Estamos habituados a contemplar o amor total de Cristo pelos seus de modo particular a partir da ferida de seu peito aberto, das feridas de suas mãos e de seus pés. Nelas se escondem os místicos. Uma tal contemplação não nos leva a uma estéril postura estática, mas sempre deverá nos impelir a aliviar as feridas abertas na carne e na vida de nossos irmãos e irmãs pelo mundo afora. Num belo texto proposto por Bento XVI para a quaresma de 2007 lemos esta exortação calorosa que se dirige também aos devotos do Coração rasgado do Mestre em todos os tempos e lugares. “Contemplar aquele que traspassaram nos impulsionará de tal maneira que venhamos a abrir nossos corações aos outros reconhecendo as feridas infligidas à dignidade do ser humano: seremos levados, em particular, a combater toda forma de desprezo pela vida e de exploração das pessoas, a aliviar os dramas da solidão e do abandono de tantas pessoas”.
Sempre, nas reflexões sobre o Coração de Jesus, num primeiro momento, nos detemos diante do amor de Deus. Cristo é imagem do Pai que ama até o fim. Quem me vê, diz Jesus, vê o Pai. O Filho e o Pai se misturam no alto da cruz. O Pai do filho pródigo, o bom samaritano estão ali, numa tarde de primavera do Oriente. Um homem de carne e de osso, nu, despojado, sem nada, completamente desapropriado, que foi se fazendo uma chaga só dos pés à cabeça, cheio de hematomas, de corrimento de sangue e em inimagináveis desconfortos vai se entregando, quase desmaiando, morrendo com quatro feridas. Faltava ainda o machucado do lado, do peito, do coração. Um Deus que torna ferida para que os homens se curem. Nós, discípulos do Ferido, fomos levados à hospedaria de seu coração para sermos definitivamente curados. Somos gratos ao Senhor. Pedimos sempre seu perdão e exprimimos-lhe nosso reconhecimento. A vida diária do discípulo não consiste em carolice nem pieguice. É um berro forte de reconhecimento porque as feridas do Senhor nos curaram. O devoto do Coração de Jesus é um contemplativo.
Assim, curados e alegres, passamos a prestar atenção nas feridas de tantos à nossa volta. Ficamos atentos a todas as chagas da humanidade. Um simples elenco de exemplos: meninos e meninas filhos de pais separados, crianças que sofrem porque não conseguem se sentir em casa na casa do pai com a nova esposa, doentes incuráveis. Gente coberta de feridas. Outros: jovens que reagem brutalmente diante da vida porque seus pais os deixaram de lado porque queriam aproveitar a vida; essas velhas de chinelos de dedos, mascando fumo de rolo, sentadas no chão, no terreiro sem filhos, nem netos; esses homens retos e sinceros que foram despedidos de seus empregos e precisam de uns trocados para pagar a conta da luz. Assistencialismo? Chamem o que quiserem, mas são pessoas feridas que nos chamam, a nós que fomos curados pelas feridas do Mestre.
Bento XVI, o Papa Ratzinger, fala do desprezo pela vida: vida ainda no seio da mulher, vida do velho sem vez, sem voz, que alguns querem que morra o mais rapidamente possível, vida de casamento que parece morto bem antes da morte dos cônjuges. Penso aqui em todo um trabalho de pastoral familiar englobando a vida em todos os seus estágios. Há a vida do feto a ser protegida, mas há a vida viçosa da fé que não pode ser expressa apenas pela missa dominical de obrigação Padres e leigos que contemplam as feridas do Coração de Jesus sabem que muitos cristãos estão doentes, possuídos de uma ferida escondida que se chama mediocridade, religião de fachada. Para junto deles vão os verdadeiros devotos do Coração de Jesus, que não são carolas, sem piegas. Agem com caridade e sentem-se enviados pelo Amor que não é amado.
O Papa fala também das feridas de pessoas que são exploradas. Há muitas chagas. Há essas esposas que não são levadas em conta. Há esses maridos que são vistos apenas como “provedores”. Nunca, uns e outros, tiveram a impressão de que pessoas lhes davam a vida. Há essa exploração sexual de crianças, o uso de jovens pelo tráfico, o uso das pessoas que se traduz pelo pagamento de salários de fome enquanto uns nadam nababescamente em dinheiro que deveria lhe queimar as mãos, outros secam por dentro. Os devotos das Feridas do Senhor protestam contra isso.
O Papa fala ainda fala do drama da solidão e do abandono. Solidão das viúvas idosas, solidão do que vivem crises de fé e momentos em que pesa sobre eles a tentação. Sempre de novo o abandono de crianças: abandonadas devido à ausência física e espiritual dos pais, abandonadas porque os pais não lhes propõem a fé cristã, abandonadas porque embora tenham sido batizados em criança mas que nunca foram evangelizadas pela presença e a palavra dos pais. Essas são dessas pessoas solitárias de que fala o Papa.
Assim, a tomada de consciência do amor de Cristo pelo discípulo que contempla o crucificado cheio de chagas nos impulsiona a deitar azeite nas feridas de todos os que vão tombando pelo caminho. O amor recebido, é retribuído.
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