1. São João Damasceno resume de maneira admirável o mistério da passagem, da páscoa de Jesus e nossa páscoa em Cristo: “Cristo está na cruz: aproximemo-nos dele, participemos de seus sofrimentos para ter parte também em sua glória. Cristo jaz entre os mortos: morramos ao pecado para vivermos para a justiça. Cristo repousa num túmulo novo: purifiquemo-nos do velho fermento, tornemo-nos uma massa nova e sejamos para ele um lugar de repouso. Cristo desce à mansão dos mortos: desçamos também com ele pela humilhação que exalta, a fim de ressucitarmos, sermos exaltados e glorificados com ele, sempre vendo e sendo vistos por Deus. Vós que sois do mundo, sede livres; vós que estais amarrados, saí; vós que estais nas trevas, abri os olhos para a luz; vós que estais no cativeiro, libertai-vos; cegos, levantai os olhos. Desperta, Adão que dormes, levanta-te dentre os mortos, pois Cristo, nossa ressurreição apareceu!” (Lecionário Monástico, II, p. 621).
2. Na espiritualidade cristã há um ponto fundamental: os que são de Cristo morrem com ele e com ele ressuscitam. Passam da terra da servidão, pelo deserto, até a terra prometida. O mistério pascal situa-se no centro de nossa vida cristã. Através dos gestos de Cristo, manifestados em sua páscoa, temos uma idéia do alcance do amor de Deus e passamos a conhecer o caminho do verdadeiro êxodo. Esse mistério ocupa lugar central em nossa vida pessoal e cristã. Morremos a nós mesmos e nascemos para a vida de Cristo.
3. “Francisco se movimentava com espontaneidade numa atmosfera pascal. Era como se fosse a sua própria casa, uma vez que sua identificação com Cristo o levava a viver em si mesmo o que era de mais central no destino e no comportamento de Jesus” (Dicionário Franciscano, p.533). Seguidores de Francisco, nós olhamos para a Terra Prometida vivendo a dinâmica do provisório, como peregrinos e forasteiros. Também nos movimentamos na atmosfera pascal. “Francisco mostrou aos seus irmãos que eram os verdadeiros hebreus, atravessando o deserto deste mundo, como peregrinos e estrangeiros e que deviam sem cessar, com a alma de pobre, celebrar a Páscoa do Senhor, isto é, a passagem deste mundo ao mundo do Pai” (LM 7,9).
4. Há um conjunto de textos e fatos do Novo Testamento que sintetizam a páscoa de Cristo. Na quinta-feira santa, há a ceia do serviço. Os cristãos sabem que dão seu corpo para a vida dos outros, assim como Cristo o fez, no lavapés e na eucaristia. Ceia e serviço se entrelaçam. Depois das humilhações e do abaixamento sem fim, depois dos momentos difíceis no Jardim das Oliveiras, Cristo, suspenso entre o céu e a terra, dá a vida, dá seu espírito, morre no dom, faz chegar até Deus na nudez de sua vida o sim definitivo. Depois, quando o tempo se conclui, ressuscita. Estava acabada sua passagem e realizada sua páscoa. Misturam-se muitas categorias mentais: êxodo, peregrinação, abaixamento, dom de vida, morte, expropriação e plenificação.
5. Francisco viveu de tal modo sua vida no clima da refeição da quinta-feira santa que quis fazer de sua família uma fraternidade onde os irmãos viessem a lavar os pés uns dos outros. Nesse clima ele inventou o nome de seus seguidores: frades menores. Francisco foi o homem da sexta-feira santa. Sabemos quão apaixonado foi seu amor pelo crucificado. Podemos dizer que Francisco não morre a sua morte mas a morte do seu Senhor. Quis fazer de sua morte um ritual, uma celebração. “Não é pois arbitrário considerar a história de São Francisco como a realização progressiva duma Páscoa em cujo termo podemos contemplar um homem livre, consciente de uma realeza adquirida graças à pobreza, aquela altíssima pobreza que nos leva à terra dos vivos”.
6. Francisco, sentindo que estava chegando a sua hora, quis reviver em sua carne a paixão e morte de Jesus. Ele havia se colocado, ao longo da vida, na condição de servo. Havia determinado que os irmãos lavassem os pés uns dos outros. Que fossem irmãos menores e que não disputassem com quem lhes quisesse tirar o primeiro lugar. Pobreza e aniquilamento se somaram em sua trajetória. Etapas da páscoa.
7. Francisco gostava da expressão peregrinos e estrangeiros com a qual Pedro, em sua primeira carta, qualificara os discípulos de Cristo (1Pe 2,11). Ela aparece na Regra: “Os irmãos nada tenham de seu, nem casa, nem lugar, nem coisa alguma; mas como peregrinos e estrangeiros neste mundo, servindo a Deus em pobreza e humildade...” Para Francisco, viver em pobreza é essencialmente considerar-se como forasteiro. Quem fala em peregrino e forasteiro fala em pobre. Como os hebreus saindo do Egito e atravessando o deserto no despojamento e na penitência buscavam alcançar a Terra Prometida, os irmãos andam em peregrinação pascal: não fazem outra coisa senão passar pelo mundo, passar para o Pai, no seguimento de Jesus. Antes de tudo são estrangeiros. Não se instalam com segurança, mas alojam-se como hóspedes de passagem que se abrigam sob um teto dado de favor. Assim, foi a instalação desconfortável dos irmãos no tugúrio de Rivo Torto. Admirável o fato de, posteriormente, terem abandonado esse local, expulsos por um camponês com toda serenidade, sem manifestarem violência. Compreenderam o sentido do provisório na existência cristã. Ao irmão que reclamava da falta de conforto, Francisco dizia: “Não suportar as privações com paciência, meu filho, é voltar às cebolas do Egito” . Os irmãos não são somente estrangeiros, mas também peregrinos. Desprendidos dos bens terrenos, correm na direção de Deus.
8. Merece ser transcrito neste contexto episódio acontecido em Greccio num domingo de Páscoa e que revela a densidade do itinerário pascal de Francisco: “Em certo dia de Páscoa, os irmãos do eremitério de Greccio, tinham posto a mesa melhor do que era costume, com guardanapos e copos. O Pai ao descer da cela, viu a mesa suntuosamente bem provida e ornamentada: mas este risonho espetáculo entristeceu-o. Retirou-se sorrateiramente na ponta dos pés, pôs o chapéu dum pobre ali presente, pegou num bordão e saiu. De pé, junto da porta, esperou que os irmãos se sentassem à mesa; não costumavam esperar quando ele não aparecia ao sinal dado. Apenas começaram a comer, este autêntico pobre pôs-se a gritar à porta: “Por amor do Senhor dai esmola a um peregrino pobre e doente” – “Entra, bom homem, responderam os irmãos, por amor daquele que invocaste!” Entrou e apresentou-se aos irmãos sentados à mesa: que espanto para aqueles burgueses, à chegada de tal peregrino! A seu pedido deram-lhe uma tigela. Sentou-se no chão a um canto e pousou a tigela. “Agora estou sentado como um verdadeiro frade menor!” Nós devemos, mais do que os outros religiosos, sentir-nos na obrigação de imitar os exemplos da pobreza que nos deu o Filho de Deus. Esta mesa bem provida e ornamentada, julguei-a indigna dos pobres, que andam a mendigar de porta em porta. Meus irmãos, nós somos os verdadeiros hebreus, atravessando o deserto deste mundo como peregrinos e estrangeiros, e devemos sempre com a alma de pobre, celebrar Páscoa do Senhor, isto é , a passagem deste mundo para o do Pai (cf. tradução em A Páscoa de São Francisco, I.-É. Motte e Geraldo Hégo, Braga 1972, p. 195-196).
9. Uns dois anos antes de seu trânsito fora agraciado com os estigmas do Redentor. Francisco viveu intensamente o amor e a dor da sexta-feira santa na montanha do Alverne. “A visão com que Francisco é mimoseado sobre o Alverne é tanto a da Cruz Glorificada como a de uma Glória Crucificada. O sublime serafim resplandecente de fogo, tanto representa o Ressuscitado, o Transfigurado de amor, como o Santo de Israel tocando as montanhas com seu esplendor. A Glória que surge diante de Francisco sob a aparência do Serafim é bem a Glória do Senhor para além da sua morte gloriosa, é a Glória Pascal, aquela que pelo amor triunfou sobre a morte, aquela que, no silêncio do Calvário, gritava sem palavras: Ó morte, eu serei a tua morte! E se quisermos saber por que motivo, flamejante sob a forma de um serafim, a visão atingiu São Francisco e não qualquer outro cristão, basta-nos lançar mais uma vez um olhar sobre o Alverne e contemplar aquele homem predisposto, abrasado também ele, roído, devorado pelo amor: era preciso que, estupefato perante a Santidade, ele fosse arrebatado por ela e absorvido nela pois que ela se revela Amor: era preciso que o amor que abrasava o seu coração, desposasse o Amor que se lhe deparava, como Francisco havia expresso em famosa oração: Absorvei, Senhor, eu vos suplico e pela suave e ardente força de vosso amor, desafeiçoai-me de todas as coisas que debaixo do céu existem afim de que eu possa morrer por vosso amor, o Deus que por meu amor, vos dignastes morrer “ ( A Páscoa de São Francisco..., op. cit., p. 99-100).
10. Ele quis morrer na Porciúncula onde tudo havia começado. Pediu que o colocassem nu na terra nua. Posto no chão, sem a roupa de saco, voltou o rosto para o céu como de costume e todo atento naquela glória, cobriu a chaga do lado direito com a mão esquerda, para que não a vissem. E disse aos frades: “Fiz o que tinha que fazer. Que Cristo vos ensine o que cabe a vós” (2Cel 214). Estando os frades a chorar amargamente mandou que buscassem o texto de João e que fosse lido o trecho que começa: “Antes da festa da Páscoa...” Lembrava-se daquela ceia que foi a última celebrada pelo Senhor com seus discípulos. Fez tudo isso para celebrar sua celebração demonstrando todo o amor que tinha para com os frades. Louva a Deus com cânticos de júbilo. Retoma o Cântico das Criaturas que havia composto anos antes. “E assim chegou a hora. Tendo completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo, voou feliz para Deus.
11. Francisco celebra sua morte. “Todo o objetivo de nossa vida terrena não será, afinal, dar à luz elevar à maturidade este fruto do qual trazemos a semente? (...) A morte não é um ato improvisado, mas, ao contrário, instante único que os instantes de nossa vida preparam. Ela não é uma interrupção, mas sim uma plenitude” Ele mesmo havia afirmado que pensava muito na morte. “Francisco quer findar sua vida religiosa ali mesmo onde a principiou. Diz-se que no momento da morte, toda a vida repassa, toda a vida repassa num relance diante dos olhos, como se estivesse contida toda inteira neste último ato. Em parte alguma, como na Porciúncula, Francisco pode mais facilmente abranger, num golpe de vista, toda a sua vida, pois que esta pequena igreja metida nos bosques assistiu a todas as etapas de sua procura evangélica; encontra ali o seu ideal; começara a vivê-lo com os irmãos; foi ali que, um dia, admitiu Clara ao seguimento de Cristo. Vinha constantemente à Porciúncula com os irmãos para ali reencontrar oEvangelho. E eis que volta uma segunda vez para levar a cabo e completar a obra empreendida. De súbito, parece-lhe que toda s sua vida não foi mais do que a preparação deste momento supremo, e que ele vai, enfim, realizar, num momento, aquilo, que tentou durante vinte anos”. Uma vida toda em estado de passagem!
12. Desde que o Senhor o chamara tinha começado seu despojamento. Abandonou seu jeito de viver, comércio, família. Uma pobreza radical o despojou não só que possuía, mas de sua própria vontade. Esvaziou-se totalmente de si mesmo. Foi morrendo pouco a pouco. E agora a morte corporal vem convidá-lo ao desprendimento total e definitivo. Francisco compreende que a maior pobreza é morrer. Para marcar a sua aquiescência a este último ato de despojamento, pede que o estendam nu sobre a terra, recusando vestir uma túnica grosseira enquanto não for convencido de que ela não lhe pertence. Certo de que satisfaz até o fim as exigências de sua dama Pobreza, Francisco ergue as mãos ao céu e glorifica a Crtisto: vai para a glória desapegado de tudo.
13. No primeiro dia de sua conversão, perante o bispo de Assis, Francisco despojara-se de suas vestes, símbolo de sua vida mundana porque queria poder dizer com toda verdade: “Pai nosso que estais no céu..” No seu último dia de vida, despoja-se de seu hábito e desta última vestimenta que é seu corpo, para poder dizer com plenitude: Pai nosso.
14. “A morte do cristão sela a sua transformação em Cristo é todo o segredo da sua vida espiritual. Tomás de Celano, biógrafo de Francisco, exprime isto mesmo numa frase admirável: “Veio finalmente a hora em que, tendo-se realizado nele todos os mistério de Cristo, a sua alma voou para a alegria de Deus”. Tal é a história da santidade cristã: a participação nos mistérios de Cristo, a invasão progressiva do Senhor na alma. Francisco reviveu a pobreza de Jesus, o seu gênero de vida, a pregação, os seus sofrimentos... Deve, por fim, passar pela morte de Cristo para ressuscitar com ele”
Nota bene: A bem da verdade, necessário dizer que este texto foi fortemente inspirado na obra citada A Páscoa de São Francisco.
(*) Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Assistente Nacional da OFS pela OFM e Assistente Regional do Sudeste III
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