13 de maio de 2015

Especial - Mês de Maria, Mãe do Redentor - A mulher e São Francisco




Frei Hugo Baggio


A cosmovisão de Francisco, nascida mais da intuição do que de um sistema filosófico, captava todos os problemas que afligissem o homem, e tentava oferecer pistas que ajudassem sua superação. Nesta nossa análise cabe perfeitamente algo sobre sua visão a respeito da mulher, cuja posição, na Idade Média, é conhecida. Aliás, a posição da mulher era tributária de toda uma tradição, herdada pelo cristianismo do judaísmo, onde a mulher desempenhava uma função inteiramente secundária e dependente, a ponto de se duvidar de sua igualdade, como ser humano, com o homem. Até nomes famosos da própria teologia tentavam teses, em que ficaria provada a inferioridade feminina à masculina.

Inclusive, quem conhece a história da Igreja sabe quão pouca promoção mereceu a mulher dentro de uma instituição conduzida e modelada exclusivamente por homens. Quem lembra e conhece os trabalhos do Vaticano II está ao par das tentativas de recuperar a mulher, seu papel e sua influência, e conseqüentemente dar-lhe um lugar de igualdade dentro dos parâmetros sociais. Esforço digno de nota de trazê-la da periferia para o centro da vida, embasando, assim, todo o movimento em prol da mulher desenvolvido nas últimas décadas, na tentativa de acabar com a discriminação.

Interessante observar que também neste particular Francisco de Assis deixou sua influência e agiu de forma concreta e prática. Não contornou ou definiu o problema nas linhas claras com que o descrevemos hoje, mas o intuiu, com suficiente clareza, para, com palavras e ações, deixar perceber as incongruências com que o homem tratava a mulher e as injustiças que contra ela se cometiam, baseando-se numa tradição e numa legislação, por sua vez, igualmente injustas. Percebeu o pouco espaço que lhe era cedido no lar, na sociedade, na vida civil, na Igreja, como se, em verdade, fosse de menoridade, ou de limitação intelectual, de maneira que lhe era vedado o acesso a qualquer forma de cultura, temendo-se que pela cultura ela procurasse a liberdade, que no fundo sabiam, lhe era devida. Longe estava, pois, a mulher de ter reconhecido seu papel teológico e social, e conseqüentemente, seus dotes e capacidades de atuar criativamente na história e na construção do mundo. Sem dúvida, no século XI e XII, o amor cortês a retirara da obscuridade e a colocara em plena luz, sem porém colocá-la na realidade, pois este tipo de amor a idealizou e a espiritualizou em demasia, tornando-a, antes, fonte de inspiração que co-participante do homem na edificação do mundo. Tornou-se objeto de uma espécie de culto, mas era uma idealização "in genere", enquanto cada mulher, como indivíduo, continuava sua sina subalterna. Se a fase anterior a colocara na sombra, esta fase a elevara à luz e, em ambos os casos, afastada da realidade, confinada ao lar ou aos conventos, segundo um adágio latino da época: mulier aut murus aut maritus (mulher: ou convento ou casamento).

Na religião, além disso, havia uma certa desconfiança em relação à mulher, pois representava sempre um perigo para o homem. Seria ela a eterna sedutora, a Eva que com seus encantos levaria o homem a fazer, sempre de novo, a dolorosa experiência da maçã proibida do Paraíso, com suas trágicas conseqüências. Por isso, mil prescrições para mulheres que entravam no convento, separadas por grades e muros, por clausuras e proibições de contatos, ingresso em recintos de religiosos, preocupações no trato religioso-mulher, com prescrições severas, inclusive, em ordem à confissão. Todos indícios claros da desconfiança de que a religião se revestia em relação ao sexo frágil, que aparecia como forte, pois capaz de seduzir o dito sexo forte.

Francisco, estranhamente, não se alinhou a esta forma de conceber de tratar a mulher e, aqui também, teve seu modo original. Não só pensou, mas agiu. Antes de mais nada, na consulta ao Evangelho, de onde nasciam suas intuições, deu-se conta do papel de Nossa Senhora. "Impregnado das realidades do Evangelho - diz um Autor - ele salva a mulher, tanto da sofisticação do idealismo, quanto das mitologias do erotismo. Se Francisco sacrifica no altar de Dama Pobreza as alegorias graciosas do amor cortês, tal dama jamais empana a realidade feminina de Clara e de Jacoba. Em vão se buscarão na vida de São Francisco as alegorias das tentações de Santo Antão... Sem com isso querermos afirmar que São Francisco esteve isento das tentações da carne, como sabemos de sua vida. Mas, por sua maneira de comportar-se frente à mulher, descobrimos o sólido realismo em que se inspira..."

Ficam melhor ilustradas sua concepção e sua visão, quando o analisamos em seus relacionamentos com Clara de Assis, a primeira mulher que compreendeu sua mensagem e sua forma de vida e percebeu que a mulher também poderia tomar lugar nesta revolução da vivência do Evangelho. Ele a tratou como alguém que tem liberdade, capacidade de tomar decisões, direito de escolher seu gênero de vida. Atitude revolucionária na época, pois, para a sociedade de então, cabia aos pais decidirem quais as filhas que abraçariam o matrimônio e quais deveriam fechar-se num convento.

Quando clara, fugindo dos muros do palácio paterno e, conseqüentemente, da autoridade paterna, o procurou em plena noite, no domingo de Ramos de 1212, ele a recebeu, vestiu-a com hábito religioso, consagrou-a ao Senhor, reconhecendo como plenamente válida a escolha que ela acabara de fazer.
Um episódio ilustra a pureza de intenções e o reconhecimento do papel da mulher em São Francisco. Numa noite de luar, envolto pelos encantos da natureza, Frei Francisco e o companheiro Frei Masseo chegam junto a um poço, em cuja limpidez a lua se refletia, em toda sua beleza.

- O que vês no fundo das águas, Frei Masseo?

- Ora, Pai, vejo a lua, naturalmente...

- Não - respondeu Frei Francisco - é o rosto de Irmã Clara iluminado com a luz do luar. Ouço-lhe a voz cristalina que canta como a água...

Não é apenas um poeta cantando à sua amada, como Tomás Antônio Gonzaga, versejando para Marília, ou um celibatário, num momento de arrependimento por ter escolhido um outro caminho, mas é o homem que reconhece o papel da mulher que, no caso de Francisco, serviu de inspiração, a que vale dizer, estímulo para chegar mais perto da perfeição que se propusera buscar. Admira-nos que os biógrafos do tempo tenham registrado tal episódio, pois esforçavam-se por ocultar tudo quanto pudesse respirar a "carnalidade" de um santo. Se o fizeram, pois, é que reconheceram tratar-se da expressão humana de uma vivência divinizada e equilibrada, o que, longe de desmerecer, afirmava-se como um valor.

Outra mostra de que se esforçou para que a mulher recuperasse seu lugar e, sobretudo, tomasse consciência de que tinha um lugar ao sol, foi a formação que intentou transmitir a Santa Clara. Segundo os desejos dela, a presença de Francisco na Mosteiro de São Damião seria muito freqüente, inclusive as consultas, mas ele espaçava as visitas, obrigando Clara a tomar as decisões, pois afinal era ela a Abadessa do Mosteiro, portanto capaz de dedicir livremente. Após muitos rogos, consentiu que Clara fosse até a Porciúncula, para, com a comunidade dos frades, tomar uma refeição. Cortava tudo quanto alimentasse dependências, o que é notável numa época em que o Direito Canônico e os usos eclesiásticos tornavam a mulher completamente dependente, em todos os momentos e circunstâncias, da parte masculina.

Tão bem aprendeu Clara a lição que, um dia, quando o Papa a quis dissuadir de abraçar a pobreza radical e a quis mitigar, ela, com humildade, mas com coragem e decisão também, reagiu energicamente. Que o Papa exercesse sua função sacerdotal: perdoar pecados. No mais, sabia ela o suficiente sobre a pobreza, para escolhê-la, abraçá-la, vivê-la e amá-la, pois herdara e aprendera de Francisco. Não seriam os homens dos palácios papais que viriam ensiná-la a ser mais ou a ser menos pobre... E o Papa não viu nisso nenhum gesto de rebeldia, mas aceitou aquela prova inicial do movimento feminista bem orientado para a verdadeira libertação da mulher.

Outra mulher que Francisco admitiu no círculo de suas amizades foi a nobre romana Jacoba que, em atenção ao seu espírito forte e equilibrado, ele a chamava de Fra Jacoba, isto é, Frei, nome reservado aos homens, onde se percebe a nítida intenção de afastar qualquer insinuação ou apelo menos nobre, já que abraçara um estado de vida que lhe impunha um modo de comportamento e de relacionamento com a mulher. Conhecia e apreciava as amizades serenas, não na acolhida do ingênuo ou do místico neurótico, mas no conhecimento pleno de quem conhece a vida, pois seu biógrafo e companheiro, anota: "mandava evitar totalmente o mel venenoso que é a familiaridade com as mulheres, que induzem ao erro até os homens santos". Palavras que parecem fazer uma concessão à mentalidade da época, que via na mulher um perigo latente.

Com Fra Jacoba cultivou uma amizade sincera, visitando-a e hospedando-se em sua casa, quando de visita a Roma, aceitando o favor de um hábito ou de outras necessidades materiais, aliás, poucas. Na última hora de sua vida, quando todos os desejos do mundo iam silenciando e, quando nas palavras cantadas do Salmo pedia a libertação absoluta de todas as cadeias terrenas, ainda se permitiu um desejo terreno: ver Fra Jacoba e comer os bolinhos de amêndoas, como só ela sabia fazer. É a ternura que não foi sufocada no homem austero e que o acompanha até as portas da morte. Afinal, tinha ensinado que a cortesia era um cartão de visita para o Pai. Cavalheiro e cortês até o fim. Respeitoso e realista até a morte.

Dentre as notas que compõem a riqueza do termo franciscanismo fica em destaque, sem dúvida, a do respeito e do reconhecimento do papel da mulher, o que se reflete, igualmente, na maneira como a Teologia franciscana vai enfocar Nossa Senhora, ao lado de Cristo, na realização do plano de Deus.

Extraído do livro " São Francisco vida e ideal", da Editora Vozes, o último e 40° da coleção de Frei Hugo, que faleceu aos 61 anos de idade.

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