O Senhor nos acolheu em seu regaço e Coração, fiel ao seu amor. (Antífona do Benedictus da Solenidade do Coração de Jesus)
1. Sempre de novo os cristãos são convidados a viver profundamente unidos a Cristo. Ao longo de nossa vida o Ressuscitado vai nos tocando, sempre chamando nossa atenção para sua presença e fazendo com que nos lembremos das ternuras que ele nos manifestou durante a sua vida terrena. Os grandes místicos sempre olharam para o Coração do Mestre como um abismo de graça e de bênçãos. Frei Tiago de Milão, frade menor, talvez de maneira um pouco afetada para nosso gosto, descreve seu encantamento com o coração do Senhor no alto da cruz. O texto que temos diante de nossos olhos é uma tradução de Fr. Urbano Plenz, falecido há poucos anos, texto que apareceu nos Cadernos Franciscanos de Belo Horizonte (1984, n.4).
2. “Ó morte amável, ó morte deliciosa! Quem me dera ter estado no lugar desta cruz, pregado junto do Cristo com minhas mãos e meus pés. Eu teria certamente dito a José de Arimatéia: Não o tires de mim, põe-me junto dele na sepultura. Não quero mais ficar separado dele. Uma vez que não posso agir assim com meu corpo, quero, pelo menos, fazê-lo com o meu coração”. - Aquele que sente tocado pelo amor de Cristo quer ficar unido ao Amado. Paulo, o Apóstolo, dizia-se pregado na cruz com Cristo. Na medida em que uma pessoa vai fazendo, no plano da fé, uma experiência de convivência com Cristo ( vida de oração e meditação, participação profunda na eucaristia diária, intuições e graças peculiares) sente-se como que una com Cristo. Numa figura literária bela Tiago pede a José de Arimateia não o prive do corpo do Senhor. Lembra um pouco Madalena que fala com o jardineiro: “Roubaram o meu Senhor, onde o puseram?”.
3. “É bom ficar com ele. Nele eu vou fazer três tendas: uma em suas mãos, outra em seus pés, e uma terceira, permanente, em seu lado. Lá eu quero descansar e dormir, comer e beber, ler e rezar. Lá falarei ao seu Coração e tudo dele receberei”. A maneira como o místico fala lembra a cena da Transfiguração: Pedro queria fazer três tendas, uma para Jesus, outra para Moisés e uma terceira para Elias. Estamos em pleno clima de mística. Permanecer, ficar são verbos que exprimem vontade de perpetuar uma experiência, no caso presente, experiência da proximidade de Deus que em Cristo tem seu peito aberto. Frei Tiago fala de uma série atividades que quer exercer nessas tendas. Não estaria ele descrevendo, de alguma forma, o espírito da contemplação ou mesmo da Regra de São Francisco para os eremitérios? Uma vida só para Deus: rezar, ler, comer, descansar...
4. Vem então desenvolvida a idéia da casa, da morada. O místico não quer mais abandonar Cristo: “É lá que eu moro;lá me alimento da comida que ele come, e lá me embriago com a sua bebida;lá experimentarei uma tão grande doçura que nem dá para explicar”. Morar com significa intimidade. Ele, aquele que a alma ama, tem como alimento fazer a vontade do Pai. Em Cristo, fazendo a vontade do Pai, quem ama tem o mais sólido e indispensável alimento. A bebida pode lembrar o vinho/sangue na Eucaristia, sangue/vinho derramado para a vida do mundo. Frei Tiago não encontra palavras para descrever o que pensa e o que vive ou o que deseja viver misticamente em Cristo. Minha comida é fazer a vontade do Pai.
5. O místico continua desenvolvendo a idéia da morada e exprime medo de abandonar essa casa querida : “Aquele que por causa dos pecadores morou no seio virginal, hoje digna-se carregar-me, a mim miserável, em suas próprias entranhas. Tenho medo de que venha um dia o parto, quem me privaria das delícias de que estou gozando”. Estamos de cheio no linguajar da mística. Podemos não apreciar as imagens e palavras, talvez melosas para nossos ouvidos. Mas a realidade da íntima comunhão com Cristo está bem clara. O Verbo veio morar em nossa carne e carrega nosso corpo. Nada de estranho. O Verbo encarnado que acolhe a carne pecadora. Há um medo de perder o calor do ninho. Talvez ter que descer da montanha. Medo de chegar a hora do parto e sair de Jesus e Jesus sair do místico. Mas é inevitável. Ainda não estamos no tempo da comunhão definitiva. Estamos nas ante-salas dos definitivos esponsais místicos.
6. Talvez o texto seguinte seja o mais afetado. Não importa. Sempre de novo essa tentativa de descrever por imagens o mistério da união. “Sem dúvida se ele me põe no mundo, precisará, como uma mãe, dar-me o leite de seu seio, lavar-me com suas mãos, carregar-me em seus braços, consolar-me com seus beijos, aquecer-me sobre o seu peito”. Quando a mãe dá à luz ela olha para a cria, dá-lhe leite, calor e força. Os que fazem a experiência mística sabem que nascem de novo e que Deus não os largará no mundo.
7. Finalmente temendo a necessidade de descer da montanha, ele descobre uma porta, ou várias portas por onde pode entrar: as portas das feridas do corpo do amado, de modo particular, daquela do coração. “Sei bem o que eu vou fazer: ele me pode fazer sair dele quantas vezes quiser, sei que suas feridas estão sempre abertas. Por elas, penetrarei de novo em seu seio, e para lá voltarei cada vez, até que eu esteja inseparavelmente unido a ele”. O contemplativo sabe que a comunhão definitiva e o pleno êxtase não são para o momento. É tempo de peregrinar. Mais tarde. Enquanto isso é possível morar, pela fé, nas chagas do Cristo mormente naquele espaço privilegiado, expressão de amor sem limites, que é o Coração do Mestre.
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