5 de agosto de 2012

A pobreza como não apropriação na Regra de Santa Clara




Por Frei Fábio Cesar Gomes

O título do capítulo oitavo da Regra de Santa Clara: “Que as irmãs de nada se apropriem, sobre o pedir esmolas e sobre as irmãs doentes”, anuncia os três temas fundamentais que nele são tratados: a não apropriação, a esmola e enfermidade das irmãs. Trata-se de temas que estão profundamente interrelacionados, como tentaremos demonstrar ao logo deste artigo. Aliás, todos os temas da Regra Clariana estão muito interligados, uma vez que ela foi redigida como um texto unitário, somente posteriormente divido em doze capítulos.

De fato, percebemos uma relação muito forte entre este e o capítulo sexto que nos falava do privilégio da pobreza e que, segundo a bela expressão de Frei Orlando Bernardi, representa o “coração de Clara” (cfr. Comunicações, junho 2012, p.282-283). Nele, Clara convocava todas as irmãs a observar inviolavelmente a santa pobreza até o fim, não aceitando “nem ter posse ou propriedade nem por si, nem por pessoa intermediária, e nem coisa alguma que possa com razão ser chamada de propriedade, exceto aquele tanto de terra requerido pela necessidade para o bem e o afastamento do mosteiro” (RegCl 6,12-14).

Acreditamos, porém, que no capítulo oitavo, Clara nos diga alguma coisa a mais a propósito da sua concepção de pobreza, uma vez que não fala apenas de não ter propriedades, mas, de não se apropriar de nada: “nem casa, nem lugar, nem coisa alguma” (RegCl 8,1). De fato, a não apropriação de nada diz respeito a uma disposição interior de pobreza que, como tal, constitui a condição prévia para qualquer forma de manifestação da mesma. Nisso consiste aquilo que Clara chama de altíssima pobreza (cfr. RegCl 8,4), a pobreza de Cristo, pois significa assumir a mesma atitude Daquele que “não se apegou à Sua igualdade com Deus, mas, esvaziou-se a si mesmo” (Fl 2,6-7).

Neste sentido, Clara demonstra estar em grande sintonia com aquilo que Francisco chama de sine proprio, ou seja, com uma compreensão de pobreza que não se reduz à não propriedade de alguma coisa, mas, que consiste em libertar o coração de todo e qualquer tipo de apego, como fica muito evidente em uma das suas admoestações: “Vive retamente sem nada de próprio aquele servo de Deus que não se ira nem se perturba por qualquer coisa” (Adm 11,3).

Tal compreensão de pobreza, por sua vez, apoia-se naquela consciência muito clara de Francisco de que todo bem pertence fundamentalmente a Deus, “o bem pleno, todo o bem, o bem total, verdadeiro e sumo bem, o unicamente bom” (RegNB 23,9). A nós, cabe reconhecer que todos os bens Lhe pertencem e Lhe restituir tudo pelo exemplo e pelas palavras (cfr. RegNB 17,17; Adm 7,4). E é justamente aqui que percebemos um nexo interessante do tema da não apropriação com os outros temas tratados no capítulo oitavo da Regra de Santa Clara: a esmola e o cuidado das enfermas.

De fato, se tudo pertence a Deus, então, precisamos receber tudo Dele, dependemos Dele em tudo. Tal dependência de Deus em tudo, até mesmo para comer, manifesta-se concretamente através do pedir esmola, ou seja, da prática da mendicância. Daí entende-se porque a Regra prescreve que as Irmãs, “como peregrinas e forasteiras neste mundo, servindo ao Senhor na pobreza e na humildade, mandem pedir esmola confiadamente, e não precisam ficar com vergonha, porque o Senhor se fez pobre por nós neste mundo” (RegCl 8,2-3). Aqui é interessante notar que Clara não fala em pedir esmola como Francisco (cfr. RegB 6,3; RegNB 9,3), mas, em mandar pedir esmola, pois, em virtude da observância da clausura, tal prática era delegada pelas irmãs a alguns frades, os chamados esmoleres.

O mandar pedir esmola, porém, não eximia as Irmãs do trabalho manual que, não por acaso, foi abordado no capítulo anterior da Regra (cfr. RegCl 7). Deste modo, podemos dizer que a prática da esmola em Clara não substitui o trabalho manual, mas, tal como em Francisco, o pressupõe: “Os que não sabem trabalhar aprendam, não pelo desejo de receber o salário do trabalho, mas por causa do exemplo e para afastar a ociosidade. E quando não nos for dado o salário, recorramos à mesa do Senhor, pedindo esmolas de porta em porta” (Test 21-22).

Porém, a situação privilegiada em que cada irmã pode experimentar a sua dependência radical de Deus e, portanto, não apropriar-se de nada, é aquela da enfermidade, ou seja, quando encontra-se enferma, não firme, fragilizada. Nesta situação, a enferma é convidada a colocar em Deus a segurança (firmeza) da própria vida, confiando-se aos cuidados das suas irmãs e manifestando-lhes as próprias necessidades (cfr. RegCl 8,15). Também para as outras irmãs, a enfermidade de uma delas torna-se ocasião para exercitarem a não apropriação da própria vontade, cuidando da enferma não de qualquer modo, mas, colocando-se no seu lugar, servindo-a “como gostariam de ser servidas, se tivessem alguma doença” (RegCl 8,14).

Nos nossos Fóruns Provinciais evidenciamos várias das nossas fragilidades pessoais e institucionais, diante das quais nem sempre temos respostas imediatas e soluções fáceis. Mais do que nos angustiarmos e perturbarmos por causa delas, a reflexão de Clara sobre a pobreza como não apropriação parece nos convidar a renunciarmos a toda e qualquer pretensão de autossuficiência, reconhecendo, em todas estas situações, a nossa radical necessidade da graça de Deus e a nossa fundamental dependência uns dos outros.


Fonte : http://www.franciscanos.org.br/n/

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