Por Frei Sandro Roberto da Costa, ofm
1. Introdução
Evangelização franciscana no Brasil: uma história ainda a ser contada
Quando o assunto é religiosos no Brasil colônia, os primeiros a serem
lembrados são os jesuítas. Tal fato se deve, em grande parte, ao
desconhecimento dos fatos históricos envolvendo o Brasil neste período.
Os manuais e livros didáticos que tratam do tema repetem, com
freqüência, um estereótipo, silenciando sobre o protagonismo dos
franciscanos e outros religiosos, exaltando a atuação dos jesuítas. Os
padres de Santo Inácio de fato marcaram a história do Brasil, não apenas
na área religiosa, mas também política, econômica, e, principalmente,
no campo educacional, nos mais de duzentos anos de presença no país, até
a expulsão pelo Marquês de Pombal, em 1759. Os jesuítas, pela potência
que eram, se impuseram enquanto presença nos maiores centros, com homens
preparados intelectual e espiritualmente, enviando para o Brasil seus
melhores quadros. Sua expulsão abre uma imensa lacuna no campo da
educação, na assistência religiosa, no trabalho com os índios, lacuna
que nenhuma instituição religiosa presente no Brasil estava em condições
de preencher.
Apesar da importância da atuação dos jesuítas, não se pode negar o papel de protagonistas desempenhado também
pelos franciscanos na história da evangelização do Brasil. Basta
recordar o fato histórico de que os franciscanos foram os primeiros
religiosos europeus a colocar os pés em terras brasileiras. A primeira
missa celebrada no Brasil foi oficiada por um franciscano, frei Henrique
de Coimbra, que veio na esquadra de Pedro Álvares Cabral, aportando nas
“Terras de Santa Cruz”, em abril de 1500. Os primeiros jesuítas
chegariam quase cinqüenta anos depois.
Embora os jesuítas tenham sido os primeiros religiosos oficialmente
enviados para trabalhar no Brasil, em 1549, os franciscanos estão
presentes e atuantes já bem antes disso, numa presença extra-oficial,
esporádica e esparsa, mas não menos rica, evangélica e frutuosa. Temos
relatos de vários frades presentes no litoral, de 1503 até 1584. Tendo
escapado de algum naufrágio, ou numa escala da viagem, dirigindo-se para
a região do Rio da Prata ou para a Ásia, os religiosos franciscanos
aproveitavam para evangelizar os indígenas e colonos, nas aldeias e
vilas por onde passavam. O primeiro grupo de franciscanos oficialmente
enviados pela coroa portuguesa vai desembarcar no Brasil em 1584.
Os missionários jesuítas tinham por obrigação escrever as crônicas e
relatos de suas atividades na missão, que eram periodicamente, enviados a
Portugal e Roma. Por isso estamos relativamente bem informados sobre
sua atuação nos 210 anos de presença na colônia portuguesa. Os
franciscanos, ao contrário, não tinham o hábito de escrever sobre suas
atividades, ao menos no Brasil. O raro material que se conserva nos
arquivos foram produzidos pelas autoridades, como provinciais, guardiães
e definidores. Mesmo assim, alguma coisa se conserva, principalmente
nos arquivos europeus. Como verdadeiras jóias preciosas, estes relatos
transmitem para a posteridade pequenos restos de memória da história da
evangelização franciscana no Brasil. Através deles é possível, mesmo que
fragmentariamente, reconstituir parte desta história.
2. A carta de frei Bernardo de Armenta
Nesta exposição vamos estudar um documento que nos relata um momento
importante da história da evangelização do Brasil. Através dele
poderemos conhecer o espírito que animava os missionários franciscanos
que se dirigiam para aquelas terras há pouco descobertas. Ao mesmo
tempo, a análise do documento pode nos ajudar a conhecer o método
desenvolvido por esses missionários, seus projetos, suas opções, seus
sonhos. O documento em questão já foi objeto de análise de alguns
estudiosos, nos seus elementos filológicos, históricos, cronológicos,
etc. Não vou entrar em “questões disputadas” específicas das ciências
históricas. Escolhi este documento como objeto de estudo porque acredito
tratar-se de um testemunho histórico coerente, fidedigno e autorizado
de um modo específico de evangelizar, concretizado no século XVI pelos
franciscanos no Brasil. Acredito que a análise deste documento e do
contexto onde foi gerado, podem iluminar o presente de nossa atuação
missionária e evangelizadora.
Para situar este documento no seu contexto histórico, político,
religioso, inicio com uma breve introdução sobre a realidade do Brasil,
nos primeiros 50 anos da chegada dos portugueses, passando a seguir à
análise do documento.
2.1 Os primeiros anos do Brasil português
A chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, e os relatos que os
pioneiros fizeram sobre as novas terras descobertas, não despertaram
maiores interesses de Portugal. A principal preocupação era saber se nas
terras descobertas existia ouro. Como as primeiras explorações
resultaram negativas, não houve nenhuma preocupação em ocupar as terras.
Apenas aventureiros, piratas, náufragos, traficantes de índios, vez por
outra aportavam nas costas do Brasil. Foram fundadas algumas
“feitorias”, postos em lugares estratégicos, cujo único comércio
consistia na exploração das riquezas naturais, peles de animais, e
principalmente o pau de tinta “vermelha como brasa”, denominado por
isso pau-brasil. Também eram mandados ao Brasil os condenados
pela justiça, “degredados” que eram deixados na praia para serem
devorados pelos índios ou morrerem à mingua. Somente a partir de 1520
Portugal começa a se interessar pelas terras, na esperança de conseguir
meios para diminuir suas dificuldades financeiras. Em 1526 alguns navios
franceses são afundados no litoral da Bahia. Piratas e corsários
ingleses, franceses e holandeses infestam as costas do país. Portugal
decide então ocupa-lo mais sistematicamente. Em 1532 é fundada a
primeira cidade, S. Vicente, no litoral sul, de onde saíram as
expedições que, em 1551, unindo índios, colonos e jesuítas, iriam fundar
a cidade de São Paulo.
2.2 O documento
A primeira experiência mais organizada de evangelização franciscana de
que temos notícia no Brasil deu-se entre 1538 e 1548, no litoral de
Santa Catarina, na localidade denominada Laguna (Mbiaça), entre os
índios carijós.
Em 1537 zarpava da Espanha em direção ao Paraguai a frota de Alonso
Cabrera. Cinco frades franciscanos faziam parte da expedição: frei
Bernardo de Armenta (de Córdoba, Espanha), superior do grupo, frei
Alonso Lebrón (das Ilhas Canárias) e outros três frades dos quais não
conhecemos os nomes. A expedição, após várias tentativas, não
conseguindo entrar pelo Rio da Prata, foi parar nas costas do litoral
catarinense, “ao porto ou rio de São Francisco, anteriormente chamado de
D. Rodrigo”, na atual cidade de Laguna, no Estado de Santa Catarina.(1) Alguns
meses depois da chegada, a 1o. de maio de 1538, o chefe da missão, frei
Bernardo de Armenta, escrevia a João Bernal Dias de Lugo, do Conselho
das Índias Espanholas, descrevendo os fatos que os levaram até ali, e
relatando o trabalho missionário iniciado. Uma cópia da carta foi
enviada a Sevilha. Dali seguiu ao México, onde frei Toribio Motolinia
fez uma cópia, e enviou o original de volta à Espanha. Frei Jerônimo de
Mendieta a incluiu no Livro IV da sua “História Eclesiástica Indiana”.(2)
Frei Bernardo escreve entusiasmado com o sucesso da missão
improvisada. Esta fora obra da providência. Um índio de nome Etiguara,
uns quatro anos antes profetizara a vinda de verdadeiros cristãos,
“irmãos dos discípulos do Apóstolo São Tomé, e haveriam de batizar a
todos”. Frei Bernardo, a quem os índios começavam a chamar de “Payçumé”
(São Tomé), escreve pedindo também mais frades para trabalhar com os
índios, pois previa que teriam muitos frutos. O frade diz que deu à sua
“Província” o nome de “Província de Jesus”.
Em julho de 1538 três dos cinco frades seguem para Buenos Aires com
Alonso Cabrera. Fr. Bernardo e frei Alonso Lebrón se recusam a
acompanhá-lo. Em Laguna os dois frades fundam um “recolhimento” para as
mulheres e outro para os homens, onde é ensinada a doutrina cristã, ao
mesmo tempo em que percorrem as aldeias vizinhas.
Em resposta à carta do frade, o rei da Espanha escrevia em 8 de
novembro de 1539 ao Ministro Provincial da Província da Andaluzia,
mandando que fossem enviados, “para o Rio da Prata seis religiosos seus,
a fim de se associarem a frei Bernardo de Armenta, vigário provincial,
que reside naquela província da Prata”. A nau foi enviada, chefiada por
Alvar Nuñes Cabeza de Vaca, um dos mais ilustres exploradores daqueles
tempos, mas não trouxe nenhum frade, a não ser seis ou nove clérigos.(3)
3. Os frades e Cabeza de Vaca
Quando os frades chegaram ao litoral catarinense, Alonso Cabrera,
capitão da expedição que os levou, quis obrigá-los a seguir com ele para
o interior do território espanhol (Buenos Aires). Frei Bernardo se
negou, argumentando que “… não a tendes sobre mim, nem sobre os frades
que vão comigo, (mando e jurisdição), pois nem a Sua Majestade nos
enviou nem fomos socorridos, na sede, com água da fazenda do Rei, pois
os trouxe com o nosso próprio trabalho e suor. Ninguém pode me impedir
de pôr a bandeira de nossa santa fé onde Deus manda [...]”.(4)
Quando Cabeça de Vaca chegou em Santa Catarina, em março de 1541,
faziam aproximadamente três anos que os frades estavam trabalhando entre
os índios. O conquistador exigiu que os frades o acompanhassem na
expedição até o Paraguai. A alegação é de que, pela autoridade que os
frades gozavam junto aos índios, eram indispensáveis para a jornada.
Frei Bernardo de Armenta de fato era muito respeitado pelos nativos.(5)Praticamente
obrigados pelo conquistador, os dois partem à frente de uma centena de
índios, recebendo dele a promessa de que os deixaria voltar assim que
chegassem ao destino.(6)
Discussões e desavenças entre Cabeça de Vaca e os frades marcam a
viagem. O principal motivo era o tratamento dispensado pelos espanhóis
aos índios. Frades e índios, inconformados com a situação, tentam fugir
ainda durante a viagem, mas, encontrados, são obrigados a se juntar à
expedição, que segue até Assunção. Também lá frei Bernardo e frei Alonso
iniciam um trabalho de catequese contra a vontade de Cabeça de Vaca,
pois segundo ele “onde não há ouro nem prata, não há necessidade de
batismo”. Em Assunção, fr. Bernardo funda um “recolhimento”, espécie de
“casa de doutrina”, onde recolhe umas trinta ou quarenta moças,
indígenas, filhas de carijós, para preservá-las da cobiça dos soldados.
Cabeça de Vaca e seus soldados protestaram duramente, e fizeram sérias
acusações ao comportamento dos frades – entre outras a de que
“guardariam encerradas em sua casa mais de trinta índias dos doze aos
vinte anos de idade”.
Em fevereiro de 1543 os dois frades tentam fugir de Assunção, desta
vez levando cartas dos adversários de Cabeça de Vaca, denunciando-o às
autoridades espanholas. Acabam sendo presos, junto com Alonso Cabrera,
considerado chefe da conspiração. Finalmente, em 1544, por causa dos
contínuos desmandos, Cabeça de Vaca é preso e destituído de suas
funções. Provavelmente frei Bernardo tenha tido um papel importante nas
acusações contra o explorador, pois era considerado seu principal
desafeto. Os frades puderam voltar a Santa Catarina, onde chegaram em
1545. Várias índias do “recolhimento” de Assunção os seguiram.
4. Fim da Missão de Mbiaça
Frei Bernardo faleceu entre 1546 e 1547. Frei Alonso continuou na missão
até 1548, quando salteadores portugueses, em dois navios liderados por
Pascoal Fernandes, de São Vicente, e Martin Vaz, de Ilhéus, invadiram a
missão, prenderam e escravizaram os índios, e levaram prisioneiros os
espanhóis e o frade. Quem nos informa sobre todo o acontecido é o
jesuíta Manuel da Nóbrega, que escreveu dois anos após os fatos. Segundo
ele, os salteadores, chegando ao litoral catarinense, convidaram índios
e espanhóis para uma festa no navio, onde prenderam a todos, inclusive
frei Alonso. Os índios que ficaram na praia foram ao navio, implorando
que soltassem o frade, e levassem os índios presos. Como os portugueses
se negassem, os índios disseram que também eles queriam ir com o frade.
Assim todos foram aprisionados. Os índios foram desembarcados em São
Vicente e Ilhéus, onde foram vendidos.(7) Logo se
levantou o protesto dos jesuítas e do próprio frei Alonso Lebrón, que se
apresentou diante das autoridades portuguesas defendendo-os, pois não
poderiam ser escravizados, já que eram cristãos, e não foram
aprisionados em “guerra justa” (não estavam combatendo portugueses).
Depois de muito insistir junto ao governador, Nóbrega conseguiu que
alguns índios fossem libertados, e, guiados pelo jesuíta irmão Leonardo
Nunes, voltassem à sua aldeia, em Laguna. Os protestos dos colonos que
tinham comprado os índios dificultaram a empreitada. Finalmente, o Padre
José de Anchieta relata que uma doença súbita “matou quase todos”. Frei
Alonso Lebrón, vendo que pouco conseguia junto às autoridades no
Brasil, viajou para a Espanha, para apresentar suas queixas à Coroa.
Acabou desaparecendo, segundo alguns cronistas, prisioneiro nas mãos de
piratas franceses. Os carijós catequizados que permaneceram em Laguna
continuaram sofrendo os ataques dos caçadores de escravos, e, aos
poucos, foram sendo assimilados pela cultura portuguesa, que avançava
rumo à costa sul do Brasil.
5. Memória da atuação dos frades franciscanos na Igreja do Brasil
A atuação dos dois frades não ficou legada ao esquecimento. Além da
carta preservada na obra do grande Mendieta, padres jesuítas
portugueses, trabalhando no Brasil, cuidaram de preservar para a
posteridade o trabalho quase anônimo destes filhos de São Francisco em
terras tupiniquins. O já citado Pe. Manoel da Nóbrega, em carta de
agosto de 1549, referindo-se aos índios carijós, faz menção ao trabalho
dos frades: “Este é um gentio melhor do que nenhum desta costa, os quais
foram, não há muitos anos, dois frades castelhanos ensinar e tomaram
tão bem sua doutrina, que têm já casas de recolhimento para mulheres,
como de freiras, e outras de homens, como de frades. E isto durou muito
tempo, até que o diabo levou lá uma nau de salteadores e cativaram
muitos deles” (8) O Pe. Antônio Rodrigues faz uma
referência à aldeia, que os frades “chamaram de Província de Jesus, onde
fizeram admirável fruto”. O beato José de Anchieta, referindo-se aos
carijós aprisionados ilegalmente em São Vicente, diz que eles são
“propensos às coisas divinas”.(9)
6. Comentários de alguns aspectos da carta relacionados à evangelização
À primeira vista o trabalho dos frades consiste na doutrina e no batismo
dos índios. Uma análise mais atenta do documento, porém, nos permite
perceber, quase nas entrelinhas, uma realidade mais complexa. Além do
mais, para uma melhor compreensão desta realidade recorremos a outros
testemunhos contemporâneos à atuação dos frades em Santa Catarina, que
nos fornecem preciosas informações sobre o modo de pensar dos frades,
seu plano de atuação e o modo franciscano de evangelizar.
6.1 Preocupação com o preparo (qualidade) dos evangelizadores
Frei Bernardo, diante do vasto campo que se abre para o anúncio da
boa-nova, vendo a boa índole dos indígenas, sua docilidade em aceitar o
batismo, percebe a urgente necessidade de mais frades para colaborar na
missão. Na carta ele deixa bem claro a preocupação de que os frades a
serem enviados sejam da melhor qualidade: “…que V. Mrd. tome esta
empresa por suya, y hable a S. M. y a esos señores del Consejo, para que
favorezcan tan santa obra, y el favor ha de ser que nos envíen una
docena de frailes de nuestra orden de S. Francisco, que sean
escogidos,…”, e termina: “que envíen frailes que sean como apóstoles…”.
O modelo que inspira o frade no trabalho evangelizador é a experiência
da Igreja primitiva. O número de frades pedidos, na nossa opinião, não é
aleatório nem casual: ele pede que sejam escolhidos, e que sejam 12. E
diz explícitamente: “que sejam como os apóstolos”. Ora, qual
era o modo de vida dos apóstolos? Aqui podemos ver uma relação com a
experiência evangelizadora dos franciscanos no México: o envio dos
primeiros frades àquela região recém conquistada (os “12 apóstolos”), e a
tentativa da conquista pacífica, como aparece na “Instrução do Ministro
Geral Francisco de los Angeles Quiñones a Martín de Valência,
integrante e custódio dos Doze Franciscanos enviados para evangelizar os
habitantes de Tenochtitlan [México] conquistado”, de 4 de outubro de
1523. Além disso, frei Bernardo certamente tinha conhecimento de
experiências similares que haviam sido tentadas em outras partes da
América, não só no México, mas também em Cumaná (1514), nas costas da
atual Venezuela.(10) A experiência havia mostrado aos
missionários que onde o Evangelho chegava junto com a espada, com a sede
do ouro e a ambição do lucro, o anúncio não atingia seus objetivos.
Frei Bernardo se refere aos “maus cristãos”: “la mala vida y mal ejemplo de los que acá viniesen por conquistadores, les harían menospreciar nuestra fe”.
A conquista verdadeira é a “espiritual”, aquela que se dá através do
convívio, da partilha de vida, da presença solidária e fraterna.
Pregação, catequese e anúncio, seriam muito mais eficientes se ancorados
no exemplo de vida dos religiosos. E esse foi o método assumido pelos
frades entre os índios carijós. Para pregar, anunciar e convencer não
basta o preparo intelectual, mas são necessárias pessoas que se
destaquem pelo exemplo de vida. Pessoas cuja vida seja reflexo e espelho
das verdades que estão pregando. Tudo isso pode ser resumido na
expressão “testemunho”. Somente frades que “fossem como “apóstolos”
entrariam nesta categoria. Ora, o modelo de pregação dos apóstolos é o
da itinerância, do serviço desinteressado pelo Reino, do anúncio da
misericórdia e do amor de Deus, capazes de ir até as últimas
consequências em defesa do rebanho, como Jesus Cristo. Esse foi o modelo
asumido por Francisco de Assis e seus seguidores. Os frades, pela
situação em que se encontravam, viviam, necessariamente a itinerância.
Sem dúvida a pobreza e a austeridade de vida eram realidades
onipresentes na vida destes missionários. A preocupação dos dois frades
em ter bons evangelizadores é uma das caracteristicas deste período de
evangelização na América. Com raras exceções, os primeiros a serem
mandados eram pessoas muito bem preparadas, moral, espiritual e
intelectualmente.
6.2 Preocupação com o “social”
Hoje, quando falamos de evangelização, não podemos desvinculá-la de um
envolvimento mais amplo com a realidade social. O anúncio, se é eficaz,
transforma toda a realidade. Na carta frei Bernardo demonstra uma clara
preocupação que poderíamos denominar de “civilizatória”. A preocupação
do frade em conseguir bons evangelizadores é seguida da preocupação em
conseguir bons trabalhadores e profissionais, bem como ter instrumentos
necessários para a transformação da realidade. O anúncio da Boa Nova é
concomitante à preocupação com a transformação nas condições materiais
dos indígenas: “…que S. M. envíe un factor suyo que traiga
labradores, que no son menester conquistadores… Vengan labradores y
traigan mucho hierro, y algún lienzo y ropa, y ganado de vacas y ovejas
burdas, y cañas de azúcar, y maestros para hacer ingenios de azúcar, y
algodón y trigo y cebada, y toda manera de pepitas, que se darán bien, y
sarmientos, que se harán muy grandes viñas…”. Os franciscanos em
toda a América Latina, na sua atuação missionária, por onde passaram
deixaram sua marca, não só no anúncio e pregação, mas através de uma
preocupação com a qualidade de vida do povo. No Brasil muitos fundaram
cidades, construíram hospitais e escolas, ensinaram o povo a cultivar a
terra. Pelo que transparece na carta de frei Bernardo, os frades estavam
preocupados com uma atuação integral: salvar a alma, cuidar do
espírito, mas também cuidar do corpo, da vida neste mundo. A preocupação
não é apenas religiosa: é civilizatória, é “social”, como diríamos
hoje. Se o pedido de frei Bernardo fosse atendido teria se concretizado
no sul do Brasil, guardadas as devidas proporções, a experiência que
depois foi realizada por frei Luis de Bolãnos, no Paraguai, a partir de
1580.
6.3 Denúncia e atuação profética
A evangelização, quando assumida por amor ao Reino e ao próximo,
necessariamente assume contornos de denúncia social. Frei Bernardo não
tem receio de denunciar os pecados do sistema colonizador e da conquista
pelas armas. Ele mesmo afirma que “no son menester conquistadores… Y
crea V. Mrd. que la mala vida y mal ejemplo de los que acá viniesen por
conquistadores, les harían menospreciar nuestra fe. Porque viendo que
yo les hago guardar la ley de Dios a la letra, y la guardan con tanta
voluntad, si viesen lo contrario en los que acá viniesen, dirían que
éramos burladores, pues que a ellos les mandábamos que guardasen la ley
de Dios, y los cristianos viejos la quebrantaban”. A história da
evangelização na América Latina está cheia de exemplos deste aberto
conflito entre os projetos de evangelização e o projeto colonizador.
Esta realidade vai se tornar crítica com a chegada de Cabeça de Vaca.
Este trouxe, na sua expedição, 400 soldados “bien aderezados”, isto é,
preparados para o combate, para a guerra. Os soldados chegam armados com
arcabuzes (260 arcabuzeiros), lanças, bestas, espadas, escudos, além
das armaduras e dos cavalos, em número de trinta. Podemos imaginar a
reação dos indígenas ao ver todo esse aparato chegando em suas terras. É
sem dúvida uma demonstração de força, de poder, e incute temor.
A atuação dos dois frades vai em sentido oposto à atuação de Cabeça
de Vaca e dos soldados. Além da demonstração de força bruta, sabemos,
através de outros relatos o quanto era comum os soldados abusarem das
índias, mesmo porque nas campanhas de conquista não participavam
mulheres européias. A situação se mostrava mais crítica porque, enquanto
os frades buscavam educar os índios dentro dos parâmetros da moral
sexual cristã, a vida dos soldados e colonos, em geral, ia em sentido
oposto a estes ensinamentos.
Frei Bernardo, numa outra carta dirigida às autoridades espanholas
vai denunciar a prática de escravizar índios e índias. Por isso a saída
encontrada pelos missionários, a criação dos “recolhimentos”, em Santa
Catarina e em Assunção, é uma atuação clara de defesa do índio, contra
os interesses dos conquistadores. Este viam nos índios pessoas a serem
exploradas, subjugadas, principalmente as mulheres. Segundo o cronista
Juan de Araoz, no auge da desavença de Cabeça de Vaca com os frades,
este vai exigir deles que “não se carregassem de tantas mulheres”.(11)Outro
cronista, Pedro Fuentes, escrevendo sobre os vícios dos habitantes de
Assunção, exatamente à época de Cabeça de Vaca, diz que “há uns que têm
dez índias, outros, 30, e alguns, 50, e todos as têm como mulheres…”.(12) Na
sociedade hispano-guarani, o que valiam eram “as mulheres, o ferro e as
miçangas. Com as índias – quanto mais, melhor -, o sustento estava
garantido, pois eram elas as que plantavam, processavam os alimentos e
realizavam quase todas as tarefas necessárias para sobreviver naquela
terra bruta”.(13) Entende-se a partir deste comentário o
cuidado dos frades em proteger as índias em “recolhimentos”, e o motivo
de serem eles objeto da ira dos soldados e colonos.
A tentativa de fuga dos dois frades e dos índios, mostra um esforço
de resistência aos planos do conquistador. O fato de alguns
historiadores verem nos dois frades os “principais opositores de Cabeça
de Vaca” (Van der Vat) reforça sua atuação de resistência. A
resistência, como vimos, continua mesmo depois da destruição da missão,
quando frei Alonso Lebrón busca de todos os modos denunciar os crimes
dos portugueses diante das autoridades. Também neste particular os
frades de Laguna estão inseridos na tradição da Ordem, de assumir, com
todos os meios a seu dispor, a defesa dos índios contra as injustiças.
Não podemos citá-los aqui, mas recordamos os inúmeros casos de frades,
em toda a América, que se envolveram de corpo e alma nas polêmicas do
período colonial, denunciando as realidades iníquas que agrediam a
dignidade do índio.
6.4 Missão como colocar-se em relação
Na carta de frei Bernardo transparece uma pura e quase ingênua confiança
no trabalho de evangelização. Seu otimismo e entusiasmo dão provas de
como o missionário estava convencido do trabalho a ser realizado. Este
ardor missionário nasce primeiro de uma vivência do Evangelho. O
testemunho de vida é a primeira forma de anúncio. Pelos termos da carta,
se percebe que o coração de frei Bernardo ardia pelo amor das almas a
serem salvas. “Y con estos indios se ha de hacer muy mejor que con
otros de otras partes, pues ellos con tanta voluntad se subjetan al yugo
de nuestra santa fe católica… Y confío en Nuestro Señor que cuando ésta
llegue allí, tendremos más de ochenta leguas convertidas a nuestra
santa fe. Así que, no deje V. Mrd. y esos señores que se pierda tanto
bien, porque no se lo demande Dios el día del Juicio, si no socorriesen a
tan santa obra…. Pues tal tierra como ésta, no es razón de la dejar,
demás de lo principal que hay en ella, que son muchas ánimas.”
A atuação franciscana em Laguna foi, antes de tudo, de “presença”.
Foi uma presença silenciosa, efêmera, que não deixou grandes escritos,
crônicas ou relatos, mas que se fixou no coração dos habitantes.
Recordamos que a carta ao Conselheiro foi escrita apenas alguns meses
após a chegada à localidade. Mesmo assim a missiva exala uma simpatia
pela cultura indígena e um grande otimismo em relação à missão: “Y
lo que más es de alabar a Nuestro Señor, que los más viejos (que hay
hombres de cien años) vienen con más fervor. Y no sólo esto, mas ellos
mismos predican públicamente la fe católica. Son tan grandes maravillas
las que Nuestro Señor obra en ellos, que no las sabría decir, ni
bastaría papel para las escrebir….”.
Além do otimismo, o religioso não deixa de ressaltar os aspectos
positivos daquela cultura: a riqueza da terra, (“que no tiene que ver
Santo Domingo con la bondad de esta tierra”), a variedade de plantas,
frutas e animais (“…donde hallarán los que vinieren muchas gallinas y
pescados excelentes, y muchos puercos jabalíes y venados, y muchas
perdices…”), a saúde, longevidade e força dos indígenas (“que se cansan
de vivir los hombres…”), sua natural bondade, (“Y con estos indios se ha
de hacer muy mejor que con otros de otras partes…”).
O fato de que Cabeça de Vaca exigisse que os frades o acompanhassem
na viagem ao Paraguai é sintomático. Ele logo percebeu a autoridade
moral dos frades perante os indígenas. E percebeu que a presença deles
na expedição seria uma valiosa ajuda. Numa outra carta, relembrando
estes fatos, frei Bernardo comenta que, após uma consulta de Cabeça de
Vaca sobre a viagem, “todos concordaram que deveria ser feita a entrada
por terra, e que isso fosse com a minha pessoa e a de meu companheiro,
pela grande credibilidade que tínhamos com os índios…”.(14) Esta
também foi a opinião do comandante Pedro Dorantes. Quando se preparavam
para a viagem, este pediu aos frades que os acompanhassem: “Disse-lhe
também que ajudaria muito a nossa boa viagem que o comissário (frei
Bernardo) fosse com o governador (Cabeça de Vaca), porque os índios do
campo o queriam muito… Encarreguei ao comissário essa questão e ele,
vendo que isso convinha, concordou… E tenho certeza que Deus fez que não
nos desentendêssemos com os índios graças a ele e a um índio que se
chama Miguel…”.(15) As crônicas dos viajantes que
participaram da expedição relatam as imensas dificuldades da viagem que
teve início no litoral brasileiro e terminou em Assunção. Depois de três
semanas de viagem, acabaram-se os mantimentos. Cabeça de Vaca queria
consegui-los à força dos índios.(16) Acabou sendo
convencido a incumbir frei Bernardo de conseguir os víveres entre os
nativos da região, coisa que este conseguiu sem dar um único tiro. Sobre
os mantimentos conseguidos no caminho, Dorantes relata, discorrendo
sobre o papel de frei Bernardo: “Preferiam dar a ele e não vendê-los
para nós”.(17)
O respeito e autoridade de que o frade gozava não vinha do uso da
força, do poder das armas, do ser superior ou da coerção. Vinham do
testemunho de vida, do bom exemplo, da presença fraterna e humilde dos
frades vivendo no meio dos índios, com eles e como eles. Tal afirmação é
confirmada por vários testemunhos de autores contemporâneos e
testemunhas oculares dos fatos. A autoridade dos frades diante dos
índios é colocada à prova quando estes têm que assumir uma clara posição
de defesa dos índios, contra Cabeça de Vaca. O cronista Juan de Araoz,
escrevendo em 1541, relata que Cabeça de Vaca não estava satisfeito com
os frades, pela amizade destes com os índios “inúteis, a quem davam de
comer”.(18) Esta expressão lacônica revela uma
diferença fundamental entre o modo dos frades e do conquistador se
relacionarem com os índios. Enquanto o frade se preocupa com o sustento
do nativo, o conquistador os considera inúteis, mesmo sendo aqueles
índios os responsáveis pelo carregamento das cargas da expedição. Pedro
Dorantes relata ainda o cuidado de frei Bernardo com os doentes: “Houve
ocasiões em que convinha ao padre comissário ficar para traz com os
enfermos, dando-lhes de comer das coisas que [os índios] lhe traziam de
esmola”.(19)
A questão que se coloca não é apenas quanto ao “estar presente”, mas o
“como” ser presença: uma presença que não se impõe, que não agride, que
não extirpa os valores culturais, mas reconhece seus valores, e é
capaz de se “inculturar”. Pelos vários testemunhos já citados,
percebemos que os frades estavam muito próximos aos índios. A presença é
transformadora pelo próprio testemunho de vida dos frades. Podemos
dizer que é uma “presença minorítica”, fazendo-se um deles, sem deixar
de propagar os valores cristãos em que acreditavam. Diante de uma
realidade totalmente diferente da sua própria, os frades demonstram uma
“abertura possível”. Embora levando consigo todo o aparato
ocidental-cristão, típico de missionários que iam “converter os
infiéis”, que iam salvá-los da idolatria e do demônio, os frades, no
pouco tempo de trabalho, entraram em diálogo com a cultura carijó. A
questão da alteridade, do perceber e aceitar os valores do outro, do
diferente, é um dos mais importantes elementos a serem levados em
consideração numa atuação missionária. O comportamento dos frades em
Laguna é bem diverso de muitos missionários posteriores (inclusive no
Brasil), que vão ver, na cultura a ser evangelizada, apenas erros a
serem extirpados e defeitos a serem corrigidos.
7. Algumas questões abertas
Uma das acusações que se faz ao trabalho missionário no Brasil, a todas
as instituições religiosas, é a superficialidade na catequese. Oswald de
Andrade chega a afirmar que “nunca fomos catequizados”. De fato, se
acreditarmos nos relatos de frei Bernardo, com centenas de batizados a
cada dia, pode-se colocar em dúvida a profundidade da catequese. Porém
precisamos proceder com cautela. Tal prática não era tão incomum na
época. Frei Pedro de Gante fala em 14 mil batizados por dia nos inícios
da evangelização no México. Na mesma área, Motolinía, fala de cinco
milhões de batizados em 12 anos, entre 1524 e 1536. A questão é que o
batismo não era o ponto final da catequese. Sem dúvida a grande
preocupação dos frades era a ação “soteriológica” da Igreja, da qual
eram os ministros. Na evangelização da América Latina o sacramento do
batismo foi central, pois era a forma de salvar imediatamente as almas
do inferno. A ação mistagógica, a iniciação nos mistérios da fé era um
segundo passo. Numa situação tão especial, com tantas dificuldades a
serem vencidas, começando pelo número de missionários, este primeiro
contato era fundamental.
Frei Bernardo e Alonso planejavam permanecer em meio aos índios por
um bom tempo. Nesse sentido, a fundação das “casas de doutrina” ou dos
“recolhimentos” para homens e mulheres eram os meios ordinários para
continuar o aprofundamento da catequese, àqueles que já haviam recebido o
batismo. Nestas casas, conhecidas também dos jesuítas, os índios, já
batizados, poderiam aprofundar sua fé, tendo, aí sim, um conhecimento
maior das verdades cristãs, chegando a uma fé madura, a uma adesão
pessoal e profunda.
O exagerado otimismo e até um certo idealismo do frade em relação à
missão, como aparece na carta, nos colocam também alguns
questionamentos. Conflitos, pecados e desvios dos índios quase não
aparecem. E não é porque não os tivessem. Uma resposta a todo esse
otimismo é o próprio objetivo da carta, que é conseguir ajuda, convencer
as autoridades a mandar mais frades, além de conseguir colonos para
trabalhar na terra. Ora, se o autor expusesse a dura realidade que
presenciava, certamente assustaria os eventuais candidatos. Por outro
lado a carta foi escrita apenas alguns meses após a chegada dos frades, o
que certamente não lhes permitia fazer um profundo diagnóstico da
realidade. Outro elemento a destacar é que não podemos comparar os
conflitos enfrentados pelos missionários junto às populações indígenas
das florestas do Brasil, com os conflitos enfrentados pelos missionários
que atuavam em meio às culturas antropologicamente mais avançadas, como
os astecas, maias e incas. O mais interessante, porém, é que os fatos
mostram que, mesmo após conviver com os índios por vários anos,
certamente conhecendo seus pecados e desvios, os frades continuavam
defendendo-os contra as injustiças do sistema colonial.
Um discurso mais ancorado nas ciências históricas poderia aprofundar a
relação de frei Bernardo e frei Alonso com a corrente do humanismo
renascentista europeu, em voga na Espanha e Europa naquele momento
histórico, certamente conhecido pelos frades, e que inspirou o projeto
dos franciscanos que atuaram nos primórdios da Evangelização do México. É
legítimo também se questionar sobre a relação dos frades de Laguna com
todo o processo de reforma católica, que exatamente neste momento está
dominando a vida religiosa na Europa, particularmente a Espanha, e que
gerou personagens fascinantes, como Tereza D’Avila, São João da Cruz,
Inácio de Loyola, e o próprio franciscano Cardeal Cisneros, que com
tanto zelo se ocupava da reforma da Igreja nos domínios espanhóis.
Lembremos que estamos às vésperas do Concílio de Trento (1545-1563) e
Inácio de Loyola havia acabado de fundar a Companhia de Jesus (1534). É
lícito perguntar até que pontos estes elementos de contexto
impulsionaram ou inspiraram estes frades no seu serviço aos índios nas
longínquas paragens do litoral sul do Brasil.
8. Conclusão
Ao falarmos de missão e evangelização poderíamos recorrer a vários
testemunhos de frades que, desde os primórdios da chegada dos
portugueses, atuaram junto aos habitantes do Brasil, fossem eles índios,
colonos ou escravos negros. Grandes nomes poderiam ser lembrados, nos
mais variados campos de atuação. Frades se destacaram no mundo das
letras, da educação, da pregação, da missão, na vida de santidade.
Ilustres intelectuais, como frei Vicente de Salvador, que mereceu o
epíteto de “Heródoto brasileiro”, por ter saído de suas penas a primeira
história do Brasil; frei Jaboatão, ideólogo de um “Novo Orbe Seráfico
Brasílico”; frei Veloso, que subindo serras e montanhas, percorrendo
rios e vales, catalogando a “Flora Fluminensis”, criou uma obra
estupenda, fazendo dele o primeiro botânico brasileiro; frei Francisco
do Monte Alverne, cujo manejo da palavra e da retórica impressionou
imperadores. Poderíamos citar ilustres missionários que catequizaram
nações indígenas inteiras, ou outros, que deixaram obras grandiosas,
como o convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, que neste ano
completa 400 anos de existência. Poderíamos apresentar grandes vultos de
santidade, como o santo frei Galvão. Optamos pela experiência de Laguna
porque acreditamos que esta, em sua simplicidade, fragilidade e
precariedade, pode nos dar excelentes indícios sobre como nós,
franciscanos, podemos anunciar o Evangelho no século XXI.
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