
Frei Celso Márcio Teixeira, OFM
 Introdução
 Bastante comum entre os que estudam São Francisco é a tendência de  interpretar o pensamento dele segundo a mais avançada teologia ou  segundo as mais recentes conquistas dos estudos exegéticos ou da  teologia bíblica. Sem dúvida, Francisco teve intuições profundas na  maneira de ler e interpretar a Sagrada Escritura, mas é necessária uma  certa cautela nas afirmações sobre a “teologia” dele para não lhe  colocar na cabeça o que ele não pensou nem tampouco elaborou.  Encontramos em Francisco, fora de dúvida, pistas que coincidem com uma  visão atualizada da teologia. Afirmar mais do que isto seria tirar uma  conclusão maior do que as premissas nos permitem.
 O mesmo vale para uma “leitura antropológica” de Francisco. Talvez  nem se possa dizer que Francisco tivesse uma “antropologia”. De fato,  ele não elaborou tratados de espécie alguma. Mais conforme com a  verdade, no caso, seria dizer: “fragmentos de uma antropologia”. Embo¬ra  ele não tenha elaborado uma antropologia, no entanto, em seus escritos  transparecem muitos elementos que constituem a sua visão do homem. Nossa  tarefa seria, então, ajuntar os fragmentos mais signifi¬cativos que  comporiam a linha-mestra de sua “antropologia”.
 Ao tentarmos fazer uma leitura antropológica, estamos conscientes de  que isto significa uma riqueza e um limite ao mesmo tempo. Riqueza,  porque é tentativa de uma visão diferente, de uma interpretação nova do  texto de Francisco; limite, porque toda ótica é uma limitação do campo  visivo da realidade. Uma leitura antropológica de um texto é sempre um  ponto de vista, como também são diferentes pontos de vista a leitura  teológica, a sociológica, a histórica, a filosófica, a psicológica, etc.  Qualquer tentativa de leitura ou interpretação marca, portanto, um  limite de seu campo visivo.
 Limitado também será o nosso campo de análise. Fixar-nos-emos na  expressão usada por São Francisco: o espírito do Senhor. Não  procuraremos aí a “teologia” dele, mas tentaremos colher alguns  elementos de sua “antropologia”. Descobriremos, no entanto, que esta é  profundamente teológica, ou melhor, se move a partir de uma concepção  teológica do homem.
 Não pretendemos estender o estudo a toda a visão que Francisco tem do  homem. Isto requereria um estudo mais exaustivo que analisasse a  compreensão que ele tem de corpo, de mundo, da vida, de espaço, de  tempo, etc. E isto foge do escopo singelo do presente estudo que é  ater-nos à expressão “espírito do Senhor”.
 Colocados estes prolegômenos, resta-nos colocar a pergunta, objeto  deste estudo: O que significa para Francisco o espírito do Senhor? Que  implicações tem o espírito do Senhor para a sua visão do homem?
 1. Análise do termo “espírito”
 Este termo, “espírito”, é usado para designar a terceira Pessoa da  Santíssima Trindade, no nome Espírito Santo, para designar o espírito  que, com o corpo, é elemento constitutivo do homem, e para designar os  anjos e até mesmo os demônios. E há ainda a expressão, usada por  Francisco, “espírito do Senhor” (1).
 Como se pode constatar em um primeiro contato com o termo “espírito”,  este não tem um sentido unívoco. Falar simplesmente “espírito” ainda  não diz nada. É necessário colhê-lo no seu contexto ou pelo menos junto  com o adjetivo que o qualifica.
 Em algumas expressões em que é empregado o termo “espírito”, o  significado é evidente. Quando Francisco fala de espírito imundo (2),  não resta qualquer dúvida de que esteja falando do demônio, ainda mais  que ele usa esta expressão, citando literalmente o Evangelho de Mateus  (cf. Mt 12,43). Ao falar dos coros dos espíritos beatos (3), refere-se  evidentemente aos coros dos anjos, pois o contexto mesmo, enumerando os  serafins, os querubins etc., indica o sentido que tem o termo  “espíritos”. E o nome “Espírito Santo” tem um sentido e conteúdo claros:  trata-se da terceira Pessoa da Santíssima Trindade.
 2. O que os autores dizem sobre o espírito do Senhor
 Mas a expressão “espírito do Senhor” não tem a mesma clareza. O que  significa “espírito do Senhor”? Qual sua importância no conjunto do  pensamento de Francisco? Concordamos com K. Esser e E. Grau quando  afirmam que a doutrina sobre o espírito do Senhor constitui o  núcleo do pensamento de Francisco (4). É importante procurar aprofundar  este aspecto, pois estamos diante de um pensamento, se não original,  pelo menos muito característico de Francisco.
 Quanto ao conteúdo da expressão “espírito do Senhor”, Francisco não é  muito explícito; ele não explicou o que queria dizer com tal expressão.  Resta, então, aos estudiosos a tarefa de tentar compreender e  interpretar, tendo como moldura de fundo o conjunto dos Escritos de  Francisco, o sentido desta expressão. E as interpretações dos autores  divergem. Alguns, por exemplo, identificam o “espírito do Senhor”  simplesmente com o Espírito Santo ou com a sua ação (5). A tendência de  muitos autores, de fato, é identificar o “espírito do Senhor” com a  terceira Pessoa da Santíssima Trindade. A nosso ver, esta identificação é  indevida, não só por se tratar de uma interpretação teologizante, mas  porque Francisco, quando quer referir-se à terceira Pessoa da Santíssima  Trindade, a nomeia sempre como Espírito Santo. Por exemplo, no texto  que segue:
 “Santa Virgem Maria, não há mulher nascida no mundo  semelhante a vós, filha e serva do altíssimo Rei e Pai celestial, Mãe de  nosso santíssimo Senhor Jesus Cristo, esposa do Espírito Santo”(6).
 Francisco não chama Maria de esposa do espírito do Senhor. Em nenhum  momento dos Escritos de Francisco, o espírito do Senhor vem considerado  como pessoa. E todas as vezes em que vem nomeado o Espírito Santo, ele é  compreendido como pessoa, mais precisamente, a terceira Pessoa da  Trindade.
 Há autores que interpretam o “espírito do Senhor” preferivelmente  “como o estado da fé e do amor, como o estado de graça que é fruto da  salvação”(7).  Há quem o interprete como o espírito de Cristo (8).
 O. van Asseldonck, um dos que mais têm escrito sobre o tema, interpreta-o como o próprio espírito de Cristo,  tendendo, porém, para uma interpretação mais “antropológica”: “Este  espírito do Senhor é o Espírito do mesmo Cristo, Filho de Deus, que se  comunica ao homem na medida em que segue as pegadas de Jesus pobre,  humilde, crucificado e eucarístico. Refere-se ao mesmo e único Espírito  que nós chamamos de espírito de oração e devoção, de pobreza, de  penitência, obediência e caridade, em uma palavra: o espírito de toda a  vida evangélica dos irmãos menores. Este é o Espírito desejável sobre todas as coisas, sendo como o espírito e a vida dos irmãos” (9).
 Diante do que dizem os autores, a pergunta continua: o espírito do  senhor é o Espírito Santo? É o espírito de pobreza, de oração, etc.? É o  estado de amor e de fé? É o estado de graça?
 3. O espírito e a semelhança de Deus
 “Considera, ó homem, a que excelência te elevou o  Senhor, criando-te e formando-te segundo o corpo à imagem do seu dileto  Filho e, segundo o espírito, à sua própria semelhança. Entretanto, as  criaturas todas que estão debaixo do céu, a seu modo, servem e conhecem e  obedecem ao seu Criador melhor do que tu” (10).
 Este texto é de fundamental importância para uma imagem que Francisco  tem do homem. O homem foi criado por Deus e colocado em posição de  excelência em relação às demais criaturas. A excelência consiste nisso: o  homem é constituído de corpo e espírito; quanto à corporalidade, foi  criado à imagem do Filho (11), quanto ao espírito, foi criado à  semelhança de Deus.
 O espírito é, por assim dizer, algo de Deus que há no homem. Quando  Deus criou o homem, infundiu nele algo de seu, sua marca, seu selo: o  espírito. A Bíblia fala que Deus soprou nas narinas do homem, feito de  barro, e o homem se tornou um ser vivente (cf. Gn 2,7). O espírito é  esse sopro de Deus que dá vida ao homem. O espírito ou o sopro de Deus  torna-se no homem espírito encarnado, realidade humana, elemento  constituinte do ser humano, juntamente com o corpo.
 Ser espírito é o modo de ser de Deus. Por isso, é no espírito do  homem que reside a semelhança de Deus (12). E esta semelhança é algo  humano, pois faz parte constituinte do homem. Por assim dizer, o homem  tem em si, como elemento constituinte, uma faísca do modo de ser de  Deus. Esta figura não dista muito da usada por São Paulo: “O Senhor é  espírito, e onde está o espírito do Senhor, aí há liberdade. Todos nós …  refletimos como num espelho a glória do Senhor, e nós nos vemos  transformados nesta mesma imagem, sempre mais resplandecente pela ação  do espírito do Senhor” (2Cor 3,17-18).
 As demais criaturas, pelo simples fato de existirem, já prestam seu  louvor e glória a Deus: “a seu modo, servem, conhecem e obedecem ao  Criador”. Ao homem, porém, não basta existir, não basta que tenha o  espírito ou a semelhança de Deus como elemento constituinte de seu ser. O  ser do homem, constituído também de espírito, implica uma tarefa: a de  viver de acordo com o espírito que há nele, que é a marca e semelhança  de Deus imanente nele. O ser do homem, portanto, exatamente por ser  espírito, é um devir, um vir-a-ser, uma busca de tornar-se cada vez mais  semelhante a Deus. Somente assim, ele estará ocupando seu lugar de  excelência entre as demais criaturas. A busca de viver esta semelhança  de Deus (o devir) será também o seu modo de render louvor e glória ao  Criador.
 O viver em vícios e pecados é o contrário da semelhança com Deus. Por  isso, Francisco continua o texto da Admoestação da seguinte forma: “Não  foram tampouco os espíritos malignos que o crucificaram, mas tu em  aliança com eles o crucificaste e o crucificas ainda, quando te deleitas  em vícios e pecados”(13).
 Deleitar-se em vícios e pecados é ofuscar o brilho da semelhança de  Deus, é encobrir a marca de Deus. Contrariamente, para Francisco, o  viver em penitência (14) significa deixar brilhar sempre mais o  espírito, a semelhança de Deus.
 4. O espírito do Senhor e a vida de penitência
 “E todos os homens e mulheres que assim agirem e perseverarem até o  fim verão ‘repousar sobre si o espírito do Senhor’ (Is 11,2), e ele fará  neles sua morada permanente (Jo 14,23), e eles serão filhos do Pai  celestial (Mt 5,45), cujas obras fazem. E eles são esposos, irmãos e  mães de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Mt 12,48-50). Somos esposos,  quando a alma crente está unida a Jesus Cristo pelo Espírito Santo.  Somos seus irmãos, quando fazemos a vontade de seu Pai, que está nos  céus (Mt 12,50). Somos suas mães, se com amor e consciência pura e  sincera o trazemos em nosso coração e nosso seio e o damos à luz por  obras santas que sirvam de luminoso exemplo aos outros (cf. Mt 5,16)”  (15).
 Observe-se, neste texto, que o espírito do Senhor não é anterior, mas  resultado do viver a penitência: à medida que os homens e mulheres  vivem a penitência e nela perseveram, pouco a pouco vão ficando  plenificados do espírito do Senhor: “verão repousar sobre si o espírito  do Senhor”. Isto é, os que vivem segundo o espírito, segundo a  semelhança de Deus que é imanente neles, verão desabrochar cada vez mais  em si a semelhança de Deus. Surge, então, a pergunta: trata-se de um  outro espírito ou é o mesmo espírito que é semelhança de Deus visto na  análise do primeiro texto?
 A nosso ver, trata-se do mesmo espírito (modo de ser de Deus ou  semelhança de Deus presente no homem). Somente que, quando o homem  procura viver segundo a semelhança de Deus, o espírito brilha mais  intensamente nele, a semelhança de Deus se torna mais reflexo de Deus. O  homem que vive segundo este modo de ser de Deus torna-se – o homem é um  devir – “homo spiritualis” (16). Mas para que o homem permaneça “homo  spiritualis” é necessário que o espírito do Senhor seja nele uma  presença habitual. A presença habitual do espírito do Senhor no homem é  dita por expressões como “o espírito repousa sobre ele (ou habita  nele)”, “possuir o espírito do Senhor” ou “ser possuído pelo espírito do  Senhor”.
 Embora seja muito comum a interpretação que identifica o espírito do  Senhor deste texto com o Espírito Santo, terceira Pessoa da Santíssima  Trindade, julgamos que não seria o caso de estabelecer esta  identificação. A nosso ver, possuir o espírito do Senhor, ou melhor, ser  possuído pelo espírito do Senhor, é ter o mesmo modo de ser, de viver,  de ver, de sentir, de querer, de pensar, de agir de Deus, na medida da  frágil capacidade humana, certamente inspirada por Deus e sustentada por  sua graça. Este modo de ser de Deus (ou o espírito do Senhor) torna-se  realidade humana na pessoa. Para utilizar a linguagem da teologia da  Idade Média, o espírito do Senhor no homem é uma “res creata”(17) (uma  realidade criada).
 Portanto, o espírito do Senhor não precisa ser interpretado  simplesmente como o Espírito Santo. Além do mais, no texto citado,  existe uma distinção entre o espírito do Senhor e o Espírito Santo. Ser  possuído ou habitado pelo espírito do Senhor, esse modo de ser de Deus  que se torna humano em nós, torna possível e estabelece o nosso  relacionamento de filhos com o Pai celestial, de irmãos, esposos e mães  de Jesus Cristo, com a ação específica do Espírito Santo. O espírito do  Senhor, encarnado humanamente no nosso ser “homo spiritualis”,  permite-nos viver como filhos do Pai celestial e familiares de Cristo,  na união do Espírito Santo.
 Possuir o espírito do Senhor (ou ser possuído ou habitado pelo  espírito do Senhor) implica mais ainda: implica em fazer as obras (a  vontade) do Pai, dar à luz a Cristo através de santa operação. Todo o  viver do “homo spiritualis” é “viver espiritualmente”, e todas as suas  atitudes são “espirituais”, porque ele possui habitualmente o “espírito  do Senhor”. Portanto, o espírito do Senhor constitui não somente o ser  do “homo spiritualis”, mas também o seu agir, o seu viver e o seu comportar-se.
 5. O espírito do Senhor e o espírito da carne
 “Por isso, vamos nós, irmãos todos, acautelar-nos de toda vanglória e  soberba. Guardemo-nos da sabedoria deste mundo e da prudência da carne.  Pois o espírito da carne tem grande interesse em fazer muito  em palavras e pouco em obras, nem procura a piedade e santidade interior  do espírito, mas antes visa e deseja uma piedade e santidade que  apareça por fora diante dos homens. E é de tais que diz o Senhor: Em  verdade vos digo que estes já receberam sua recompensa” (Mt 6,2). O espírito do Senhor,  porém, exige que a nossa carne seja mortificada e desprezada, vil,  abjeta e desprezível; e ele procura a humildade e a paciência e a pura,  simples e verdadeira paz do espírito; e acima de tudo deseja sempre o  temor de Deus, a sabedoria de Deus e o divino amor do Pai, do Filho e do  Espírito Santo”(18).
 Para Francisco, na linha paulina de Rm 8,5-8, o espírito do Senhor em  seu santo modo de operar, isto é, no seu agir, opõe-se ao “espírito da  carne”. O presente texto em estudo apresenta esta oposição. Para uma  melhor compreensão desta oposição, convém lançar um breve olhar sobre a  expressão “espírito da carne”.
 Os termos “carne” (“corpo”) e “mundo” (“século”) nos Escritos de São  Francisco não indicam sempre a realidade visível e física. Indicam  freqüentemente a realidade inimiga de Deus. Também no Evangelho de S.  João se encontram os dois sentidos para estes termos. “Carne” e “mundo”,  na segunda frase do texto, são empregados para indicar esta realidade  contrária aos desígnios de Deus. E em outra passagem, porque são  inimigos de Deus, Francisco os considera verdadeiros inimigos do homem:
 “Reparai, ó cegos, iludidos por nossos inimigos – isto é, pela carne, pelo mundo e pelo demônio - que é agradável ao corpo praticar o pecado, e amargo servir a Deus”(19).
 Embora indiquem a realidade inimiga de Deus e dos homens, “mundo” e  “carne” não podem ser tomados como sinônimos. Expressões como “irmão  carnal”, “viver carnalmente”, “caminhar carnalmente”(20) (Francisco, de  fato, não usa nunca expressões como “irmão mundano” ou “viver, andar  mundanamente”) fazem pensar que “carne” pretende sublinhar o aspecto  pessoal da realidade inimiga de Deus, enquanto “mundo” significa a  estrutura ou conjunto de circunstâncias exteriores que constituem a  realidade inimiga de Deus. Esta distinção entre “mundo” e “carne”, por  exemplo, se pode entrever no seguinte texto:
 “Mas todos aqueles que não vivem em penitência … e servem corporalmente o mundo com desejos carnais … sao cegos…”(21).
 A expressão “servir o mundo” sugere que “mundo” seja uma realidade  exterior ao homem; “corporalmente” e “com desejos carnais” são  expressões que indicam antes a atitude pessoal ou interior com que o  homem serve o mundo inimigo de Deus.
 Em outro lugar, Francisco considera o corpo (aí sinônimo de “carne”) como o inimigo mais próximo do homem:
 “Há muitos que, pecando ou recebendo alguma injúria, costumam lançar a  culpa sobre o inimigo ou sobre o próximo. Mas assim não é na realidade,  porquanto cada um tem sob seu domínio o inimigo, isto é, o próprio corpo, por meio do qual ele peca”.
 Francisco chama o operar o pecado ou o agir da carne (realidade  inimiga de Deus) de “espírito da carne”. A partir do conceito de  “espírito da carne”, ele concebe o “homo carnalis” (homem carnal).  Sinteticamente, ele descreve em que consiste o “homo carnalis”:
 “Mas todos aqueles que não vivem em espírito de penitência, nem recebem o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que praticam vícios e cometem pecados, e que vivem segundo suas más concupiscências e desejos perversos, e que não cumprem o que prometeram e com seu corpo servem corporalmente o mundo com desejos carnais, cuidados  e solicitudes deste mundo, ludibriados pelo demônio, cujos filhos são e  cujas obras praticam: cegos são eles, porque não são capazes de  enxergar a verdadeira luz, Nosso Senhor Jesus Cristo” (23).
 O “homo carnalis” é aquele que “pratica vícios e comete pecados”; é  aquele que “serve o mundo com seus desejos carnais”; este é chamado  filho do demônio, porque faz as obras do demônio. O “homo carnalis” age e  vive “carnaliter” (24). Ao praticar vícios e cometer pecados, o homem  carnal encarna, no seu agir, o modo de agir do “espírito da carne”;  assume as características do espírito da carne. O pecado, portanto, vem  de dentro dele, não de fora: todos os vícios e pecados procedem do  coração do homem (Mt 15,19) (25). É ele próprio o responsável pelo seu  pecado e não um inimigo exterior. O “homo carnalis” está, deste modo, em  irreconciliável oposição ao “homo spiritualis”.
 A oposição entre “homo spiritualis” e “homo carnalis”, no entanto,  não pode ser interpretada no sentido maniqueístico. Francisco, quando  descreve o “homo spiritualis” e o “homo carnalis”, não tem a pretensão  de dividir maniqueisticamente o mundo em homens espirituais de uma parte  e homens carnais de outra parte. Para Francisco, cada homem é “homo  spiritualis” e “homo carnalis”; é “homo spiritualis”, à medida que age e  vive como filho de Deus, realizando as obras e a vontade do Pai; é  “homo carnalis”, à medida que age e vive como filho do demônio,  praticando vícios e pecados e realizando as obras do demônio.
 Portanto, é no próprio homem que se concretiza a oposição “homo  spiritualis” – “homo carnalis”; é no próprio interior do homem que se dá  a oposição entre o espírito do Senhor e o espírito da carne como dois modos contraditórios de ser (26) (ser filho de Deus ou filho do demônio) e de agir (realizar as obras do Pai ou realizar as obras do demônio).
 É digno de nota o fato que Francisco estabeleça uma conexão entre o  agir e o ser. Fazer as obras do Pai é a manifestação concreta do ser  filho do Pai; fazer as obras do demônio é a manifestação concreta do ser  ou tornar-se filho do demônio.
 No texto em estudo, ao “espírito da carne”, que opera o pecado,  Francisco opõe a operação ou o modo de agir do “espírito do Senhor”. O  texto mostra como se processa a operação do “espírito do Senhor”. A  primeira operação é a de vencer o “espírito da carne”: “O espírito do  Senhor quer que a carne seja mortificada e desprezada, vil e  desprezível”. Depois que é vencido o “espírito da carne”, o “espírito do  Senhor” torna o homem capaz de desejar as virtudes (humildade,  paciência, etc.), que têm como ponto culminante o relacionamento de  temor, de sabedoria e de amor para com a Trindade: “e acima de tudo  deseja sempre o temor de Deus, a sabedoria de Deus e o divino amor do  Pai, do Filho e do Espírito Santo”.
 6. O Espírito do Senhor e seu santo modo de operar
 “Entretanto, admoesto e exorto em Jesus Cristo, Nosso Senhor, que os  irmãos se preservem de toda soberba, vanglória, inveja, avareza, cuidado  e solicitude deste  mundo, detração e murmuração; e os que não têm  estudos não os procurem adquirir, mas cuidem que, antes de tudo, devem desejar o espírito do Senhor e seu santo modo de operar:  rezar sempre a Deus com coração puro; ser humilde e paciente nas  perseguições e enfermidades; amar aqueles que nos perseguem, censuram e  atacam” (27).
 Esta admoestação contém duas partes distintas: a primeira, iniciada  por “os irmãos se preservem”, descreve com toda clareza, mesmo se  Francisco não o nomeie, o “espírito da carne” com as suas operações:  soberba, vanglória, inveja, avareza, etc.; a segunda parte, iniciada por  “cuidem que”, descreve o “espírito do Senhor” com as suas operações:  rezar ao Senhor, ter humildade, paciência, etc.
 Mas o que é importante neste texto não é tanto conhecer a lista das  operações do “espírito do Senhor”, mas compreender o que quer significar  ou sugerir a expressão “espírito do Senhor e seu santo modo de operar”.
 A idéia de “operação” ligada ao “espírito do Senhor” não é casual,  mas constitui o sentido mesmo da concepção do modo de agir do “espírito  do Senhor”. O homem, possuído pelo espírito do Senhor, age segundo a  maneira de agir de Deus. E este agir está sempre orientado para o bem.  Trata-se de um agir que é fazer a obra do Pai celestial, conforme o  segundo texto analisado neste estudo. É este espírito do Senhor, que se  torna humano no homem, que permite a este fazer a obra do Pai.
 Este modo de operar do “espírito do Senhor” não é, porém, uma vaga  inspiração a alguma obra boa ou a um indefinido sentimento em direção ao  bem; não se identifica também com um conceito abstrato de graça. O  “espírito do Senhor” é presença habitual no homem do modo de  ser, de pensar, de querer e de agir de Deus, presença que o identifica  como filho do Pai celeste e como esposo, irmão e mãe de Jesus Cristo na  união do Espírito Sant0 (28). Possuindo o “espírito do Senhor”, o homem,  identificado como filho do Pai celeste, realiza também as obras do Pai;  identificado como irmão de Cristo, como Cristo busca em tudo fazer a  vontade do Pai celeste; e com a ação específica do Espírito Santo que  une a alma fiel a Jesus Cristo, o homem que possui o “espírito do  Senhor” se dispõe à “sancta operatio” (santo modo de operar), isto é,  procura, como mãe de Cristo, trazer Cristo em sua vida e dá-lo à luz  através de santo modo de operar (29).
 Segundo nossa interpretação, encontram plena explicação na operação  do “espírito do Senhor” as expressões “frater spiritualis” (irmão  espiritual), “spiritualiter conversari” (conviver espiritualmente),  “spiritualiter ambulare” (caminhar espiritualmente) e semelhantes (30).  Quem possui o “espírito do Senhor” vai vencendo pouco a pouco o  “espírito da carne” até tornar-se uma criatura nova, um “homo  spiritualis”; quem possui o “espírito do Senhor” sente-se impulsionado a  “viver (caminhar) espiritualmente”. Se este homem é um frade menor, o  “espírito do Senhor” fará dele um irmão espiritual (“frater  spiritualis”) capaz de amar os irmãos com amor maior do que o amor  maternp (31) e de viver espiritualmente a vida religiosa (“spiritualiter  conversari”) e de tratar os outros espiritualmente (“spiritualiter  monere, spiritualiter honorare”, etc.).
 Portanto, o agir do homem é santo modo de operar à medida que encarna  o modo de agir do espírito do Senhor; assim, o santo modo de operar,  que é uma característica do espírito do Senhor, se torna característica  habitual do agir do homem espiritual.
 7. Como se reconhece o espírito do Senhor
 “Eis o meio de reconhecer se o servo de Deus tem o espírito do Senhor.  Se Deus por meio dele operar algum bem, e sua carne não se exaltar por  causa disso, pois a carne é sempre contrária a todo bem, mas antes  considerar como mais insignificante e se julgar menor que todos os  outros homens”(32).
 Constata-se, no supracitado texto da décima segunda Admoestação, que o  “espírito do Senhor” está ligado à idéia de reconhecimento de Deus como  aquele que opera o bem. Para Francisco, é fundamental a imagem de Deus  como origem e autor de todo bem. A oração e exortação ao louvor  ao Deus Sumo Bem, que se encontra na Regra Não-bulada, afirma-o de  maneira cristalina:
 “Atribuamos ao Senhor Deus altíssimo todos os bens; reconheçamos que  todos os bens são dele; demos-lhe graças por tudo, pois dele procedem todos os bens.  E ele, o altíssimo e soberano, o único e verdadeiro Deus, os possua. E a  ele se dêem, e ele receba toda honra e reverência, todo louvor e  exaltação, toda ação de graças e toda a glória, ele de quem é todo o  bem, e que só ele é bom”.
 Citando o texto de Mt 19,17 (“só Deus é bom”), Francisco atribui a  Deus a exclusividade no bem. Todos os bens são de Deus, procedem de  Deus, têm Deus como autor. Esta exclusividade no bem se compara à  exclusividade no amor que São João atribui a Deus. Para São João, Deus é  amor, e onde há amor, Deus aí está. Para Francisco, Deus é o Sumo Bem, e  onde há o bem, Deus aí está como origem e como autor.
 Num trecho da mesma Regra Não-bulada, Francisco parece, à primeira  vista, ter uma visão extremamente negativa do homem e negar-lhe qualquer  possibilidade de fazer o bem. Seria esta uma maneira de expressar a  exclusividade de Deus como origem e autor de todo bem? É necessária uma  análise do texto antes de tirar esta conclusão. O texto é o que segue:
 “E odiemos o nosso corpo com os seus vícios e pecados, porque,  vivendo carnalmente, quer privar-nos assim do amor de Nosso Senhor Jesus  Cristo e da vida eterna e consigo arrastar a todos para o inferno.  Pois por nossa culpa somos asquerosos, míseros, e contrários ao bem, mas dispostos e prontos para o mal“(33).
 Estaria o homem impedido de fazer o bem? Seria o homem, para Francisco, realmente um ser contrário ao bem?
 As expressões “corpo com seus vícios e pecados” e “vivendo  carnalmente” mostram, sem qualquer resquício de dúvida, que Francisco  está pensando no espírito da carne. E o espírito da carne é esta  realidade antagônica no homem que o induz ao pecado, que o conduz na  direção oposta ao espírito do Senhor. O homem só é contrário ao bem,  quando se deixa arrastar pelo espírito da carne. Não é contrário ao bem  por impossibilidade de praticá-lo, mas é por própria culpa que o  homem se torna contrário ao bem. Se fosse uma impossibilidade, não  teriam qualquer sentido as inúmeras exortações aos frades e aos fiéis  para fazerem o bem e para realizarem as obras do Pai celeste.
 Voltando ao texto da décima segunda Admoestação, para Francisco, o  espírito da carne é cheio de contradições. Este é contrário a todo o  bem; e mesmo assim, procura gloriar-se pelo bem que não lhe pertence.  Quem vive segundo o espírito da carne faz, desta maneira, uma indébita  apropriação do bem que pertence a Deus.
 Ao invés, quem possui o espírito do Senhor não se exalta, não atribui  a si próprio ou ao seu próprio eu (34) o bem que Deus opera através  dele, não se apropria do bem do Senhor, mas é humilde, reconhecendo-se  desprezível e o menor dentre todos.
 8. O espírito do Senhor e a possibilidade humana de fazer o bem 
 “Por isso, é o espírito do Senhor, que habita nos fiéis, que recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor (cf. Jo 6,62). Todos aqueles que não participam do mesmo espírito e ousam recebê-lo, comem e bebem a sua condenação (1Cor 11,29)” (35).
 Ao afirmar que é o espírito do Senhor que recebe o corpo e sangue do  Cristo na eucaristia, Francisco, muito provavelmente, tem como substrato  o texto da Carta de São Paulo aos Romanos: “o espírito intercede por  nós com gemidos inefáveis” (8,26). Exatamente no mesmo capítulo, nos  versículos 5-8, São Paulo mostra a oposição existente entre viver  segundo a carne e viver segundo o espírito (36). Para ele, o viver  segundo a carne é espírito de escravidão, enquanto o viver segundo o  espírito é espírito de adoção: “Pois não recebestes um espírito de  escravidão, para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de  adoção pelo qual clamamos: Aba, Pai!” (Rm 8,15).
 Francisco se move neste mesmo campo de idéias, ou seja, no campo da  oposição entre o espírito da carne e o espírito do Senhor. Receber  indignamente o corpo e sangue de Cristo significa uma obra do espírito  da carne. Recebê-los dignamente significa o espírito do Senhor.
 Entender o espírito do Senhor como uma realidade que não seja o  próprio homem, por exemplo o Espírito Santo, implicaria num dualismo que  não se encontra em Francisco. O dualismo consistiria nisso: não seria o  homem a receber a eucaristia, mas o Espírito Santo; o homem receberia a  condenação. Segundo este dualismo, o homem estaria impossibilitado de  fazer o bem. Mas como Francisco não quer culpar o inimigo externo pelo  pecado do homem, igualmente não quererá privar o homem da honra de  receber a visita do Senhor na eucaristia. Outras exortações, na verdade,  mostram que Francisco quer que os fiéisrecebam o corpo e sangue de Cristo, como se percebe no texto seguinte:
 “E recebamos … o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus  Cristo. Quem não comer a sua carne e não beber o seu sangue (cf. Jo  6,55.57) não pode entrar no reino de Deus (Jo 3,5). No entanto, que se coma e se beba dignamente, pois quem o recebe indignamente, come e bebe sua própria condenação”(37).
 Este texto, tendo o homem como sujeito do verbo “receber”, mostra com  toda a clareza que é o homem quem recebe o sacramento da eucaristia.  Isto nos leva à conclusão de que, para Francisco, quando ele afirma que é  o espírito do Senhor que recebe a eucaristia, ele pensa no homem que  vive segundo o espírito do Senhor e não segundo o espírito da carne. O  espírito do Senhor é a própria possibilidade que o homem tem de praticar  o bem.
 Conclusão
 A leitura dos textos de Francisco que tratam do espírito do Senhor  permitem que apontemos algumas breves conclusões. São conclusões  simples, nada grandiosas; apenas, de alguma maneira, diferentes, porque  consideradas sob uma ótica diferente.
 Todos os textos examinados são passíveis de uma interpretação mais  antropológica do que teológica. Esta afirmação não pretende jamais  desmerecer nem diminuir a interpretação teológica; apenas, ao conceber o  espírito do Senhor como uma realidade humana, coloca em relevo a  excelência dada a essa realidade humana acima das demais criaturas, pois  vê nela a imagem do Filho e a semelhança do próprio Deus.
 O espírito do Senhor é compreendido como o modo de ser, de pensar, de  querer, de sentir, de agir, de viver de Deus ou segundo Deus. Este modo  de ser, de pensar, de agir, etc. torna-se realidade humana, encarnada  na pessoa, e deve ser compreendido como um devir ou vir-a-ser, pois  inclui uma tarefa, a de tornar-se sempre mais semelhança de Deus,  reflexo da glória do Pai.
 A vida de penitência tem como finalidade adquirir, ou melhor, ser  possuído pelo espírito do Senhor, o que levará as pessoas a terem em  mais plenitude a semelhança de Deus, a serem filhos do Pai celeste,  irmãos, esposos e mães de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a especial ação  do Espírito Santo.
 Quem é possuído pelo espírito do Senhor torna-se homem espiritual. A  presença habitual do espírito do Senhor permite aos fiéis viverem  espiritualmente, agirem sempre espiritualmente, conviverem  espiritualmente. O homem só pode fazer o bem, possuindo o espírito do  Senhor. O espírito do Senhor é concebido, portanto, como a possibilidade  humana de alguém praticar o bem.
 Ao espírito do Senhor, que visa sempre ao bem, opõe-se o espírito da  carne que procura e deseja praticar os vícios e cometer pecados. O homem  possuído pelo espírito da carne é o homem carnal, torna-se filho do  demônio.
 Por isso, nosso Pai São Francisco está constantemente exortando¬nos a  “desejar possuir acima de tudo o espírito do Senhor e seu santo modo de  operar”.