27 de outubro de 2012
A Mística da Paz em Francisco e Clara
Frei Nestor Inácio Schwerz, Ofm
A Concepção de Paz na Idade Média
Na visão cristã, evitam-se guerras entre cristão, mas ao mesmo tempo faz-se guerra contra os inimigos do cristianismo, os não-crentes e os hereges, que a ameaçam a existência do cristianismo. A paz interior da pessoa adquire-se pela conversão do pecado, penitência e paz com Deus. A meta dos cristãos crentes, através do afastamento do pecado, do mundo, e através das obras de misericórdia, é a paz do paraíso.
A paz nas cidades era entendida como garantia aos cidadãos da inviolabilidade do corpo, da vida e do matrimônio. A cidade garante a segurança dos bens dentro dos muros. A cidade assume o dever de construir e manter relações pacíficas entre seus cidadãos.
1. A Mística da Paz em Francisco e Clara
Francisco faz referência a uma revelação em relação à saudação da paz. “O Senhor me revelou que nós devíamos saudar da seguinte forma: ‘O Senhor te dê a paz’ ” (Test. 23). Várias fontes biográficas confirmam essa expressão e contam como os irmãos desde o início usaram em diferentes modos essa saudação (cf. LTC, 26; LP, 67; LM 3,2; EP,26). A Legenda Perusina e o Espelho da Perfeição relacionam a revelação da saudação da paz com revelação do nome de “menores”. Dizer que algo é revelado por Deus é dizer que vem carregado de força de vida, de verdade, de amor e bondade, de graça e salvação. Torna-se normativo, tem peso de responsabilidade. Tem o caráter de dom, de iniciativa divina e do que não pode ser guardado, mas deve ser comunicado, anunciado, testemunhado. A expressão “saudação” indica busca, abertura, desejo de relação. Saudar alguém é estabelecer relação com alguém. Saudar, desejando a paz do Senhor, é construir relação de paz. Este desejo terá tanto mais credibilidade quanto mais vier do coração, do testemunho de quem vem carregado da vontade divina.
Dois são, portanto, os traços que caracterizam o movimento dos irmãos que se reuniram ao redor de Francisco. Juntando esses dons com a experiência do Evangelho (envio missionário), temos um núcleo certamente bem central no carisma francisclariano. É uma fraternidade enviada em missão para dar testemunho e anunciar o Evangelho, como Irmãos Menores e arautos da paz.
Esta saudação da paz soava estranha para muitos que nunca tinham ouvido algo semelhante de outros religiosos. Alguns ficavam até mal humorados e questionavam os frades, de modo que houve quem sentisse vergonha e pedisse a Francisco a dispensa de tal saudação. Francisco, porém, animou o frade envergonhado e admoestou-o para que não se encolhesse (cf. EP,26). No tempo de Francisco haviam muitos grupos e movimentos que buscavam a pobreza e a pregação. No entanto, a novidade estava nessa saudação da paz. Diante do irmão envergonhado, Francisco esclarece que essa saudação pertence essencialmente à compreensão da nova Fraternidade. Segundo o franciscanólogo João Batista Frayer, são quatro os elementos que impregnaram a compreensão inicial dos irmãos que se juntaram a Francisco: a minoridade, a vida de penitência, a fraternidade enquanto tal e a saudação de paz. O novo estaria na saudação de paz, ao passo que os demais elementos são comuns a outros grupos da época. As fontes testemunham com clareza que se pode falar com a mesma ênfase de um movimento de paz como se costuma falar de um movimento de pobreza e penitência.
Podem-se identificar alguns traços característicos do significado da paz em Francisco: a paz interior como fundamento da paz exterior, atitude de paz como estilo de vida, contemplação, paz a ser construída, teologia e espiritualidade como base para a paz.
2. A paz interior como fundamento da paz exterior
Francisco faz em Poggio Bustone uma profunda experiência de reconciliação. Tomás de Celano conta que permaneceu algum tempo aí e refletia com amargura sobre os anos mal vividos, repetindo frequentemente: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (1Cel 26). Teve a experiência de uma indizível alegria e imensa doçura, juntamente com a certeza do perdão de todos os pecados, e sentiu a confiança de que estava em graça. Percebeu-se todo absorto em luz e finalmente todo transformado. Fez a experiência da paz interior que ele recebeu gratuitamente como dom de Deus. “É a experiência do Deus da misericórdia como pura gratuidade que possibilita a paz interior, a alegria e a iluminação em Francisco, e que constitui o fundamento de sua atitude de paz”.
Na 15ª Admoestação, Francisco faz referência à bem-aventurança relativa aos pacíficos, que serão chamados filhos de Deus (cf. Mt 5,9), acrescentando: “São verdadeiramente pacíficos os que, no meio de tudo quanto padecem neste mundo, se conservam em paz, interior e exteriormente, por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Certamente São Francisco fala a partir de sua própria experiência, de alguém profundamente reconciliado e em íntima comunhão de amor com o Senhor da Paz, o Filho de Deus, que padeceu muito no caminho da cruz, sendo vítima de extrema violência. No entanto, manteve-se em paz interior e exteriormente, fazendo da sua entrega de amor a fonte de reconciliação e pacificação, pedindo ao Pai perdão pelos que o estavam agredindo e matando e demonstrando solidariedade com todas as vítimas da violência e da injustiça. Rompeu a força da violência, da injustiça e da maldade com a força do amor, do perdão, da misericórdia. No Cântico do Irmão sol, Francisco louva ao Senhor pelos que perdoam por amor a Ele e proclama bem-aventurados os que sustentam enfermidades e tribulações em paz, pois serão coroados pelo Altíssimo.
De maneira que o teste mais exigente de uma pessoa pacífica se dá em meio a adversidades, a ofensas, a conflitos, a sofrimentos de todo tipo. É ali que se prova a capacidade de amor, de perdão, de não-violência ativa, de paciência, de misericórdia, a força da justiça e da bondade.
3. Atitudes e pressupostos para a paz na forma de vida francisclariana
A fraternidade primitiva tinha como estilo de vida certos aspectos que tem relação direta com a temática da paz. A pobreza se torna o pressuposto para a paz. Na Legenda dos Três Companheiros, o bispo de Assis dirige-se a Francisco para comentar que a vida da nova Fraternidade parece muito rigorosa e áspera pelo fato de não dispor de nada deste mundo. Francisco responde: “Senhor, se tivéssemos algumas posses, precisaríamos de armas para defender-nos. E daí nascem as disputas e os litígios, que costumam impedir de múltiplas formas o amor de Deus e do próximo. Por isso, não queremos ter coisa alguma temporal neste mundo” (LTC 35).
A pobreza, enquanto sem nada de próprio, liberta diante dos outros, liberta das posturas de defesa e ataque por causa de propriedades. Liberta do medo de perder algo, pois tudo é dom e tudo deve ser restituído em forma de partilha, de doação, de gratidão. Liberta do apego a cargos, a status, a prestigio e evita a criação de obstáculos, impedindo que os outros possam se aproximar.
A pobreza que Francisco e Clara abraçaram de todo o coração é a pobreza vivida e testemunhada por Jesus Cristo e recomendada por Ele a seus seguidores, a seus enviados e suas enviadas em missão. Jesus envia os doze e os setenta e dois discípulos (cf. Mt 10,1-5 e Lc 10,1-11) como cordeiros no meio de lobos, pede que nada levem consigo e desejem a paz, cuidem dos doentes e anunciem que o Reino de Deus está próximo. Esta pobreza deixa os/as discípulos/as livres para aproximar-se de todos, principalmente dos pobres, e os/as faz colocar toda a confiança no Deus do Reino.
O trabalho introduz os irmãos num mundo fortemente marcado por conflitos, injustiças, opressões. A questão social passa pelo mundo do trabalho. Francisco trabalhou com suas mãos e queria que todos trabalhassem com honestidade e aprendessem algum ofício. Para Francisco, o trabalho é graça e serviço, não é meio de fomentar a cobiça pela paga. É forma de dar bom exemplo evitando a ociosidade, mãe de todos os vícios. Caso falte o necessário, pode-se recorrer à mesa do Senhor: o necessário para viver é também dom do Senhor que passa pela capacidade de partilha e solidariedade na comunidade e na sociedade.
Isso tem seu significado para a paz. Em primeiro lugar, exercita a pessoa para manter a paz interior, vencendo a cobiça diante da retribuição e do fruto do trabalho. O trabalho manual era atividade mal vista e, por isso, aproximava dos mais pobres, leprosos, mendigos, fracos, doentes, dos sem propriedade e dos perdedores dos pactos de paz. Os Irmãos e as Irmãs unem-se aos pobres para recorrer à mesa do Senhor, como direito que Ele mesmo conquistou para os pobres: não como alívio de consciência, mas como expressão de justiça, de amor solidário, misericordioso. A paz na sociedade, a partir do seguimento de Jesus Cristo, passa por esse caminho da justiça e da partilha de bens, da possibilidade de uma mesa ao redor da qual todos possam sentar-se e ter o necessário para comer e viver.
Em Clara e Francisco encontramos uma conexão profunda entre contemplação e paz. No eremitério dos Carceri encontra-se uma inscrição com a frase: “Ubi Deus ibi Pax” (“Onde está Deus, aí está a paz”). O exercício da contemplação quer colocar Deus no centro da vida e dar condições para que ele, com seu Espírito e seu santo modo de operar, possa garantir a história da salvação, iniciada na Criação e que passa pela Encarnação do Filho, sua missão, morte e ressurreição, e continua se realizando pela ação do Espírito na Igreja e culminará na parusia. Contemplar é considerar essa ação divina de salvação, acolhê-la e participar dela. “A expressão central desta consideração da ação divina de salvação é precisamente uma mensagem: que a ação de Deus tem como finalidade a busca da paz e a salvação para todas as pessoas e toda a criatura. A partir daqui se entende a combinação da saudação: Pax et Bonum. A atitude de paz dos irmãos é uma conseqüência da ação histórico-salvífica de Deus que tem como finalidade uma paz que abarque tudo”.
4. Estilo de vida que testemunha e anuncia a paz
Francisco exorta seus irmãos a se guardarem de caluniar, de ocupar-se com discussões vãs, de se irritarem e se irarem contra os irmãos, e a cultivarem o amor mútuo, mostrando-o por obras (cf. Rnb 11). Clara igualmente admoesta e exorta suas irmãs, no Senhor Jesus Cristo, a se guardarem de toda soberba, vanglória, inveja, avareza, da detração e da murmuração, da dissensão e divisão. E ainda exorta a amar os que as perseguem, as repreendem e acusam, lembrando a bem-aventurança dos que sofrem perseguição por causa da justiça.
Francisco aconselha, admoesta e exorta os irmãos no Senhor Jesus Cristo que, ao irem pelo mundo, não litiguem, nem porfiem com palavras, nem façam juízo de outrem, mas sejam mansos, pacíficos, modestos, afáveis… Lembra a passagem evangélica: “Ao entrarem em qualquer casa, digam antes: Paz a esta casa!” (Rb 3,10-14). No cap. 14 da Regra não Bulada, Francisco admoesta os irmãos que vão pelo mundo para que nada levem consigo, que ao entrarem numa casa, digam primeiro: a paz esteja nesta casa, que não resistam ao malvado, mas se alguém lhes der numa face, ofereçam também a outra, se alguém roubar o manto, não lhe negue também a túnica. E no cap. 16 da mesma Regra, Francisco orienta os irmãos que vão entre os sarracenos e outros infiéis a se abster de Rixas e disputas, submetendo-se a todos por causa do Senhor e confessando serem cristãos.
Trata-se, portanto, de um estilo de vida em que se procura viver radicalmente a paz nas relações da fraternidade e na relação com as pessoas que se encontram pelo caminho, seja lá quem for. Para isso se faz necessário cultivar atitudes e virtudes, vida sem propriedade e sem apegos, capacidade de partilha, postura do ser menor e motivação a partir do evangelho, do Reino de Deus, do seguimento de Jesus Cristo, do desejar o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar. A mística da paz está enraizada neste processo de acolher e de dar espaço central ao Evangelho, ao Reinado de Deus, ao Espírito do Senhor e seu santo modo de operar.
5. Francisco como construtor da paz
As fontes biográficas e hagiográficas apresentam Francisco como construtor de relações de paz. Em 1 Cel 23, logo após a narração do episódio da escuta do evangelho da missão, Francisco aparece como pregador da penitência e da paz. Diz Celano: “Em todas as pregações, antes de propor aos ouvintes a palavra de Deus, invocava a paz dizendo: ‘O Senhor te dê a paz’. Anunciava-a sempre a homens e mulheres, aos que encontrava e aos que lhe iam ao encontro. Dessa forma, muitos que tinham desprezado a paz, como também a salvação, pela cooperação do Senhor abraçaram a paz de todo o coração, fazendo-se também eles filhos da paz, desejosos da salvação eterna”. Em seguida, Celano fala dos primeiros seguidores, entre eles Frei Bernardo, que “abraçou a missão de paz”.
Um pouco mais adiante, em 1Cel 29, aparece Francisco enviando seus primeiros irmãos, dois a dois pelas quatro partes do mundo, recomendando que anunciassem a paz e a penitência. Diante de eventuais perseguições, injúrias e calúnias, a ordem é responder com humildade, abençoar, agradecer. Está aí a perspectiva de que a paz chegue a todos os cantos do mundo. Em 1 Cel 41, os irmãos são descritos como aqueles que guardam a paz e a mansidão com todas as pessoas, sua reta intenção e seu espírito de paz lhes permitiam evitar todo escândalo. Em 2Cel 108, o biógrafo narra o episódio de Arezzo, em que Francisco soube que a cidade inteira estava afogada numa luta interna, ameaçada de iminente destruição. Mandou Frei Silvestre diante da porta da cidade para que libertasse a cidade dos demônios destruidores. “A cidade voltou à paz pouco depois e tratou de preservar com grande tranqüilidade os direitos dos cidadãos”. Francisco utiliza a fórmula bíblica de benção (Nm 6,23-27) que finaliza com a invocação de que o Senhor conceda a paz à pessoa e ao povo abençoado. Ao confiar na benção de Deus, estamos nos situando na força criadora, renovadora e salvadora dele. Quem acolhe essa força, esse dom, essa graça da paz, poderá experimentá-la em sua vida e se tornará, por sua vez, um instrumento irradiador da mesma.
Na Legenda Perusina 90, encontramos o interessante episódio dos ladrões de Borgo San Sepolcro, que vinham pedir pão no eremitério dos frades. Alguns dos frades começaram a murmurar, pois não queriam ser coniventes com as ações de violência dos ladrões, sustentando-os com esmolas. Outros se comoviam com a humildade e a necessidade dos ladrões. São Francisco dá as orientações com sábia pedagogia: pede para preparar pão, do bom, e vinho, do melhor, ir ao encontro deles onde estão, chamá-los de irmãos ladrões, estender uma toalha no chão e servi-los. Na vez seguinte, Francisco recomenda levar comida mais enriquecida e que os frades lhes falem do Senhor e peçam, pouco a pouco, mudanças em seus atos, por amor de Deus. Revela o quanto Francisco acredita na possibilidade de mudança e conversão do ser irmão e fraterno que mora em cada ser humano. Ao mesmo tempo, é realista e não esconde a dimensão de ladrão, de violência. A pedagogia da paz inclui o ir ao encontro de forma desarmada, com o mesmo amor e a mesma atitude de serviço, testemunhados pelo Mestre Jesus em sua vida e na última ceia. A mudança há de acontecer em processo lento, aos poucos. Alguns, na verdade, se tornaram irmãos menores.
Significativo é o episódio narrado por Celano (cf. 2Cel 89), no qual Francisco encontra um pobre, conhecido desde antes da conversão, e que estava cheio de ódio mortal contra o seu patrão que lhe tirara tudo. Francisco preocupa-se com ele, com sua alma em risco devido a esse ódio mortal. Pede ao pobre que perdoe o patrão por amor de Deus para libertar a alma e para haver a possibilidade de uma restituição. O pobre considera impossível o perdão sem que primeiro seja feita a devolução do que lhe foi tirado pelo patrão. Francisco reparte com ele a capa que tinha consigo e insiste no perdão em nome do Senhor Deus. O pobre, após acalmar-se e movido pelo gesto, acabou perdoando as injúrias. Francisco não exclui e não ignora a necessidade da devolução do que foi tirado. Trata-se de injustiça, de violência por parte do patrão. Francisco, no entanto, convoca o pobre a dar um salto qualitativo: agir pela dinâmica e pela força do amor, do perdão, do desapego. O ódio mortal equivale à mesma lógica da ação do patrão: é a lógica da violência, revestida de força de morte e eventual cobiça. Isso põe em risco o que o pobre tem de mais digno, sagrado, divino: a sua alma. Francisco quer quebrar esse esquema. Ele mesmo já está nesse espírito. O gesto de partilha e da solidariedade dá credibilidade e força de autoridade ao seu pedido feito ao pobre. Este acaba acolhendo a proposta de Francisco.
Outro fato de profunda significação é o encontro de Francisco com o Sultão em Damieta, Egito (cf. 1Cel 57; LP 37). Num contexto de cruzadas dos cristãos contra os sarracenos, chamados de “cães” e “depravados”, que ocupavam a Terra Santa, Francisco assume postura de respeito e procura evitar combates. Acompanhado de um confrade, foi ao encontro do sultão Malik-el-Khamil, de forma desarmada, pacífica, com motivação evangélica, com humildade, como um enviado “do Deus Altíssimo”. Inicialmente os dois sofreram algumas agressões, mas o sultão ficou impressionado e acabou tratando-os com cortesia e afeição, convidando-os a permanecerem no acampamento. Francisco encontrou no Sultão um “crente”, um irmão da fé no Deus único. O Sultão descobriu em Francisco um “homem cortês” e não um inimigo. No mesmo período (1219-1220), alguns seguidores de São Francisco vão ao Marrocos e em Marrakech, empolgados por um entusiasmo imprudente, apresentam-se como enviados dos Romanos (e, portanto, do Papa!), pregam contra Maomé e são mortos pelo próprio Sultão (cf. 1Cel 56; LM 9,6). O grande milagre de Damieta foi o encontro com respeito à diversidade, no diálogo cortês, no amor gratuito. Francisco, sem esconder sua identidade cristã, deixou-se evangelizar e voltou a Assis com profundo respeito pelos muçulmanos, inserindo na primeira regra as orientações de como ir entre os infiéis (Rnb 16). Em Marrakech aconteceu o martírio sem encontro com o outro, o diferente. Em Damieta aconteceu o encontro sem martírio. A presença franciscana na Terra Santa e em terras de muçulmanos, durante séculos até hoje, deve-se, em grande parte, a esse modo de proceder de Francisco.
Na LP 44, conta-se como o bispo de Assis excomungou o podestà. Este, por sua vez, pressionou para que ninguém fizesse comércio com o bispo sem realizasse qualquer trato legal com ele. “Nasceu entre ambos feroz contenda”. Francisco ficou triste e indignado que ninguém se mexesse para restabelecer a paz entre os dois. Envolveu seus irmãos para que convidassem bispo e podestà e muita gente para restabelecer a paz. Compôs mais uma estrofe do Cântico do Irmão Sol: “Louvado sejas tu, meu Senhor, por quem perdoa por teu amor; por quem sofre provações e doença; feliz quem as sustenta em paz, porque será por ti, Altíssimo, coroado!”. No dia da grande assembléia, os frades cantaram tal estrofe, e a paz foi restabelecida. O Cântico do Irmão Sol é a expressão de alguém totalmente reconciliado, em paz com o Criador, com todas as criaturas e com a vida toda. O bispo é símbolo de uma Igreja a caminho da conversão, que conserva marcas de pecado e contradição: “…deveria ser humilde, mas por natureza tenho um coração demasiado pronto para a cólera; tendes que me perdoar”. A Igreja do tempo de Francisco e Clara agiu com demasiada cólera, com poder, com violência em relação aos hereges, aos muçulmanos… O podestà representa o poder do comércio, do dinheiro e da lei: “ninguém podia fazer comércio com o bispo nem ter com ele qualquer trato legal”.
Um texto clássico, que revela a pedagogia da paz de Francisco, é a parábola ou alegoria do Lobo de Gubbio, contada em Fioretti 21. O lobo é o arquétipo dos inimigos do sistema e, por isso, demonizado: é grandíssimo, terrível e feroz, devorador de animais e homens, causando grande medo à população da aldeia de Gubbio. Os citadinos andavam “armados quando saíam da cidade, como se fossem para o combate”. O medo chegou a tal ponto que ninguém mais ousava sair da cidade. Entre a cidade e o lobo não há diálogo, apenas enfrentamento, medo, defesa, ataque, combate. Francisco, juntamente com seus companheiros, fazendo o sinal da cruz e pondo toda a confiança em Deus, sai da cidade e vai ao encontro do lobo. Francisco vai sem armas, sem preconceitos, sem agressividade, inspirado no modo como Jesus Cristo enfrentou os inimigos no conflito da cruz: com amor, perdão, não-violência, pedindo ao Pai que os perdoasse. É pelo amor misericordioso, revelado na Cruz, que Cristo reconcilia o mundo com o Pai, oferecendo a possibilidade da plena pacificação. Fazer o sinal da cruz diante do lobo de boca aberta é confiar na força do amor do Crucificado e assumir o mesmo modo de ser e agir.
Francisco denuncia as maldades e violências do lobo. Reconhece que tal forma de agir tem a ver com a fome. E vê nele também um irmão e a possibilidade de construir novas relações entre ele e a cidade. Consegue pacificá-lo e alcança dele a possibilidade de um pacto de paz. Da mesma forma, Francisco vai ao encontro do povo da aldeia, denunciando-lhe seus pecados e convocando-o à mudança de vida, à penitência. Realiza-se um encontro entre ambas as partes e conclui um pacto de paz, que inclui o compromisso da aldeia em garantir comida para o lobo e deste agir sem maldade e agressividade. Trata-se de um pacto de paz diferente daqueles de Assis ou da “pax romana” ou outros realizados na história em que predomina a vontade do mais forte sobre o mais fraco ou se estabelece apenas um equilíbrio de forças e interesses. Francisco torna-se um intermediário que ajuda a desarmar espíritos, superar preconceitos, construir novas relações, com senso de realismo e com mística, com novos compromissos de ambas as partes, superando a causa do conflito. Entre o lobo e a cidade de Gubbio se dá um processo de conversão, de mudança, de mentalidade, de atitudes, de visão, de coração. Francisco desdemonizou o lobo e a cidade, pois ambos tinham suas razões e seus pecados, e investiu na possibilidade de um verdadeiro encontro entre as partes, de relações fraternas, dialógicas, pacíficas. Com esta mesma lógica de fundo, a Comunidade Santo Egídio de Roma, com sua espiritualidade inspirada em São Francisco de Assis, contribuiu eficazmente na pacificação de Moçambique, de Kosowo e em outros lugares de conflitos.
Igualmente Clara, com suas irmãs, consegue evitar uma invasão dos sarracenos em Assis e conseqüente destruição da cidade. Sem medo, sem agressividade, sem nenhum recurso a estratégia de poder militar, confia no poder da oração e na força do amor de Cristo presente na eucaristia.
6. Significado da Paz no desenvolvimento da História Franciscana
Na primeira fase do movimento francisclariano, a paz é entendida a partir da história da salvação que conduz a uma nova ordem de paz. Os irmãos e as irmãs davam testemunho de penitência, de conversão ao Evangelho, de seguimento de Jesus Cristo, de acolhida e anúncio do Reino de Deus mediante sua vida e sua prática de paz. Trata-se de uma paz em fidelidade ao Evangelho, ao Reino de Deus e em abertura à ação do Espírito. A mediação de paz tem como finalidade a realização do Evangelho e do Reino de Deus e fundamenta-se na misericórdia. A fraternidade francisclariana consegue comunicar uma postura contestatória diante da situação social e política e de resposta profética à busca de paz expressa nos Acordos de Paz. Os irmãos e irmãs entendem a paz como dom de Deus entre eles e os demais seres. O fundamento da paz é Deus mesmo, como o sumo Bem do qual procede todo o bem. No contexto das Cruzadas, o movimento francisclariano investe na possibilidade de uma vida pacífica em meio aos infiéis. Faz-se uma contestação profética no interior da vida eclesial e cristã. É possível dialogar, conviver e testemunhar relações de paz em meio aos assim considerados inimigos, mantendo fidelidade à identidade cristã.
Na segunda fase, o espírito das Cruzadas domina a atitude de paz dos irmãos. Há irmãos que apóiam as Cruzadas, pregando e fazendo coleta em favor delas. Outros contribuem como estrategistas militares. Podem ser citados Guilherme de Cordelle (1235, pregador e estrategista militar), Berthold von Regensburg (1235, pregador), Fidêncio de Pádua (plano de batalha para a recuperação da Terra Santa). Paralelamente, havia irmãos teólogos que rejeitavam as Cruzadas e se comprometiam com missões de paz: Rogério Bacon, Adam Marsch, Salimbene (o qual interpreta o fracasso da última Cruzada como vontade de Deus e propõe a não violência).
Na terceira fase, os irmãos, já com distintas reformas, são valorizados como mediadores de paz entre as cidades, contribuindo para a paz pública e social, inclusive entre os Estados. Adquirem fama na defesa contra o avanço dos turcos (João de Capistrano). Prevalece a concepção de paz como ordenamento cristão da Idade Média. Os irmãos vão se acomodando às concepções sociais da época em relação à paz, o que os torna incapazes de questionar a ordem do mundo.
Quanto à Ordem Terceira, esta destacou-se como movimento pacifista, com proibição de porte de armas. Conduziu à pacificação de muitos conflitos dentro das cidades. Por outro lado, colaborou para criar tropa para o Papa que tinha representação em muitas cidades. Para defender a Igreja havia disposição para pegar em armas.
Em síntese:
1.Todas as fontes até São Boaventura descrevem unanimemente a Fraternidade francisclariana como movimento de Penitência e da Paz.
2. A paz é dom de Deus. Os irmãos compreendem a si mesmos como anunciadores da paz de origem divina. A saudação da paz é considerada de revelação divina, portanto elemento essencial na forma de vida evangélica e na pregação.
3. A paz com Deus em Cristo é a base das relações entre os seres humanos e da respectiva paz no mundo.
7. A construção de relações de Paz em nossa sociedade
Situando-nos em nosso contexto atual, a primeira tarefa a ser feita é acreditar que a paz é possível, é fazer uma leitura dos sinais dos tempos, identificando o desenvolvimento e o crescimento de uma cultura de paz. O segundo trabalho é resgatar, com mais vontade, decisão e coerência, a nossa vocação francisclariana de sermos anunciadores/as e construtores/as de paz, em fidelidade criativa a São Francisco e Santa Clara de Assis. O terceiro grande desafio é discernir e investir em ações, em projetos, em iniciativas, mantendo clara nossa identidade e abrindo-nos para parcerias e colaborações.
a) Nosso estilo de vida
Sempre de novo temos que nos convencer sobre o que está no centro de nossa vida: o seguimento de Jesus Cristo a exemplo de Francisco e Clara. Viver o Evangelho, desejar o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar, voltar-nos inteiramente ao Reino de Deus, é beber da fonte de onde emana toda a força e vitalidade para a nossa presença profética no mundo de hoje. Com Francisco e Clara queremos acolher de novo a revelação do Senhor a respeito da saudação de paz, o envio missionário pelo mundo, sendo pessoas de paz, anunciadores e construtores de paz e, com isso, proclamando a proximidade do Reino de Deus.
Para tanto, é necessário recriar sempre de novo os pressupostos de uma vida sem nada de próprio, de pobreza em suas múltiplas facetas, de contemplação, de cultivo das nossas relações internas de fraternidade sem disputas, sem iras, sem cobiça, sem murmurações. Precisamos exercitar a capacidade de partilha, de solidariedade, de perdão e reconciliação, de diálogo com o diferente, de amar aos inimigos.
As nossas motivações terão que ser, a exemplo de Francisco e Clara, claramente evangélicas, espirituais e teologais. Queremos participar da bem-aventurança proclamada em favor dos pacíficos, conservando-nos “em paz interior e exteriormente, por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Adm. 15), perdoando por amor a Ele, suportando enfermidades e tribulações e sustentando-as em paz (cf. Cânt. 10-11). É preciso acreditar na força profética que daí decorre. Não se trata de cair em fundamentalismos, em sectarismos, mas de convencer-nos de que o testemunho de vida fala mais que palavras e discursos e dá credibilidade ao anúncio, ao serviço, às propostas. É preciso crer na eficácia histórica e evangelizadora da santidade. Em tempos como o nosso, em que se praticam violências e guerras em nome de Deus, nós queremos deixar o Deus da paz ser Deus em nossas vidas, em nossas Fraternidades, em nossa presença e serviço na Igreja e no mundo. Isto implica em desejar sempre de novo, acima de tudo, o Espírito do Senhor e sua santa operação para que nos torne pessoas e fraternidades pacíficas e nos faça instrumentos, agentes, construtores de paz.
b) A construção da paz em nosso cotidiano
Todos os nossos serviços e nossas presenças podem ser lugares onde podemos e devemos construir relações de paz e educar para a paz. Nossa ação educativa e pedagógica nas escolas, nas diferentes instituições, na pastoral, nos movimentos é desafiada a por em ato um processo eficaz de construção de relações de paz. A paz não cai pronta, precisa ser educada cotidianamente. A enorme Família Franciscana e Clariana certamente têm uma responsabilidade e uma oportunidade preciosa neste tempo no empenho em educar para a não-violência ativa, para os valores do respeito, da tolerância, da solidariedade. Albert Einstein teria dito: “O mundo seria diferente, se finalmente fossem feitos tantos investimento em favor da pedagogia e da busca pela paz e não-violência, quanto foram feitos para preparar e conduzir à guerra”.
O cultivo de atitudes, de comportamentos e posturas de paz é processo lento, demorado, permanente. Podemos ser instrumentos de reconciliação entre as pessoas, na família, na comunidade. Podemos ajudar as pessoas a controlar seus impulsos de agressividade e vingança. Podemos elevar os conflitos sociais ao nível da organização popular, do debate político, da negociação, da luta pelos direitos fundamentais com processos firmes e a não-violência ativa, com formação de consciência crítica, sempre na perspectiva de uma cultura de paz que implique em justiça e solidariedade.
Pastoralmente, precisamos acreditar na força e na eficácia do trabalho religioso, no que se refere a possibilitar a experiência de Deus e a vida comunitária; a oferecer um sentido para a vida e um quadro de valores; a educar para atitudes pessoais e comunitárias de paz e solidariedade; a motivar para engajamentos na sociedade; a realizar sinais significativos da presença do Reino de Deus e da Paz. Somos desafiados a propor a conversão, a mudança de vida, de mentalidade, de atitudes e sermos criativos no propor e oferecer o sacramento da reconciliação como um meio eficaz de reconciliação e perdão.
c) A construção da paz como serviço específico
A construção da paz passa também por exigências específicas. Além de atitudes, de todo um modo de ser e de viver, ela implica em projetos concretos, em ações, em iniciativas, em gestos. É necessário investir em formas organizadas, em capacitação teórica e prática, em pedagogia e metodologia, planejamento, investimento em pessoas e recursos, tempo e subsídios.
A Família Franciscana no Brasil – FFB – conta com o Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia (SINFRAJUPE). Cabe apoiar e investir nesse Serviço, que já tem uma boa caminhada, que possui uma rede de articulações, que acumulou experiências e saberes. Mas não se trata de delegar simplesmente a responsabilidade do compromisso com a Justiça, Paz e Ecologia a um certo grupo de irmãos e irmãs. Se quisermos levar a sério nossa vocação e missão em favor da paz, é necessário um envolvimento de fraternidade no discernimento, na opção e realização de engajamentos específicos na construção da paz.
Temos muitos irmãos e irmãs, pelo mundo afora, presentes em situações e realidade de conflito: em contextos de pluralidade étnica e religiosa, em projetos missionários, nas periferias de cidades, em movimentos sociais, em organizações populares, em projetos específicos junto a pessoas e grupos que são vítimas de violência (mulheres, população de rua, crianças e adolescentes pobres, drogados, portadores de HIV, grupos de risco, índios, negros, pessoas com deficiências…). Um dos desafios é a contínua qualificação para uma presença franciscana, evangélica, profética, e que essa presença e esse serviço efetivamente contribuam ao resgate e à promoção da dignidade humana, ao processo de inclusão social, à criação de uma cultura de paz com justiça e solidariedade, diálogo e reconciliação.
Outro desafio é ampliar as possibilidades de parcerias em vista de uma maior eficácia, para somar forças e recursos, para partilhar conhecimentos e experiências. O leque que se abre nesse sentido é enorme: projetos de assistência e promoção humana, empenho no mutirão da superação da fome e da miséria, campanhas contra guerra e armamentos… Temos tanto a aprender e a contribuir com nossa espiritualidade, nossos valores, nossa concepção de pessoa, de vida e de mundo. [...]
O ex-Ministro Geral da OFM, Frei Giacomo Bini, em seu relatório ao Capítulo Geral de 2003, declarou: “Cabe-nos em nossa vocação de minoridade fazer sério esforço pela paz fundada na justiça e no perdão: estes valores estão no coração do Evangelho que professamos [...] Parece que ainda não conseguimos encontrar o caminho para testemunhar esta reconciliação universal”. E questiona: “O mundo em que vivemos, com suas violências e divisões crescentes, estimula-nos e provoca-nos à ação? O que fazemos pessoalmente e em fraternidade? A vocação e a missão dos franciscanos é estarem ativamente presentes, em fraternidade e minoridade, nos lugares de fronteira, onde há divisões, violência e sofrimentos, para levar um testemunho de amor e uma palavra de reconciliação e de paz”.
Conclusão
Um discernimento que sempre precisamos fazer é sobre a fidelidade criativa ao nosso carisma originário, à nossa vocação e à missão em nosso mundo de hoje. Diante do leque enorme de presenças e serviços que assumimos, podemos perguntar-nos: têm todos os serviços o mesmo valor do ponto de vista da fidelidade ao nosso carisma e do ponto de vista da missão evangelizadora e profética hoje? Onde deveríamos concentrar mais energias, mas pessoas, mais recursos, mais atenção, mais qualificação? O problema não está na diminuição do número de irmãos e irmãs, no aumento da média de idade, na redução de forças ativas para nossas instituições. A questão é estabelecer prioridades a partir da clareza de nossa vocação e missão e da leitura evangélica dos tempos atuais.
Que o Espírito do Senhor nos ajude a desejar sinceramente ser pessoas e Fraternidades de paz, anunciando-a e construindo relações de paz entre nós, na Igreja, na sociedade e no conjunto das criaturas todas.
Texto publicado na “Revista Franciscana”, FFB, 2004, volume IV
Frei Nestor Inácio Schwerz é franciscano da Província São Francisco de Assis, de Porto Alegre (RS), e atualmente é o Definidor Geral para a América Latina.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário