Centralidade da fé e conversão do coração (II)
Continuamos as considerações do número anterior nesta nossa Leitura espiritual. Sempre de novo estamos refletindo sobre a vida no Espírito. Centralidade da experiência da fé, sequela de Cristo e dinâmica da conversão fazem parte do que chamamos de vida espiritual. Ressoam sempre aos nossos ouvidos os últimos capítulos da Regra Não Bulada de Francisco. Sempre o Senhor no centro, esse Senhor qualificado de forma superlativa, sempre o Tudo, o Absoluto, o Belíssimo. Até que ponto, pessoal e comunitariamente, envidamos todos os esforços para que o Senhor ocupe o espaço todo?
11. Os discípulos seguem o Mestre. Felizes aqueles que são chamados a acompanhar bem de perto esse que é caminho, verdade e vida. A vida espiritual é dinamismo. Tem seus modestos começos e pode fazer com que nela se embrenham cheguem à mais alta contemplação e conformação com Cristo. Comporta esse locomover-se. Não se trata apenas de um deslocamento físico. Há, sobretudo, o movimento interior. Somos peregrinos e forasteiros em quaisquer circunstâncias. O discípulo não está tão preocupado em entender intelectualmente discursos e ditos do Mestre, mas antes de tudo desejam acolhê-los com disponibilidade, como boa terra e se põem a caminho. Ubaldo Terrinoni (Projeto de pedagogia evangélica, p 59): “O discípulo deve aprender a entregar-se, lentamente à ação discreta e implacavelmente penetrante da palavra, a fim de deixar-se permear em todas as fibras do próprio ser; deve aprender a estabelecer um contato contínuo com a palavra, uma assimilação lenta e progressiva, para deixar-se transformar em criatura nova”. Essa tarefa dura toda a vida. Nunca estamos quites.
12. O seguimento é expressão de conversão permanente a Jesus Cristo. Segui-lo ou não é uma decisão que estrutura e caracteriza radicalmente o destino dos indivíduos e das comunidades. “A admiração pela pessoa de Jesus, seu chamado, seu olhar de amor despertam uma resposta consciente e livre desde o mais íntimo do coração do discípulo, uma adesão a toda a sua pessoa, ao saber que Cristo o chama pelo nome (cf. Jo 10,3). É um sim que compromete radicalmente a liberdade do discípulo e a se entregar a Jesus, Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14,6). É uma resposta de amor a quem amou primeiro “até o extremo” (cf. Jo 13,1). A resposta do discípulo amadurece neste amor de Jesus: “Eu te seguirei onde quer tu vás” (Lc 9,57)” ( Doc.de Aparecida, n. 136). O discípulo se centra no Senhor. Sabe-se incondicionalmente amado por ele. Tem os olhos fixos nele. Assim sendo pode aceitar suas exigências de seguimento marcadas pelo radicalismo. O discípulo viverá unicamente ligado a ele, renunciando a tudo o que tira o esplendor de tal seguimento. A preferência a Cristo pedirá rompimentos familiares, perda de bens, troca das coisas certinhas pelo risco da fé. Vida espiritual cristã é vida de seguimento.
13. Francisco de Assis fala do seguimento das pegadas de Cristo: “Atendamos, irmãos todos, ao que diz o Senhor: Amai os vossos inimigos e fazei o bem àqueles que vos odeiam (cf. Mt 5,44) porque nosso Senhor Jesus Cristo cujas pegadas devemos (cf. 1Pd 2,21), chamou amigo a seu traidor e ofereceu-se espontaneamente aos que o crucificavam. Amigos nossos, portanto, são todos aqueles que injustamente nos causam tribulações e angústias, vergonha e injúrias, dores e tormentos, tribulações e angústias, vergonha e injúrias, dores e tormentos, martírio e morte, a estes devemos amar muito, porque, a partir disto que nos causam, temos a vida eterna” (Regra Não Bulada, 22). O tema da sequela Christi é caro a Francisco. Diz-se mesmo que ele caracteriza a espiritualidade franciscana. Será verdade se colocarmos nesta expressão um conteúdo justo. O tema tomado de 1Pd 2,21 não alude aos fatos e gestos da vida pública de Jesus que deveriam ser reproduzidos pelo discípulo. Trata-se, antes de tudo, de um convite a que ele entre, com serenidade e paciência, no mistério da bem-aventurada paixão do Senhor e desta forma poder participar de seu destino doloroso e glorioso. Mais do que uma mística da pobreza, entendida do ponto de visto sociológico, a “sequela” é mística da Paixão, desembocando, na esteira do Senhor, na glória. Caminhar nas pegadas do Senhor, é viver conforme todas as exigências do Evangelho, incluindo sofrimento e morte e abrir-se às promessas proclamadas pelo Evangelho.
14. Paulo lembra que nossa vida está escondida com Cristo em Deus( Cl 3,3). Nossa vida é a própria vida de Jesus. A vida do cristão consiste em ter os mesmos pensamentos e sentimentos de Cristo Jesus, comportar-se como ele se comportou, permanecer no mundo fazendo o bem aos irmãos, viver e morrer como ele viveu e morreu. A vida espiritual consistirá em viver a existência humana como Jesus viveu em perfeita obediência ao Pai, em extrema fidelidade à terra, quer dizer, num amor sem limites e sem condições. A vida espiritual não é uma outra vida, não exige o sair do mundo, nem esquecer a carne de homem. Ela é, no entanto, viver a vida humana como uma obra de arte.
15. “Seria necessário insistir hoje que a existência humana de Jesus foi uma existência boa, uma existência vivida em plenitude, em suma, uma existência feliz, na qual o amor tornou-se um canto de comunhão, a esperança uma convicção até o fim, a fé uma adesão dia após dia a seu próprio ser de criatura diante do Criador. O seguimento de Jesus comporta também o olhar o céu, tentar ler os sinais, amar as flores dos campos, sentar-se à mesa alegre dos amigos e dos que sabem acolher, viver com outros uma aventura de amizade na busca de um projeto comum. Não há dúvida que, no horizonte do seguimento de Jesus está a cruz. Esta será vista a partir daquele que nela subiu. Ela não é uma fatalidade inglória. É Jesus, que na cruz, revela a autêntica glória: quer dizer a humildade de Deus, seu incontido amor por nós, sua capacidade de sofrer por nõs” (Enzo Bianchi, La vie spirituelle chrétienne, in Vie Consacrée 2000/1, p.47).
16. Nunca esqueceremos que o seguimento do Senhor se vive à luz do mistério pascal. Somente assim pode se realizar. Podemos nos inspirar em determinadas ações que Jesus colocou em sua existência, mas nosso ato de fé pode encontrar seu fundamento somente na ressurreição. Uma vida espiritual deve cuidar de não ser apenas uma imitação de situações humanas. Correríamos o risco, no dizer de Enzo Bianchi, de procurar entre os mortos aquele que vive. Hoje temos a ver com Cristo ressuscitado. O Espírito Santo que esteve presente ao longo da vida de Cristo desde a sua concepção até o último suspiro na cruz é aquele que nos acompanha no conhecimento de Cristo e no seu seguimento, não somente recordando palavras, atos e acontecimentos de Jesus, mas permitindo que vivamos com ele de sorte que Cristo se forme em nós e viva em nós.
17 Francisco de Assis no seguimento de Cristo vai se apropriar dos aspectos mais despojados e desapropriados. Ele vai ter em seus olhos e em seus coração a atenção voltada para os traços do Cristo pobre e despojado. Clara de Assis. por sua vez, pedirá que Inês de Praga mire o espelho e lá veja Cristo pobre e dilacerado. E Clara se apaixonará pelo Cristo esposo pobre. Por ai vai sua identificação com Cristo, segui-lo “assimilando-o”.
18. Os que se preocupam em colocar seus pés nos pés do Senhor, em seguir o Senhor, vão operando a conversão. Este é um dos aspectos fundamentais vida espiritual: uma vida de transformação interior que se exprime num estado de conversão. Terminamos estas reflexões com textos de Michel Hubaut descrevendo o que seria a conversão. Logo que começou a anunciar publicamente a Boa Nova, Jesus se declarou o instaurador de um mundo novo e pedia que seus ouvintes que se convertessem:
• “Converter-se é acolher na fé a iniciativa gratuita, imprevisível de Deus que decidiu, em Jesus, nos visitar pessoalmente para nos salvar, para nos fazer entrar numa felicidade sem fim. Converter-se é aceitar de ser salvo gratuitamente e colocar sua vida em consonância com este acontecimento.
• Conversão e fé participam do mesmo movimento. Converter-se é mudar a direção de sua vida, é ter bastante fé para renunciar a se considerar centro absoluto e autossuficiente. Ter fé para orientar nossa vida, nosso futuro, nossa busca de felicidade em Jesus que nos chama a segui-lo”.
• Converter-se não é em primeiro lugar passar do vício para a virtude, mas viver a mudança radical: aceitar de nunca mais querer construir a vida sozinho, com teimosia, mas acolher em Jesus a iniciativa de Deus, a gratuidade de seu amor, de seu apelo e de seus dons. No começo de tudo não há mais o eu, o homem, mas o Amor de Deus” (Chemins d’interiorité avec Sains François, p. 24-25).
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