Fernando Félix Lopes - O Poverello. São Francisco de Assis
1. Oitocentos anos se passaram desde que o Altíssimo e Bom Senhor, na história da humanidade e do povo do Senhor em marcha, visitou seu servo Francisco e mostrou-lhe um caminho novo, uma senda antiga que precisava ser trilhada de uma outra maneira. Francisco seria o homem evangélico, homem de um mundo novo. Seus discípulos seriam logo conhecidos como gente de coração mudado, gente penitente. E nós, franciscanos, não concebemos nossa vida a não ser em relação a esse Francisco e a tudo que dele ouvimos desde a nossa juventude. Queremos que os dias do jubileu seja tempo de graça nova.
2. Uma das perguntas que anda sempre de novo aflorando em nossas existências humanas, cristãs e franciscanas, ontem e hoje, é esta: “Quem somos nós?” Sócrates, o velho filósofo, havia forjado o famoso “Conhece a ti mesmo”. Os dois questionamentos se interpenetram e se associam a uma pergunta de Francisco que fazemos nossa: “Senhor, o que queres de mim? Trata-se do tema da identidade, abordado a gosto e contragosto, talvez nos últimos trinta anos. O que ser religioso? O que é ser sacerdote? O que ser casal? O que é ser pai? O que é ser mãe? O que é ser cristão? O que evangelizar? O que é ser franciscano? Parece que tudo está para ser refeito e revisto. Diante das loucas transformações e vertiginosas mudanças há os que questionam tudo. Por vezes, quem sabe, pelo prazer de questionar, pelo modismo de fazer como os outros. Outras vezes, na tentativa de serem fiéis a si mesmos, ao chamado de Deus e à missão que precisam exercer nesse espaço que se chama vida. Nesse tempo da celebração do carisma muitos ângulos do carisma estão sendo objeto de nossa meditação. Quem somos nós, franciscanos? Nesses tempos de retorno à graça das origens tentamos responder a esta questão. Que “expressibilidade” temos no mundo e na Igreja? Ainda hoje os frades escrevem páginas esplendorosas com sua vida dedicada. Mas questionamos a diminuição das vocações e uma certa desmotiivação.
3. Nós, franciscanos, dispersos no meio do mundo, correndo de um lado para o outro, atraídos por mil solicitações, dando nossa colaboração nas paróquias, preparando o capítulo, revendo os passos dados e desejosos de ir adiante, buscamos “nosso próprio’’, aquilo que constitui nossa identidade mais profunda. Quem sou eu? Quem somos nós? Por que continuamos na Ordem? Quais os desafios de nossa Província? Quem somos nós que percorremos os corredores da VOT do Rio, que visitamos as capelas do interior de Concórdia, que dinamizamos a paróquia de São João Batista em São João de Meriti, que atendemos na portaria do Largo de São Francisco em São Paulo, que estamos diante das planilhas do computador ou percorremos os leitos do hospital de Piraquara? Qual é nosso próprio? Certamente, ele não existe em estado puro.
4. Documentos da Ordem, Cartas do Ministro Geral, textos das Conferências Franciscanas, reflexões de frades e a vida dos irmãos nos ajudam a compreender melhor o sentido de nossas vidas e da vida de nossos confrades que foram tocados pela fascinante figura de Francisco. Eventos grandiosos, como o Capítulo das Esteiras, ajudam a colocar questões e transmitem elan. Mas não são suficientes. Será preciso esse labor pessoal. Não podemos fazer a economia do empenho pessoal. Ninguém está autorizado a sentar-se à beira do caminho e esperar que outros lhes dêem soluções para impasses. Os congraçamentos, as festas não enchem o vazio que pode existir no fundo do coração de muitos irmãos. Por que tantos irmãos, depois de pouco tempo de profissão, deixam a Ordem? Necessário será tomar a decisão de voltar ao amor primitivo, ao primeiro élan, aos dias em que dissemos com Francisco: “É isso que eu quero, isso que busco de todo o coração”.
5. Só consegue viver com alegria profunda aqueles que seguem, de verdade, o chamamento e respondem à vocação. Esses são os que “difundem” a alegria de viver o Evangelho, através da singeleza de seu testemunho. Será que os frades da Província são pessoas profundamente alegres?
6. Ter encontrado sua vocação é uma graça. A vocação em si é sempre graça. É uma graça viver e saborear, sem muitas interpretações, sem glosas as palavras de Francisco em sua Regra, no Testamento e nas Admoestações. Quando as lemos com os olhos do rosto e com as vistas do coração sentimos que dentro de nós as cinzas se tornam brasas e temos vontade de reescrever, ainda hoje, com a nossa vida, a aventura fascinante do Evangelho franciscano. Fala-se de uma utopia! Todos guardamos nos cantos do coração a bênção de Francisco no final de seu Testamento. Em nossos antigos capítulos de culpa, realizados às sextas-feiras, com odor de peixe (desculpem evocar estas coisas, tiradas do baú da memória), na imensa vontade de sermos filhos de Francisco, ouvíamos com alegria profunda e esperançosa as palavras do Pai: “Ordeno firmemente por obediência a todos os meus irmãos, clérigos e leigos, que não introduzam glosas na regra nem nestas palavras dizendo: é assim que devem ser entendidas. Mas como o Senhor me concedeu de modo simples e claro dizer e escrever a regra e estas palavras, igualmente de modo simples e sem glosa, as entendais e com santa operação as observeis até o fim” (Testamento, 38-39). Fraternidade e minoridade são aspectos fundamentais do caminho evangélico franciscano. Eles seriam “nosso próprio”. Ao menos dele fariam parte preponderante.
7. O tema da fraternidade, do fraternismo, simplesmente da vida fraterna parece gasto. Por vezes, a leitura de certas páginas sobre o tema chegam a nos irritar. São moralizantes e tacanhas. Como se precisássemos ficar roçando uns nos outros tempo todo... Como se a fraternidade se resumisse a uns encontros mais ou menos “quentes” ou “formais” em torno da mesa, na sala de recreio ou mesmo na hora do ofício! Longe, bem longe de mim, a idéia de minimizar os encontros acima mencionados, instrumentos de afervoramento da vida fraterna, sacramentos de algo maior do que aquilo que mostram. A fraternidade é bem mais do que esses encontros prescritos e previstos. Eles são muletas que devem nos levar a fazer a experiência teologal do fraternismo. Exprimem o que existem e suplicam pelo que ainda não é.
8. “Como todos os sonhos de Deus, a Fraternidade é dom e simultaneamente responsabilidade que interpela nossa responsabilidade. Construir constantemente a fraternidade não é, em primeiro lugar, questão de horários e de estruturas; supõe a acolhimento sincero do apelo do Senhor que nos desenraiza de nossas seguranças e nos coloca a caminho para ousar, com “lucidez e audácia”, viver aqui e agora a utopia da Fraternidade universal em nossa realidade concreta, junto com os irmãos com os quais nos é dado de viver precisamente este hoje” (Projeto do Secretariado para a Formação e os Estudos, OFM, Roma 2008, n.10). Destaque-se a idéia: viver com os irmãos este hoje.
9. Mistério da fraternidade! O frade Jean-François Comminardi, ofm, na revista Évangile d’ aujourd’ hui, n. 217, lembrando o fundamentp teológico da fraternidade, evoca o abismo esplendoroso da Trindade: “A Fraternidade provém diretamente da Trindade! É isso antes de tudo que Francisco diz quando ele se dá e nos dá esse nome, esse título de irmãos. É, associados pelo Espírito a Jesus, o Filho que de fez nosso irmão, que podemos dizer na verdade e juntos: Pai. Não se pode esquecer esta primeira afirmação, a mais fundamental: Cada vez que nos chamamos pessoal e mutuamente de irmãos afirmamos e celebramos nosso ingresso na comunhão trinitária, afirmação maravilhosa, mas também maravilhosamente exigente porque, como acrescenta Francisco na Carta aos Fiéis, retomando uma palavra de Jesus: “Somos verdadeiramente irmãos (de Jesus) quando fazemos a vontade do Pai que está nos céus” (52). E Francisco acrescenta: “Como é glorioso, santo e sublime ter nos céus um Pai!(...) Como é santo e dileto, aprazível, humilde, pacífico, doce, amável e acima de tudo desejável ter tal irmão e filho que expôs a sua vida pelas suas ovelhas (cf. Jo 10, 15) e orou ao Pai por nós, dizendo; Pai guarda em teu nome aqueles que me deste (Jo 17,11) (54 e 56)”.
10. Venha em nossa ajuda Éloi Leclerc : “A vida evangélica não é absolutamente nada disso ( busca de uma fraternidade de puros). Não se trata de sonhar com uma fraternidade ou uma Igreja de pessoas puras, mas aceitar viver com os irmãos, com todos os irmãos. Não só com os justos, mas também com os medíocres e os pecadores. Não só com os sadios, mas também com os doentes e com os estropiados... E no meio de todos, trata-se de testemunhar a imensa paciência de Deus, seu inesgotável perdão e sua graça sempre renovada. Pois este é verdadeiramente o coração de Deus. Quando se dá este testemunho, então começa aqui e agora o Reino de Deus: a luz do Evangelho brilha na obscuridade do mundo (Éloi Leclerc, O Sol nasce em Assis, Vozes Petrópolis, 2000, p. 71).
11. Francisco andava buscando. O seu processo vocacional não foi breve e revelou-se multifacetário. Os estudiosos chamam atenção para vários encontros de Francisco com o Cristo e o Evangelho antes de poder dizer o famoso: “É isso que eu quero, isso que busco de todo o coração” ao ouvir o Evangelho da missão na Porciúncula. Falam, os ditos autores, de um encontro consigo mesmo, com os pobres, com os leprosos, com o Crucificado, com o Evangelho e com os irmãos (cf. El proceso vocacional de Francisciso de Asís, F. Uribe, OFM, in Verdad y Vida 230, 2001, p. 75-100). Francisco olhou para o caminho dos beneditinos. Usou roupa de eremita e cinto de ermitão. Andou triste de um lado para o outro. Pensava que Deus queria que ele fosse pedreiro. Pensou também em ser contemplativo silencioso. Não se encontrou nem cá, nem lá. Estava sempre aberto para descobrir seu caminho. Até que, deixando de procurar, passou a viver.
12. Fundamental é a frase do Testamento que tanto nos marcou e continua marcando: “E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo Evangelho” (14). Nesse momento, Francisco se encontrou. Outros preferem dizer que ele foi esclarecido apenas no momento do Evangelho da Missão. Na realidade, a vida não é simples e os caminho que nos fazem chegar a Deus mais complexo ainda. Sublinhemos: o dom dos irmãos. Com a chegada dos irmãos, Francisco se encontrou.
13. O Senhor nos chamou a viver a forma de vida evangélica, não solitariamente, mas numa comunidade de irmãos. Não constituímos um grupo de pessoas que “colaboram” para o bom êxito de um empreendimento. Não somos tocadores de obras, por mais nobres e necessárias que sejam. Não somos apenas pessoas polidas umas com as outras. Somos iguais, somos irmãos, respeitamo-nos profundamente uns aos outros, manifestamos com confiança nossas necessidades, evitamos discussões, murmurações, cólera e julgamentos negativos. Sofremos quando um confrade vive sem atenção num quarto velho no fundo de um corredor sombrio... Prestamo-nos mutuamente humildes serviços, amamo-nos com ternura de mãe. “A fraternidade não é somente, nem em primeiro lugar, uma escola de perfeição ou uma equipe de trabalho apostólico. A fraternidade tem uma razão em si mesma: ser um ambiente onde os irmãos procuram estabelecer relações verdadeiramente interpessoais. A razão de ser de uma fraternidade evangélica é que os irmãos se amem uns aos outros. Ela quer ser uma manifestação visível, uma espécie de sacramento da nova situação do homem , a quem o Senhor concedeu em Jesus Cristo, a possibilidade de amar verdadeiramente todos os homens. Os laços que unem entre os si os irmãos de uma fraternidade evangélica, não são espontâneos como no casal humano. Os irmãos se agrupam para amar-se por causa do Reino de Deus. Querem, desta maneira, manifestar de forma concreta a vocação primeira da Igreja: ser uma comunidade de amor” (Thaddée Matura, OFM, O projeto evangélico de Francisco de Assis, Vozes/CEFEPAL, Petrópolis 1979, p. 80).
14. Para Francisco, a chegada dos irmãos é a confirmação de sua vocação. Para cada um de nós, frades hoje, os irmãos, os frades e nossa vida com eles confirmam nossa vocação. Não existe vocação isolada dos franciscanos. Não existimos sem os irmãos. Não temos apenas que socorrê-los. Necessitamos deles para sobreviver. É nosso próprio. Somos uma fraternidade. A exclusão do irmão ou sua ausência nos faz mal. Não conseguimos ser nós mesmos sem a presença dos irmãos. Perdemos nossa identidade. A presença fraterna se traduz em atenções, acolhida, perdão, respeito, satisfação dada pelas nossas idas e vindas, união de nossa voz com a voz do irmãos na oração, comer juntos o pão da vida, alegria de podermos ir pelo mundo, dois a dois, concordes, dizendo que o amor precisa ser amado, alimentados pela Eucaristia, muitas vezes, concelebrada. Não existe franciscano sozinho.
15. Cada frade precisa ter a certeza de seu chamamento, e assim ir clarificando a questão de sua identidade. E a certeza lhe vem da presença e da pessoa do irmão. Ele é fundamental para que eu possa confirmar minha própria vocação. Essa certeza de que o Senhor nos dá irmãos não acontece ou ocorre uma só vez... O Senhor está sempre dando irmãos. É um ato contínuo, como contínua é a criação e contínua a redenção. A fraternidade se renova ou se atualizada cada dia, cada dia acolhemos, com a alegria a multidão dos irmãos que nos são dados.
16. E quando o irmão peca eu o procuro. Penso nele é claro, quero que saia das trevas, mas penso sobretudo em mim porque se me distancio do irmão, mesmo do pecador, falho em minha própria vocação e não respondo ao chamamento que me foi feito. Minha vocação só se explica com a frase de Francisco: “O Senhor me deu irmãos...” Não existe franciscano sozinho. O irmão é fundamental para que eu continue um cristão franciscano. Ressoa sempre aos nossos ouvidos aquela frase do Gênesis: “Onde está o teu irmão, o que fizeste dele?”
17. O novo documento sobre a formação permanente na Ordem dos Menores, já mencionado anteriormente, insiste: “Marcada muitas vezes por conflitos interpessoais, a Fraternidade aparece como lugar privilegiado para “fazer misericórdia” , para que o negativo se transforme em ocasião de crescimento. A situação de imperfeição das fraternidades não pode nos levar ao desânimo. Somos sempre interpelados pelo exemplo e pela palavra de São Francisco. Na Carta a um Ministro, a delicada situação fraterna é vivida como uma graça, não tanto pelo que ela tem de doloroso (des-graça) mas antes de tudo porque ela oferece ao Ministro a possibilidade de ser misericordioso, podendo desta forma exprimir, como ser humano, a realidade de um ser criado à imagem de Deus. A misericórdia nos faz compreender que não nos é permitido impor tempos e modos de conversão a todos (“Ama-os com tudo isso e não queiras que sejam cristãos melhores” / Carta a um ministro, 7), mas a respeitar os diferentes ritmos dos percursos de cada Irmão e da Fraternidade” (n.12).
18. Podemos voltar a E. Leclerc fazendo afirmações a respeito da verdadeira vocação de Francisco....: “Agora se manifestava com toda clareza a vocação de Francisco. Ela se tornava nítida assumindo toda a sua dimensão. O Senhor não o havia chamado para fundar uma Ordem, mais uma entre muitas outras. Ele próprio jamais havia pensado nisto. Tinha acolhido os irmãos que o Senhor lhe havia dado. Simplesmente isto. Sua verdadeira vocação estava em outro lugar. Ele a via claramente naquele momento. Tratava-se de oferecer ao mundo, além de todas as estruturas, aquela presença total e aquele dom completo que Deus faz de si mesmo a todo momento e a todos os seres. E como era exaltante esta vocação! Francisco podia agora cantar o Irmão Sol que brilha sobre todos com grande esplendor, à imagem de Deus” ( Idem, p.71). Não existe franciscano sozinho.
19. A minoridade (ou minorismo) é outra característica própria dos franciscanos. Até que ponto, realmente, a formação consegue nos colocar nesse espírito querido por Francisco? Há os que descrevem as características dos primeiros frades com a mobilidade apostólica, a pobreza, a fraternidade, a inserção nas cidades. Autores, como Eloi Leclerc, fazem parecer que estas notas estavam presentes também em outros movimentos evangélicos da época... ”Se quisermos caracterizar a experiência franciscana primitiva em sua singularidade, é necessário acrescentar outro traço essencial. Tomás de Celano relata o seguinte fato: “Quando assim escrevia na Regra: E sejam menores, ao proferir esta palavra, naquela mesma hora disse: Quero que esta fraternidade se chame Ordem dos Frades Menores” (1Celano 38). “Frades menores”, essa designação vem iluminar e precisar a idéia que Francisco faz da vida dos irmãos e de sua vocação evangélica na sociedade e na Igreja. Assim se exprime dirigindo-se ao bispo de Óstia: “Senhor, meus frades têm o nome de menores para não desejarem ser maiores. Sua vocação é de ficar embaixo seguindo os passos do Cristo” (E. Leclerc, Francisco de Assis. O Retorno ao Evangelho, Vozes/CEFEPAL, Petrópolis 1983, p.61).
20. Não é aqui o lugar de fazer um tratado sobre o minorismo franciscano. Estamos sempre com a pergunta: Quem somos nós? Qual é nossa identidade? “Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo; e, depois, demorei só um pouco e sai do mundo” (Testamento 1-3).
21. Donald Spoto, no seu Francisco de Assis. O Santo Relutante (Objetiva, 2003) afirma, com razão, que o leproso foi o lugar da manifestação, da epifania de Cristo para Francisco. Depois do famoso encontro relatado pelo próprio Francisco e repetido mil vezes pela hagiografia, o Poverello ficou diferente. Começou a “deixar o mundo”, a fazer penitência, a mudar o coração, a ser um penitente de Assis. O cuidado pelos leprosos não significou para ele apenas colocação de gestos de benevolência ou de “caridade”. Spoto compreendeu bem. “Com este único ato de caridade, Francisco, aparentemente transformou-se, pois ao chegar à Umbria não apenas retomou a restauração de São Damião, mas começou também a cuidar dos leprosos, tarefa raramente empreendida por quem quer que fosse. Para isso precisava não apenas mendigar comida em nome deles e alimentá-los, mas também levá-los a um regato ou fonte próxima para lavar as feridas. Em nome de Deus, servia a todos eles com grande amor. Lavava a imundície e até mesmo limpava o pus de suas chagas. Seu carinho, em outras palavras, significava mais do que simplesmente não demonstrar aversão. Significava a disposição de ficar em companhia deles justamente porque eram rejeitados. Significava tomar com estrita literalidade o ensinamento do Evangelho de que cuidar dos necessitados era o mesmo que cuidar do Cristo solitário, moribundo e nu” ( P. 101-102). Francisco não experimenta doçura apenas na oração, mas de modo especial, quando cuida das chagas dos leprosos. Indo na direção dos leprosos, Francisco se dirige a um “santuário” de Cristo, onde ele está presente. Não vai tanto para dar, quanto para receber. Não vai praticar boas obras de caridade, mas se aproxima da fonte da dor de Cristo que mora no leproso.
22. Francisco não fica de braços cruzados. Age. Vai. Toma a iniciativa. No final de sua vida, cercado de certas honras e envolvido nas tramas da “administração” de uma grande Ordem, sentindo um certo desgosto de não ter alcançado o que queria, Francisco se lembrará com saudade do tempo em que os frades eram poucos e ele cuidava dos leprosos. “O frade menor aprende que precisa estar junto do mais pobre, do leproso para estar junto do Mestre. É convidado a “estar junto” e não a “mandar outros” para que venham a estar onde ele, frade menor, deve estar”. Será que nossas obras sociais são marcadas pela alegria de estar junto com o Cristo despedaçados ou também andamos burocratizando esse universo todo?
23. Muitos questionamentos e muitas interrogações. Qual é nosso lugar? Onde estão, de verdade, os leprosos de hoje, “domicílios” do Cristo de São Francisco? Praticamente quais os frades que conseguem encontrar esse Cristo? No momento da re-arrumação das casas, depois do Capitulo, será que muitos frades vão estar junto dos seres mais abandonados que são o “santuário” de Cristo? Ou será que precisaremos sempre cobrir os “buracos”?
24. Uma rica tradição bíblica e medieval afirma que as pessoas que se aproximaram carinhosamente da miséria entraram num caminho de conversão. Spoto vê em Teresa de Calcutá uma buscadora de Cristo nos leprosos de hoje. “Após a Segunda Guerra Mundial, a filha de um quitandeiro albanês chamada Agnes Bojaxhiu resolveu tratar os doentes pobres de Calcutá, simplesmente ficando em companhia deles, para que não morressem sozinhos, sem o calor de um abraço humano. Mais tarde, conhecida como Madre Teresa, ela afirmou, ao receber o Premio Nobel da Paz: “Escolhi a pobreza de nossos miseráveis. Mas estou grata em receber o dinheiro do prêmio em nome dos famintos, dos nus, dos desabrigados, dos aleijados, cegos e leprosos, de todos aqueles que se sentem indesejados, sem amor e sem carinho na sociedade – aqueles que se tornaram uma carga para a sociedade e que são rejeitados por todos” ( p. 102-103)” . “Cuidando dos rejeitados do mundo, Francisco começava a ascender à genuína nobreza que buscava, que seria descoberta não nas armas, ou em títulos e batalhas, glórias ou desafios. A honra não estava na companhia dos mais fortes, dos mais atraentes, dos mais bem vestidos ou mais seguros da sociedade, mas entre os mais fracos, os mais desfigurados, os que estavam marginalizados, dependentes e desprezados” ( p. 104). Francisco, cuidando dos leprosos, se aproximou do Cristo desfigurado e o Pai seráfico necessitava dos necessitados como ponto de encontro com o mistério de seu esposo, Cristo Jesus.
25. A Ordem está preocupada. O Documento sobre a formação, já citado, diz ao número 22: “Jesus Cristo é o paradigma da minoridade, ele que se despojou tomando a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens, Animados pelo mesmo espírito de fé, os irmãos aprenderão a partilhar as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo optando por viver, por amor a Cristo que se deu inteiramente, entre os que habitam os lugares de “ruptura” (n.22).
26. Ao concluirmos estas reflexões retomamos o final do Testamento do Pai todo seráfico: “E todo aquele que estas coisas observar seja repleto no céu da bênção do altíssimo Pai e na terra seja repleto da bênção de seu divino Filho com o Santíssimo Espírito Paráclito e com todas as virtudes dos céus e com todos os santos. E eu , Frei Francisco pequenino, vosso servo, quanto posso vos confirmo, interior e exteriormente esta santíssima bênção”. E nós, jovens noviços, estudantes de filosofia ou de teologia, comíamos a frugal refeição das sextas-feiras pensando no céu que nos esperava se fôssemos fiéis a Francisco
27. Ouvimos sempre falar de busca de nossa identidade franciscana. Somos constantemente convidados a voltar às fontes, a interrogar os que nos precederam e nos abeirar da figura de Francisco que uma infinidade e textos e versões nos apresentam.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
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