6 de junho de 2014
“Onipotência crucificada”
Meses a fio, nesta rubrica, às primeiras sextas-feiras, refletimos sobre as insondáveis riquezas do Coração do Redentor. Queremos hoje transcrever algumas reflexões de José Antonio Pagola, conhecido teólogo e pastoralista espanhol. Temos diante dos olhos o artigo do autor: “Testigos del misterio de Dios”, publicado na revista Sal Terrae, enero de 2000, p. 27-42.
Bem no centro da fé cristã há uma afirmação capital: Deus é amor (1 João 4,8). A realidade mais profunda do Altíssimo consiste em amar gratuitamente. Deus é Deus amando os homens até o fim. O Crucificado é a revelação suprema do mistério insondável de Deus. Reconhecemos nele o verdadeiro Deus. Nele está a “força e a sabedoria de Deus (1Coríntios 1,24).
Necessário dizer que nunca esteve ausente na reflexão e na vivência religiosa do cristianismo o Deus crucificado. Seu rosto, no entanto, por vezes, se tornou empobrecido e foi sendo substituído pelo Deus impassível e onipotente da filosofia grega. Insistiu-se mais numa concepção filosófica do que no Mistério de um Deus que se revela como Amor que se crucifica pelos homens. Esse olvidar do Deus da cruz está em ligação com o esquecimento da fragilidade, esquecimento do pequeno e do pobre. Para abrir-se ao Mistério do Deus verdadeiro será fundamental prestar atenção naquilo que normalmente não queremos ver: o homem humilhado, desprezado, crucificado.
No imaginário religioso de muitos cristãos continua presente a imagem de um Deus Soberano, Senhor Onipotente, Rei sempiterno que tem suas raízes na filosofia grega e que foi se consolidando durante milênios numa sociedade patriarcal e monárquica, fortemente hierarquizada. Em nossos tempos, esse Deus, Senhor Onipotente, não exerce atração nem enamora. Será que não estamos no momento de nos voltar para o Deus da cruz?
Por outro lado, a queda dos grandes mitos do progresso, da ciência e do desenvolvimento deixaram a razão moderna sem palavras nem consolo diante do crescimento da fome, do genocídio e da deterioração da natureza. A modernidade não consegue silenciar o grito dolorido dos povos crucificados pela miséria, guerras e ódios.
Fazer experiência de Deus, no momento atual, deve nos fazer ouvir com nova profundidade o grito de Jesus: “Meu Deus, meu Deus. Por que me abandonaste?” Aí Deus se revela. Em lugar algum se ouviu de forma tão uníssona o grito do homem e a resposta de Deus.
Precisamos buscar outra imagem de Deus, uma nova imagem. “Não um Deus de onipotência arbitrária e abstrata que podendo nos livrar do mal, não o faz, ou então, o faz somente às vezes, em favor de uns poucos privilegiados, mas um Deus solidário conosco até o sangue de seu Filho: um Deus Anti-mal, como disse admiravelmente Whitehead, não é um soberano altivo e indiferente, mas o Grande companheiro, que sofre conosco e nos compreende” ( A. Torres Queiruga,citado pelo A.).
Deus está em nosso sofrimento. Compartilha esse sofrer. Não estamos sós na insondável provação da existência. A teologia está encarregada de aprofundar o conceito da onipotência de Deus para mostrar que não é uma onipotência mágica indigna de Deus e do homem, mas a Onipotência do Amor infinito que penetra a realidade do nosso mal para partilhar de nosso grito e fazê-lo seu. Esvaziou-se de si para tornar-se servo do homem (Fl 2,6.8). A onipotência de Deus não é para ele, mas para nós. Uma vez que Deus partilha nossa finitude e debilidade, tudo é possível, inclusive ressuscitar da morte ( A. Gesche).
O anúncio de Deus sempre foi feito tendo como pano de fundo a fórmula de Santo Anselmo: Deus é: id quod maius cogitari nequit, quer dizer, um Deus que é sempre maior do que podemos esperar, imaginar, pensar ou compreender. Um autor citado por Pagola inverte a fórmulação: Deus é id quod minus cogitari nequit, quer dizer, um Deus que nos surpreende por seu ocultamento, seu inimaginável abaixamento, sua capacidade de “apequenar-se” que nunca teríamos podido imaginar, seu esvaziamento, sua kénosis, aquele que conosco vive a realidade do mal (claro, menos o pecado). Uma onipotência que dá a vida…
A crise de certos “modelos de Deus”, ou “imagens de Deus” não quer dizer que a fé cristã se torna inviável. Muito vinculada à filosofia grega o cristianismo não deu o melhor de si não podendo comunicar a experiência do Deus Amor. “Vemos hoje emergir uma cultura nova, indiferente ao Deus Onipotente, mas com ouvidos para escutar testemunhas e buscadores de um Deus com rosto renovado: um Deus Amigo e Amante; enamorado até o extremo de cada ser, servidor humilde de suas criaturas; veio até nós não para ser servido, mas para servir; com capacidade infinita de compadecer-se, compreender, acolher a todos; um Deus que não cabe em nenhuma religião ou igreja, porque habita em todo coração humano e acompanha cada ser humano em sua desgraça; um Deus que sofre na carne dos famintos e os miseráveis da terra; um Deus que ama o corpo e a alma, a felicidade e o sexo; um Deus que esta em nós para buscar e salvar o que estropiamos e perdemos; um Deus que desperta nossa responsabilidade e ergue nossa dignidade; um Deus que liberta dos medos e quer, desde agora, a paz e a felicidade para todos; um Deus que não se angustia diante da morte, mas abraça a cada criatura enquanto agoniza livra da morte. Um Deus de quem podemos nos enamorar.
Os devotos do Coração de Jesus se colocam, assim, diante de um Deus que se tornou ternura amorosa e que permitiu que fosse feita uma em seu lado. Nessa fenda, nesse coração se encontra a força e a sabedoria de Deus (cf. 1Corintios 1,24).
Frei Almir Ribeiro Guimarães
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