21 de maio de 2013

E se falássemos mais um pouco da fé?


É urgente atravessar a soleira da fé

No contexto do Ano da Fé multiplicam-se artigos, estudos e textos sobre este delicado e fundamental tema. Vamos  nos deter em alguns aspectos do assunto tendo em mãos reflexões de Frei José Rodriguez Carballo, ex-Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores, em sua Carta aos Frades, escrita por ocasião da Páscoa de 2013, como também meditações de nosso confrade francês Michel Hubaut, homem fecundo em estudos sobre  a espiritualidade franciscana.


À guisa de introdução

Começou o reino da vida e foi dissolvido o império da morte. Apareceu um novo nascimento, uma vida nova, um novo modo de viver; a nossa própria natureza foi transformada. Que novo nascimento é este? É o daqueles que não nasceram do sangue nem da vontade do homem, mas de Deus mesmo (Jo 1, 13).  Tu perguntas: como isto pode acontecer? Escuta-me, vou te explicar em poucas palavras. Este novo ser é concebido pela fé; é dado à luz pela  regeneração do batismo; tem por mãe a Igreja que o amamenta com sua doutrina e tradições. Seu alimento é o pão celeste, sua idade adulta é a santidade; seus filhos são a esperança; sua casa é o reino; sua herança e riqueza são as delícias  do paraíso; seu fim não é a morte, mas aquela vida feliz e eterna que está preparada para aqueles que são dignos dela” (Gregório de Nissa, Liturgia as Horas II, p. 743). Muitas vezes se diz que o problema das Igreja são os  “afastados”. Pessoalmente penso que não só eles são o problema, mas também os “de perto”  podem ser  um problema quando permanecem na soleira da “Porta da fé” sem nunca atravessá-la. (Frei José Rodriguez Carballo, OFM)


1. Nos albores de sua trajetória espiritual, Francisco de Assis descobre que a fé é uma chama muito frágil no meio da noite. Vai andar ao seu encalço como alguém que procura um poço no deserto ou tesouro escondido num campo. O Poverello, na perquirição da fé, sente que o velho homem vai morrendo, fazendo barulho estridente, desvencilhando-se de amarras e de falsos apoios. Os primeiros anos da conversão de Francisco foram marcados pela busca da fé. “O evangelho fazia-lhe sofrer tanto quanto o bisturi de um cirurgião. A pacífica homilia que mantinha adormecida a assembleia dominical se converteu para ele em um evangelho de fogo. O medo é precisamente o contrário da fé. Esta aponta para a coragem de tudo arriscar. Renunciar ao desejo de manejar a própria vida, seus talentos, seus bens e seguir cada um, solitariamente, seu caminho para se entregar à vontade de Deus,  para entrar em seu projeto amoroso para conosco: esse é todo o mistério da fé (…). Nada se pode compreender de sua vida se se esquece este fundamento inicial. A conversão de Francisco consistiu  no desejo do homem se abrir ao desejo de Deus” (El camino franciscano, Estella, p. 19). O carisma de Francisco não é a pobreza, mas a fé viva.

2. Esse trabalho de fé-conversão demanda tempo. Dídimo de Alexandria fala da ação do Espírito nesse desejo de Deus e no cultivo da fé: “Precisamos, pois, do Espírito Santo para nossa perfeição e renovação. Pois o fogo espiritual sabe também regar, e a água batismal é também capaz de queimar como o fogo” (L. Horas II, p. 795).

3. “Durante toda a sua vida, Francisco cultivará uma fé desperta e vigilante, aberta ao apelo de Deus e do Espírito do Senhor. Seu cuidado foi o de desobstruir as fontes interiores, escutar o Senhor, deixar-se amar e plasmar por Deus; deixar-se conduzir na noite pela esperança que ganhou um rosto em Jesus Cristo; despertar de um torpor espiritual. Este é o projeto de Francisco que se enraíza na fé. Fé de quem descobre Deus como um dinamismo de amor que não ameaça nossa liberdade, mas nos estrutura, nos constrói, nos realiza” (Hubaut, Chemins d’intériorité avec saint François, Paris, p.31).

4. Tomamos as reflexões de Frei Carballo: “Penso dizer a verdade  ao afirmar  que a crise da fé vivida dentro da Igreja, como muitas vezes denunciou o Papa, também é palpável  entre nós. Ao afirmar isso não penso tanto numa fé teórica e conceitual, mas naquela celebrada, vivida e confessada na vida cotidiana. Sem negar que a maior parte dos irmãos dão constantemente, sem holofotes, sem aplausos e sem grandes discursos, testemunho humilde de uma fé confessada, vivida e celebrada, permanecendo fiéis contra toda esperança e fazendo em sua vida experiência do mistério pascal, também é verdade que o secularismo, entendido como um conjunto de  atitudes hostis à fé e que afeta vastos setores da sociedade, pode ter penetrado em nossas fraternidades e em nossas vidas; e que o desaparecimento do horizonte da eternidade e a redução do real à única dimensão terrena tem sobre a fé o efeito da areia jogada sobre o fogo: sufoca-o e acaba por apagá-lo”.

5. O ex-Ministro Geral retoma ideias e questionamentos feitos pelo Papa Bento XVI em algumas de suas audiências. Eis algumas de  suas  interrogações:  Ter fé no Senhor não é um fato que interessa só à inteligência, mas leva a uma transformação que atinge toda a vida, a totalidade do ser humano: sentimento, coração, corporeidade, vontade, inteligência, relações humanas. O então Papa Bento XVI perguntava: “A fé é realmente uma força transformadora em nossa vida, em minha vida? Ou é só um dos elementos que fazem parte do pano de fundo de minha existência, sem ser  a determinante que a envolve totalmente?”

6. “A atestação da fé dos discípulos e a biografia dos santos não deixam dúvida: a fé cristã se dá sempre como conversão. O reconhecimento-acolhida de Jesus como verdade da vida acontece em termos de conversão. O contexto atual do desaparecimento de uma “sociedade  cristã” pede atenção especial no tocante à questão da fé. Não se nasce mais cristão, será preciso tornar-se cristão. Falamos, então, de  um itinerário espiritual de iniciação” (“Mario Antonelli,  La fede radice de la vita Cristiana, in Rivista de Clero Italiano 11/ 2012, p.757).

7. Converter-se e crer são verbos que são sempre associados. Isso já se dava no Antigo Testamento. “Converter-se é essencialmente e antes de tudo crer nesse acontecimento inaudito que mal podemos crer. Em todo o Antigo Testamento, a fé era um ato de confiança nas promessas do Deus da Aliança que revela progressivamente aos homens seu grandioso desígnio de amor. A fé era, já então, resposta do homem a esta iniciativa de Deus. Converter-se é sempre voltar para ele com confiança. Jesus pede a mesma confiança nele como a que era prestada ao Deus da Aliança. Pede que nele creiamos  porque ele é o Reino, a força do Amor de Deus que se aproximou de nós.

8. Converter-se é acolher na fé esta iniciativa gratuita, imprevisível de Deus que decidiu em Jesus nos visitar em pessoa para nos salvar, quer dizer, nos fazer ingressar numa felicidade sem fim. Converter-se é aceitar de ser salvo  gratuitamente  e fazer com que a vida seja colocada em sintonia com este acontecimento. Converter-se é mudar a direção da vida, é renunciar a viver como centro do mundo e como autossuficiente. É arriscar ou apostar nossa vida, nosso futuro, nossa busca de plenitude em Jesus que nos chama para seu seguimento. É caminhar com certeza que não são vistas.

9. A conversão não quer dizer, em primeiro lugar, passar do vício à virtude, mas viver uma mudança radical:  aceitar nunca mais querer fazer a vida sozinho, à força de teimosia, mas acolher em Jesus a iniciativa de Deus, a gratuidade de seu amor.  No começo de tudo, não há mais o eu, o homem, mas o Amor de Deus.

10. A fé é descentralização de si. É morte a si mesmo. Supõe o combate, como esse corpo-a-corpo de Jacó com Deus. Como aconteceu com São Paulo, mais dia menos dia, somos convidados a consentir que sejamos “desarrumados” por Alguém em nossos projetos, em nossas ideias feitas a respeito de Deus. É Deus que procura o Homem. “Adão, onde estás?”.

11. Em sua reflexão, Frei José Carballo faz alusão a uma palavra de São Boaventura. “São Boaventura, no Prólogo do Brevloquium, define a fé com três imagens que considero muito esclarecedoras em relação ao que estamos dizendo: “fundamentum stabiliens”, fundamento que dá estabilidade; “lucerna dirigens”, lâmpada que dirige;  “ianua introducens”, porta que introduz.  Enquanto fundamento, a fé é o que dá estabilidade à nossa vida; enquanto lâmpada, a fé é a luz que  permite ver e indica a direção correta;  enquanto porta, é a que permite ir mais além e que introduz à comunhão com o Santo dos santos”.  Belas imagens: fundamento, luz e porta.

12. “Tentando sintetizar ao máximo, penso que a resposta à pergunta, o que é a fé?, seja adesão. Adesão cordial a uma pessoa, à pessoa de Cristo, e adesão gozosa aos conteúdos, os que a Igreja nos propõe no Credo e através do Magistério. A adesão à pessoa de Jesus Cristo, essencial na vida da pessoa que crê, comporta um encontro pessoal com Jesus através de uma intensa vida de oração, de uma rica vida sacramental e da Leitura orante da Palavra. Temos que ser muito conscientes que no campo da fé jogamos tudo no encontro com a  pessoa de Jesus. Sem este encontro, nossa adesão será uma ideia ou uma ideologia, nunca a uma pessoa e a uma forma de vida” (Frei José R. Carballo).

13. “A adesão aos conteúdos da fé que nos apresenta a Igreja comporta o conhecimento de tais conteúdos e uma reflexão profunda sobre eles, assim como uma visão de fé sobre a própria Igreja. Não se trata de professar “a minha fé”, mas de fazer minha a fé da Igreja (…) faço meu o convite do último Sínodo para reanimar o nosso entusiasmo de pertencer à Igreja (cf. Inst. Laboris 87). Somente com este entusiasmo poderemos restaurá-la, como fez Francisco”.

14. Quase no final de sua Carta Apostólica Bento XVI escrevia: “Já no termo de sua vida, o Apóstolo Paulo pede ao discípulo Timóteo que “procure a fé” (cf. 2Tm 2,22) com a mesma constância de quando era novo (cf. 2Tm 3,15). Sintamos esse convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé. Esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a se tornar sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo  tem hoje particular necessidade é o testemunho credível  de quantos iluminados na mente e no coração pela Palavra do Senhor são capazes de abrir o coração e a mente de muitos ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem fim” (. 15).

15. Retomamos a citação de Gregório de Nissa. O cristão, esse novo ser é concebido pela fé, vem à luz pelo batismo, ele tem por mãe a Igreja. Esta o alimenta com sua doutrina e suas tradições. O alimento dos renascidos é o pão celeste, sua idade adulta é a santidade, seu matrimônio é a familiaridade com a sabedoria; os filhos do que creem é a esperança, sua riqueza são as delícias do paraíso, seu fim não e a morte, mas a vida feliz e eterna. A beleza de nossa vida cristã é conviver com pessoas que caminhando entre nós têm os olhos fitos no Senhor. Somos peregrinos que juntos acreditamos.

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Extraído de: http://www.franciscanos.org.br/

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