Após a introdução sobre o Ano da Fé e suas perspectivas, damos início às meditações a partir dos documentos conciliares, neste período de um ano, para que com mais clareza e profundidade possamos observar os aspectos essenciais que o Concílio nos propusera e continua a nos propor por meio do Magistério. Se por um lado a Constituição é uma leitura do Mistério da Igreja, peregrina neste mundo e esperançosa dos mistérios celestiais que Nosso Senhor há de dar-lhe como recompensa pelos seus méritos; por outro é uma manifestação da Igreja triunfante, que após peregrinar em meio a tormentos e procelas, faz-se agora partícipe da gloria salvífica do Seu Fundador, Cristo Jesus, Rei e Senhor do Cosmos.
Assim inicia a
Constituição Dogmática Lumen gentium:
“A luz dos povos é Cristo: por isso, este sagrado Concílio, reunido no Espírito Santo, deseja ardentemente iluminar com a Sua luz, que resplandece no rosto da Igreja, todos os homens, anunciando o Evangelho a tcda a criatura (cfr. Mc. 16,15). Mas porque a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano, pretende ela, na sequência dos anteriores Concílios, pôr de manifesto com maior insistência, aos fiéis e a todo o mundo, a sua natureza e missão universal. E as condições do nosso tempo tornam ainda mais urgentes este dever da Igreja, para que deste modo os homens todos, hoje mais estreitamente ligados uns aos outros, pelos diversos laços sociais, técnicos e culturais, alcancem também a plena unidade em Cristo” (nº1).
As condições teológicas que se
seguiram ao Concílio foram mesmo inquietantes para a realidade pastoral e
teológica da Igreja; de fato, muitos não quiseram aceitar o contexto e o
viés teológico proporcionado pelo mesmo, que não interrompia em nada o
anterior, mas era uma continuidade, suscitado pelo Espírito como Dom à
Igreja.
O Bem-aventurado João XXIII no
discurso de abertura do Concílio ressalta o objetivo principal deste
acontecimento: “O que mais importa ao Concílio Ecumênico é o seguinte:
que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de
forma mais eficaz” (Papa João XXIII, Discurso de abertura do Concílio
Vaticano II). Assim, não tende a outra finalidade senão continuar, como
depósito da sã doutrina, a anunciar a Boa Nova como mandara o seu Senhor
e a fazer-se porta-voz do consolo de Cristo nas necessidades hodiernas
que impetram temor e tremor aos homens.
Em primeiro lugar, a
Constituição enfatiza claramente que o Concílio é fruto da ação do Espírito,
não uma ação humana, restrita ao âmbito terreno, mas é dom do alto, é força
propulsora que faz os homens recobrarem o valor da misericórdia de Deus e a
natureza missionária, pela qual a Igreja foi constituída e que era o tema
central daquele momento de graça.
Uma primeira realidade que encontramos
logo de início, é a Igreja anunciadora, missionária, que adentra povos e culturas
para lhes indicar o kerigma, a
novidade do Evangelho. Para anunciar esta novidade, antes, é preciso que ela
mesma resplandeça o Cristo, afinal ninguém pode dar aquilo que ainda não
possui. Anunciar o Senhor, e anuncia-lo com alegria sempre nova: eis o ideal
cristão! O cristão não pode se tornar suscetível às alegrias e tristezas do
mundo, mas, se firmado na verdade, sua alegria é inabalável, sua coragem é
imutável, sua determinação é inatingível, sua vida torna-se assim testemunho
autêntico do projeto do Reino. E iremos encontrá-la sobretudo na expressiva
riqueza dos documentos conciliares, que chamam os fiéis não a uma fé fechada,
restrita a seus ideais, uma fé triste pelas dificuldades que acarretam o ser
cristão; é sim uma conclamação a alegria de Cristo, a mesma alegria que invadiu
as mulheres quando, ao contemplarem o Ressuscitado, foram anunciá-lo aos
apóstolos. Naquela madrugada, tomadas pelo medo mas também pela alegria, as
mulheres foram pressurosas aos apóstolos anunciar aquilo que o anjo mandara: “Não
vos assusteis! Procurais Jesus, o nazareno, aquele que foi crucificado? Ele
ressuscitou! Não está aqui! Vede o lugar onde o puseram! Mas ide, dizei a seus
discípulos e a Pedro: ‘Ele vai à vossa frente para a Galileia, Lá o vereis,
como ele vos disse!’” (Mc 16,6b-7).
E
precisamente aqui reside o foco primeiro do Concílio: dar um novo caráter
pastoral à Igreja. Não visava condenar heresias ou proclamar dogmas, mas
reavaliar, fomentar, ilustrar o novo cenário que se despontava e, nesta
perspectiva, aggiornar (atualizar) os
ensinamentos eclesiásticos mostrando ao mundo o caráter sempre atual do
Evangelho. Ainda nesse aspecto o Papa João XXIII afirmara no discurso de
abertura: “Uma coisa é a substância do "depositum fidei", isto é, as verdades
contidas na Doutrina da Igreja, e outra é a formulação com que são enunciadas,
conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. Será preciso
atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com
paciência, na sua elaboração; e será necessário usar a maneira de apresentar as
coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente
pastoral”.
Um segundo aspecto é a
manifestação da Igreja como Sacramento, emanada do lado aberto de Cristo,
representada pelo sangue e pela água que jorraram do seu peito. Da Cruz brota
para o mundo a Igreja, fincada no coração do Seu Senhor, ostentada pelo lenho
da salvação. E por consequência desta ligação, mesmo com as adversidades
constantes, com o cinismo religioso da parte de alguns, com o relativismo, com
a descrença, Ela está indissoluvelmente estreitada ao lado de Cristo; desta
forma, como nos diz o profeta, ela é receptáculo, beneficiada, por aquelas
palavras que nos fazem atentar ao zelo pertinente que os cristãos tiveram nos
séculos e que fizeram edificar-se na história: “Haurietis aquas in gaudium... – Haurireis águas com gáudio das
fontes do Salvador” (Is 12,3).
O primeiro capítulo,
portanto, está dedicado ao Mistério da Igreja e a sua história, desde a
prefiguração do Antigo Testamento até a sua presença no contexto
histórico-salvífico da humanidade, o qual continuaremos a ver, juntamente com
outros documentos, no decorrer deste Ano da Fé.
Na Audiência Geral
da Quarta-feira, 14 de Novembro, dando continuidade às suas meditações sobre
o Ano da Fé, o Santo Padre Bento XVI, afirmou: ".
Eis aqui o fundamento
primeiro: amor! Uma palavra tão desgastada, tanto etimologicamente, quanto
sentimentalmente. Transcorridos cinco decênios do Concílio faço insurgir um
questionamento: temos sido a religião do amor e do perdão que Cristo tanto
anunciou? Temos cumprido a primeira missão do ser cristão que reside
convictamente no amor? Questionamentos pertinentes à nossa realidade que
convidam-nos a realçarmos o papel primário do amor no âmbito cristão.
Não desejo fazer uma
meditação etimológica, teológica ou filosófica do amor, mas levar a uma
realidade sobrepujante: a sua vivência. A realidade do amor é o fundamento do
projeto salvífico de Cristo. Deus é o Deus da justiça, do perdão, da
misericórdia, mas o é também – e sobretudo! – do amor. O Cristianismo, se
esvaziado deste, perde todo o seu sentido, todo o seu significado maior,
torna-se apenas um código de moral ou ética, rompe o laço trinitário, desvanece
do seu caráter salvífico. Por isso, a Lumen gentium condiciona este caráter a estar arraigada em Cristo (“a Igreja, em Cristo...”), verdadeiro e único Salvador.
E se o amor é plano de
fundo da comunhão entre os homens de boa vontade, é propício que também, atado
a este, encontre-se outra definição eclesiológica conciliar: “instrumento da
íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”. De fato, como por
nós é sabido, todo instrumento é servido para auxiliar em algo, a alguém. A
Igreja, usada pelo próprio Cristo como seu Corpo Místico, ou segundo a
expressão paulina, “esposa de Cristo” (Ef 5,22-32), não é dona dos mistérios
que lhe foram confiados, mas é uma administradora fiel, prudente e materna, que
sapientemente conduz e produz frutos abundantes. Está em todos os lugares e é
porta voz de todos os povos.
Parece-nos que, muitas vezes, temos nos invalidado desta missão de promovermos a unidade; ao
contrário, percebemos também que em diversos atos temos sido promotores de discórdias
e de lutas, seja com nossos irmãos crentes ou com os que professam outra fé.
Cabe a nós fazermos valer este título de promotora da unidade com o gênero
humano. Devemos dialogar em comum fitando-nos no mesmo ponto que é Cristo
Jesus. Isso não significa aceitarmos os erros teológicos de outrem, mas
dialogarmos pela passividade, pelo respeito e pela liberdade, reconhecendo a
autonomia religiosa de cada um e fazendo com que o primeiro direito e dom de
Deus, a vida, seja defendido em todos os lugares.
A Igreja também é,
antes de tudo, um caráter mistagógico, outrora oculto em Deus, hoje revelado e
em parte realizado; é manifestação de Deus aos homens, graça doadora do Pai
para que, reconstituindo os laços humanos divididos pelo pecado, pudessem
reencontrar um caminho, um farol, para seguirem adiante e não desanimarem no
curso histórico.
Sendo mistério de Deus a definimos,
por conseguinte, como "mistério humano", ou ainda melhor diríamos: mistério aos
homens. Não obstante ser
genuinamente e basicamente projeto divino, ela não poderia desenvolver
outro
curso senão ao lado da história humana. É sabido que dentre as
constituições
ontológicas do homem, temos algo que lhe é inerente e, portanto,
imutável: a
sua passividade a errar. Deus, em sua absoluta grandeza, nunca está
sujeito ao erro, uma vez que seria contrário à Sua natureza, e assim
sendo, isto nos levaria a questionar a veracidade de Sua divindade; no
entanto, sendo
Deus o supremo arquiteto da graça e baluarte da salvação, doa aos homens a
Igreja como propiciadora de uma feliz reconciliação, reatando os laços que,
outrora, foram cortados pelo pecado.
Reafirmando a unicidade
do homem com Deus e a impossibilidade de uma existência sadia longe d'Ele, o
inimigo perversor semeia a intriga e a discórdia, para que seja a Igreja
atacada de forma virulenta e possa desanimar de sua missão profética. Como bem
alertara o Venerável Servo de Deus, Papa Pio XII, de imperecível memória, e com
o qual findo esta primeira meditação:
“Certamente, o ódio contra Deus e contra os que legitimamente lhe fazem as vezes é o maior crime que o homem pode cometer, criado como foi este à imagem e semelhança de Deus, destinado a gozar da sua amizade perfeita e eterna no céu; visto que pelo ódio a Deus o homem se afasta o mais possível do sumo Bem, sente-se impelido a repelir de si e do seu próximo tudo quanto vem de Deus, tudo quanto une com Deus, tudo quanto conduz a gozar de Deus, ou seja a verdade, a paz e a justiça” (Cart. Enc. Haurietis Aquas, 68). T
Por Ian Farias. http://www.reflexoesfranciscanas.com.br/2012/11/meditacoes-sobre-o-ano-da-fe-lumen.html
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