8 de agosto de 2014
Santa Clara de Assis - “A graça de trabalhar na forma de vida de Santa Clara”
Por Frei João Mannes
No sétimo capítulo da Forma de Vida de Santa Clara discorre-se sobre o modo de trabalhar: “As Irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar trabalhem com fidelidade e devoção” (RSC VII,1), “com as próprias mãos” (RSC VII,4) e num trabalho conveniente “ao bem comum” (RSC VII,1).
Primeiramente Clara refere-se ao trabalho como graça divina. Graça é algo recebido gratuitamente, é dom, é presente. Graça é expressão de benevolência, liberdade e gratuidade. A fonte inesgotável de todas as graças é o próprio Deus que, absolutamente desprendido de si, por pura liberdade e amor, não cessa de criar e de se doar como dom em cada uma de suas criaturas. Porém, Deus mesmo, por pura gratuidade, se doa, por excelência, em Jesus Cristo, à criatura humana. Assim, ter recebido a “graça de trabalhar” significa ter arraigado no seu coração o dom de amar e servir a exemplo de Jesus Cristo que veio para servir e dar a sua vida (cf. Mt 20,28). De modo que, quanto mais o homem se dispõe a servir, tanto mais está na graça de trabalhar.
O termo trabalho vem do substantivo latino labor. Labor ou laborar (trabalhar) indicam uma tarefa árdua, demorada, cheia de exigências por causa de sua importância e preciosidade. E o trabalho mais importante consiste em cada um ter que livre e necessariamente esculpir a forma de sua identidade à semelhança de Deus. De fato, a existência humana, dádiva divina, está em contínua construção. Ninguém nasce pronto. Existir é continuamente ter de se fazer de acordo com as suas escolhas. Nada nos obriga a escolher um caminho ou outro na vida, porém, é graça mui preciosa que se possa construir a própria identidade à semelhança de Deus que não se vangloriou de sua condição divina, mas se fez menor, pequeno, humilde e pobre, estabelecendo conosco um pacto de amor. Esse modo de trabalhar a própria existência repercute em todos os afazeres e dimensões da vida porque todos têm a sua motivação originária no espírito do Senhor e Servo Jesus Cristo.
Nos escritos de Clara e Francisco ocorre algumas vezes a expressão “trabalhar com as próprias mãos”. Essa frase, antes de significar o trabalho manual propriamente dito, indica uma disposição fundamental de vida de ter-se a si mesmo nas “próprias mãos”. Isto é, cada um deve se empenhar para ter o domínio sobre si mesmo e, na posse de si, auto-determinar-se no seu ser e fazer. Se, por exemplo, alguém quer ser virtuoso, deve ele mesmo, voluntariamente, exercitar-se nas virtudes. O “trabalhar com as próprias mãos” indica, portanto, a intransferível responsabilidade de cada indivíduo construir o seu próprio ser e de engajar-se, com fidelidade, unção e devoção (cf. RSC VII,1-2), em todos os trabalhos, sejam manuais ou espirituais.
Por outro lado, a necessidade de “trabalhar com as próprias mãos” refere-se ao trabalho artesanal propriamente dito. O trabalho manual faz parte da opção fundamental de vida de Santa Clara. Mesmo doente, ela não deixou de trabalhar, conforme atesta a seguinte passagem do Processo de Canonização de Santa Clara: “depois que (ela) ficou doente de não poder levantar-se da cama, fazia com que a erguessem para ficar sentada e sustentada com alguns panos por trás das costas e fiava” (PC 1,11). E enquanto fiava, outras Irmãs transformavam os fios em tecido, outras ainda costuravam o tecido e com ele confeccionavam corporais para o sacrifício do altar nas Igrejas das planícies e dos montes de Assis (cf. PC 1,11). Trata-se de um bom exemplo de trabalho realizado em equipe.
No entanto, as Irmãs dedicam-se ao trabalho doméstico, ao trabalho de tecelagem e ao cultivo do campo não só porque o trabalho é um dever inerente à Forma de Vida de Santa Clara, mas também para o sustento da comunidade, ou para a “utilidade comum” (RSC VII, 5). Nesse sentido, prescreve a Regra que a “abadessa ou sua vigária devem indicar em capítulo, diante de todas, o que cada uma deve fazer com as próprias mãos” (RSC VII, 3). Porém, é importante ter sempre presente que na compreensão das Pobres de Assis o sustento da comunidade não decorria da instrumentalização do trabalho, mas da consciência de que o seguimento de Cristo pobre passa pela humilde fadiga do trabalho manual.
Portanto, Clara chama a atenção para a necessidade de trabalhar para “afugentar o ócio, inimigo da alma” (RSC VII,1), e em vista do “bem comum” (RSC VII,1). Isto significa que os trabalhos são fundamentalmente serviços à comunidade e, nessa perspectiva, qualquer retribuição recebida pelo trabalho prestado (pro labore) também devia ser entregue à abadessa ou à sua vigária, que, com o conselho das discretas, a distribuía conforme a necessidade de cada uma (cf. RSC VII, 4-5).
Por fim, ressalta-se a atitude de Francisco em relação ao trabalho. Para ele, ser servo à semelhança de Jesus Cristo, é o trabalho dos trabalhos. E acerca dos trabalhos em geral, Francisco quer firmemente que todos os irmãos trabalhem num ofício honesto e útil à Fraternidade (cf. Test 20). Por isso, exortava: “cuidem todos os irmãos para não vagarem pelo mundo por interesse de algum lucro ignóbil” (RnB VIII, 12).
Ademais, Francisco repugnava os “irmãos moscas”, ou seja, aqueles que ficam saltando de galho em galho, não se engajando para valer em nenhum trabalho, ou trabalhando alheios à Fraternidade, em projetos pessoais. O trabalho do franciscano caracteriza-se pelo espírito do trabalho em equipe e em rede de equipes nas diversas frentes de trabalho: formação, educação, comunicação, missão e santuários. De modo que o frade menor não trabalha isoladamente e em nome pessoal, nem de forma mediana ou pouco profissional, mas trabalha em nome da Fraternidade e no rigor da competência profissional: “os que não sabem trabalhar aprendam” (Test 21).
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