fides quaerens intellectum”, isto é, a fé que procura compreender; ou o “credo ut intelligam”, creio para compreender. Deus, primeiro você procura e depois você compreende.

Não pode haver um mais ou menos se não houver o Máximo!

Deus est id quod nihil maius cogitari potest!” Cremos que tu é um Ser do qual não é possível pensar nada maior! Um ser é, certamente maior, se pensado na inteligência da realidade do que existente apenas na inteligência. Pensar Deus é pensá-Lo existente na realidade. Não é possível pensar que Deus não existe, nós O pensamos porque Ele existe. Existir na realidade é mais do que existir no pensamento. Quem pensa Deus só pode pensá-lo existente e dizer isto a partir da fé e do coração que crê.

A Filosofia e a Teologia Medieval são meios para assimilar os conteúdos da religião e progredira na fé.

Filósofos judeus também inspiram o pensamento teológico medieval. Ben Joseph (882-942), Ibn Gabriel (1058) e Moisés Maimônides ( 1135-1204) dizem que não é possível a revelação exata de uma verdade religiosa, por isso os profetas usam uma linguagem metafórica que nos ajuda a pensar. É preciso perceber o movimento da existência que revela a força de algo ou de Alguém. Tudo o que se move é movido por outro. É o “panta rei” de Hieráclito... tudo está na fluência de algo maior.

Se não existisse um Ser Necessário não existiria nada. De Deus nasce a realidade de mundo e o mundo tem evidências para encontrar razões necessárias para a existência de Deus. Nosso ser é dado por Deus. Ele não quis reter nada para si, a sua perfeição está em doar-se.

Voltaremos, oportunamente, com este tema!

Extraído de: http://carismafranciscano.blogspot.com/