Por Frei Almir Ribeiro Guimarães
1. Estamos ainda vivendo as alegrias do belo tempo pascal. Durante um tempo fixamos nosso olhar no sono mortal do Senhor. Nas últimas semanas temos diante de nós a vida nova, o despertar do Cristo. Nunca cessamos de meditar no amor do Senhor Jesus, cuja expressão definitiva é o dom da vida que fez por nós no alto da cruz naquela sexta-feira das dores e do amor crucificado. Não temos outra coisa a fazer senão mergulhar nessa fornalha de caridade que é o peito aberto do Senhor pela lança, esse coração fissurado, essa fonte de vida da qual manaram dois rios: um filete de sangue e outro de água. Uma esplêndida e profunda Homilia do grande Sábado Santo adota o gênero literário de uma conversa entre Jesus e Adão. No dia em que Cristo desce à mansão dos mortos, no sábado do descanso e do silêncio, o que morrera vai abrir as portas da mansão dos mortos e dialoga com o primeiro homem.
2. Belíssimas palavras de Cristo dirigidas a Adão: “Vê em meu rosto os escarros que por ti recebi, para restituir-te o sopro da vida original. Vê em minha face as bofetadas que levei para restaurar, conforme à minha imagem, tua beleza corrompida”. Caminhando pelas estradas da vida, nós que fomos criados à imagem do Altíssimo e ficamos belos com as águas do batismo, ainda sentimos nosso rosto interior sem beleza. Leva tempo nosso nascimento definitivo. Faz bem ouvir esse que visita a mansão dos mortos para transfigurar nossa vida.
3. E o devoto do Senhor se extasia ao ouvir: “Vê em minhas costas as marcas dos açoites que suportei por ti para retirar de teus ombros o peso dos pecados. Vê minhas mãos fortemente pregadas à árvore da cruz, por causa de ti, como outrora estendeste levianamente as tuas mãos para a árvore do paraíso”. Lenho, madeira, cruz, árvore do meio do paraíso… O Senhor havia pedido que Adão lhe fosse fiel, que não tocasse naquilo que iria destruí-lo, que não se considerasse “deus”. Houve a terrível decisão de o homem querer ser igual a Deus. A árvore do paraíso é colocada ao lado de uma outra árvore, a árvore da cruz, que carregou o mais doce de todos os frutos, o filho da Virgem Maria, aquele que veio para obedecer ao Pai, para fazer a vontade do Pai e assim ser ele o fruto novo da nova árvore da cruz. Quando olhamos para a cruz com o mais sincero e profundo olhar do coração sentimos o alívio do perdão das loucuras que nos fizeram seres medíocres e ingratos para com aquele que nos amou desde toda a eternidade. Tudo isso acontece quando vemos as mãos do Senhor pregadas à árvore da vida que é a cruz.
4. Prestemos atenção num outro parágrafo dessa deslumbrante homilia para um Sábado Santo: “Adormeci na cruz e por tua causa a lança penetrou no meu lado, como Eva surgiu do teu, ao adormeceres no paraíso. Meu lado curou a dor do teu lado. Meu sono vai arrancar-te do sono da morte. Minha lança deteve a lança que estava dirigida contra ti”. O autor reflete sobre o “lado”: o lado de Cristo e o lado de Adão. Lado do coração, coração que é símbolo da vida e do que a pessoa tem de mais importante. Coração, que fica no lado do corpo e lado que foi tocado pela lança do soldado quando Jesus já estava morto. Quando tudo havia começado, o Senhor havia criado Adão. Parecia que faltava alguma coisa: um ser que fosse companheiro. Adão percorreu os caminhos do Eden e não encontrou ninguém que pudesse ser igual a ele para fazer a profunda experiência do amor na alteridade.
5. O Senhor adormeceu no alto da cruz. A morte muitas vezes é descrita como um sono. Na verdade, normalmente falando, ninguém desperta do sono da morte. Jesus foi arrancado desse sono pela força do Pai. Enquanto dormia na cruz penetrou a espada no lado do Senhor. Do lado de Adão nasceu Eva. Quando este despertou do sono vive imensa alegria que não cabe no seu peito. Jesus tem também seu lado tocado e aberto e dele sai a Esposa que é a Igreja, essa multidão de homens e de mulheres que lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro e que se tornam do Senhor e manterão com ele um relacionamento esponsal. O Esposo e a Esposa trocarão palavras de amor. Haverá esse banquete sempre nupcial do Cordeiro que é a Eucaristia. O despertar de Cristo arranca o homem da morte e o coloca nas alamedas da casa das núpcias eternas.
6. Para concluir retomamos o luminoso texto desta homilia: “Está preparado o trono dos querubins, prontos e a postos os mensageiros, construído o leito nupcial, preparado o banquete, as mansões e os tabernáculos eternos adornados, abertos os tesouros de todos os bens e o reino dos céus preparado para ti desde toda a eternidade.”
Obs.: As citações entre aspas foram tiradas da Liturgia das Horas II, p, 439.440.
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