21 de janeiro de 2013
Uma visão franciscana da economia
Por Frei Celso Márcio Teixeira
Introdução
À primeira vista, tendo-se presente que a pobreza se tornou ao longo da história quase que uma carteira de identidade dos franciscanos, o título desta reflexão parece conter um paradoxo ou talvez causar a expectativa de uma visão radicalmente negativa da economia. Pode o franciscano pelo menos pensar em economia, já que o próprio Francisco proíbe severa e terminantemente que os frades recebam dinheiro, comparando-o a uma pedra ou ao pó que se calca com os pés (cf. RnB 8,4.6)(1)? Haveria algum espaço para se falar em economia, quando se defende a pobreza radical do nada possuir (cf. RB 6,1)? Embora as aparências possam sugerir uma irreconciliável contradição entre espiritualidade franciscana e economia, ousamos afirmar que o próprio Francisco de Assis nos deixou o que poderíamos chamar de “modelo econômico alternativo”. E os franciscanos, ao longo da história, não somente elaboraram um pensamento sobre a economia, mas propuseram novos modelos econômicos na tentativa de diminuir a distância existente entre ricos e pobres.
1. Conceito de economia no pensamento e na práxis de São Francisco
Evidentemente, não vamos encontrar nos escritos de Francisco nem no conjunto todo das Fontes Franciscanas um conceito definido de economia. Mas vamos descobri-lo nas entrelinhas do que está escrito e na práxis de Francisco e de seus companheiros.
É necessário, antes de tudo, não identificar economia com possuir, acumular bens (dinheiro, propriedades) e gerir capital. Pelo menos não é este o conceito que ele tem de economia. Mas, se lermos atentamente as fontes franciscanas, verificaremos que, para ele, a economia consiste em gerir as necessidades vitais dos irmãos (gerir a vida). De fato, a grande preocupação dele com relação aos frades é cuidar deles em suas necessidades vitais. Embora a proposta franciscana seja de uma vida sóbria – devemos estar contentes, quando temos com que nos cobrir e com que nos alimentar (cf. RnB 9,1b) – no entanto, a economia que deve reger a vida dos frades será pautada pelo cuidado dos irmãos em suas necessidades, um princípio explícito na Regra Bulada:
Os ministros e custódios exerçam diligente cuidado, através de amigos espirituais, para com as necessidades dos enfermos e para vestir os demais irmãos de acordo com os lugares, tempos e regiões frias, como virem que seja conveniente à necessidade; salvo sempre que, como foi dito, não recebam moedas ou dinheiro (RB 4,3-4).
O conceito que ele tem de economia, portanto, não se situa no nível do possuir, do acumular ou gerir bens, mas no nível do cuidar das necessidades vitais e de gerir a vida.
2. Modelo econômico alternativo
Partindo do conceito de economia como cuidado dos irmãos em suas necessidades vitais, nós nos perguntamos se, de fato, se criou um modelo econômico para fazer frente a essas necessidades. Nossa busca neste sentido aponta para uma resposta afirmativa. Alguns elementos são bastante evidentes, permitindo-nos concluir categoricamente que se criou realmente um modelo alternativo.
a) Um modelo baseado no trabalho
O trabalho como base da economia franciscana já estava explícito na Regra não Bulada:
E os irmãos que sabem trabalhar trabalhem e exerçam a mesma arte que conhecerem… Pois diz o profeta: “Comerás do trabalho de tuas mãos”… E pelo trabalho possam receber todas as coisas necessárias, exceto dinheiro (RnB 7,3.4.7).
Pode-se dizer que o trabalho constitui o primeiro artigo do estatuto da economia franciscana. O meio de suprir as necessidades vitais dos frades, portanto, não consiste em rendas fixas nem na acumulação e capitalização de bens, mas no trabalho.
Este artigo contém um parágrafo: “E, quando for necessário, vão pedir esmola como os outros pobres” (RnB 7,8). Este parágrafo, no entanto, não significa que o meio normal de suprir as necessidades seja a esmola, como posteriormente na história foi interpretado, especialmente quando foi concedido aos frades menores poderem viver das esmolas dos fiéis e quando eles ficaram conhecidos com outros grupos como mendicantes. O parágrafo não vem substituir o artigo, mas apenas acrescentar uma cláusula para um caso especial, como o próprio Francisco chega a precisar no Testamento: “E quando não nos for dado o salário, recorramos à mesa do Senhor, pedindo esmolas de porta em porta” (Test 20b.21a.22).
b) A socialização dos bens pela partilha
Outro elemento que, a nosso ver, constituía um artigo importante do modelo econômico de Francisco é a partilha dos bens adquiridos pelo trabalho. A Regra é inequivocamente clara: “Quanto ao salário do trabalho, recebam para si e para seus irmãos as coisas necessárias ao corpo, exceto moedas e dinheiro” (RB 5,4).
Os bens adquiridos pelo trabalho são sempre “as coisas necessárias”. E a repetida proibição de que se receba dinheiro mostra com muita evidência que o modelo econômico proposto como alternativo não se baseia no dinheiro. Este artigo, porém, evidencia que os bens adquiridos não pertencem nem são destinados unicamente a quem trabalhou, mas ao conjunto dos irmãos: “para si e para seus irmãos”.
Infelizmente, ao longo da história, as intermináveis discussões sobre a pobreza nunca deram valor a este elemento que, a nosso ver, mostra o verdadeiro significado da pobreza franciscana: a pobreza significa não apenas não acumular, mas antes de tudo partilhar o pouco que se tem ou se adquire (2). Tudo em vista do cuidado (bem comum) da fraternidade. Este cuidado, princípio fundamental de todo o estatuto, por sua vez, dá a cada frade a liberdade de manifestar ao outro suas necessidades: “E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade” (RB 6,9).
c) Além da lei do supérfluo
Chamamos aqui “lei do supérfluo” aquela frase incandescente de São Basílio Magno em uma de suas homilias:
Pertence ao faminto o pão que tu reténs. Ao que está nu pertence o manto que guardas. Ao descalço, o calçado que irá apodrecer em tua casa. É do necessitado o dinheiro que tens enterrado (3).
Resumindo numa máxima a exortação de São Basílio: o supérfluo pertence aos pobres.
Embora Francisco não tenha escrito sobre a partilha com os demais pobres, sua práxis é profusamente atestada pelos hagiógrafos. Ele queria que os frades partilhassem com os necessitados não apenas o que lhes era supérfluo, mas também o que estava destinado às suas próprias necessidades. Ao encontrar alguém mais necessitado do que ele, não tendo supérfluo, dava aquilo que lhe era absolutamente necessário. Dizia:
Recebemo-lo de empréstimo até acontecer que encontremos alguém mais pobre… Não quero ser ladrão; ser-nos-ia imputado como furto, se não o dermos ao mais necessitado (2Cel 87; CA 32).
Exemplos claros disso são as várias vezes em que ele deu seu próprio manto a algum pobre (cf. 2Cel 86; 87; 88; 92) ou, quando já não tinha o manto, cortava um pedaço do próprio hábito (cf. 2Cel 90) ou dava como esmola os ornamentos do altar (cf. 2Cel 67) e até mesmo o livro do Evangelho usado na liturgia (cf. 2Cel 91).
Resumindo o pensamento de Francisco sobre economia, pode-se dizer que, tendo como princípio o cuidado dos irmãos, ele realmente desenvolve um modelo econômico alternativo, baseado no trabalho, na partilha entre os irmãos e na partilha (não só do supérfluo) com os demais pobres.
3. O conceito de propriedade privada no pensamento franciscano
A tese comum defendida na Idade Média, inclusive por teólogos do porte de Santo Tomás de Aquino (4), era a da justificação da propriedade privada pela lei natural. Na linha aristotélica, Tomás de Aquino defende que odominium (o termo indica poder de uns sobre os outros e propriedade sobre as coisas) remonta ao estado original, não é consequência do pecado.
A escola franciscana, possivelmente influenciada por uma compreensão evangélica da pobreza (Cristo quis ser e fez-se pobre), elaborou um pensamento alternativo. Teólogos franciscanos que abordaram o tema: Alexandre de Hales, Boaventura, Mateus de Aquasparta, Pedro João Olivi, Duns Scotus e Ockham. Já com Alexandre de Hales (5), passando por Boaventura (6), a formulação adquire uma clareza incontestável. Segundo Alexandre de Hales, deve-se distinguir entre status innocentiae (o estado do ser humano antes do pecado) e status naturae lapsae (estado depois do pecado). Em seu estado de inocência foi dada ao ser humano a lex naturae simpliciter; em seu estado de natureza caída, foi-lhe dada a lex positiva, esta última com a finalidade de coibir a vontade dos mais fortes de submeter e explorar os mais fracos. Deste modo, em seu estado original, havia apotestas utendi, o commune solatium rerum (provisão ou uso comum das coisas). Com o pecado, irrompem a avareza, a tendência à apropriação, a separação entre o meu e o teu, a concupiscência da posse e da acumulação. Por isso, a necessidade de uma lei positiva (lei da sociedade), que, no entanto, não deve ser absolutizada nem divinizada como se fosse o projeto eterno de Deus. Ela mostra apenas a precariedade e a fragilidade da condição em que se encontra o ser humano caído. Se ela estabelece normas para proteger a propriedade particular, é porque o ser humano perdeu o senso do uso comum das coisas, que era próprio de seu estado primeiro.
Igualmente, para Duns Scotus, o ser humano não é proprietário por natureza. Como bem comenta Todisco, “os dominia não fazem parte dostatus innocentiae, quando tudo era comum e o uso dos bens respondia somente à lógica da necessidade de cada um. O atual desenfreamento do instinto concupiscente faz parte de nossa história, não de nossa natureza… Assim, a partir do estado de comunhão de bens se passou ao estado de distinção dos dominia para propiciar uma convivência pacífica. Nem o direito natural ou ius naturae nem o divino ou ius divinum se podem tomar legitimamente como argumento a favor da propriedade, como se esta expressasse a índole originária da natureza humana” (7) .
E Guilherme de Ockham sublinha que, depois do pecado, o ser humano não está em condições de gozar os bens em comum, motivo pelo qual precisa regular o poder de apropriar-se das coisas, de acordo com a condição humana atual (8).
4. O modelo econômico dos Montepios
A crescente monetarização acontecida já na época de São Francisco despertou muitos homens ricos à prática da usura. Devido aos seus lucros exorbitantes e à espoliação dos pobres causada pelos juros altos dos usurários, esta prática, comparada em gravidade à simonia e à avareza, era severamente condenada pela teologia moral. Santo Antônio de Lisboa, por exemplo, tornou-se um grande pregador contra a usura, pelo fato de esta prática miserar muitas famílias já pobres. Com comparações contundentes, ele clamava:
Um povo maldito de usurários, forte e inumerável, cresceu sobre a terra. Os seus dentes são como os dentes de leão… seus dentes cheiram mal, por motivo de existir sempre na sua boca o estrume da pecúnia e o esterco da usura. Os seus queixais são como leõezinhos, porque arrebatam, mastigam e devoram os bens dos pobres, dos órfãos e das viúvas” (9).
Com o passar do tempo, os frades menores, compreendendo que o uso do dinheiro fazia parte da vida cotidiana do povo, perceberam que não bastava anatematizar o dinheiro. A usura ainda dizimava muitas vidas e dignidades. Participando das angústias dos cidadãos, especialmente dos mais pobres, e conscientes da força do capital que movia a sociedade – sem deixar de arruinar muitas vidas –, os frades começaram a refletir também sobre esta realidade de maneira realista, chegando a elaborar um pensamento sobre economia. Exemplos disso são os tratados de Pedro João Olivi, intituladosTractatus de emptione et venditione e Tractatus de contractibus usurariis et de restitutionibus. Este teólogo trilha o caminho do preço justo dos bens produzidos, levando em conta não apenas o trabalho do artesão, mas também as dificuldades e trabalho do mercador, as situações de escassez e de abundância, etc., que acabam incidindo legitimamente na valorização da mercadoria. Posteriormente, Bernardino de Sena estabelecerá os elementos a serem levados em conta no preço dos bens produzidos: o valor natural da coisa produzida (realis bonitas naturae) e a utilidade (utilitas rei, pois o uso acrescenta valor à coisa); acrescentem-se a estes a virtuositas (qualidade), araritas (escassez) e a complacibilitas (a satisfação que o produto dá ao que o compra) (10).
A contribuição franciscana em assuntos de economia, porém, não ficou no nível do pensamento. A iniciativa dos montepios foi a maneira concreta encontrada para levar a sociedade ao bom uso do dinheiro, isto é, a produzir bens de consumo sem produzir miséria. Bernardino de Sena (1380-1444) e Bernardino de Feltre (1439-1494), entre muitos outros pregadores, foram os incentivadores deste modelo de economia. O sistema consistia em levar os ricos a substituírem as esmolas por empréstimo a juros baixos para os que não tinham um capital e eram capazes de produzir bens de consumo. Deste modo, o pobre se sentiria valorizado em sua dignidade de poder produzir, de colaborar com a construção da vida social. Uma frase de Bernardino de Feltre, que mostra a natureza dos montepios, reza assim:
Não retenhas o supérfluo, que o supérfluo rompe a cesta… quando és rico e tens a barriga cheia e o pobre te pede emprestado e tu podes ajudar, se não o ajudas, pecas mortalmente. Portanto, se estás obrigado a dar esmola e ser generoso, quanto mais estás obrigado a dar ajuda daquilo que receberás com juro? (11).
O primeiro montepio foi fundado em 1462, em Perúgia, mas a iniciativa estendeu-se com muita rapidez pelas cidades da Itália e da Europa.
Conclusão
Quando os frades menores se põem a pensar a economia e a criar modelos econômicos alternativos, onde fica a pobreza? Estariam eles distanciando-se do carisma do fundador, afastando-se da pobreza radical? Não subsistiria, no fundo, a contradição à proposta original de Francisco?
Pelo contrário, vemos aí exatamente a superação da suposta contradição e uma até mesmo apologia da pobreza. Aos que consideravam a pobreza uma violação dos direitos fundamentais da natureza humana (entre estes o chamado direito natural à posse), a renúncia à posse dos bens mostra que a pobreza radical, pensada neste contexto, não vai contra a natureza humana, mas contra a natureza atual (caída) que se tornou egoísta. A pobreza radical (renúncia a qualquer domínio) aponta, portanto, para o status innocentiae, não viola absolutamente nenhum direito natural (lex naturae), como pretendiam os que se inspiravam numa concepção naturalista pagã, mas restaura a condição primeira. Esta visão dá ao indivíduo o pleno direito (liberdade) a renunciar a todos os direitos, e nisso consiste a radicalidade máxima da pobreza.
De outro lado, os frades não propõem o dinheiro como objeto de culto e de cobiça. Sua preocupação principal é livrar os pobres de uma pobreza que indignifica e envergonha o ser humano: a miséria. E a proposta subjacente ao modelo econômico dos montepios não era a de enriquecer os pobres, mas de permitir que eles, mesmo pobres, continuassem humanos, co-participantes da vida e da construção da cidade dos homens.
Extraído de: http://www.itf.org.br/
1 Os hagiógrafos são ainda mais radicais, ao atribuírem a Francisco a comparação do dinheiro com o esterco; cf. 2Cel 65,3; 66,2; CA 27,3; LTC 45,4.
2 Quem recentemente fez uma abordagem da pobreza do ponto de vista da economia foi D. Flood em seu livro Frei Francisco e o movimento franciscano, Vozes-Cefepal, Petrópolis, 1986, onde ele fala da “base econômica” (p. 42, 54, 55, 58), de “sistema econômico” (p. 49), de “organização econômica” (p. 67, 71) da vida dos frades, caracterizando-a como “economia fraterna” (p. 71), apontando, inclusive, a esmola não por razões de pobreza, mas por razões simplesmente econômicas (p. 55-56).
3 Basílio Magno, Homilia in Lc 12,16, em PG 31, c. 1752.
4 STh., I, q. 96, a. 4.
5 SH, II, q. 3, c. 2.
6 Boaventura, II Sent., d. 44, q. 2, a. 2.
7 Todisco O., “Ética e Economia”, em Merino J.A.; Fresneda F.M. (org.),Manual de Filosofia Franciscana, Petrópolis, Vozes-FFB, 2006, 261-332, p. 267; cf. Duns Scotus, Ordinatio IV, d. 15, q. 2, n. 5; sobre a questão da propriedade em Duns Scotus, cf. Bottin F., “G.D. Scoto sull’origine della proprietà”, em Rivista di Storia della Filosofia 52 (1997) 47-59.
8 Cf. Todisco O., o. c. 267.
9 Sermão da Sexagésima.
10 Bernardino de Sena, II, Sermo XXX, c. 1; obra citada por Todisco O., o. c. 324.
11 Citado por Todisco O., o. c. 327.
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