7 de novembro de 2014
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
Reflexão de Frei Almir Ribeiro Guimarães sobre o Sagrado Coração de Jesus para a primeira sexta-feira do mês.
Sabemos perfeitamente que o Filho de Maria, aquele que veio do seio do Pai morar entre nós, morreu, mas vive e está em nosso meio. Não nos cansamos de afirmar nossa fé na presença do Ressuscitado em todos os cantos da terra, em todo o deslizar do tempo, num agora e num amanhã. Encontramo-lo no pão branco da toalha do altar, no rosto dos mais desvalidos e abandonados, na sua Palavra que ecoa no catedral de nosso interior. Somos sempre de novo solicitados a contemplar os últimos momentos de sua vida em que ele teve o coração aberto pela lança do soldado depois de momentos de profunda solidão. Vamos nos deter precisamente nesta solidão final daquele que, depois de morto, teve o peito aberto pela lança do soldado.
Três reflexões de José Antonio Pagola em seu Jesus-Aproximação histórica ( Vozes, p. 482-484) sirvam de meditação para esta primeira sexta-feira de novembro.
1. O silêncio de Jesus durante as últimas horas é surpreendente. No entanto, no final, Jesus morre “lançando um forte grito”. Esse grito inarticulado é a recordação mais segura da tradição. Os cristãos nunca o esqueceram. Três evangelistas põem, além disso, na boca de Jesus moribundo três palavras diferentes, inspiradas em outros tantos salmos. De acordo com Marcos (= Mateus), Jesus grita com voz forte: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Lucas, no entanto, ignora essas palavras e diz que Jesus grita: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. De acordo com João, pouco antes de morrer, Jesus diz: “Tenho sede” e, depois de beber o vinagre que lhe ofereceram, exclamou: “Tudo está cumprido”. O que podemos dizer destas palavras? Foram pronunciadas por Jesus? São palavras cristãs que nos convidam a penetrar no mistério do silêncio de Jesus, rompido somente no final por seu grito surpreendente?
2. Não é difícil entender a descrição que nos é apresentada por João, o evangelista mais tardio. De acordo com a sua visão teológica, “ser elevado à cruz” é para Jesus “retornar ao Pai” e entrar em sua glória. Por isso seu relato da paixão é a marcha serena e solene de Jesus para a morte. Não há angústia nem espanto. Não há resistência em beber o cálice amargo da cruz: “A taça que o Pai me ofereceu, por acaso não hei de bebê-la?” A morte de Jesus não é senão a coroação de seu desejo mais profundo. Assim o expressa ele: “Tenho sede”, quero terminar minha obra; sinto sede de Deus, quero entrar já em sua glória. Por isso, depois de beber o vinagre que lhe ofereceram, Jesus exclama: “Tudo está cumprido”. Ele foi fiel até o fim. Sua morte não é descida ao sheol e sim sua “passagem deste mundo para o Pai”. Nas comunidades cristãs ninguém o punha em dúvida.
3. É fácil também entender a reação de Lucas. O grito angustioso de Jesus, queixando-se a Deus por causa de seu abandono torna-se duro para ele. Marcos não teria nenhum problema de colocá-lo na boca e Jesus, mas alguns talvez o pudessem interpretar mal. Então, com grande liberdade substituiu-o por outras palavras, a seu ver mais adequadas: “Pai, em tuas mãos abandono minha vida”. Era preciso ficar claro que a angústia vivida por Jesus não havia anulado em nenhum momento sua atitude de confiança e abandono total ao Pai. Nada, nem ninguém poderá separá-lo dele. Ao terminar sua vida, Jesus entregou-se confiantemente a esse Pai que estivera na origem de toda a sua atuação. Lucas queria deixar isso claro.
4. Apesar de todas as suas reservas, o grito conservado por Marcos; Eloí, Eloí, lema sabactani!, ou seja, “Meu Deus, meu Deus por que me abandonaste”, é sem dúvida o mais antigo na tradição cristã e poderia remontar ao próprio Jesus. Estas palavras pronunciadas em aramaico, língua materna de Jesus, e gritadas no meio da solidão e do abandono total são de uma sinceridade esmagadora. Se Jesus não as tivesse pronunciado, ter-se-ia alguém da comunidade atrevido pô-las em seus lábios? Jesus morre numa solidão total. Foi condenado pelas autoridades do templo. O povo não o defendeu. Os seus fugiram. Ao seu redor só houve zombarias e desprezo. Apesar de seus gritos ao Pai no horto de Getsêmani, Deus não veio em sua ajuda.
Seu Pai querido o abandonou a uma morte ignominiosa. Por que? Jesus não chama Deus de Abbá, Pai, sua expressão habitual e familiar. Chama-o de Eloí, meu Deus, como todos os seres humanos. Sua invocação não deixa de ser uma expressão de confiança: Meu Deus! Deus continua sendo seu Deus apesar de tudo. Jesus não duvida de sua existência nem de seu poder para salva-lo. Queixa-se de seu silêncio: onde está? Por que se cala? Por que o abandona no momento em que mais precisa dele? Jesus morre na noite mais escura. Não entra na morte iluminado por uma revelação sublime. Morre com um “por quê?” nos lábios. Tudo fica agora nas mãos do Pai.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Extraido de: http://franciscanos.org.br/
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