A liturgia deste dia nos faz ouvir a parábola do pastor que tem cem ovelhas e que deixa as noventa e nove protegidas e vai atrás da única que se desgarrara. O pastor bom se embrenha no meio de espinheiros, ousa descer abismos vertiginosos para agarrar a frágil criatura que só pode viver com a força de seu amor. E depois que encontra a perdida ovelha faz festa, a festa do reencontro. O pastor que busca a desgarrada é aquele que tem o coração tocado pela lança.
Estamos na sexta-feira das dores. Depois de horas de tormentosa agonia, Jesus, inclinando a cabeça, dá o último suspiro. Entrega o Espírito nesse ato de amor livre e total. Coberto de poeira, suor, sangue lá está o corpo morto do mais belo de todos os filhos dos homens. Era a véspera do sábado, dia da grande festa dos judeus. Estes pediram a Pilatos que os corpos dos condenados fossem retirados das cruzes. Não convinha tê-los ali no dia grande festa que se aproximava. Que se lhes quebrassem as pernas e que os corpos fossem sepultados. Que as cruzes não tivessem mais esses malfeitores! Os soldados não quebraram as pernas do Senhor, mas abriram seu lado. No dizer do Crisóstomo, profanaram o cadáver. Os atos perpetrados por esses homens destituídos de boas intenções, no entanto, pareciam estar nos desígnios de Deus. Um profeta, com efeito, havia dito: Olharão para aquele a quem traspassaram.
Não foi por acaso, nem sem finalidade que duas fontes brotaram do peito aberto de Jesus: sangue e água são elementos constitutivos da Igreja. Os que foram iniciados na fé cristã sabem muito bem que se alimentam da carne e têm como bebida o sangue.
Os cristãos se aproximam do cálice para se abeberarem das fontes do salvador, das fontes do lado aberto do Redentor, do coração de Jesus.
Belamente proclamamos no Prefácio da solenidade: “Elevado na cruz, entregou-se por nós com imenso amor. E, de seu lado aberto, pela lança, fez jorrar com a água e o sangue, os sacramentos da Igreja, para que todos atraídos ao seu coração, pudessem beber, com perene alegria, na fonte salvadora”
A Escritura falava que o cordeiro pascal não devia ter osso algum quebrado. Ora, o cordeiro pascal nada mais era do que uma figura do Cristo, verdadeiro Cordeiro de Deus. Em lugar de ter suas pernas quebradas, o Salvador teve aberta uma fonte no peito.
“De seu lado saiu sangue e água (Jo 19,34). Não quero, querido leitor, que trates com superficialidade o segredo de tão grande mistério. Falta-me ainda explicar-te o outro significado místico e profundo. Disse que esta água e este sangue são símbolos do batismo e da eucaristia. Foi destes sacramentos que nasceu a Igreja, pelo banho da regeneração e pela renovação do Espírito Santo, isto é, pelo batismo e pela eucaristia que brotaram do lado de Cristo. Pois Cristo formou a igreja de seu lado traspassado, assim como do lado de Adão foi formada Eva, sua esposa. Por esta razão, a Sagrada Escritura, falando do primeiro homem, usa a expressão osso de meus ossos e carne da minha carne (Gn 2,23), que São Paulo refere, aludindo ao lado de Cristo. Pois assim como Deus formou a mulher do lado do homem, também Cristo, de seu lado nos deu a água e o sangue para que surgisse a Igreja. E assim como Deus abriu o lado de Adão enquanto ele dormia, também Cristo nos deu a água e o sangue durante o sono de sua morte” (L.Horas II, p.416).
Nenhum comentário:
Postar um comentário