Éloi Leclerc (*)
“Salve, rainha sabedoria, o Senhor te guarde por tua irmã, a pura simplicidade!”As circunstâncias de minha vida, principalmente a prova dos campos nazistas de Buchenwald e de Dachau, durante a última Guerra Mundial, levaram-me à pergunta sobre as possibilidades de uma verdadeira fraternidade entre as pessoas. Será que somos votados a dilacerar-nos sem fim, da maneira mais trágica? Será que é possível uma comunidade humana sem exclusão, sem tirania e sem desprezo? Não seria isto apenas um sonho? Nas minhas dúvidas, voltei-me para Francisco de Assis que me parecia o protótipo do ser humano fraternal, e cujo carisma foi em seu tempo “converter toda hostilidade em tensão fraterna, dentro de uma unidade de criação” (P. Ricoeur).
Francisco de Assis
Mesmo correndo o risco de repetir-me, gostaria de resumir, da maneira mais límpida, o que me pareceu ser o essencial da sabedoria de Francisco de Assis.
Trata-se na verdade de uma sabedoria e de uma grande sabedoria. Francisco não é antes de tudo uma nova Ordem, nem uma nova doutrina, e muito menos um conjunto de regras de conduta. É uma arte de viver, uma certa presença ao mundo, uma nova qualidade de relação com Deus, com os homens e com toda a criação. É também um saber jovial, o segredo de uma alegria de viver sob o Sol de Deus, no meio de todas as criaturas.
Esta sabedoria me impressionou por duas razões: por sua profundidade e por sua extrema simplicidade. Falando de si mesmo, Voltaire dizia, não sem humor, que ele era “como os pequenos regatos, claros porque pouco profundos”. Não é o caso de Francisco de Assis. Ele é ao mesmo tempo simples e profundo. Sua
grande simplicidade não deve enganar-nos. Não vamos acreditar muito depressa que o compreendemos bem. “Não se compreende bem – dizia ele – senão aquilo que se experimenta por si mesmo”. E a experiência aqui envolve todo o ser. Ela é um crisol. Não se pode compreender a sabedoria de Francisco senão seguindo-o naquele caminho de simplicidade que o levou ao mais alto grau de despojamento.
No século XIII, numa Igreja que se tornara feudal e senhorial, na qual os bispos e abades, à frente de grandes domínios, eram verdadeiros soberanos que exerciam um poder temporal, Francisco de Assis encontrou, com o sopro inspirador da pobreza, o caminho da fraternidade. Renunciando a toda propriedade de bens e a todo poder, rejeitando tudo que podia colocá-lo acima das outras pessoas, ele apareceu como o irmão de todos, o amigo de todos, particularmente dos mais humildes. Inaugurou assim uma nova presença da Igreja no mundo.
A pobreza de Cristo que Francisco tanto amava, ele a escolheu e viveu como uma aproximação fraterna dos humanos, como um verdadeiro caminho de fraternidade com todos, sem exceção.
Este vínculo entre a pobreza e a fraternidade está no centro do ideal evangélico de Francisco e é um primeiro ponto essencial da sabedoria do santo de Assis. A experiência o comprova: a propriedade, a riqueza e o poder são fontes inesgotáveis de conflitos entre os homens. “Se tivéssemos posses – dizia Francisco – para protegê-las precisaríamos de armas?”. O mundo é um campo de luta pela riqueza, pelo poder, pela hegemonia. Os discípulos de Cristo devem evitar aparecer como uma nova espécie de competidores na corrida à riqueza, ao poder, às honras … Devem renunciar a toda posição dominante na sociedade e ir ao encalço dos humanos de mãos vazias, oferecendo-lhes apenas sua amizade. Uma amizade desinteressada, sem inveja e sem desprezo, feita de estima e de confiança. Só revelando esta nova qualidade de relação é que os mensageiros do Evangelho poderão anunciar o Reino de Deus. Pois o Reino é precisamente esta nova qualidade de relação entre os humanos: relação de paz, de justiça e de amor fraterno. Só um coração de pobre, isento de qualquer vontade de posse, é capaz de uma tal relação.
Neste caminho de pobreza e de fraternidade não tardaram a surgir as dificuldades. Francisco encontrou-as no próprio seio de sua Ordem, o que o levou a um despojamento cada vez maior de si mesmo. Foi então que experimentou o que é a “santa e pura simplicidade”.
A simplicidade franciscana não é a espontaneidade tão natural da criança. Ela é fruto de uma maturidade espiritual. Não somos originariamente simples, mas antes duplos, ou múltiplos. Quem não representa um personagem ou até vários ao mesmo tempo? Quem não se disfarça ou mascara? Mais profundamente, qual é a pessoa humana que não quer dirigir por si mesma sua própria vida segundo seu modo de ver, seus projetos, segundo o ideal de perfeição que forjou para si mesma? Ora, enquanto nos obstinamos em querer conduzir nossa vida por nós mesmos, não somos simples. Permanecemos sendo pelo menos duplos. Há Deus e nós. O ser humano não se torna verdadeiramente simples senão quando deixa de debater-se na barra de seu destino e se abandona totalmente a Deus.
A “santa e pura simplicidade” é fruto da disponibilidade interior, do despojamento que deixa inteiramente nas mãos de Deus a iniciativa de conduzir-nos a ele por seus caminhos. “Quando eras jovem – diz Jesus a Pedro – tu te cingias e ias onde querias. Quando envelheceres estenderás as mãos e será outro que te cingirá e te levará aonde não queres” (10 21,18).
Francisco fez esta experiência. Deixou-se despojar de toda vontade própria. Incompreendido, frustrado em seu ideal, teve que continuar apesar de tudo com seus irmãos, em vez de tornar-se inflexível e fechar-se na solidão e na amargura. Colocou acima de tudo a comunhão fraterna. Abriu-se assim a uma qualidade excepcional de relação. Nele, a relação fraterna tornou-se transparente, isenta de todo amor-próprio e de todo ensimesmar-se. Ele próprio tornou-se um claro espelho de Cristo. Podia escrever numa de suas Admoestações: “Aquele que prefere aturar perseguições a querer ficar separado de seus irmãos … ‘dá a sua vida pelos seus irmãos” (51).
Parece-me que é este o segundo ponto essencial da sabedoria do Poverello, onde chegou deixando-se conduzir pelo caminho de pura simplicidade. Não é esta experiência que ele exprime em sua saudação à sabedoria?
Salve, rainha sabedoria,Resta um terceiro ponto importante. Embora bem conhecido, nem sempre foi bem compreendido, em todo caso pouco aprofundado. A fraternidade humana, de inspiração evangélica, se desdobra, em Francisco, numa fraternidade propriamente cósmica: sua fraternidade com os humanos, ele a vive dentro de uma unidade de criação.
o Senhor te guarde por tua santa irmã,
a pura simplicidade!
Elogio das virtudes, 1.
Que Francisco não fraterniza unicamente com seus semelhantes, mas também com as criaturas inferiores que ele considera verdadeiramente irmãs ou irmãos, é um fato. Devota a cada uma delas, sem exceção, uma afeição e um respeito fraternos.
Na maioria das vezes esta fraternidade cósmica de Francisco foi vista como um transbordamento lírico de seu louvor ao Criador. Esta visão está longe de lhe esgotar o sentido, pois não chega ao fundo da questão.
A fraternidade cósmica de Francisco tem sua fonte própria. Está diretamente ligada a seu sentido da criação. E este sentido está incorporado numa experiência íntima. Francisco, diante do Deus Altíssimo, toma consciência de sua condição de criatura e a aceita sem reserva. Só Deus é Deus. Tudo que existe é obra dele. Nós todos somos suas criaturas.
Sem dúvida, entre as criaturas, os humanos têm um destino superior. Criados à imagem de Deus, são chamados, em Cristo, primogênito de toda criatura, a se tornar filhos de Deus, a viver da vida divina. A este título, todo ser humano é verdadeiramente uma história sagrada. Mas nem por isso deixa de ser uma criatura, ligada ao conjunto da criação.
Esta atitude de profunda humildade e de adoração, pela qual Francisco se coloca dentro de uma unidade de criação, fazendo-o atar laços de amizade com todas as criaturas, é de uma extrema importância, pois vem reforçar a fraternidade humana propriamente dita. Esta, com efeito, encontra sua melhor garantia nesta fraternidade cósmica: nesta atitude de respeito e de amor para com todo o conjunto da criação, para com todas as formas da vida, por mais humildes que sejam.
O ser humano que fraterniza com todas as criaturas, comungando com o amor do Criador por sua obra inteira, coloca-se ao abrigo da tentação de dominar seus semelhantes e de violentá-los de alguma forma. Nele as forças da vida se convertem num impulso de simpatia e de amor. Ele mesmo se humaniza humanizando a natureza. Torna-se, à imagem do Criador, um senhor de doçura no próprio seio da criação.
Por outro lado, o ser humano que pretende respeitar seus semelhantes arrogando-se o direito de dominar com selvageria a criação e de explorá-la como bem lhe parece, ainda não emergiu da vida animal, ainda não nasceu para a vida do espírito, e, mais cedo ou mais tarde, suas forças agressivas podem voltar-se contra alguns de seus semelhantes, declarando que eles não são verdadeiramente humanos, passando a tratá-los também como seres inferiores, como objetos, com a mesma selvageria. É a fonte de todos os racismos.
Os dramas que conhecemos e que corremos o risco de ainda conhecer estão relacionados com a perda deste sentido franciscano da criação. O homem moderno se coloca de saída acima da criação. A própria palavra criação foi banida de seu vocabulário. Não conhece mais do que a natureza, isto é, o conjunto de fenômenos que a ciência e a técnica lhe permitem dominar e explorar. Ao mesmo tempo, perdeu o melhor fundamento de uma verdadeira fraternidade humana.
Resta-lhe agora apenas um único baluarte contra uma eventual tirania: a Declaração universal dos direitos humanos. Só podemos aplaudir esta Declaração, pois ela marca um grande progresso na história da humanidade. Mas, é preciso reconhecer que este progresso é antes de tudo de ordem intelectual. Os fatos mostram que sempre é lícito, àqueles que querem dominar seus semelhantes ou desvencilhar-se deles, denunciá-los como seres inferiores, como subumanos.
O respeito pela pessoa humana começa com o respeito pela vida, sob suas mais humildes formas. O ser humano não respeitará por muito tempo a vida de seus semelhantes se não começar a respeitar toda vida; se, ao contrário, erigir-se em senhor absoluto da criação. Cedo ou tarde, sua vontade de poder voltar-se-á contra seu semelhante.
Os direitos humanos, como são definidos na Declaração de 1948, são direitos do homem abstrato. Parecem ignorar a pessoa concreta, profundamente enraizada não só num contexto econômico, social e cultural, mas também na vida do universo.
Querer proteger o ser humano apoiando-se unicamente nesta Declaração é andar de muletas. Nossos pés não tocam mais o solo primitivo: nossas raízes não se afundam mais no mistério da vida. Não comungamos mais com o Amor criador. Nada mais nos sustenta. Tudo se passa na nossa cabeça. Tudo repousa numa certa ideia que fazemos do ser humano. É nossa grandeza, dir-se-á. Sim, mas é também nosso drama. Sentimos isto até demais. Daí nossa angústia. Não recobraremos aquela confiança tão simples na vida a não ser voltando à humildade original fundamental, que nos recoloca dentro de uma unidade de criação: uma unidade em que o mistério da Terra converge para o mistério da estrela.
Se Francisco de Assis não hesita em mergulhar no seio desta unidade, fraternizando com todas as criaturas, é que, de fato, aos olhos dele, toda a criação está com Deus num mistério profundo. Criando o céu e a Terra e tudo que eles contêm, Deus já tinha em vista o Homem-Deus. Tudo foi deliberado para esta comunicação inaudita de Vida em Cristo. O sentido da criação, sua unidade dinâmica têm a ver com este grande desígnio.
Colocando-se dentro desta unidade, Francisco desposa o desígnio criador, participa do seu impulso, concorre para a sua realização. Pois a criação não é algo completamente acabado e cristalizado, que bastaria contemplar. O desígnio criador se constrói ao longo da história dos humanos, em seus esforços para chegar a uma comunidade humana sempre mais fraternal. Esta unidade é uma longa paciência, mas também uma grande esperança.
Resta um longo caminho a percorrer. Por muito tempo ainda os ventos noturnos atormentarão a nossa Terra. Mas, lá longe, sem ruído, os cimos se iluminam: nasce o Sol lá onde está a nossa esperança.
51. Admoestações 3,9.
(*) Éloi Leclerc nasceu em 1921 em Landernau, localidade da Bretanha francesa, de uma família formada por 11 irmãos. Ingressou no Noviciado franciscano de Amiens em 1939, o ano em que se iniciou a segunda Guerra Mundial na Europa. Em 1943, trabalhando com milhares de
jovens franceses na Alemanha, acabou sendo considerado ‘sujeito suspeito’ e foi deportado em 1944 para um campo de concentração em Buchenwald. Com a derrota nazista, regressou à França e entre 1951 e 1983 foi professor de Filosofia e se tornou um grande escritor. Este texto publicado foi extraído do livro
“Nasce o Sol em Assis”, da Editora Vozes.
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