31 de outubro de 2012
A clausura na Forma de Vida de Santa Clara
Frei Fábio Cesar Gomes
O décimo primeiro capítulo da Regra de Santa Clara trata do tema da clausura, determinando-se como e por quem deve ser exercido o ofício de porteira (cfr. RegCl 11,1-2), os cuidados com a porta (cfr. RegCl 11,3-7) e de quando e como alguém poderá entrar no mosteiro (cfr. RegCl 11,8-12). Trata-se de um tema do qual Clara já havia começado a se ocupar no capítulo quinto, quando referiu-se à porta junto à grade do coro (cfr. RegCl 5,11-13). Talvez nossa primeira reação diante desse capítulo seja de estranhamento pelo fato de Clara, franciscana, prescrever a clausura na sua Regra. Tal estranhamento pode nos levar a fazer perguntas como estas: Tratou-se de uma opção que ela fez livremente ou de uma imposição à qual teve que se submeter? Que significado tem a clausura para ela?
Não temos aqui nem o espaço suficiente, nem, muito menos, a pretensão de dar uma resposta exaustiva a essas perguntas. Gostaríamos apenas, num primeiro momento, de fazer algumas considerações sobre as mesmas para, em seguida, acenarmos para a relevância do tema da clausura para nós, Frades Menores.
No que se refere à primeira questão, antes de mais nada, devemos dizer que, para nós, é difícil imaginar que uma mulher como Clara, com tanta clareza a respeito dos elementos essenciais da sua Forma de Vida, tenha simplesmente submetido-se à regra da clausura. Acreditamos que se a clausura estivesse em total contradição com a sua inspiração originária, ela teria sido capaz de afirmar-se, como o fez a propósito da pobreza absoluta, conseguindo dos Papas, muito antes da aprovação da sua Regra, o famoso Privilégio da Pobreza. Ao contrário, as normas de clausura da Regra de Hugolino de 1219, mais rigorosas do que aquelas das Ordens Monásticas de então, passaram praticamente inalteradas para a Regra de Clara, aprovada em 1253. E isso não porque, no seu tempo, não existissem outras possibilidades de Vida Religiosa Feminina. Pensemos, por exemplo, no movimento das “Beguinas” – surgido por volta de 1170 na região da Bélgica e já presente na Itália aos tempos de Clara – formado de comunidades de mulheres dedicadas à oração e a obras de caridade, algumas das quais viviam em pequenos grupos itinerantes (cfr. D. Brunelli, O seguimento de Jesus Cristo em Clara de Assis, 49). Por tudo isso, há que se admitir que a clausura constitui um dos traços que caracterizam a Forma de Vida das Irmãs de São Damião desde os seus primórdios, razão pela qual, não por acaso, ainda enquanto Clara vivia, elas eram popularmente conhecidas como “mulheres reclusas” (ProcC 16,2).
Quanto à segunda questão, acreditamos que as normas referentes ao tema tenham sim um significado muito concreto de defesa contra as reais ameaças provenientes de fora do mosteiro: invasões de leigos e intromissões de eclesiásticos. Ademais, é preciso recordar que aqueles eram tempos marcados por contínuas guerras e que São Damião encontrava-se fora dos muros da cidade de Assis. Porém, somos da opinião de que ao tema da clausura na Regra de Clara possam ser atribuídos também outros tipos de significado. De fato, como espaço físico do mosteiro a ser guardado com toda solicitude, a clausura clariana parece também ser uma evocação da interioridade humana, enquanto remete cada Irmã àquele “espaço interior da liberdade de cada pessoa” de que nos falou Frei João Mannes nas Comunicações do mês passado, onde cada uma é chamada a guardar e a cultivar a própria identidade de religiosa. Assim, a clausura de Clara e de suas Irmãs aparece como o espaço exterior que, ao mesmo tempo em que evoca, lhes possibilita adentrar naquele “espaço interior” no qual elas se abrem para a contemplação do mistério insondável de Deus.
No entanto, a clausura clariana possui sobretudo um significado cristológico, como, aliás, é o significado principal de tudo o que pertence à Forma de Vida de Clara, uma vez que essa consiste, fundamentalmente, em “observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem nada de próprio e em castidade” (RegCl 1,2). Em outras palavras, a Forma de Vida das Irmãs Pobres não consiste na clausura, mas, no seguimento do Cristo pobre e crucificado, em função do qual a clausura apresenta-se como “um modo típico de (a Clarissa) aprofundar aquela Kénosis que é própria de Cristo Senhor (cfr. Fl 2,5ss) e que é por Ele proposta a quem o quer seguir” (Chiara A. Lainati, Santa Chiara d’Assisi. Contemplare la belezza di un Dio sposo, 468). E dado que Clara fala mais detalhadamente da clausura somente no final da Regra, esta aparece aqui como a possibilidade oferecida a todas e a cada uma das Irmãs de guardar e cultivar tudo o que foi dito anteriormente a propósito do seguimento de Jesus Cristo.
A esta altura, nos perguntemos: o que essa questão da clausura tem a dizer a nós, Frades Menores, chamados a “encher a terra com o Evangelho de Cristo” e que, segundo o que se diz na bela parábola da aliança de Francisco com a Senhora Pobreza, temos o mundo por claustro (cfr. Sacrum Commercium 30,25)?
Aqui, é preciso termos presente que, para Francisco, o mandato recebido da Igreja de pregar a penitência (cfr. 1Cel 33,7; LM 3,10,11; 12,12,3; LTC 49,2; 51,10; AP 36,7) não estava em contradição com a frequentação dos lugares solitários. A vida de Francisco e dos seus primeiros Irmãos era profundamente unitária porque consistia essencialmente em seguir Jesus Cristo, Aquele que veio sim para anunciar a Boa Nova aos pobres (cfr. Lc 4,18-19), mas, também se recolhia em lugares solitários para rezar (cfr. Lc 6,12; 9, 28). Por isso, mais do que alternativa, devemos falar de alternância entre pregação nas cidades e contemplação nos eremitérios por parte da primitiva Fraternidade Franciscana, o que foi muito bem evidenciado por Jacques de Vitry que, já em 1216, descreve assim o modo de vida dos Frades Menores: “De dia, entram nas cidades e vilas, dedicando-se ao trabalho pela ação; de noite voltam ao eremitério ou lugares solitários, dedicando-se à contemplação” (Crônicas, Testemunhos não franciscanos, Ia).
Trata-se de uma alternância vivida, antes de todos, pelo próprio Francisco, que intercalava as suas fadigas apostólicas com períodos muitas vezes prolongados de oração nos Eremitérios, para os quais, como sabemos, escreveu também uma Regra. Nela, entre outras coisas, Francisco prescreve que os Irmãos que quiserem viver nos Eremitérios tenham um claustro onde não seja permitido a ninguém nem entrar, nem comer (cfr. RegErm 2; 7). Portanto, a idéia de clausura como um espaço físico reservado não é totalmente estranha ao pensamento do Poverello. Ao contrário, tal como para Clara, também para ele, a total abertura diante do mistério de Deus parece solicitar a permanência, ainda que temporária, em espaços exteriores de clausura que nos possibilitem adentrar naquele espaço da nossa interioridade onde, como ele próprio nos admoesta, o servo deve conservar os segredos do seu Senhor (cfr. Adm 28,3).
Se redimensionamento significa nos medirmos sempre de novo, individual e comunitariamente, com a nossa Forma de Vida que, fundamentalmente, consiste em observar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo pobre e crucificado, então, parece-nos que tal processo, se bem realizado, nos conduzirá, necessariamente, tanto aos “amplos espaços” de anúncio do Evangelho onde o mundo de hoje nos possibilita estar, quanto aos “eremitérios ou lugares solitários” de cultivo da nossa identidade e de abertura para o mistério de Deus.
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