8 de fevereiro de 2014
Meu São Francisco Brasileiro
Frei Hugo D. Baggio
1. Francisco veio nas Caravelas
Um dia, nas terras até então desconhecidas e que viriam a ser o Brasil, aportaram as caravelas portuguesas, cheias de fidalgos de roupas finas e adornos brilhantes, ao lado de soldados de armaduras luzidias e manejando todo o engenho bélico que até então se havia criado. Vinham cheios de poderes e de títulos, cheios de privilégios e de recomendações dos poderosos da terra para se tomar conta de quanta terra estivesse por aí “sem dono”. Com este cortejo pomposo contrastava a simplicidade de um grupo de frades de aspecto austero, buréis escuros, tonsura e cordão e sandálias, pouca bagagem e um espírito de conquista que muito diferia do grupo: eram os filhos de São Francisco de Assis. Chegavam de mansinho, como é próprio de tudo quanto se inspira em Francisco, mas entravam firmes para ficar. E com eles entrou o próprio São Francisco que, sem dúvida, foi o primeiro Santo a ser conhecido nestas terras bravias, porque aqueles frades traziam Nossa Senhora da Esperança das naus de Cabral e a esperança toda que sempre animara as caminhadas missionárias do Pai São Francisco.
Começaram os franciscanos, humildemente, trabalhando aqui, pregando ali, erguendo uma ermida no alto de um rochedo, uma capela no coração da floresta, morrendo de febre num pântano, de afogamento num rio, da voracidade dos índios num canto qualquer desta imensa terra. Até hoje, os princípios humildes dificultam um estudo mais profundo da atuação dos filhos de Francisco, pois pouco ficou gravado na história dos homens de seus feitos e realizações, porque, embora sempre primeiros em chegar, eram os últimos a se fazer notar. Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, é admirável a solidez com que São Francisco se plantou por estas bandas do mundo novo. Seu amor à natureza, seu conceito profundo do homem, seu respeito pelo criado, sua ternura pela vida, sua vibração com a natureza, sua convivência pacífica com as feras, faziam-no o homem da espiritualidade ideal para um mundo selvagem, invadido por uma civilização – selvagem a seu modo – que, na suposta tentativa de trazer civilização, trazia mil e uma destruições, cujos derradeiros resquícios estão presentes no drama dos últimos índios brasileiros, eclipse melancólico de um povo que recebeu e hospedou os primeiros franciscanos.
Por isso, Francisco tornou-se uma presença necessária e postulada pelos tempos todos, por ter ele vivido e defendido os grandes ideais de Deus e do homem, consubstanciados no Evangelho, única força capaz de sobreviver às destruições dos tempos e às mutações das gerações que se sucedem. Com justeza, o captou Gilberto Freyre: “Desde Frei Henrique de Coimbra que há sempre um franciscano ou a fazer ou a escrever história do Brasil: às vezes a fazê-la com o próprio sangue. História do Brasil ou história da Igreja. Frade português, frade brasileiro, frade estrangeiro: o frade estrangeiro de que Carlos de Laet fez a apologia em páginas célebres…” (1)
E Francisco de Assis, “pobre vermezinho”, ergueu monumentos por estas terras virgens, plasmou homens extraordinários, fez brotar templos magníficos que, ainda hoje, convidam os homens a adorar o Senhor, como ele o fazia quando cortava os caminhos da Úmbria, inspirou obras literárias, porque ele não só fez poesia, como foi constante inspiração poética. Com tudo isso, para o Brasil tornou-se ele um ingrediente cultural, um formador de civilização, um incentivador da fé, a ponto de, em uma pesquisa sobre o “santo mais forte ou importante”, ter recebido o segundo lugar na preferência popular, superado apenas por seu discípulo Santo Antônio, a quem ele, muito respeitosamente, chamava “meu bispo” (2)
2. Francisco ergueu templos
A descoberta da alma da natureza e a possibilidade de com ela dialogar, na maneira simples de São Francisco, tornou-se para a arte uma vertente caudalosa que, invadindo a seara dos artistas, convidou-os a transplantar para suas telas – primeiro Giotto timidamente e depois os outros sempre mais arrojados – toda a riqueza que Deus semeara no cosmos, em substituição à monótona coloração sem vida ou forma. E a pintura e a escultura e a arquitetura e a poesia se tornaram “franciscanas”, porque assumiram a sensibilidade de Francisco de captar o belo semeado na envolvência da vida. E, no Brasil, onde o ouro vinha na abundância de uma terra em tudo dadivosa, os artistas esqueceram Dona Pobreza e seu Esposo e colocaram ouro nas vestes remendadas do Poverello, e colocaram o próprio Poverello dentro de templos esplendorosos, como no sublime exemplo da igreja de Salvador, Bahia, onde o barroco se esmerou nas talhas douradas e policromadas, emprestando à arte uma fala que afirma: Francisco é o único capaz de se fazer o portador fiel das riquezas do homem até Deus, doador de toda riqueza. Quem lá entra fica dominado pela fé transformada em harmonia que os artistas do século XVIII alcançaram cravar naquele complexo. Descobre, igualmente, que foi esta a forma que estes artistas encontraram para glorificar o pequenino homem de Assis que lá está abraçado ao seu Cristo, nu e despojado, pisando firme sobre o mundo com suas riquezas e vaidades, ainda que colocado num nicho de ouro. Olhos fixos no Cristo, ouro. Olhos fixos no Cristo, ouro algum do mundo apaga aquela luz que lhe prende os olhos e lhe enche o coração. Aqueles antepassados nossos não entendiam apenas de arte, entendiam também de mística… Por isso, o que saiu das mãos deles é tão rico de terra, quão rico de céu.
Lá em Ouro Preto, a lendária Vila Rica, encontra-se, no dizer de Eduardo Etzel, “a joia da arquitetura barroca de Minas Gerais”: um templo dedicado a São Francisco de Assis, cujas linhas arquitetônicas todos conhecemos. Ali deixou o Aleijadinho, na pedra fria, a marca de seu gênio sofrido, como uma canção eterna que seu amor ditou em homenagem ao Patriarca de Assis, pois, São Francisco deve ter ensinado ao Aleijadinho louvar o Senhor pelas deformações também. Complete este poema cinzelado na pedra, a policromia dos pincéis de grandes mestres da pintura, como Mestre Costa Ataíde.
Entre os monumentos que adornam São João Del Rey, domina altaneira outra igreja dedicada a São Francisco, cantando a mesma fé e proclamando o mesmo carinho despertado pelos Pobrezinhos de Cristo em outros recantos desta terra dadivosa, que de Francisco aprendeu que Deus merece o que de melhor a terra produz e o gênio do homem é capaz de criar.
E, no Rio de Janeiro, em meio há tanta beleza natural por Deus ali semeada, plantou a fé outro templo a São Francisco, menor que todos talvez, mas não menos esplendoroso, não menos eloquente, não menos carregado de amor que os outros templos que a arte colonial ergueu a São Francisco. E lá, em pleno sertão do Ceará, ergue-se o que Frei Pedro Sinzig chamava, em 1926, “o maior santuário de São Francisco no mundo”: é a Basílica de São Francisco das Chagas de Canindé, um cacto florescendo na aridez da terra.
Sem nos determos em tantos outros templos que homenageiam São Francisco, vamos parar junto a um templo moderno que se espelha nas águas da Pampulha, em Belo Horizonte, proclamando a arte de Oscar Niemeyer e o pincel vigoroso de Cândido Portinari. Lá está São Francisco, no painel central, profeticamente retratado em seu despojamento contorcido, com enorme lobo domesticado junto a si, numa atitude de ternura, numa clara alusão de que o homem moderno precisa da volta deste domador de feras. O tamanho do lobo parece insinuar a dimensão da ferocidade do homem hodierno… Entre o barroco que nasceu com o Brasil e o moderno da Pampulha que lutou para impor-se, corre toda uma linha de fé e carinho para com este novo Cristo, chagado e ardente, nos quadros e na estatuária dos grandes mestres e do gênio inculto de nosso povo devoto. Em toda parte, plasticamente, brota a figura de Francisco de Assis, marcada com um pouco daquilo que cada um vê retratado nele e que gostaria de chegar a ser…
3. Francisco, fonte de poesia
A primeira página de nossa literatura foi a carta de Pero Vaz de Caminha: e lá figuram os frades de São Francisco. A primeira produção literária na nova terra saiu da pena de José de Anchieta: em versos, escreveu ele uma Carta da Companhia de Jesus para o Seráfico São Francisco, onde lembra que Adão “borrou” a imagem divina.
Mas Cristo, Deus humanado,
glorioso São Francisco,
para limpar o treslado,
que Adão tinha borrado,
pondo o mundo em tanto risco,
quis pintar,
e consigo conformar
a vós, de dentro e de fora,
com graça tão singular,
que vos podemos chamar
homem novo, em quem Deus mora” (3)
Da primeira voz poética pulemos a outra que ainda vive: Carlos Drummond de Andrade, que diante da igreja de São Francisco, em Ouro Preto, confessa: “Senhor, não mereço isto. Não creio em vós para vos amar. Trouxeste-me a São Francisco e me fazeis vosso escravo” (4). E entre estes extremos de nossa literatura, jazem cativas milhares de vozes – praticamente todas as vozes poéticas – rendendo, em prosa e verso, seu preito ao Santo e ao Poeto, ao Cantor da Natureza, ao iniciador da literatura italiana, dos quais apenas a algumas daremos nome, sem observar sequer a cronologia: Pe. Antônio Vieira, Humberto de Campos, Carlos de Laet, Goulart de Andrade, Gustavo Barroso, Augusto de Lima, Fernando Magalhães, Afrânio Peixoto, Carlos Magalhães de Azevedo, Durval de Morais, Jorge de Lima, D. Marcos Barbosa, Vinícius de Morais, Belarmino Lopes, Silveira Bueno, Martins Fontes, Jackson de Figueiredo, Cecília Meireles, Cassiano Ricardo, Afonso Schmidt, Gilberto Freyre, Mesquita Pimentel, Guedes de Amorim, Alceu de Amoroso Lima…. e centenas de outros nomes que tentaram traduzir para o vernáculo todos os encantos do Cântico das Criaturas ou do Irmão Sol, terminando com aquela espontânea literatura que denominamos de cordel, onde pode faltar arte ou engenho, mas sobram sensibilidade e fé para captar a mensagem da simplicidade franciscana na sua expressão mais pura.
4. Francisco forma homens
Uma das realidades mais palpáveis de Francisco é seu fascínio sobre os homens, quando vivia e até os nossos dias. Encanta e cativa com aquele respeito que o faz parar frente ao mistério de cada um, como confessa Chersterton: de todos os luxos da corte, o único conservado por Francisco foi o das boas maneiras. Daí a universal simpatia exercida por ele. No tocante às conquistas humanas de Francisco, em terras brasileiras, parece bem sagaz a observação de Gilberto Freyre: “Não que os frades, em geral, e os franciscanos, em particular, que passam pela história brasileira nem sempre sem outro ruído que os das sandálias de bons religiosos ou o da voz de pregadores sacros, tenham sido todos santo-antônios-onde-vos-porei. De modo algum. Sabemos que sob nomes seráficos de homens aparentemente só de Deus, chamados da Paz, dos Arcanjos, do Salvador, de Jesus, da Purificação, do Sacramento, de Santa Rosa, da própria Santíssima Trindade, agitaram-se políticos mais zelosos das liberdades dos séculos que das verdades eternas; mais apegados a causas do momento que às de sempre…; mesmo assim, alguns destes monges poetizam com seus nomes de religiosos a história quando não eclesiástica, civil, literária, política, científica do Brasil…” (5)
Exato! E aí temos, medrando nos claustros barrocos de norte a sul, sob inspiração de Francisco de Assis, homens da envergadura de um santo Frei Fabiano de Cristo, no Convento do Rio de Janeiro e um santo Frei Pedro Palácios, fundador da capela da Penha, hoje um dos mais famosos e lindos santuários marianos desta terra que aprendeu dos frades o amor a Nossa Senhora. Frei Cosme de São Damião, de quem dizia seu confrade Jaboatão: astro puro, estrela brilhante, tão benéfica nas influências como apurada nas luzes, preso pelos holandeses, sentenciado e, por fim, degredado. O Irmão Frei José, o Santinho que, em se santificando, santificou os Conventos do Rio e de São Paulo. Frei Antônio de Sant’Ana Galvão, fundador do Mosteiro da Luz, já chegou à glória dos céus. Frei Vicente do Salvador, o primeiro historiador do Brasil, chamado por isso mesmo de “Heródoto Brasileiro”. Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, a quem Sílvio Romero denomina como a “mais perfeita imagem do clássico brasileiro”. Frei Mariano da Conceição Veloso, o pai da Botânica Brasileira. Frei Francisco do Monte Alverne, uma das glórias do púlpito brasileiro, que perfila, na eloquência, com o Pe. Antônio Vieira. Frei Antônio de S. Úrsula Rodovalho que, no dizer de Monte Alverne, foi o maior filósofo que a Ordem produziu. O poeta Frei Francisco de S. Carlos e o jornalista e político Frei Francisco de Santa Teresa de Jesus Sampaio, um dos próceres da Independência…
E, pulando para homens, bastante mais próximos a nós, acorrem os nomes do santo bispo D. Eduardo Herberhold, Frei Rogério Neuhaus, Frei Pedro Sinzig e Frei Rogério Roewer, que tanto incentivaram a música sacra e labutaram no campo da imprensa católica, sendo, com outros franciscanos, os impulsionadores da Editora Vozes de Petrópolis. No campo da ciência, Frei Tomás Borgmeier e Frei Damião Berge. E tantos outros que bem mereciam aqui figurar. Além dos frades da Primeira Ordem, devem ser evocadas as figuras da Segunda Ordem, das Irmãs Clarissas, que foram as primeiras monjas a se estabelecerem no Brasil, no Desterro, da Bahia. Dentre as monjas é de justiça ressaltar a figura de Madre Angélica, monja concepcionista, martirizada nas perturbações que se seguiram à Independência do Brasil, em 1922, no Mosteiro da Lapa, Salvador. E ainda uma série de destaque na Ordem Terceira, que desde os inícios da colonização, marcou presença ativa em todos os campos humanos, esculpindo homens como o poeta Durval de Morais ou o escritor Mesquita Pimentel. E a lista continuaria se ainda respingássemos a rica seara dos Frades Capuchinhos, presentes também na história do Brasil.
Alguns nomes apenas, numa amostragem simples de uma presença perene e modificante, atraente e possessiva, encantadora e santificadora, catequizante e civilizadora. Prova eloquente de que São Francisco veio para ficar. Gostou e ficou. No silêncio e na humildade, mas no trabalho e na fecundidade, milhares de franciscanos das três Ordens passaram pela história e deixaram sua marca indelével, sem falar de outros tantos que ainda hoje se identificam com esta terra e sua gente, com sua fé e seus problemas. O Pai lhes conhece os nomes e os pronuncia com carinho, lhes recolhe os suores, lhes fecunda o apostolado, sustenta-os na luta e lhes dará aquela placa que a palavra humana não consegue cunhar.
5. Uma coisa é certa
Filhos de São Francisco de Assis foram os primeiros missionários a pisar nossa terra, a batizá-la. Um franciscano oficiou as duas primeiras missas aqui celebradas. Era de São Francisco de Assis a primeira imagem que abençoava a primeira ermida levantada no Brasil e franciscano o primeiro ermitão. Era ele o orago da primeira capelinha (poverello, como o patrono). As Clarissas, suas filhas, foram as primeiras religiosas a enraizar-se no Brasil (6). Por isso, uma coisa é certa: São Francisco se fez brasileiro e o Brasil se tornou franciscano…
1. A propósito de Frades, Liv. Progresso Edit. Salvador, Bahia 1959, pag. 32
2. Grande Sinal, junho de 1981, pág. 324
3. Nossos Clássicos, n. 36, Liv. Agir Edit. Rio de Janeiro 1959, pag. 55
4. Reunião, José Olympio Edit. Rio de Janeiro 1973, pág. 182
5. Ibidem, pag. 32ss
6. São Francisco de Assis e o Brasil, Sophia A. Lyra, Liv. José Olimpio Edit Rio de Janeiro 1978, na orelha da 1ª capa.
Texto publicado na Revista Grande Sinal, Revista de Espiritualidade e Pastoral, publicada pela Editora Vozes.
Texto Extraído de : http://www.franciscanos.org.br/
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