2 de abril de 2010

Aquela Sexta-feira

Estamos vivendo o dia da Paixão e Morte do Senhor. Celebramos, nos sinais das liturgia, o amor que é crucificado. Os celebrantes, vestidos de vermelho, do vermelho dos mártires, entram em silêncio no templo pelas três da tarde. Prostram-se, ouvem as Escrituras. A Igreja reza por todos, adora a cruz e silenciosamente os fiéis recebem a Eucaristia com o pão consagrado na véspera.

A sexta-feira é um dia árido, marcado pela solidão e pelo sofrimento de Jesus. Vendo a Jesus sendo julgado pelos poderes religiosos e políticos de sua época, abandonado por muitos de seus amigos, os fiéis se deixam tocar pela dor do Senhor.

A cruz é o emblema do cristianismo, a figura com a qual é identificado. A razão é muito simples: esse Jesus que confessamos como nosso Salvador, morreu pregado na cruz, é o Crucificado. A crucifixão era um terrível suplício reservado pelos romanos quase que exclusivamente aos escravos, aos réus de delitos, especialmente odiosos, morte atroz,
mors turpissima. Tal suplicio foi abolido por Constantino.

Ouvimos o relato da Paixão segundo João. Ali a morte de cruz é apresentada como manifestação da glória. “Quando eu for elevado atrairei tudo a mim” ( Jo 12,32). Assim como Moisés tinha levantado a serpente de bronze no deserto, da mesma forma Jesus será erguido”. Um autor afirma que João dá a seu texto a forma de uma entronização. Jesus é apresentado por Pilatos, revestido com um manto de púrpura, recebe o título de rei, afixando junto à cruz. Sua última palavra é: “Tudo está consumado”. Tudo acontece para se cumpram as Escrituras.

É de João, e só de João, o detalhe da lança que perfura o peito de Jesus. Dali correm sangue e água, sinais de vida e de fecundidade. Os olhos de todos se voltarão para aquele que crucificaram... A cruz é gloriosa.

Jesus, sabendo que tudo estava consumado, a fim de que se cumprisse as Escrituras, disse: “Tenho sede”. Havia perto um caso cheio de vinagre. Depois de ter provado a bebida, diz: “Tudo está consumado”. E inclinando a cabeça, entregou o espírito (cf. Jo 18, 28-30).

A morte é, para Cristo, também realização e cumprimento de seu desejo, de sua sede que não seria satisfeita tomando um gole de bebida, mas no abraço com Pai do qual ele sempre fez a vontade.

A morte de Jesus aparece ainda como realização ou cumprimento do amor. A cruz é símbolo de uma vida doada, dada até o fim. A morte de Jesus não foi um acontecimento suportado, mas um ato do qual ele é sujeito. Jesus dá sua vida. O verbo que João escolhe para indicar o morrer de Cristo designa um ato de um vivente. João não nos diz que Jesus morreu, mas que “entregou o espírito” (19,30). Trata-se de uma ação consciente e livre de um ser vivo. Depois de ter dado tudo, dá também o seu espírito.

“A morte, como entrega do Espírito Santo, torna-se um Pentecostes, acontecimento que transmite o principio da vida espiritual à existência do cristão. Desta forma se define ulteriormente a concepção da morte de Jesus no quarto evangelho: a morte é glória. A glória do amor vem a morte e lhe dá um outro significado fazendo dela ocasião de dom. Jesus aparece como rei (pense-se na coroa de espinhos) e sua via-crucis é, na verdade um cortejo de entronização real. A cruz é, antes de tudo, julgamento do mundo, caminho em direção ao Pai, êxodo rumo ao Pai, uma páscoa, uma passagem deste mundo ao Pai. Na cruz, para João, já está incluída a totalidade do mistério pascal”
(Testi per le celebrazioni eucharistiche di Quaresima e tempo di Pasqua. Comunità di Bose, Milano 2006, p. 34-35).

Aderir ao mistério de Cristo é deitar na cruz com Cristo, ser com ele exaltado e com ele morrer. Não é isso que vivemos intensamente na Sexta-feira das Dores? Ou na Sexta-feira luminosa? Aceitamos que de cada uma de nossas mortes jorre uma fonte de vida. Morremos a tudo o que nos impede de andar, livremente. A cruz atravessa nossas noites.. Através dos ritos da sexta-feira santa nosso ser, nossas lágrimas e nossas alegrias são transformadas.

Melitão de Sardes (século II): “Foi Cristo o cordeiro que não abriu a boca, o cordeiro imolado, nascido de Maria, a bela ovelhinha; retirado do rebanho foi levado ao matadouro, imolado à tarde e sepultado à noite; ao ser crucificado não lhe quebraram osso algum e ao ser sepultado, não experimentou a corrupção; mas ressuscitando dos mortos, ressuscitou também a humanidade das profundezas do sepulcro” (Liturgia das Horas II, p.401).


Frei Almir Guimarães

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