Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Mês após mês, com a ajuda de Chiara di Assisi, texto sólido de Chiara Giovanna Cremaschi (Ed. Porziuncola, Assisi) estamos acompanhando a história de Clara e de suas irmãs, nos seus começos, dentro da singeleza de São Damiao. O subtítulo da obra diz bem: Un silenzio che grida. Hoje nos ocuparemos de pequenos e grandes eventos que iam acontecendo antes de 1220 (p. 72-75).
1. Na época do surgimento da vida das irmãs pobres de São Damião, lideradas pela figura de Clara de Assis, houve uma proliferação de movimentos religiosos femininos que se inseriam na corrente pauperistica, ou seja, num desejo bastante difundido de se viver mais profundamente a pobreza evangélica como virtude e prática. No começo dos anos 1000 até início de 1200 vão aparecendo grupos de mulheres que se sentem chamadas a uma vida de contemplação caracterizada por forte acentuação na pobreza, não apenas pessoalmente, como eremita, mas também através de vida comum. Normalmente, esses movimentos giravam em torno de uma mulher, que com dons especiais, reunia em sua própria casa as que quisessem optar por tal gênero de vida. O fenômeno se manifesta de modo muito particular na Itália setentrional e central. Não se pode dizer com certeza até que ponto o movimento recebeu influência de Francisco, de seu movimento e seguidores. Cada grupo desses tinha sua própria história. É possível que, eventualmente, frades tenham encontrado mulheres de tais grupamentos e que tivessem exercido influência sobre tais grupos.
2. O fenômeno é particularmente intenso no período da história que estamos traçando com relação a São Damião. No clima espiritual que vivia a Igreja vão aparecendo esses grupos que querem viver sem posses. São Damião, em torno de 1218, começa a crescer e vai assumindo as características de um mosteiro. O Papa Honório III delega o Cardeal Hugolino de Segni como “cuidador” desses novos mosteiros femininos de pobres que iam surgindo. Ele tentará colocar ordem na espontaneidade e nas diferenças. O escrito do Papa o autoriza a aceitar, em nome da Santa Sé apostólica, edifícios e terrenos onde vivem estas mulheres. Fala-se em mulheres pobres dos vales de Espoleto e da Toscana, caracterizando-as com elementos específicos: opção pela pobreza em comum, sem nada possuir sob o céu; privilégio de isenção, isto é, não dependência dos bispos, não precisando pagar impostos, pedágios, dízimos e outras taxas semelhantes devido à pobreza. Esses novos grupos deveriam se reger pela Regra de São Bento. No fundo, desejava-se colocar ordem na casa.
3. Em 1219, Hugolino escreve uma Forma vivendi para São Damiao, para aquela que ele considerava a sua Ordem. Apoiava-se na Regra de São Bento e acrescentava outros elementos com caraterísticas de uma verdadeira Regra. Como Clara se situa diante desta novidade? Ela tinha o escrito de Francisco como sua forma de viver. Não conhecemos sua reação. Podemos intuir que ele tenha decidido dar tempo ao tempo para ver como seu instituto evoluiria. São Damião parecia muito diferente comparado com outros mosteiros de mulheres pobres.
4. Em torno de 1220 ou um pouco antes, ingressam na sororidade (fraternidade de irmãs) algumas vocações enviadas por Francisco, que cuida da vida daquela casa mandando novas plantinhas. Nesta circunstância, manifesta-se a personalidade da mãe das irmãs pobres (esta parece ter sido a designação mais primitiva das irmãs de Santa Clara) e sua profunda liberdade interior, mesmo com relação a Francisco. Ele manda cinco jovens. Tudo indica que não o fez uma vez só, ou seja, que de quando em vez mostrava a jovens o caminho que levava a São Damião. Desta vez, Clara recebe quatro, não achando idônea a quinta. A testemunha que conta o episódio fala do espirito de profecia da madre (mãe). Talvez não se tratasse tanto de espirito de profecia, mas de sensibilidade para o discernimento, dom humano que resulta da docilidade ao Espírito. Vale transcrever o depoimento da Irma Cecilia, filha de Messer Gualtieri Cacciaguera de Spello: ”Também disse que dona Clara tinha espirito de profecia. Num dia em que São Francisco mandou cinco mulheres para serem recebidas no mosteiro, ela se levantou e recebeu quatro, dizendo que não ia aceitar a quinta porque não perseveraria no mosteiro... depois acabou recebendo-a pelo muito que importunou, mas mulher ficou só meio ano” (Processo 6,15)
5. Este episódio mostra algo a respeito de problemas concretos de uma comunidade nos seus inícios, manifesta a atenção de Clara ao valor fundamental de uma vocação ou chamamento: a divina inspiração que considerava requisito essencial para abraçar a Forma de vita. Em maio deste ano entra em São Damião Irmã Cristiana de Messer Bernardo de Suppo de Assis que conhecia Clara quando mocinha, porque morava na sua casa. Dando seu testemunho no Processo, ela contará pormenores da fuga que certamente só ele conhecia (13,1). No ano seguinte chega uma outra concidadã: irmã Inês de Oportulo, molto mammola, ou seja, ainda criança. Contará quanto ficou impressionada no primeiro período do mosteiro: lembrava-se do cilício feito de pelos de cavalo trançados que Clara usava. A nova irmã tentou usá-lo por três dias, mas não aguentou. Tudo isso denota o clima de família que respirava a sororidade (fraternidade de irmãs).
6. Nesse interim, O cardeal Hugolino deseja conhecer Clara. Sua fama tinha chegado até ele. Na Páscoa de 1220, ele se encontra em Assis e se dirige a São Damião. Fica fascinado com a personalidade desta jovem que conversa com ele com toda simplicidade. Clara, nesta altura, está com 27 anos. Quando conversam a respeito do Corpo de Cristo, o prelado experimenta uma profunda alegria quando se dá conta de que tudo o que Clara diz vem de uma íntima fonte de vida interior vivida com o Senhor na qualidade de amado e amada. Voltando depois ao lugar de trabalho sente saudades desse encontro. Escrevendo a Clara designa-a de mãe de sua salvação, confiando-lhe sua alma e seu espírito. Em seu Escrito, Hugolino exprime um sentido profundo da missão da mulher consagrada, que entregando-se sem reserva, com Cristo, gera irmãos para a vida da graça. Clara crescerá nesta consciência, vivendo sua vocação numa dimensão materna e mariana, como colaboradora de Deus e aquela que soergue os membros frágeis do Corpo inefável de Cristo.
7. Os anos que se seguiram á visita de Hugolino são caracterizados pela tentativa de fazer com que os mosteiros que viessem a surgir se caracterizassem por uma pobreza radical, naquilo que Clara chamava de sua Ordem. As comunidades que começam a nascer olham para a sororidade (fraternidade de irmãs) como ponto de referência, desejando adotar o mesmo estilo de vida. Alguns mosteiros buscam assumir a Forma vivendi dada por Francisco. Pode ser que neste momento irmãs que tinham vivido em São Damião tenham saído para novas fundações. Começaria, assim, a difusão do espírito de São Damião.
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