20 de agosto de 2010

CLARA DE ASSIS E SUAS IRMÃS Uma vida para Deus e para os homens, a serviço da Igreja


Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Mês após mês, temos tentado seguir uma biografia de Clara acompanhando o texto de Chiara Giovanna Cremaschi, sob o título de Chiara di Assisi, Un silenzio che grida. Neste mês vamos interromper esse labor e fazer uma tradução-adaptação de um escrito de Engelbert Grau, OFM, onde ele traça um belíssimo perfil dessa mulher que honra o movimento evangélico franciscano. Estamos em agosto, mês em ocorre a festa de Clara. O franciscano alemão escreveu suas linhas em 1976 para o boletim semanal do bispado de Münster, Alemanha. Temos em mãos uma tradução para o espanhol que apareceu em Selecciones de Franciscanismo, n. 18, 1977, p. 240-247. Em setembro continuaremos a biografia escrita por Cremaschi.

1. Costuma-se citar de um mesmo fôlego os nomes de Francisco e Clara por serem uma dupla configuração de uma única e idêntica presença nova e dinâmica que a Providência quis suscitar: a vida segundo o Evangelho, segundo a alegre mensagem de Cristo, nosso Senhor e irmão, e de Deus, a quem chamamos de Abba Pai. Evangelho que Francisco não somente ouviu, não somente conheceu, mas que viveu e reviveu de forma a mais cabal, tanto interior quanto exteriormente. Este tal Evangelho encontra em Clara, por assim dizer, sua configuração e irradiação femininas. Destarte, a figura de Clara se torna exemplar para os cristãos de nossos dias, de modo especial para as mulheres que decidiram seguir Francisco tanto na Segunda quanto na Terceira Ordem.

2. Clara nasceu numa casa de nobres de Assis. Desde a infância se mostrou uma pessoa interiorizada. Quando tinha dezoito anos, seus familiares quiseram que ela se casasse. Neste momento já tinha ela se encontrado algumas vezes com Francisco, doze anos mais velho do que ela. Havia ouvido sua pregação e lhe aberto o coração. São largamente conhecidos os episódios de sua vida entre a saída da casa paterna e sua instalação em São Damião. Não precisamos aqui evocá-los. Anteriormente, já os analisamos per longum et latum em textos anteriores.

3. Separada da cidade, no pequeno conventinho de São Damião, Clara esteve ai fechada toda a sua vida numa áspera pobreza, naqueles espaços onde rezava, trabalhava e descansava. Fechada dentro daquelas paredes, ao mesmo tempo era uma claridade que iluminava lugares obscuros. No interior do conventinho, Clara estava longe de ser uma alienada, uma pessoa atrofiada, ou marginalizada. Tem um senso delicado e aguçado da beleza. A alva que confeccionara para Francisco é uma das peças mais preciosas do bordado medieval. Naquele espaço exíguo onde vive, onde livremente escolheu se “desterrar”, Clara é de uma liberalidade assombrosa e de uma surpreendente amplitude de visão. Para si reserva a austeridade, para as irmãs a liberalidade. Clara tem a pureza da compaixão verdadeira, é discreta ao corrigir, moderada nas determinações e ordens, prefere respeitar a ser respeitada. Ao lado disso, risonha e alegre, é mulher de penitência excepcional. Será preciso que Francisco ordene que ela aceite cuidados especiais no tempo da doença. Não prejudique a saúde.

4. Nas poucas cartas que foram conservadas, Clara manifesta uma profundidade madura e nada comum. Poderíamos designá-la de elevação de espírito claramente aristocrática. Sai vencedora pela amabilidade de sua nobreza interior e assombra pela firmeza com que persegue seus objetivos. “Uma vez, o Papa Gregório proibiu qualquer frade de ir sem sua licença aos mosteiros das senhoras. A piedosa madre, doendo-se porque ia ser mais raro para as Irmãs o manjar da doutrina sagrada, gemeu:”Tire-nos também os outros frades, já que nos privou dos que davam alimento de vida”. E devolveu ao ministro na mesma hora todos os irmãos, pois não queria esmoleres para buscar o pão do corpo, se já não tinha esmoleres para o pão do espírito. Quando soube disso, o Papa Gregório deixou imediatamente a proibição nas mãos do ministro geral” (Legenda 37). Clara resistiu ao Papa quando este queria persuadi-la a garantir sua subsistência e das irmãs com pequena posse: “Se temes pelo voto, disse o Papa, nós te dispensamos do mesmo”. Ao que Clara respondeu: “Santíssimo Padre, de maneira alguma quero ser dispensada do seguimento de Cristo” (Legenda, 14).

5. De maneira semelhante a esta autenticidade inquebrantável como pessoa, se mostrou também Clara em seu comportamento como mulher. Deixa de ser esposa e mãe. Não o faz por falta de espírito de sacrifício nem porque seu coração ignorasse o que fosse o amor, mas pela fé, por uma iluminação íntima, pelo fogo do coração de seu Senhor. Sabe ela que esse amor é sem limites. Em sua feminilidade, elevou-se às alturas da exemplaridade. Seu primeiro biógrafo, no Prólogo, afirma: “Que as mulheres imitem Clara, vestígio da mãe de Deus e nova guia das mulheres!”

6. Clara é toda mulher em sua sensibilidade para com os homens, para com tudo aquilo que a comove interna ou externamente, enchendo-a de tristeza ou de alegria. Acolhe a todos e cada um com profunda reverência e tudo em suas mãos se resolve miraculosamente. Com esta reverência acolhe todos os homens, sua individualidade particular, sua consciência, suas fragilidades e sua graça. Deixou que lhe chamassem de abadessa, segundo as prescrições eclesiásticas. Ela mesma se designa de “humilde e indigna serva e servidora”. Assim se designa e assim é. O que sabe e quer: amar servindo e mandar amando. Sua feminilidade se consuma num amor verdadeiramente materno e criador. Refugia-se na solidão, retira-se do mundo e é como se esse mundo se sentisse atraído na sua direção. Como a borboleta errante aspira pela luz, assim as pessoas se sentem atraídas por ela. Procuram-na carregadas de dificuldades e cheias de preocupações. Muitos são curados de enfermidades simplesmente quando Clara traça em suas frontes o sinal da cruz. As pessoas procuram sua sabedoria, suas orientações e instruções. Parece verdadeiramente emblemático que quando a cidade é atacada por bárbaros estes venham a ser derrotados, não pelas armas ou muralhas, mas pela fé, pela grandeza de uma mulher indefesa, uma Clara que reza na solidão. Clara é uma torre de paz, como uma rocha, contra a qual as ondas quebram. (Legenda 21-23).

7. Foi no silêncio da solidão que Francisco colheu toda a força para transformar o ambiente em que vivia, sobretudo um mundo que não tinha mais a harmonia com Deus. Sempre que estava a caminho para pregar a penitência, para proclamar o Reino de Deus e sua paz tinha sempre saudade da vocação à solidão. Certa vez, envolto por esta saudade do recolhimento, pediu que Clara “conversasse” com Deus para saber se seu caminho era o da contemplação retirada do trabalho no mundo. Clara fez saber a Francisco que esta não era a vontade de Deus. Francisco deveria anunciar o espírito e a riqueza vital do silêncio; ela com suas irmãs guardariam o silêncio.

8. Clara sabia muito bem, quando ingressou no silêncio tão sombrio e nada romântico de São Damião, que não se tratava de ganhar algo, mas tudo. Penetrou naquele silêncio porque buscava a proximidade com Deus. Deus não está no estrépito, nem no ruído (cf 1Reis 19,11ss). Ele ama o silêncio, a calma através dos quais se pode penetrar num mundo todo diferente. É o mesmo que acontece com os vitrais e suas cores. Vistos de fora parecem sem vida e escuros. Visto do interior, se iluminam e revelam um colorido e riqueza insuspeitados. De maneira semelhante, nesses muros e nessas paredes desnudas e insensíveis de São Damião se descobre todo um “mundo”. O mundo que está fora é também criação de Deus, é verdade: a beleza da paisagem umbra com suas linhas suaves que flutuam e suas cores discretas. Clara, como Francisco, guarda um olhar lúcido e embelezador diante de tal cenário. Mas, dentro, no interior de São Damião, está o mundo de Deus que não se pode comparar com tudo o que oferece a criação. Ali dentro há outro mundo, o mundo imediato de Deus. Dentro há imutabilidade e imortalidade, há verdade, espírito e vida. Clara foi muito exigente, como só pode ser um grande coração quando se entregou incondicionalmente a esse mundo interior e silencioso. No interior de São Damião ocorre algo curioso que não se costuma levar suficientemente em conta e que talvez não se queira compreender: Sobre este mosteiro das irmãs de São Damião, fechado, aparentemente alheio com relação ao mundo e à vida, parece que está aberto o céu; sobre esta parcela da terra, o céu de Deus, sua graça, sua fidelidade, sua longanimidade e sua misericórdia. No silêncio desta casa sopra aquela brisa ligeira (cf. Reis 19,12) que anuncia a proximidade de Deus. Na tranqüilidade de São Damião, Clara cria um espaço de eternidade com suas irmãs no meio do mundo e para o mundo, um lugar de paz de Deus e de sua salvação. Num tecido enfermiço que desliza para a corrupção, Clara preserva uma célula que é sadia e atua sanando.

9. Se falamos de uma enfermidade que afeta o mundo, referimo-nos à agitação, estrépito, desassossego sem motivo, procedimentos ruidosos. Diante deste mundo está Clara, calada, mas exortando e orientando. Clara está a dizer que existe um outro mundo, mundo da tranqüilidade silenciosa, de uma quietude cheia de Deus e com Deus, essa possibilidade de calar e de escutar. Quando o homem está envolto em seu ruído, não se dá conta que Deus faz mais ruído para se fazer ouvir. Experimentará que Deus escondido se esconderá mais ainda, que seu silêncio é como distância que não pode ser vencida, que seu próprio desassossego se coloca diante de um enigma em que Deus e mais e mais se distancia. Quem não é capaz de se calar, vive um aturdimento e está impedido de rezar, porque o núcleo do silêncio é precisamente o que se torna oração possível em nós. Clara esconde toda sua vida no envolvimento do silêncio porque o que contava para ela era encontrar na oração aquela manifestação primordial da vida, o impulso originário do amor que leva a Deus. A razão disto é que Clara aspira à intimidade e à união com seu Senhor. Por isso, a oração é coração de seu silêncio.

10. Clara vive mais de quarenta anos no retiro silencioso. Durante um bom momento, depois das Completas, continua orando com suas irmãs. Enquanto estas se retiram para descansas, ela permanece em oração (Legenda 19). Freqüentemente, Clara se levantava antes das irmãs para acender as lamparinas.

11. O trabalho também faz parte da jornada das irmãs. A esse respeito Clara exorta expressamente na Regra: “As irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar com fidelidade e devoção, depois da hora de Terça, em um trabalho que seja conveniente à honestidade e ao bem comum, de modo que afastando o ócio, inimigo da alma, não extingam o espírito da santa oração e devoção, ao qual outras coisas temporais devem servir (Cap.VII). Por isso, Clara quando estava enferma, se fazia recostar em almofadas, para poder costurar. O trabalho também será como que envolvido pela oração. Não se pode perder o espírito da santa oração e da devoção. Depois que as irmãs iam descansar, Clara ainda permanecia em oração. Celano, citando Jó, afirma que Clara, permanecendo em oração, queria perceber furtivamente o sussurro divino (Legenda 19).

12. Uma das características mais significativas de Clara e de suas irmãs é a pobreza estrita: precisamente neste ponto Clara compreendeu perfeitamente a Francisco. Diante dos olhos de Clara está o Evangelho. E o Evangelho proclama, uma página atrás da outra, a graça e a verdade de Jesus Cristo que repousa no seio do Pai, que se fez homem e viveu entre nós. Por meio do Evangelho, Clara se encontra com o Filho de Deus vivo e ele encontra a ela não na grandeza que oprime nem no esplendor que nos torna insensíveis, mas na pobreza e na humildade.

13. Clara, como Francisco, aprendeu do Senhor esta pobreza e humildade. A maneira rigorosa como Clara pratica a pobreza não é renúncia pela renúncia: sua pobreza e sua renúncia a toda propriedade são a proclamação e a expressão de uma dependência absoluta de Deus, de uma entrega total e incondicional a ele. Sua pobreza não é outra coisa senão confiança radical em Deus, em sua fidelidade e em seu amor. A pobreza, tal como Clara concebe e como a vive com suas irmãs, é renúncia incondicional a toda garantia natural e humana, uma renuncia mediante a qual, crendo e amando, desafia a onipotência misericordiosa de Deus. Sua “altíssima pobreza” como ela a designa da mesma forma de Francisco é a esperança perfeitamente entendida e vivida, é confissão cabal e sem reservas de que o ser humano é criatura e como conseqüência desta confissão, é entrega sem limites ao Criador e Senhor. Uma vida em tal tipo de pobreza se converte na concreta e maravilhosa realização das palavras do Senhor: “Buscai primeiro o Reino de Deus e sua justiça e tudo o mais vos será dado em acréscimo” ( Mt 6, 33).

14. Brotando do ser pobre genuíno de todo homem interior, cresce em Clara aquela atitude de humildade que provém do fato de considerar que o homem é criatura, e como tal, pobre. Somente assim pode a criatura permanecer ante o seu Senhor. Este ser pobre foi a forma e a lei do ser cristão de Clara, servir com toda reverência e tomar a sério o outro homem, porque Deus o leva a sério. Amar com a entrega total de si mesma e ser totalamente sincera neste amor. Ser tão firme neste amor que nada possa causar dor.

15. Por mais dura, pesada e isenta de todo romantismo que tenha sido esta vida de Santa Clara e de suas irmãs, nada tinha de sombria. Não se esvai em tristeza e descontentamento. Pelo contrário, fazia nascer alegria do homem redimido que pode ser “colaborador” de Deus na obra da redenção (Carta III,2). Também aqui Clara compreendeu cabalmente o pai espiritual, São Francisco, penetrando cada vez mais no segredo da perfeita alegria. Tal alegria alcançou sua expressão mais cabal da morte da santa. Durante dezessete dias, Clara não pode tomar alimento algum. Encontrava-se, no entanto, tão forte que podia confortar em seu serviço a todos os que chegavam até ela e despedi-los consolados. Nas últimas horas de sua vida, absorta em Deus, se podia ouvir: “Vá segura que você tem uma boa escolta para o caminho. Vá, porque aquele que a criou também a santificou; e guardando sempre como uma mãe guarda o filho, amou-a com terno amor. E bendito sejais vós, Senhor, que me criaste” (Legenda , 46).

16. Estas são as palavras de Clara moribunda. Diz isso depois de ter levado uma vida distante de toda acomodação ao espírito do mundo. Diz isso depois de ter renunciado a tudo que pudesse massagear seu egoísmo, e a todo humana pretensão, depois de uma vida de sofrimento e enfermidades. Ali, em São Damião, onde Clara viveu, podemos ainda vê-la e compreendê-la hoje. A casa, acanhada e desnuda, o coro onde as irmãs rezavam e sem ornamentação , a sala onde comiam, com mesas rústicas e piso gasto, a outra sala onde dormiam debaixo do madeirame do texto E como se isto não bastasse Clara usa uma saia de penitência confeccionada por ela mesma. Seu alimento era pão e água. Dormia sobre o chão duro e algumas vezes sobre galhos secos. Como apoio para a cabeça tinha uma pedaço de madeira. E esta Clara, na presença da morte, tendo um semblante sorridente, se encontra com estas palavras nos lábios: “Bendito sejas, Senhor, por haveres criado!”

17. Gostaria de terminar estas reflexões com palavras de André Vauchez, um grande medievalista e profundo conhecedor do movimento franciscano. “Clara não reivindicou para si e suas irmãs o direito de pregar ou ensinar, mas desejava ardentemente continuar vivendo em simbiose com os irmãos menores e rejeitava com veemência ver sua comunidade transformada num mosteiro de virgens fechadas e dotadas de rendas. Mesmo tendo aceito o estilo de vida semelhante à reclusas, conservavam contato com o mundo que as rodeava. Foi intransigente na questão da pobreza, porque o fato de viver numa precariedade permanente constituía o ponto sobre o qual sua fundação podia, diferenciando-se do monaquismo beneditino, permanecer fiel ao espírito do Pobrezinho e, através dele, às aspirações evangélicas que haviam animado os movimentos laicos dos séculos XII e começos do século XII”.

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