18 de abril de 2014

Os últimos momentos de Jesus no alto da Cruz


Por Frei Ludovico Garmus

Introdução

Durante a Semana Santa a liturgia prevê, no Domingo de Ramos, a leitura da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo Mateus e na Sexta-Feira Santa a de João.
As narrativas da Paixão têm basicamente o mesmo esquema e conteúdo nos quatro evangelhos, embora cada evangelista tenha algo de próprio no conteúdo, na disposição do material e nos acentos teológicos próprios.

No presente estudo, “Os últimos momentos de Jesus no alto da cruz”, vamos analisar apenas uma pequena parte da narrativa da Paixão:
- a crucifixão de Jesus: Mc 15,22-32; Mt 27,33-44;
Lc 23,33-43; Jo 19,17-24;
- a morte de Jesus: Mc 15,33-41; Mt 27,45-55; Lc 23,44-49; Jo 19,29-37;

Alguns pesquisadores pensam que o primeiro evangelho, o de Marcos, tenha começado a ser escrito pela parte final, isto é, pela última semana de Jesus em Jerusalém. Marcos seria um relato da paixão com uma ampla introdução. Em outras palavras, o evangelho se desenvolveu a partir da narrativa da paixão de Cristo, já existente, ao menos em forma oral. A pregação inicial feita pelos apóstolos aos poucos deve ter criado esquemas fixos. Tais esquemas serviam para fazer o querigma, ou anúncio ao povo, isto é, aos judeus que ainda não criam em Jesus e, depois, aos pagãos. 
O esquema destas pregações corresponde basicamente aos futuros evangelhos. Destacamos apenas dois textos:
- 1Cor 15,3-5: “Eu vos transmiti, em primeiro lugar, o que eu mesmo recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as escrituras; que apareceu a Cefas e depois aos Doze”.
- At 10,36-38: “Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia, começando pela Galiléia, depois do batismo pregado por João. Como Deus ungiu Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder. Como ele andou fazendo o bem e curando todos os oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com ele”.

Como se vê, tanto a anúncio de Paulo como o do discurso de Pedro começam pela recordação da morte de Jesus. No discurso de Pedro, se o v. 36 for invertido em sua seqüência, temos o esquema geográfico do evangelho de Marcos: “o que aconteceu na Judéia” (Mc 11,1-16,8), “começando pela Galiléia” (Mc 1,14-10,52), “depois do batismo pregado por João” (Mc 1,1-13). Tanto o querigma primitivo como a celebração da ceia nas casas pode ter contribuído para a formulação das narrativas da paixão/ressurreição de Jesus. A obediência à ordem de Jesus, “fazei isto em memória de mim” (cf. 1Cor 11,23-24: Lc 22,19), foi a situação vital que favoreceu a elaboração, inicialmente, do relato da paixão/ressurreição e depois do restante do evangelho. Não é de estranhar que o relato da ceia tenha se tornado uma introdução ao relato da paixão propriamente dita.

Com o querigma, feito aos de fora, os cristãos precisavam justificar por que anunciavam e seguiam um Messias crucificado, “escândalo para os judeus, loucura para os gregos” (1Cor 1,23). Dentro da comunidade reunida para celebrar a ceia ou para a catequese precisavam entender, à luz das Escrituras, este “escândalo da cruz”; precisavam entender, à luz dos profetas, “que era necessário que o Cristo sofresse tudo isso para entrar na sua glória” (Lc 24,25-26). Daí a centralidade que as narrativas da paixão/ressurreição ocupam nos Evangelhos.

Marcos parece ter sido o primeiro a reunir e ordenar o material da história da paixão, antes contado oralmente. Depois de Marcos, Mateus e Lucas refundiram seu relato da paixão segundo suas perspectivas teológicas próprias. De fato, em nenhuma outra parte dos evangelhos há tanta coincidência dos evangelistas como nas narrativas da paixão, sobretudo, a partir da prisão de Jesus (cf. Mc 14,43 e paralelos) e, particularmente, da história da crucifixão.


1. A crucifixão

Marcos, na cena da crucifixão menciona o local (Gólgota), a oferta de vinho com mirra, a repartição das vestes por sorteio, a inscrição sobre a cruz e, por fim, os dois bandidos que com Jesus foram crucificados1 . Mateus menciona os mesmos fatos, precisando que o vinho foi misturado com fel e que havia ali guardas sentados, vigiando Jesus. Algumas mulheres, que seguiram Jesus desde a Galiléia (cf. Mc 15,41), provavelmente, prepararam uma bebida que causava torpor, como era costume oferecer aos condenados. Em Pr 31,4-6 se aconselha que os governantes se abstenham de vinho e licores, “para não esquecer as leis e descuidar do direito de todos os pobres”, mas recomenda: “Que se dê licor ao que vai morrer e vinho aos amargurados”. Jesus, porém, se nega a beber, para enfrentar o sofrimento e a morte conscientemente. No Getsêmani, Jesus estava disposto a beber o cálice do sofrimento até o fim (Mc 14,36).
A repartição das vestes dos condenados à morte entre os que executavam a sentença estava prevista nas leis romanas. Mas a Igreja primitiva, que lia o Sl 22 para expressar a paixão de Jesus, viu no sorteio das vestes o cumprimento de uma profecia: “Repartem entre si minhas vestes e sobre minha túnica lançam a sorte” (Sl 22,19). João diz que as vestes foram divididas em quatro partes pelos soldados e somente a túnica sem costura foi sorteada.
Lucas omite na cena da crucifixão a oferta da bebida e a inscrição sobre a cruz, definindo o motivo da condenação. Lembra, porém, que junto com Jesus foram crucificados dois “criminosos” (em vez de bandidos de Mt e Mc), talvez relendo Is 53,12: “entregou sua vida à morte e se deixou contar entre os criminosos”. Lucas é o único a citar, no contexto da crucifixão, uma oração de Jesus pedindo perdão: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” (23,34). “A primeira palavra de Jesus na cruz foi uma palavra de perdão” (Lagrange). Este pedido de perdão poderia se referir aos soldados romanos. Mas, à luz de At 3,17.19 e da oração de Santo Estevão (At 7,59-60), é mais provável que Jesus estivesse pensando nas autoridades judaicas que causaram sua condenação. No momento supremo de sua vida e missão, Jesus dá o exemplo do perdão do qual falava (Lc 6,27-36; 17,3; cf. Is 53,12) e incluiu na oração do Pai Nosso (11,4).

João cita a oferta da bebida só mais tarde (19,29), mas insiste na inscrição “Jesus Nazareno, o rei dos judeus”, escrita em hebraico, grego e latim. Os sumos sacerdotes reclamaram com Pilatos e queriam que a inscrição fosse modificada: em vez de “Jesus Nazareno, rei dos judeus” para “eu sou o rei dos judeus”. Mas Pilatos respondeu com a famosa frase: “O que escrevi, está escrito”. Jesus foi acusado de pretender ser um messias, rei dos judeus. Mas já no processo João rebate esta acusação: o reino de Jesus não é deste mundo (Jo 18,33-38; cf. Mc 15,2 e paralelos)].

2. Os insultos e os dois bandidos

Marcos e Mateus dividem os que insultam Jesus na cruz em três grupos: os que passavam perto do Gólgota, os sumos sacerdotes, escribas e anciãos e, finalmente, os dois bandidos crucificados. Em Marcos, os insultos giram em torno do título Messias-Rei. Os passantes retomam a falsa acusação feita contra Jesus de que Jesus prometeu destruir o Templo e desafiam-no a descer da cruz, salvando-se a si mesmo (Mc 14,58; 15,19), já que é tão poderoso; ao dizer isso eles “movem a cabeça”, como no Sl 22,8 e em Lm 2,15. De fato, Jesus havia salvado muitas pessoas, curando-as. Mas também havia dito: “Quem quiser salvar sua vida vai perdê-la…” (Mc 8,35). Os escribas e sumos sacerdotes repetem o insulto e acrescentam que, se o “Cristo, rei de Israel”, descesse da cruz, até eles haveriam de crer nele (Mc 15,32; Mt 27,42b). Lucas afirma que os soldados, ao oferecerem vinagre a Jesus, diziam: “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo”, lembrando que acima da cabeça de Jesus estava escrito: “Este é o rei dos judeus” (Lc 23,36-38).

Os insultos dirigidos a Jesus na cruz lembram Sb 2,17-20 e Sl 22,7-9. Mesmo desafiado, Jesus nega-se a usar de seu poder para descer da cruz. Já na tentação do deserto (Lc 4,3.9) “Jesus havia feito sua opção definitiva entre demonstrar seu poder e entregar-se totalmente em obediência ao Pai” (Hendrickx: 1986, p. 155).

Marcos e Mateus dizem que também os dois bandidos crucificados participavam dos insultos. Lucas distingue: Apenas um dos criminosos blasfemava, dizendo: “Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós” (Lc 23,39). O outro, porém, o repreendeu, dizendo que, se eles mereceram o castigo, Jesus era inocente e lhe fez um pedido: “Jesus, lembra-te de mim quando vieres como rei”. E Jesus respondeu: “Ainda hoje estarás comigo no paraíso”. O criminoso pensa, como os judeus em geral, na felicidade futura. Para Jesus, porém, a esperança da salvação futura é uma salvação que já se experimenta hoje (cf. Lc 2,11; 4,21; 19,9). No Antigo e no Novo Testamento, a essência da felicidade é estar com Deus.

3. Os sinais precursores da morte de Jesus

Marcos e Mateus citam dois sinais precursores: as trevas e o véu do Templo que se rasga. As trevas teriam coberto sobre toda a terra desde a hora sexta, meio-dia, até a hora nona, três da tarde. Não se trata de procurar uma explicação natural, como um eclipse ou o vento siroco, que pode trazer tanta poeira do deserto a ponto de fazer escurecer o céu. O fenômeno sugere um efeito cósmico da morte de Jesus e faz parte da linguagem escatológica do dia do Senhor e do julgamento divino, por ocasião da vinda do Filho do Homem: “Naqueles dias… o sol escurecerá” (Mc 13,24). Ou como diz Amós: “Acontecerá naquele dia que farei o sol se pôr em pleno meio-dia e escurecerei a terra em um dia de luz” (Am 8,9). Em João a paixão é também entendida como um julgamento divino: “Agora é o julgamento do mundo” (Jo 12,31).

4. Palavras de Jesus e intervenção do soldado

Apenas Marcos e Mateus dizem que Jesus, com voz forte gritou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” O grito de Jesus, citando o Sl 22,1, expressa a radical solidão do sofrimento e morte de Jesus. Não se trata de um grito de desespero de um moribundo, mas inclui também uma expressão radical de entrega a Deus, como se expressa na ação de graças e certeza da proteção divina da parte final do Sl 22,22-31. Neste sentido, alguns pensam que Jesus estivesse rezando o Salmo 22. Talvez para ressaltar o aspecto positivo e confiante Lucas, omite este grito. O grito de Jesus chamou a atenção dos soldados e um deles, entendo mal a expressão “meu Deus” (Eli ou Eloí), disse: “Vede! Ele está chamando Elias”. Elias era considerado o precursor do Messias (cf. Ml 3,23; Mc 9,11-13). Foi arrebatado ao céu num carro de fogo (2Rs 2,11-14) e se acreditava que, ao ser invocado, viria resgatar o justo necessitado.

Com Lucas, João omite o grito de abandono do Sl 22,1; em vez disso, mostra que nem todos abandonaram o Mestre: Junto à cruz “estavam de pé, sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena”, além do discípulo amado (Jo 19,25-27). João, em vez de um Jesus abandonado pelo Pai, mostra um Jesus preocupado com o possível abandono de sua mãe, após sua morte. Por isso, com as palavras “mulher, aí está o teu filho” e “aí está tua mãe”, confia-a aos cuidados do discípulo amado.

5. A morte de Jesus e repercussões

Depois desta cena, Marcos e Mateus lembram que Jesus deu mais um forte grito e expirou. Em Lucas, que omitiu o Sl 22,1 (“meu Deus, meu Deus por que me abandonaste?”), antes de expirar, Jesus diz: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”, citando o Sl 31,6. Como nos salmos, Jesus aparece como o justo que sofre, mas se entrega confiante a Deus e é reabilitado. João mostra um Jesus consciente até o fim; por isso, “para cumprir plenamente a Escritura”, diz: “Tenho sede”. Neste momento, um dos soldados, molha em vinagre a esponja presa numa vara e a aproxima da boca de Jesus. Ao contrário de Mc 15,23 e Mt 27,34, Jesus provou o vinagre: “Depois de provar o vinagre, Jesus disse: ‘tudo está consumado’. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19,28-30).

A expressão “tenho sede”, no contexto do vinagre servido, lembra o lamento do justo sofredor do Sl 69,22: “Puseram veneno no meu alimento, em minha sede deram-me a beber vinagre”. A palavra “tudo está consumado” expressa o desejo profundo de Jesus de cumprir a vontade do Pai. A cena de Jesus e a samaritana junto ao poço de Jacó já expressava muito bem este desejo. De fato, embora Jesus tenha pedido água para a samaritana acabou não bebendo água; e, quando os discípulos lhe oferecem pão, Jesus diz: “Meu alimento é completar é fazer a vontade daquele que me enviou e completar a sua obra” (Jo 4,34). Do mesmo modo, na hora da prisão, Jesus manda Pedro recolher a sua espada e diz: “Será que não devo beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18,11). Por outro lado, como em Lc 23,46, em João ninguém tira a vida de Jesus. É ele que “entrega” o seu espírito: “O Pai me ama porque dou minha vida para de novo a retomar. Ninguém a tira de mim. Sou eu mesmo que a dou” (Jo 10,17-18).

6. Ocorrências após a morte de Jesus

Marcos mostra um duplo significado da morte de Jesus. A ruptura do véu (v. 38) tem um significado em relação ao povo judeu e a confissão do oficial romano (v. 39) se relaciona com os gentios. Em Mateus e Marcos o véu do Templo se rompe após a morte de Jesus, enquanto em Lucas, antes da morte. No Templo havia dois véus. Um véu exterior, que separava o Santo do pátio exterior (Ex 26,37; 38,18) e um véu interior, que separava o Santo do Santíssimo2 . Em qualquer caso, se os evangelhos sinóticos mencionam a ruptura do véu (interior ou exterior) no contexto do momento da morte de Jesus é porque isso tinha um significado simbólico mais profundo. Poderia significar que, com a morte de Jesus, o serviço do Templo fica abolido e sua destruição está próxima. Outros vêem na ruptura o fim da barreira entre Deus e o homem (cf. Hb 9,1-12.24-28; 10,19-25). Outra possibilidade seria que, com a morte de Jesus, acaba a separação entre judeus e gentios (cf. Ef 2,11-22). Em suma, a morte de Jesus marca o fim da economia do Antigo Testamento e abre o caminho da salvação para todos os povos.

Segundo Mateus, a ruptura do véu foi acompanhada de outros fenômenos cósmicos: “A terra tremeu e fenderam-se as rochas. Os túmulos se abriram e muitos corpos de santos ressuscitaram. Eles saíram dos túmulos, depois da ressurreição d’Ele, entraram na Cidade Santa e apareceram a muitos” (27,51b-3). A descrição se inspira no motivo apocalíptico da ressurreição, prevista para a era messiânica (cf. Ez 37,1-14). Na linguagem apocalíptica o terremoto acompanha a descrição de teofanias, ou manifestações divinas, como sinal de uma nova ação salvífica (cf. Jl 2,10; Ag 2,6.21).

Por outro lado, a ruptura de rochas também acompanha a própria ação divina (Is 48,21; Na 1,5-6). Tumbas que se abrem marcam a descrição da ressurreição do povo em Ez 37,12s. “Santos” no Sl 34,9 é sinônimo de fiéis. Os rabinos chamam “santos” os que observam os mandamentos divinos. Em Mt 27,52 talvez se refira a personagens importantes do Antigo Testamento. A ressurreição dos mortos é o ato salvífico escatológico de Deus por excelência. Jerusalém com seu templo era o lugar da presença de Deus. Aqui, a expressão “Cidade Santa” indica a Jerusalém celeste (Hb 11,10.16; 12,22; Ap 21,2.10; 22,19. Enfim, todos estes sinais não devem ser entendidos literalmente, mas são afirmações teológicas para expor o significado da morte de Jesus. “Depois da ressurreição d’Ele”, talvez seja um acréscimo para deixar claro que “Cristo ressuscitou dos mortos como o primeiro dos que morreram” (1Cor 15,20) e na sua ressurreição se baseia a fé na ressurreição dos mortos (1Cor 15,12-19).

À vista destes fenômenos cósmicos, Marcos e Mateus trazem a confissão do centurião romano: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus”. Marcos põe na boca do centurião aquilo que mais tarde faria parte da confissão cristã a respeito de Jesus. Com esta frase o centurião caracteriza a vida inteira de Jesus, até sua morte, como a de filho de Deus (cf.Mc 1,1 e 15,39). A expressão “filho de Deus” ainda não é o que entendemos por ” segunda pessoa da Trindade”, definição que foi feita apenas em 325 dC, no Concílio de Nicéia. No Antigo Testamento o povo de Israel era chamado filho de Deus: “Quando Israel era menino, eu o amei e do Egito chamei o meu filho” (Os 11,1). O rei, como representante do povo, era também chamado “filho” de Deus (2Sm 7,12-16). À luz do Sl 2,7, ‘filho de Deus” pode ser entendido mais em sentido messiânico. A confissão do centurião, de qualquer forma, vai mais longe que a de Pedro, que reconhece em Jesus apenas o Cristo (Mc 8,29) e afirma o que o sumo sacerdote considerou como blasfêmia (Mc 14,64). Em João, o próprio Jesus, ao discutir com os judeus, diz: “Se a Lei chama deuses àqueles a quem se dirigiu a palavra de Deus – e a Escritura não pode falhar – como podeis dizer que blasfema aquele que o Pai santificou e enviou ao mundo só porque eu disse: ‘Sou Filho de Deus’” (Jo 10,35-36). Marcos quer deixar claro à comunidade cristã que somente quando Jesus é visto como aquele que sofreu, morreu, ressuscitou e há de vir de novo, é que pode ser chamado filho de Deus em sentido próprio (Hendrickx: 1986, p. 130-131).

Mateus coloca o reconhecimento de que Jesus era filho de Deus na boca do centurião e dos guardas que com ele estavam. Esta confissão é acompanhada pelo temor diante de uma manifestação divina: “ficaram com muito medo” (27,54: 9,8; 17,6). Em Mateus Jesus é reconhecido como “filho de Deus” já antes pelos discípulos, quando Jesus caminha sobre as águas ao encontro dos discípulos em meio ao mar agitado (Mt 14,33). Em Cesaréia de Filipe, Pedro também confessa que Jesus é “o Cristo, o Filho do Deus vivo” (16,16). E agora, junto à cruz, ao reconhecer que Jesus era filho de Deus, enquanto os chefes do povo o rejeitavam, o centurião romano torna-se um exemplo de profissão de fé para a comunidade cristã de Mateus. Jesus já havia elogiado esta fé num centurião romano que pedia a cura de seu servo: “Em ninguém de Israel encontrei tanta fé” (Mt 8,10-12).

Em Lucas o centurião diz: “Realmente, este homem era um justo”. Pilatos e o criminoso declararam que Jesus era inocente. O texto de Lucas parece sugerir que o centurião, tendo acompanhado todo o processo diante de Pilatos (23,2-25) e vendo a acontecido, reconhece que Jesus não tinha ambições políticas de que era acusado, mas era um justo. Em Lucas, o centurião reconhece que Jesus era um justo enquanto “glorificava” a Deus. Em outras ocasiões, em Lucas, o “louvor” ou a “glorificação” é a resposta cristã diante de palavras e gestos de Jesus. A glorificação é a resposta de quem crê que Deus interveio de modo decisivo na história da salvação (Lc 1,42.64; 2,20.28; 17,15, etc.). O título “justo” lembra o sofredor que é reabilitado como justo (Sl 31,19). Para Lucas “justo” é um título messiânico (At 3,14-15; 3,14; 7,52; 22,14) e lembra o servo sofredor de Isaías: “O justo, meu servo, justificará a muitos e tomará sobre si as suas iniqüidades” (Is 53,11). Além das palavras do centurião, Lucas acrescenta que a multidão, testemunha do que aconteceu, volta arrependida, “batendo no peito”. Pode ser uma alusão a Zc 12,1.10 onde, diante do “transpassado” que morre, o povo se arrepende e faz lamentação. Pode-se também ver uma antecipação do dom do Espírito e do perdão, conforme At 2,38: “Arrependei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para o perdão dos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo”.

7. Mulheres e outros que estavam presentes

No jardim de Getsêmani, quando Jesus é preso, todos os discípulos o abandonam. Um discípulo jovem tentou segui-lo, mas também acaba fugindo (Mc 14,50-51). Pedro, que jurara permanecer fiel, acompanha Jesus, junto com outro discípulo, até a casa do sumo sacerdote, mas acaba negando que conhece o Nazareno. João é o único que fala de um discípulo, o discípulo amado, presente junto à cruz. Marcos e Mateus, com algumas variantes, dizem que as mulheres presentes eram muitas, seguiam Jesus e o serviam desde a Galiléia, e mencionam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, a mãe dos filhos de Zebedeu (Mt) e Salomé (Mc).Lucas não cita nomes, mas, em outro lugar, identifica pelo nome estas mulheres que seguiam e serviam a Jesus desde a Galiléia: Maria Madalena, Joana, mulher de Cuza e Susana, além de “muitas outras” (cf. Lc 8,2-3).

Acrescenta, porém, que estavam junto à cruz “todos os conhecidos de Jesus”. Logo, também os onze discípulos estariam presentes, à distância, como testemunhas da morte de Jesus.O vínculo entre o mestre e os discípulos não estaria de todo rompido. De fato, Lucas omite a fuga dos discípulos e lembra que “Pedro o seguia à distância” (Hendrickx: 1986, p. 163-164). João é o único a dizer que “junto à cruz estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena”, além do discípulo que Jesus amava (Jo 19,25-26).
A presença das mulheres junto à cruz é mencionada em Marcos, Mateus e Lucas porque elas exercem uma função importante no sepultamento e no encontro do túmulo vazio (Mc 15, 47-16,8; Mt 27,61; 28,1-10; Lc 23,55-24,1-11).

Conclusão

Como vimos acima, Marcos recolheu materiais do relato da paixão, anteriores a ele, e foi o primeiro a organizá-los, dando-lhes alguns acentos teológicos próprios. Mateus e Lucas (e de certa forma João) respeitaram estes dados da tradição oral e acolheram a organização que lhes foi dada por Marcos. Também eles têm seus acentos teológicos próprios.
Marcos tem uma reflexão cristológica própria. Jesus é um inocente, crucificado como Messias, “rei dos judeus” (Mc 15,2.9.12.18.26). Provavelmente, ao falar do silêncio de Jesus e de sua inocência, esteja fazendo uma alusão aos cânticos do Servo Sofredor (Is 53,7.9). Realça o contraste entre Jesus e Barrabás, e a crescente solidão e rejeição de Jesus. No seu relato fica, também, clara a responsabilidade dos judeus (Mc 15,3-14). O julgamento de Jesus diante de Pilatos é um julgamento do rei dos judeus, que silencia enquanto os judeus o acusam (Hendrickx: 1986, p. 92-93).
Mateus dá também destaque ao aspecto cristológico, insistindo na fé e no título “filho de Deus” (Mt 27,40.43.54). O relato de Mateus tem uma característica fortemente eclesial (Hendrickx: 1986, p. 149). A morte de Jesus marca o fim da antiga aliança e o começo do novo povo de Deus (Mt 27,51-54). Com Marcos, frisa também ferrenha oposição dos chefes judeus e sua responsabilidade pela morte de Jesus.
Lucas dá um realce ao amor de Jesus pelos pecadores, tanto na cruz como durante seu ministério público, e à firma confiança na proteção do Pai (Hendrickx: 1986, p. 164). Jesus não é alguém abandonado e rejeitado por todos. No caminho da cruz, recebe a solidariedade de Simão Cireneu, é seguido por uma multidão de povo e mulheres, que se compadecem dele e as quais Jesus exorta. Em lugar de “bandidos” que amaldiçoam a Jesus, aparece um “criminoso” arrependido e que recebe a promessa de estar na presença de Deus (Lc 23,39-43). Lucas substitui o grito de abandono de Jesus – “meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Sl 22,2) – pelo de confiança: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Sl 31,6). Lucas não fica no aspecto escatológico dos sinais após a morte de Jesus, mas acentua a relação pessoal de um centurião que declara Jesus como um justo e da multidão que, arrependida, bate no peito (Lc 23,47-48).
Como vimos, cada um dos evangelistas tem o seu modo próprio de contar a paixão. Que eles nos inspirem a meditarmos e vivermos com maior profundidade a paixão e morte de Jesus, nas celebrações da Semana Santa.

Bibliografia:
BURNIER, Martinho Penido. Perscrutando as Escrituras, fasc. IX: Paixão e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo (III). Círculos Bíblicos. Petrópolis: Ed. Vozes, 1971, 203 p.
GOURGUES, M. Jesus diante de sua paixão e morte. Cadernos Bíblicos, 24. São Paulo: Paulinas, 1985, 80 p.
HENDRICKX, Herman. Los relatos de la pasión. Madrid: Ediciones Paulinas, 1986, 228 p.
KONINGS, Johan. Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “fonte Q“. Bíblica Loyola, 45. São Paulo: Ed. Loyola, 2005.



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