9 de maio de 2012

Leitura Espiritual : Dos que caminham na presença do Altíssimo

Reflexões em torno da oração como experiência de Deus

Ao longo do ano de 2012, estamos refletindo sobre as fontes da vida espiritual. Hoje queremos nos deter no tema da oração. Corremos o risco de repetir o óbvio. Não existe vida espiritual sem cultivo de um relacionamento pessoal e comunitário com o Senhor. Não temos a pretensão de esgotar o assunto. Simplesmente fazemos algumas reflexões que, esperamos, possam colocar em nós o desejo da união com o Senhor. Estamos num tempo de redesenhamento, redimensionamento e revisão da vida da Igreja, da vida consagrada, da pastoral e da evangelização. Desnecessário afirmar que antes das novas configurações exteriores a serem escolhidas e implementadas será preciso a sinceridade de caminhar na presença do Altíssimo. Nada mais importante do que nos situarmos de verdade e na verdade diante do Senhor.


1. Não se pode imaginar um cristão que não tenha “paixão” pelo dialogo pessoal e comunitário com o Senhor que é a oração. Uma vida cristã ou religiosa sem oração não se sustenta. De uma maneira muito feliz e extremamente simples João Paulo II, em sua Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, assim coloca o tema: “A grande tradição mística da Igreja, tanto no Oriente como no Ocidente, é bem elucidativa a respeito do tema da oração, mostrando como ela pode progredir, sob a forma de um verdadeiro e próprio diálogo de amor, até tornar a pessoa totalmente possuída pelo Amante divino, sensível ao toque do Espírito, abandonada filialmente no coração do Pai. Experimenta-se então ao vivo a promessa de Cristo: ‘Aquele que me ama, será amado por meu Pai, e eu amá-lo-ei e manifestar-me-ei a ele’ (Jo 14,21). Trata-se de um caminho sustentado completamente pela graça, que no entanto, requer grande empenho espiritual e conhece também dolorosas purificações, mas desemboca, de diversas formas possíveis, na alegria inexprimível vivida pelos místicos como união esponsal” (n.33). Estamos longe da oração maquinal, apenas repetição de fórmulas, seca, sem alma, sem desejo. Tomás de Celano, falando da oração de Francisco de Assis, assim escreve: “Transformado não só em orante, mas na própria oração, unia a atenção e o afeto num único desejo que dirigia ao Senhor” (2Cel 95). Não se trata de haver aqui e ali alguns “episódios” de oração, mas de alguém ir se tornado um orante que caminha galhardamente sob o olhar do Senhor na intempéries da vida.

2. A oração é esse desejo, essa decisão de procurar e buscar o Senhor em todas as circunstâncias da vida. A oração é diálogo. Antes, porém, escuta. De manhã cedo, quando o sol levanta, muitos se reúnem para a oração da meditação e das Laudes: os salmos, a Palavra, o silêncio, a entrega, a contrição, o louvor que não cabe no coração. Leigos ou religiosos se recolhem, preparam a chegada do Senhor, não tentam o Senhor com palavras ditas aos borbotões como se fossem expressões de oração. Alternam silêncio e palavra, grito do coração e espera da visita do Senhor. Há a Eucaristia. Nos domingos mais solenes. Nos dias de semana, revestida de beleza simples. Vidas que se entregam ao Senhor, vidas que ouvem a Palavra do Senhor, vidas que precisam desses espaços de silêncio e de intimidade. Vejo a senhora idosa ou o religioso doente desfiando serenamente as contas das ave-marias e meditando nos mistérios de Cristo e que são seus próprios mistérios. Penso nesses momentos fugazes e densos em que dizemos com o coração: “Meu Jesus, misericórdia!” ou “Meu Deus e meu tudo!” ou “Piedade de mim, Senhor, piedade de mim”. Penso nessas pessoas que foram se acostumando a rezar com os salmos e que fizeram desses poemas sua oração. Que bom quando conseguimos, dia após a dia, na oração particular e pessoal, no ofício ou na missa, perceber Cristo Jesus como que saltando dos versículos dos salmos. Na medida em que nos familiarizamos com essas preces, recitadas com o coração, envoltas vezes muitas num manto de silêncio, quando rezamos os salmos, Cristo se associa ao nosso rezar. Quem balbucia e salmodia é o Senhor. Fazemos a doce experiência de que ele reza em nós e conosco. Fica difícil imaginar um discípulo de Jesus que não caminhe nesta direção.

3. Coisa tão simples: colocar-se em oração. Não se trata de dissertar sobre a oração mas de consagrar um tempo a Deus, para além da correria e evitando todas as escusas mentirosas. Não há dúvida alguma: a oração é fundamental para o caminhar da vida interior. Ela preside e acompanha todo redimensionamento, todo redesenhamento e toda revisão. Há um pensamento de Karl Rahner, o grande teólogo jesuíta do século passado, citado e transcrito incontáveis vezes, quase como seu testamento: “O homem religioso de amanhã será um místico, uma pessoa que experimentou alguma coisa, ou então não será um homem religioso, pois a religiosidade de amanhã não depende de uma convicção pública e unânime”. Cada vez fica mais claro que o futuro da fé depende de um cultivo da experiência pessoal de Deus e de sua presença inefável. Sem experiência de Deus não haverá pessoas de fé. José Pagola, refletindo sobre o tema da oração como experiência, ou simplesmente da experiência de Deus, afirma com acerto que antigamente bastava que o individuo não rompesse com a religião na qual nascera para ser um individuo religioso. Hoje não basta uma pertença passiva à Igreja e eu diria a uma Ordem; não é suficiente a aceitação de normas nem a prática social de ritos. Não basta recitar o ofício da manhã, fazer o retiro anual. Pagola, retomando H.U.von Balthasar, afirma que o indivíduo redescobrirá que “é um ser com um mistério em seu coração que é maior do ele mesmo”. Não se trata de inventar comunidades emocionais onde o indivíduo se sente protegido das incertezas da época e das intempéries religiosas fechando-se numa fé privada, individualista, sentimentalista. Experiência de Deus quer dizer, fundamentalmente, reconhecer a própria finitude e aceitar existir a partir dessa realidade que chamamos Deus. Aceitar com confiança, o Mistério que fundamenta nosso ser e “nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28).

4. Sim aceitar com confiança o Mistério. “Esta confiança não é resultado de um raciocínio ou de uma convicção que nos chegaria de fora. Aquele que crê encara esta confiança como graça e presente de Deus. Nesta confiança está a fé, antes que o indivíduo se integre a uma religião ou Igreja determinada. A pessoa “sabe” que não está sozinha e aceita viver desta luz obscura mas inconfundível de Deus. Esse Mistério encerra aquilo que mais profundamente deseja o coração. O decisivo não é ver, mas ser visto; não é entender, mas ser conhecido; não é chamar, mas ser chamado; não é buscar, mas ser encontrado. Uma tal experiência permite ao homem entrar, de alguma maneira no Mistério de Deus. Não está em primeiro lugar o compreender, mas a certeza de ter sido tocado profundamente. O homem não elabora raciocínios, mas adora; não domina, mas é dominado”(José A. Pagola, Testigos del mistério de Dios em la noche, in Sal Terrae, enero 2000, p 31).

5. Marcel Légaut, leigo francês que viveu no século passado, místico, dizia que não se pode fomentar um cristianismo de epiderme. Pagola continua sua reflexão afirmando não se pode efetivamente permanecer na superficialidade da fé, “cultivando um cristianismo sem interioridade nem experiência mística que aparentemente oferece a segurança de um punhado de crenças práticas religiosas, mas que dispensa as pessoas de adentrar-se num relacionamento vivo com a Realidade inefável de Deus. O prioritário não é transmitir doutrina, pregar a moral, ou alimentar uma prática religiosa, mas tornar possível a experiência originária dos primeiros discípulos que acolheram o Filho de Deus vivo encarnado em Jesus Cristo para nossa salvação. Se não se operar uma continua renovação desta experiência, a pregação vai continuar repetindo a doutrina, a ação pastoral seguirá organizando o rito religioso, mas desaparece e se dilui a experiência mística original da qual se origina a fé em Deus” (Idem, p. 31).

6. Não estamos aqui falando de uma oração alienada, sem compromisso com a realidade. No documento acima mencionado João Paulo II deseja que nossas comunidades não sejam apenas feitas de pessoas que pedem. “Nossas comunidades… devem tornar-se autênticas escolas de oração, onde o encontro com Cristo não se exprima apenas em pedidos de ajuda, mas também em ação de graças, louvor, adoração, contemplação, escuta, afetos da alma, até se chegar a um coração verdadeiramente “apaixonado”. Uma oração intensa, mas sem se afastar do compromisso na história: ao abrir o coração ao amor de Deus, aquela abre-o também ao amor dos irmãos, tornando-os, capazes de construir a história segundo o desígnio de Deus” (n.33).

7. Quem diz ter fé é alguém que reza. Quem não reza, não pode ter fé. A oração é antes de tudo desejo. Enzo Bianchi, monge da comunidade de Bose, na Itália, assim se exprime: “A oração é expressão de um desejo do Senhor e se não há desejo do Senhor – não intelectual, mas existencial -, um desejo como este testemunhado pelo salmo: “Meu Deus, meu Deus minha alma tem sede de vós… como terra sedenta e sem água” (Sl 62) “Minha alma tem sede de Deus, e deseja o Deus vivo” (Sl 41), se não existe sede de Deus, um entranhado amor por Jesus, então não existe fé” ( Il presbítero e la preghiera, in Rivista del Clero Italiano 11/2011).

8. Esse balbuciar dos salmos em comunidade, essa entrega nossa e de Cristo na Eucaristia, esses dias de retiro que seja retiro, dão sentido à nossa vida, esses momentos de meditação sérios, esses momentos em que enxugamos as lágrimas de Cristo no rosto do irmão, são indispensáveis para não perdermos o sentido profundo da fé e para não realizarmos atos exteriores suspensos no vazio. Damos facilmente desculpas tentando explicar nossa negligência na oração. Dizemos que não temos tempo, que o tempo escapa de nossas mãos, que somos absorvidos pelas tarefas que precisamos executar. Dizemos, nós sacerdotes, que nosso ministério é uma oração. Fernando Pessoa diz que ter tempo e não ter tempo para tudo. Significa colocar ordem no tempo, criar prioridades. Rezar é discernir. Saber distinguir e colocar também ordem dentro de nós. Reza e reza bem aquele que nada antepõe a Cristo segundo a Regra de São Bento. Nessa certeza de caminhar sob olhar do Senhor, acolhendo os raios dessa presença-amor vamos sendo trabalhados interiormente. Sabemos que a oração é resultado de uma ação do Espírito que geme em nós. Sem esta “unção”, a oração corre o risco de ser um mero discurso dos lábios.

9. A oração verdadeira requer esforço. Não é uma atividade que acontece espontaneamente. Ela se situa na encruzilhada de um coração sedento e da vontade do Senhor se unir à criatura no Espírito que geme no coração do orante. Vale lembrar um apotegma do abade Agatão: “Alguns irmãos interrogaram o Abade Agatão, dizendo: “Qual é a virtude que exige maior esforço?” Ele respondeu: “A mim me parece que nada pede tanto esforço quanto o rezar a Deus. Cada vez que o homem deseja rezar, os inimigos procuram impedi-lo. Sabem estes que aquele que reza não cai em suas mãos. Qualquer obra que o homem venha a empreender, se nela perseverar, encontra repouso. Na questão da oração, no entanto, haverá de lutar até o ultimo suspiro”.

10. A oração é uma espaço de gratuidade. Ela é fecunda quando alimentada pelo Espírito. Ela é ato de liberdade. A oração não responde apenas a um sentimento de emoção, não é obsessiva busca de si, ou procura narcisista do estar bem consigo. Quem pratica a oração com assiduidade desde a juventude até a idade avançada sabe que ela demanda empenho. Na fidelidade de todos os momentos, o orante se transforma em oração. No começo dessa experiência de Deus (a oração, com efeito, é uma experiência de Deus), o orante, muitas vezes, vive alegria, sente doçura. Pode mesmo chegar a uma “quietude” interior. Com o passar dos tempos, no frenesi dos trabalhos e atividades, pode-se viver a aridez e a secura. E a pessoa foge da oração. Aquilo que parecia tão emocionante nos primeiros anos, essa oração que parecia produzir resultados imediatos e automáticos, não acontece mais. Por que nosso coração não experimenta mais desejo de Deus? Por que não sabemos o que lhe dizer? Aparece a tentação de acusar o silêncio de Deus e de que é inútil qualquer esforço para retomar a vida de oração. Digo bem, a vida de oração. Há essa tentação de dizer que a oração e que a vida espiritual não servem para nada. Não para colocar gestos religiosos vazios da fé no Deus que me vêm, me perscruta e conhece o meu deitar e o meu levantar.

11. Dietrich Bonhoeffer refletindo sobre a oração, escreve: “Aprender a rezar… Aí está uma expressão contraditória. Diremos antes: ou o nosso coração sobeja a tal ponto que naturalmente começa a rezar, ou, nunca aprenderá a rezar. Há um erro muito perigoso entre os cristãos, e aliás muito difundido, que é pensar que o homem possa naturalmente rezar. Tal significaria confundir o desejo, a esperança, o suspirar, o pranto, a alegria, tudo aquilo de que é capaz o nosso coração por si só, com a oração. Seria confundir a terra e o céu, o homem e Deus. Não, rezar não significa apenas abrir o próprio coração; quer dizer antes de tudo encontrar o caminho que leva a Deus, com o coração pleno ou vazio” (Citado no artigo de Bianchi mencionado, p. 732).

12. Assim como os relacionamentos humanos exigem assiduidade, diálogo, conversa e que faltando tais elementos vem a reinar o mutismo, e a relação estiola e morre, de alguma forma o mesmo acontece com os relacionaemntos com Deus mesmo se Deus, diferentemente dos relacionamentos humanos, nos precede, nos chama. Rezar não é buscar um certo estado de alma, mas um ato de fé. Rezar na secura e na aridez é também, de alguma forma, carregar a cruz. A oração requererá perseverança. Somente nessa perseverança se atinge a profundidade da fé.

13. Terminamos estas reflexões chamando a atenção para Francisco de Assis como homem das profundezas, da profundidade. Éloi Leclerc mostra como Francisco, no começo de sua conversão, sente necessidade de sair do epidérmico e do superficial. Aos poucos vai se dirigindo para uma região de profundidade. “A partir desse dia (pouco antes de sua conversão, inaugura-se na vida de Francisco um período de silêncio. Uma necessidade imperiosa de silêncio toma conta dele. Procura afastar-se da agitação mundana e do mundo dos negócios. Esforça-se, segundo a expressão de Tomás de Celano ‘por reter Jesus Cristo em seu interior’ (1Cel 6). A superfície do mundo tão cheia de brilho não mais o atrai. Procura a profundidade de uma caverna ou a sombra de uma capela solitária nos campos. Lá acha o seu tesouro, diz ele. Passa aí horas a fio. Tornou-se um homem chamado pela profundidade” (É. Leclerc, Francisco de Assis. Retonro ao Evangelho, Petrópolis, Vozes, p. 35 ).

Conclusão

Na realidade concluímos sem concluir. Essa fonte de vida espiritual que é a oração continuará sendo objeto de nossa reflexão no próximo Tirando do Baú ( mês de junho de 2012). O tema é rico demais. Quem fracassar na arte da oração, terá fracassado na fé, levará uma vida epidérmica e não “entrará na tálamo nupcial”, da amada que é recebida pelo Amado. Aí está uma conclusão inconclusa.

A seguir

Frei Almir Ribeiro Guimarães

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