18 de novembro de 2012

O protagonismo dos Franciscanos na Evangelização no Brasil antes dos jesuítas: a experiência de Laguna

Por Frei Sandro Roberto da Costa, ofm
1. Introdução
Evangelização franciscana no Brasil: uma história ainda a ser contada
Quando o assunto é religiosos no Brasil colônia, os primeiros a serem lembrados são os jesuítas. Tal fato se deve, em grande parte, ao desconhecimento dos fatos históricos envolvendo o Brasil neste período. Os manuais e livros didáticos que tratam do tema repetem, com freqüência, um estereótipo, silenciando sobre o protagonismo dos franciscanos e outros religiosos, exaltando a atuação dos jesuítas. Os padres de Santo Inácio de fato marcaram a história do Brasil, não apenas na área religiosa, mas também  política, econômica, e, principalmente, no campo educacional, nos mais de duzentos anos de presença no país, até a expulsão pelo Marquês de Pombal, em 1759. Os jesuítas, pela potência que eram, se impuseram enquanto presença nos maiores centros, com homens preparados intelectual e espiritualmente, enviando para o Brasil seus melhores quadros. Sua expulsão abre uma imensa lacuna no campo da educação, na assistência religiosa, no trabalho com os índios, lacuna que nenhuma instituição religiosa presente no Brasil estava em condições de preencher.

Apesar da importância da atuação dos jesuítas, não se pode negar o papel de protagonistas desempenhado também
pelos franciscanos na história da evangelização do Brasil. Basta recordar o fato histórico de que os franciscanos foram os primeiros religiosos europeus a colocar os pés em terras brasileiras. A primeira missa celebrada no Brasil foi oficiada por um franciscano, frei Henrique de Coimbra, que veio na esquadra de Pedro Álvares Cabral, aportando nas “Terras de Santa Cruz”, em abril de 1500. Os primeiros jesuítas chegariam quase cinqüenta anos depois.
Embora os jesuítas tenham sido os primeiros religiosos oficialmente enviados para trabalhar no Brasil, em 1549, os franciscanos estão presentes e atuantes já bem antes disso, numa presença extra-oficial, esporádica e esparsa, mas não menos rica, evangélica e frutuosa. Temos relatos de vários frades presentes no litoral, de 1503 até 1584. Tendo escapado de algum naufrágio, ou numa escala da viagem, dirigindo-se para a região do Rio da Prata ou para a Ásia, os religiosos franciscanos aproveitavam para evangelizar os indígenas e colonos, nas aldeias e vilas por onde passavam. O primeiro grupo de franciscanos oficialmente enviados pela coroa portuguesa vai desembarcar no Brasil em 1584.
Os missionários jesuítas tinham por obrigação escrever as crônicas e relatos de suas atividades na missão, que eram periodicamente, enviados a Portugal e Roma. Por isso estamos relativamente bem informados sobre sua atuação nos 210 anos de presença na colônia portuguesa. Os franciscanos, ao contrário, não tinham o hábito de escrever sobre suas atividades, ao menos no Brasil.  O raro material que se conserva nos arquivos foram produzidos pelas autoridades, como provinciais, guardiães e definidores. Mesmo assim, alguma coisa se conserva, principalmente nos arquivos europeus. Como verdadeiras jóias preciosas, estes relatos transmitem para a posteridade pequenos restos de memória da história da evangelização franciscana no Brasil. Através deles é possível, mesmo que fragmentariamente, reconstituir parte desta história.

2. A carta de frei Bernardo de Armenta
Nesta exposição vamos estudar um documento que nos relata um momento importante da história da evangelização do Brasil. Através dele poderemos conhecer o espírito que animava os missionários franciscanos que se dirigiam para aquelas terras há pouco descobertas. Ao mesmo tempo, a análise do documento pode nos ajudar a conhecer o método desenvolvido por esses missionários, seus projetos, suas opções, seus sonhos. O documento em questão já foi objeto de análise de alguns estudiosos, nos seus elementos filológicos, históricos, cronológicos, etc. Não vou entrar em “questões disputadas” específicas das ciências históricas. Escolhi este documento como objeto de estudo porque acredito tratar-se de um testemunho histórico coerente, fidedigno e autorizado de um modo específico de evangelizar, concretizado no século XVI pelos franciscanos no Brasil. Acredito que a análise deste documento e do contexto onde foi gerado, podem iluminar o presente de nossa atuação missionária e evangelizadora.
Para situar este documento no seu contexto histórico, político, religioso, inicio com uma breve introdução sobre a realidade do Brasil, nos primeiros 50 anos da chegada dos portugueses, passando a seguir à análise do documento.

2.1 Os primeiros anos do Brasil português 
A chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, e os relatos que os pioneiros fizeram sobre as novas terras descobertas, não despertaram maiores interesses de Portugal. A principal preocupação era saber se nas terras descobertas existia ouro. Como as primeiras explorações resultaram negativas, não houve nenhuma preocupação em ocupar as terras. Apenas aventureiros, piratas, náufragos, traficantes de índios, vez por outra aportavam nas costas do Brasil. Foram fundadas algumas “feitorias”, postos em lugares estratégicos, cujo único comércio consistia na exploração das riquezas naturais, peles de animais, e principalmente o pau de tinta “vermelha como brasa”, denominado por isso pau-brasil. Também eram mandados ao Brasil os condenados pela justiça, “degredados” que eram deixados na praia para serem devorados pelos índios ou morrerem à mingua. Somente a partir de 1520 Portugal começa a se interessar pelas terras, na esperança de conseguir meios para diminuir suas dificuldades financeiras. Em 1526 alguns navios franceses são afundados no litoral da Bahia. Piratas e corsários ingleses, franceses e holandeses infestam as costas do país. Portugal decide então ocupa-lo mais sistematicamente. Em 1532 é fundada a primeira cidade, S. Vicente, no litoral sul, de onde saíram as expedições que, em 1551, unindo índios, colonos e jesuítas, iriam fundar a cidade de São Paulo.

2.2 O documento
A primeira experiência mais organizada de evangelização franciscana de que temos notícia no Brasil deu-se entre 1538 e 1548, no litoral de Santa Catarina, na localidade denominada Laguna (Mbiaça), entre os índios carijós.
Em 1537 zarpava da Espanha em direção ao Paraguai a frota de Alonso Cabrera. Cinco frades franciscanos faziam parte da expedição: frei Bernardo de Armenta (de Córdoba, Espanha), superior do grupo, frei Alonso Lebrón (das Ilhas Canárias) e outros três frades dos quais não conhecemos os nomes. A expedição, após várias tentativas, não conseguindo entrar pelo Rio da Prata, foi parar nas costas do litoral catarinense, “ao porto ou rio de São Francisco, anteriormente chamado de D. Rodrigo”, na atual cidade de Laguna, no Estado de Santa Catarina.(1) Alguns meses depois da chegada, a 1o. de maio de 1538, o chefe da missão, frei Bernardo de Armenta, escrevia a João Bernal Dias de Lugo, do Conselho das Índias Espanholas, descrevendo os fatos que os levaram até ali, e relatando o trabalho missionário iniciado. Uma cópia da carta foi enviada a Sevilha. Dali seguiu ao México, onde frei Toribio Motolinia fez uma cópia, e enviou o original de volta à Espanha. Frei Jerônimo de Mendieta a incluiu no Livro IV da sua “História Eclesiástica Indiana”.(2)
Frei Bernardo escreve entusiasmado com o sucesso da missão improvisada. Esta fora obra da providência. Um índio de nome Etiguara, uns quatro anos antes profetizara a vinda de verdadeiros cristãos, “irmãos dos discípulos do Apóstolo São Tomé, e haveriam de batizar a todos”. Frei Bernardo, a quem os índios começavam a chamar de “Payçumé” (São Tomé), escreve pedindo também mais frades para trabalhar com os índios, pois previa que teriam muitos frutos. O frade diz que deu à sua “Província” o nome de “Província de Jesus”.
Em julho de 1538 três dos cinco frades seguem para Buenos Aires com Alonso Cabrera. Fr. Bernardo e frei Alonso Lebrón se recusam a acompanhá-lo. Em Laguna os dois frades fundam um “recolhimento” para as mulheres e outro para os homens, onde é ensinada a doutrina cristã, ao mesmo tempo em que percorrem as aldeias vizinhas.
Em resposta à carta do frade, o rei da Espanha escrevia em 8 de novembro de 1539 ao Ministro Provincial da Província da Andaluzia, mandando que fossem enviados, “para o Rio da Prata seis religiosos seus, a fim de se associarem a frei Bernardo de Armenta, vigário provincial, que reside naquela província da Prata”. A nau foi enviada, chefiada por Alvar Nuñes Cabeza de Vaca, um dos mais ilustres exploradores daqueles tempos, mas não trouxe nenhum frade, a não ser seis ou nove clérigos.(3)

3. Os frades e Cabeza de Vaca
Quando os frades chegaram ao litoral catarinense, Alonso Cabrera, capitão da expedição que os levou, quis obrigá-los a seguir com ele para o interior do território espanhol (Buenos Aires). Frei Bernardo se negou, argumentando que “… não a tendes sobre mim, nem sobre os frades que vão comigo, (mando e jurisdição), pois nem a Sua Majestade nos enviou nem fomos socorridos, na sede, com água da fazenda do Rei, pois os trouxe com o nosso próprio trabalho e suor. Ninguém pode me impedir de pôr a bandeira de nossa santa fé onde Deus manda [...]”.(4)
Quando Cabeça de Vaca chegou em Santa Catarina, em março de 1541, faziam aproximadamente três anos que os frades estavam trabalhando entre os índios. O conquistador exigiu que os frades o acompanhassem na expedição até o Paraguai. A alegação é de que, pela autoridade que os frades gozavam  junto aos  índios, eram indispensáveis para a jornada. Frei Bernardo de Armenta de fato era muito respeitado pelos nativos.(5)Praticamente obrigados pelo conquistador, os dois partem à frente de uma centena de índios, recebendo dele a promessa de que os deixaria voltar assim que chegassem ao destino.(6)
Discussões e desavenças entre Cabeça de Vaca e os frades marcam a viagem. O principal motivo era o tratamento dispensado pelos espanhóis aos índios. Frades e índios, inconformados com a situação, tentam fugir ainda durante a viagem, mas, encontrados, são obrigados a se juntar à expedição, que segue até Assunção. Também lá frei Bernardo e frei Alonso iniciam um trabalho de catequese contra a vontade de Cabeça de Vaca, pois segundo ele “onde não há ouro nem prata, não há necessidade de batismo”. Em  Assunção, fr. Bernardo funda um “recolhimento”, espécie de “casa de doutrina”, onde recolhe umas trinta ou quarenta moças, indígenas, filhas de carijós, para preservá-las da cobiça dos soldados. Cabeça de Vaca e seus soldados protestaram duramente, e fizeram sérias acusações ao comportamento dos frades – entre outras a de que “guardariam encerradas em sua casa mais de trinta índias dos doze aos vinte anos de idade”.
Em fevereiro de 1543 os dois frades tentam fugir de Assunção, desta vez levando cartas dos adversários de Cabeça de Vaca, denunciando-o às autoridades espanholas. Acabam sendo presos, junto com Alonso Cabrera, considerado chefe da conspiração. Finalmente, em 1544, por causa dos contínuos desmandos, Cabeça de Vaca é preso e destituído de suas funções. Provavelmente frei Bernardo tenha tido um papel importante nas acusações contra o explorador, pois era considerado seu principal desafeto. Os frades puderam voltar a Santa Catarina, onde chegaram em 1545. Várias índias do “recolhimento” de Assunção os seguiram.

4. Fim da Missão de Mbiaça
Frei Bernardo faleceu entre 1546 e 1547. Frei Alonso continuou na missão até 1548, quando salteadores portugueses, em dois navios liderados por Pascoal Fernandes, de São Vicente, e Martin Vaz, de Ilhéus, invadiram a missão, prenderam e escravizaram os índios, e levaram prisioneiros os espanhóis e o frade. Quem nos informa sobre todo o acontecido é o jesuíta Manuel da Nóbrega, que escreveu dois anos após os fatos. Segundo ele, os salteadores, chegando ao litoral catarinense, convidaram índios e espanhóis para uma festa no navio, onde prenderam a todos, inclusive frei Alonso. Os índios que ficaram na praia foram ao navio, implorando que soltassem o frade, e levassem os índios presos. Como os portugueses se negassem, os índios disseram que também eles queriam ir com o frade. Assim todos foram aprisionados. Os índios foram desembarcados em São Vicente e Ilhéus, onde foram vendidos.(7) Logo se levantou o protesto dos jesuítas e do próprio frei Alonso Lebrón, que se apresentou diante das autoridades portuguesas defendendo-os, pois não poderiam ser escravizados, já que eram cristãos, e não foram aprisionados em “guerra justa” (não estavam combatendo portugueses). Depois de muito insistir junto ao governador, Nóbrega conseguiu que alguns índios fossem libertados, e, guiados pelo jesuíta irmão Leonardo Nunes, voltassem à sua aldeia, em Laguna. Os protestos dos colonos que tinham comprado os índios dificultaram a empreitada. Finalmente, o Padre José de Anchieta relata que uma doença súbita “matou quase todos”. Frei Alonso Lebrón, vendo que pouco conseguia junto às autoridades no Brasil, viajou para a Espanha, para apresentar suas queixas à Coroa. Acabou desaparecendo, segundo alguns cronistas, prisioneiro nas mãos de piratas franceses. Os carijós catequizados que permaneceram em Laguna continuaram sofrendo os ataques dos caçadores de escravos, e, aos poucos, foram sendo assimilados pela cultura portuguesa, que avançava rumo à costa sul do Brasil.

5. Memória da atuação dos frades franciscanos na Igreja do Brasil
A atuação dos dois frades não ficou legada ao esquecimento. Além da carta preservada na obra do grande Mendieta, padres jesuítas portugueses, trabalhando no Brasil, cuidaram de preservar para a posteridade o trabalho quase anônimo destes filhos de São Francisco em terras tupiniquins. O já citado Pe. Manoel da Nóbrega, em carta de agosto de 1549, referindo-se aos índios carijós, faz menção ao trabalho dos frades: “Este é um gentio melhor do que nenhum desta costa, os quais foram, não há muitos anos, dois frades castelhanos ensinar e tomaram tão bem sua doutrina, que têm já casas de recolhimento para mulheres, como de freiras, e outras de homens, como de frades. E isto durou muito tempo, até que o diabo levou lá uma nau de salteadores e cativaram muitos deles” (8) O Pe. Antônio Rodrigues faz uma referência à aldeia, que os frades “chamaram de Província de Jesus, onde fizeram admirável fruto”. O beato José de Anchieta, referindo-se aos carijós aprisionados ilegalmente em São Vicente, diz que eles são “propensos às coisas divinas”.(9)

6. Comentários de alguns aspectos da carta relacionados à evangelização
À primeira vista o trabalho dos frades consiste na doutrina e no batismo dos índios. Uma análise mais atenta do documento, porém, nos permite perceber, quase nas entrelinhas, uma realidade mais complexa. Além do mais, para uma melhor compreensão desta realidade recorremos a outros testemunhos contemporâneos à atuação dos frades em Santa Catarina, que nos fornecem preciosas informações sobre o modo de pensar dos frades, seu plano de atuação e o modo franciscano de evangelizar.

6.1 Preocupação com o preparo (qualidade) dos evangelizadores
Frei Bernardo, diante do vasto campo que se abre para o anúncio da boa-nova,  vendo a boa índole dos indígenas, sua docilidade em aceitar o batismo, percebe a urgente necessidade de mais frades para colaborar na missão. Na carta ele deixa bem claro a preocupação de que os frades a serem enviados sejam da melhor qualidade: “…que V. Mrd. tome esta empresa por suya, y hable a S. M. y a esos señores del Consejo, para que favorezcan tan santa obra, y el favor ha de ser que nos envíen una docena de frailes de nuestra orden de S. Francisco, que sean escogidos,…”, e termina: “que envíen frailes que sean como apóstoles…”. O modelo que inspira o frade no trabalho evangelizador é a experiência da Igreja primitiva. O  número de frades pedidos, na nossa opinião, não é aleatório nem casual: ele pede que sejam  escolhidos, e que sejam 12. E diz explícitamente: “que sejam como os apóstolos”. Ora, qual era o modo de vida dos apóstolos? Aqui podemos ver uma relação com a experiência evangelizadora dos franciscanos no México: o envio dos primeiros frades àquela região recém conquistada (os “12 apóstolos”), e a tentativa da conquista pacífica, como aparece na “Instrução do Ministro Geral Francisco de los Angeles Quiñones a Martín de Valência, integrante e custódio dos Doze Franciscanos enviados para evangelizar os habitantes de Tenochtitlan [México] conquistado”, de 4 de outubro de 1523. Além disso, frei Bernardo certamente tinha conhecimento de experiências similares que haviam sido tentadas em outras partes da América, não só no México, mas também em Cumaná (1514), nas costas da atual Venezuela.(10) A experiência havia mostrado aos missionários que onde o Evangelho chegava junto com a espada, com a sede do ouro e a ambição do lucro, o anúncio não atingia seus objetivos.
Frei Bernardo se refere aos “maus cristãos”: “la mala vida y mal ejemplo de los que acá viniesen por conquistadores, les harían menospreciar nuestra fe”. A conquista verdadeira é a “espiritual”, aquela que se dá através do convívio, da partilha de vida, da presença solidária e fraterna. Pregação, catequese e anúncio, seriam muito mais eficientes se ancorados no exemplo de vida dos religiosos. E esse foi o método assumido pelos frades entre os índios carijós. Para pregar, anunciar e convencer não basta o preparo intelectual, mas são necessárias  pessoas que se destaquem pelo exemplo de vida. Pessoas cuja vida seja reflexo e espelho das verdades que estão pregando. Tudo isso pode ser resumido na expressão “testemunho”. Somente frades que “fossem como “apóstolos” entrariam nesta categoria. Ora, o modelo de pregação dos apóstolos é o da itinerância, do serviço desinteressado pelo Reino, do anúncio da misericórdia e do amor de Deus, capazes de ir até as últimas consequências em defesa do rebanho, como Jesus Cristo. Esse foi o modelo asumido por Francisco de Assis e seus seguidores. Os frades, pela situação em que se encontravam, viviam, necessariamente a itinerância. Sem dúvida a pobreza e a austeridade de vida eram realidades onipresentes na vida destes missionários. A preocupação dos dois frades em ter bons evangelizadores é uma das caracteristicas deste período de evangelização na América. Com raras exceções, os primeiros a serem mandados eram pessoas muito bem preparadas, moral, espiritual e intelectualmente.

6.2 Preocupação com o “social”
Hoje, quando falamos de evangelização, não podemos desvinculá-la de um envolvimento mais amplo com a realidade social. O anúncio, se é eficaz, transforma toda a realidade. Na carta frei Bernardo demonstra uma clara preocupação que poderíamos denominar de “civilizatória”. A preocupação do frade em conseguir bons evangelizadores é seguida da preocupação em conseguir bons trabalhadores e profissionais, bem como ter instrumentos necessários para a transformação da realidade. O anúncio da Boa Nova é concomitante à preocupação com a transformação nas condições materiais dos indígenas: “…que S. M. envíe un factor suyo que traiga labradores, que no son menester conquistadores… Vengan labradores y traigan  mucho hierro, y algún lienzo y ropa, y ganado de vacas y ovejas burdas, y cañas de azúcar, y maestros para hacer ingenios de azúcar, y algodón y trigo y cebada, y toda manera de pepitas, que se darán bien, y sarmientos, que se harán muy grandes viñas…”. Os franciscanos em toda a América Latina, na sua atuação missionária, por onde passaram deixaram sua marca, não só no anúncio e pregação, mas através de uma preocupação com a qualidade de vida do povo. No Brasil muitos fundaram cidades, construíram hospitais e escolas, ensinaram o povo a cultivar a terra. Pelo que transparece na carta de frei Bernardo, os frades estavam preocupados com uma atuação integral: salvar a alma, cuidar do espírito, mas também cuidar do corpo, da vida neste mundo. A preocupação não é apenas religiosa: é civilizatória, é “social”, como diríamos hoje. Se o pedido de frei Bernardo fosse atendido teria se concretizado no sul do Brasil, guardadas as devidas proporções, a experiência que depois foi realizada por frei Luis de Bolãnos, no Paraguai, a partir de 1580.

6.3 Denúncia e atuação profética
A evangelização, quando assumida por amor ao Reino e ao próximo, necessariamente assume contornos de denúncia social. Frei Bernardo não tem receio de denunciar os pecados do sistema colonizador e da conquista pelas armas. Ele mesmo afirma que “no son menester conquistadores… Y crea V. Mrd. que la mala vida y mal ejemplo de los que acá viniesen por conquistadores, les harían menospreciar nuestra fe. Porque viendo que yo les hago guardar la ley de Dios a la letra, y la guardan con tanta voluntad, si viesen lo contrario en los que acá viniesen, dirían que éramos burladores, pues que a ellos les mandábamos que guardasen la ley de Dios, y los cristianos viejos la quebrantaban”. A história da evangelização na América Latina está cheia de exemplos deste aberto conflito entre os projetos de evangelização e o projeto colonizador.
Esta realidade vai se tornar crítica com a chegada de Cabeça de Vaca. Este trouxe, na sua expedição, 400 soldados “bien aderezados”, isto é, preparados para o combate, para a guerra. Os soldados chegam armados com arcabuzes (260 arcabuzeiros), lanças, bestas, espadas, escudos, além das armaduras e dos cavalos, em número de trinta. Podemos imaginar a reação dos indígenas ao ver todo esse aparato chegando em suas terras. É sem dúvida uma demonstração de força, de poder, e incute temor.
A atuação dos dois frades vai em sentido oposto à atuação de Cabeça de Vaca e dos soldados. Além da demonstração de força bruta, sabemos, através de outros relatos o quanto era comum os soldados abusarem das índias, mesmo porque nas campanhas de conquista não participavam mulheres européias. A situação se mostrava mais crítica porque, enquanto os frades buscavam educar os índios dentro dos parâmetros da moral sexual cristã, a vida dos soldados e colonos, em geral, ia em sentido oposto a estes ensinamentos.
Frei Bernardo, numa outra carta dirigida às autoridades espanholas vai denunciar a prática de escravizar índios e índias. Por isso a saída encontrada pelos missionários, a criação dos “recolhimentos”, em Santa Catarina e em Assunção, é uma atuação clara de defesa do índio, contra os interesses dos conquistadores. Este viam nos índios pessoas a serem exploradas, subjugadas, principalmente as mulheres. Segundo o cronista Juan de Araoz, no auge da desavença de Cabeça de Vaca com os frades, este vai exigir deles que “não se carregassem de tantas mulheres”.(11)Outro cronista, Pedro Fuentes, escrevendo sobre os vícios dos habitantes de Assunção, exatamente à época de Cabeça de Vaca, diz que “há uns que têm dez índias, outros, 30, e alguns, 50, e todos as têm como mulheres…”.(12) Na sociedade hispano-guarani, o que valiam eram “as mulheres, o ferro e as miçangas. Com as índias – quanto mais, melhor -, o sustento estava garantido, pois eram elas as que plantavam, processavam os alimentos e realizavam quase todas as tarefas necessárias para sobreviver naquela terra bruta”.(13) Entende-se a partir deste comentário o cuidado dos frades em proteger as índias em “recolhimentos”, e o motivo de serem eles objeto da ira dos soldados e colonos.
A tentativa de fuga dos dois frades e dos índios, mostra um esforço de resistência aos planos do conquistador. O fato de alguns historiadores verem nos dois frades os “principais opositores de Cabeça de Vaca” (Van der Vat) reforça sua atuação de resistência. A resistência, como vimos, continua mesmo depois da destruição da missão, quando frei Alonso Lebrón busca de todos os modos denunciar os crimes dos portugueses diante das autoridades. Também neste particular os frades de Laguna estão inseridos na tradição da Ordem, de assumir, com todos os meios a seu dispor, a defesa dos índios contra as injustiças. Não podemos citá-los aqui, mas recordamos os inúmeros casos de frades, em toda a América, que se envolveram de corpo e alma nas polêmicas do período colonial, denunciando as realidades iníquas que agrediam a dignidade do índio.

6.4 Missão como colocar-se em relação
Na carta de frei Bernardo transparece uma pura e quase ingênua confiança no trabalho de evangelização. Seu otimismo e entusiasmo dão provas de como o missionário estava convencido do trabalho a ser realizado. Este ardor missionário nasce primeiro de uma vivência do Evangelho. O testemunho de vida é a primeira forma de anúncio. Pelos termos da carta, se percebe que o coração de frei Bernardo ardia pelo amor das almas a serem salvas. “Y con estos indios se ha de hacer muy mejor que con otros de otras partes, pues ellos con tanta voluntad se subjetan al yugo de nuestra santa fe católica… Y confío en Nuestro Señor que cuando ésta llegue allí, tendremos más de ochenta leguas convertidas a nuestra santa fe. Así que, no deje V. Mrd. y esos señores que se pierda tanto bien, porque no se lo demande Dios el día del Juicio, si no socorriesen a tan santa obra…. Pues tal tierra como ésta, no es razón de la dejar, demás de lo principal que hay en ella, que son muchas ánimas.”
A atuação franciscana em Laguna foi, antes de tudo, de “presença”. Foi uma presença silenciosa, efêmera, que não deixou grandes escritos, crônicas ou relatos, mas que se fixou no coração dos habitantes. Recordamos que a carta ao Conselheiro foi escrita apenas alguns meses após a chegada à localidade. Mesmo assim a missiva exala uma simpatia pela cultura indígena e um grande otimismo em relação à missão: “Y lo que más es de alabar a Nuestro Señor, que los más viejos (que hay hombres de cien años) vienen con más fervor. Y no sólo esto, mas ellos mismos predican públicamente la fe católica. Son tan grandes maravillas las que Nuestro Señor obra en ellos, que no las sabría decir, ni bastaría papel para las escrebir….”.
Além do otimismo, o religioso não deixa de ressaltar os aspectos positivos daquela cultura: a riqueza da terra, (“que no tiene que ver Santo Domingo con la bondad de esta tierra”), a variedade de plantas, frutas e animais (“…donde hallarán los que vinieren muchas gallinas y pescados excelentes, y muchos puercos jabalíes y venados, y muchas perdices…”), a saúde, longevidade e força dos indígenas (“que se cansan de vivir los hombres…”), sua natural bondade, (“Y con estos indios se ha de hacer muy mejor que con otros de otras partes…”).
O fato de que Cabeça de Vaca exigisse que os frades o acompanhassem na viagem ao Paraguai é sintomático. Ele logo percebeu a autoridade moral dos frades perante os indígenas. E percebeu que a presença deles na expedição seria uma valiosa ajuda. Numa outra carta, relembrando estes fatos, frei Bernardo comenta que, após uma consulta de Cabeça de Vaca sobre a viagem, “todos concordaram que deveria ser feita a entrada por terra, e que isso fosse com a minha pessoa e a de meu companheiro, pela grande credibilidade que tínhamos com os índios…”.(14) Esta também foi a opinião do comandante Pedro Dorantes. Quando se preparavam para a viagem, este pediu aos frades que os acompanhassem: “Disse-lhe também que ajudaria muito a nossa boa viagem que o comissário (frei Bernardo) fosse com o governador (Cabeça de Vaca), porque os índios do campo o queriam muito… Encarreguei ao comissário essa questão e ele, vendo que isso convinha, concordou… E tenho certeza que Deus fez que não nos desentendêssemos com os índios graças a ele e a um índio que se chama Miguel…”.(15) As crônicas dos viajantes que participaram da expedição relatam as imensas dificuldades da viagem que teve início no litoral brasileiro e terminou em Assunção. Depois de três semanas de viagem, acabaram-se os mantimentos. Cabeça de Vaca queria consegui-los à força dos índios.(16) Acabou sendo convencido a incumbir frei Bernardo de conseguir os víveres entre os nativos da região, coisa que este conseguiu sem dar um único tiro. Sobre os mantimentos conseguidos no caminho, Dorantes relata, discorrendo sobre o papel de frei Bernardo: “Preferiam dar a ele e não vendê-los para nós”.(17)
O respeito e autoridade de que o frade gozava não vinha do uso da força, do poder das armas, do ser superior ou da coerção. Vinham do testemunho de vida, do bom exemplo, da presença fraterna e humilde dos frades vivendo no meio dos índios, com eles e como eles. Tal afirmação é confirmada por vários testemunhos de autores contemporâneos e testemunhas oculares dos fatos. A autoridade dos frades diante dos índios é colocada à prova quando estes têm que assumir uma clara posição de defesa dos índios, contra Cabeça de Vaca. O cronista Juan de Araoz, escrevendo em 1541, relata que Cabeça de Vaca não estava satisfeito com os frades, pela amizade destes com os índios “inúteis, a quem davam de comer”.(18) Esta expressão lacônica revela uma diferença fundamental entre o modo dos frades e do conquistador se relacionarem com os índios. Enquanto o frade se preocupa com o sustento do nativo, o conquistador os considera inúteis, mesmo sendo aqueles índios os responsáveis pelo carregamento das cargas da expedição. Pedro Dorantes relata ainda o cuidado de frei Bernardo com os doentes: “Houve ocasiões em que convinha ao padre comissário ficar para traz com os enfermos, dando-lhes de comer das coisas que [os índios] lhe traziam de esmola”.(19)
A questão que se coloca não é apenas quanto ao “estar presente”, mas o “como” ser presença: uma presença que não se impõe, que não agride, que não extirpa os valores culturais, mas reconhece  seus valores, e é capaz de se “inculturar”. Pelos vários testemunhos já citados, percebemos que os frades estavam muito próximos aos índios. A presença é transformadora pelo próprio testemunho de vida dos frades. Podemos dizer que é uma “presença minorítica”, fazendo-se um deles, sem deixar de propagar os valores cristãos em que acreditavam. Diante de uma realidade totalmente diferente da sua própria, os frades demonstram uma “abertura possível”. Embora levando consigo todo o aparato ocidental-cristão, típico de missionários que iam “converter os infiéis”, que iam salvá-los da idolatria e do demônio, os frades, no pouco tempo de trabalho, entraram em diálogo com a cultura carijó. A questão da alteridade, do perceber e aceitar os valores do outro, do diferente, é um dos mais importantes elementos a serem levados em consideração numa atuação missionária. O comportamento dos frades em Laguna é bem diverso de muitos missionários posteriores (inclusive no Brasil), que vão ver, na cultura a ser evangelizada, apenas erros a serem extirpados e defeitos a serem corrigidos.   

7. Algumas questões abertas
Uma das acusações que se faz ao trabalho missionário no Brasil, a todas as instituições religiosas, é a superficialidade na catequese. Oswald de Andrade chega a afirmar que “nunca fomos catequizados”. De fato, se acreditarmos nos relatos de frei Bernardo, com centenas de batizados a cada dia, pode-se colocar em dúvida a profundidade da catequese. Porém precisamos proceder com cautela. Tal prática não era tão incomum na época. Frei Pedro de Gante fala em 14 mil batizados por dia nos inícios da evangelização no  México. Na mesma área, Motolinía, fala de cinco milhões de batizados em 12 anos, entre 1524 e 1536. A questão é que o batismo não era o ponto final da catequese. Sem dúvida a grande preocupação dos frades  era a ação “soteriológica” da Igreja, da qual eram os ministros. Na evangelização da América Latina o sacramento do batismo foi central, pois era a forma de salvar imediatamente as almas do inferno. A ação mistagógica, a iniciação nos mistérios da fé era um segundo passo. Numa situação tão especial, com tantas dificuldades a serem vencidas, começando pelo número de missionários, este primeiro contato era fundamental.
Frei Bernardo e Alonso planejavam permanecer em meio aos índios por um bom tempo. Nesse sentido, a fundação das “casas de doutrina” ou dos “recolhimentos” para homens e mulheres eram os meios ordinários para continuar o aprofundamento da catequese, àqueles que já haviam recebido o batismo. Nestas casas, conhecidas também dos jesuítas, os índios, já batizados, poderiam aprofundar sua fé, tendo, aí sim, um conhecimento maior das verdades cristãs, chegando a uma fé madura, a uma adesão pessoal e profunda.
O exagerado otimismo e até um certo idealismo do frade em relação à missão, como aparece na carta, nos colocam também alguns questionamentos. Conflitos, pecados e desvios dos índios quase não  aparecem. E não é porque não os tivessem. Uma resposta a todo esse otimismo é o próprio objetivo da carta, que é conseguir ajuda, convencer as autoridades a mandar mais frades, além de conseguir colonos para trabalhar na terra. Ora, se o autor expusesse a dura realidade que presenciava, certamente assustaria os eventuais candidatos. Por outro lado a carta foi escrita apenas alguns meses após a chegada dos frades, o que certamente não lhes permitia fazer um profundo diagnóstico da realidade. Outro elemento a destacar é que não podemos comparar os conflitos enfrentados pelos missionários junto às populações indígenas das florestas do Brasil, com os conflitos enfrentados pelos missionários que atuavam em meio às culturas antropologicamente mais avançadas, como os astecas, maias e incas. O mais interessante, porém, é que os fatos mostram que, mesmo após conviver com os índios por vários anos, certamente conhecendo seus pecados e desvios, os frades continuavam defendendo-os contra as injustiças do sistema colonial.
Um discurso mais ancorado nas ciências históricas poderia aprofundar a relação de frei Bernardo e frei Alonso com a corrente do humanismo renascentista europeu, em voga na Espanha e Europa naquele momento histórico, certamente conhecido pelos frades, e que inspirou o projeto dos franciscanos que atuaram nos primórdios da Evangelização do México. É legítimo também se questionar sobre a relação dos frades de Laguna com todo o processo de reforma católica, que exatamente neste momento está dominando a vida religiosa na Europa, particularmente a Espanha, e que gerou personagens fascinantes, como Tereza D’Avila, São João da Cruz, Inácio de Loyola, e o próprio franciscano Cardeal Cisneros, que com tanto zelo se ocupava da reforma da Igreja nos domínios espanhóis. Lembremos que estamos às vésperas do Concílio de Trento (1545-1563) e Inácio de Loyola havia acabado de fundar a Companhia de Jesus (1534). É lícito perguntar até que pontos estes elementos de contexto impulsionaram ou inspiraram estes frades no seu serviço aos índios nas longínquas paragens do litoral sul do Brasil.

8. Conclusão
Ao falarmos de missão e evangelização poderíamos recorrer a vários testemunhos de frades que, desde os primórdios da chegada dos portugueses, atuaram junto aos habitantes do Brasil, fossem eles índios, colonos ou escravos negros. Grandes nomes poderiam ser lembrados, nos mais variados campos de atuação. Frades se destacaram no mundo das letras, da educação, da pregação, da missão, na vida de santidade. Ilustres intelectuais, como frei Vicente de Salvador, que mereceu o epíteto de “Heródoto brasileiro”, por ter saído de suas penas a primeira história do Brasil; frei Jaboatão, ideólogo de um “Novo Orbe Seráfico Brasílico”; frei Veloso, que subindo serras e montanhas, percorrendo rios e vales, catalogando a “Flora Fluminensis”, criou uma obra estupenda, fazendo dele o primeiro botânico brasileiro; frei Francisco do Monte Alverne, cujo manejo da palavra e da retórica impressionou imperadores. Poderíamos citar ilustres missionários que catequizaram nações indígenas inteiras, ou outros, que deixaram obras grandiosas, como o convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, que neste ano completa 400 anos de existência. Poderíamos apresentar grandes vultos de santidade, como o santo frei Galvão. Optamos pela experiência de Laguna porque acreditamos que esta, em sua simplicidade, fragilidade e precariedade, pode  nos dar excelentes indícios sobre como nós, franciscanos, podemos anunciar o Evangelho no século XXI.


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