Ele se chamará João, isto é, “Deus se mostrou misericordioso”
Por Frei Jacir de Freitas Faria, OFM (*)
I. INTRODUÇÃO GERAL
Celebrando, hoje, a natividade de João Batista, a igreja relembra a importância desta personagem para o cristianismo. O nascimento de João batista foi testemunhado pela tradição como um evento importante (Lc 1,5-25.57-80). Seu pai, Zacarias, estando a exercer suas funções sacerdotais no templo, recebe o anúncio de um anjo de que a sua mulher Isabel, idosa e estéril, conceberia e daria à luz um filho, a quem ele poria o nome de João. Deus promete alegria com o nascimento de João, pois o menino seria um consagrado – um nazireu, daí a proibição de dar-lhe vinho ou bebida embriagante -; estaria sempre cheio do Espírito Santo; converteria os filhos de Israel e teria o espírito e o poder de Elias, o profeta que subiu ao céu em um carro de fogo e que, segunda a tradição, voltaria antes da visita de Deus (Eclo 48,9-11). Zacarias, tendo duvidado de tudo isso, tornou-se, naquele instante, mudo e surdo. João nasceu em um lugarejo chamado Ain Karim, naquele tempo, distante oito quilômetros de Jerusalém, hoje, bairro desta cidade.
As leituras deste domingo nos ajudam a compreender o papel de João e sua relação com o ministério de Jesus, seu primo. Aliás, a natividade de João Batista só pode ser entendida no ciclo dos evangelhos da infância de Jesus. As histórias são parecidas: um anjo também aparece para Maria, que não era estéril, mas virgem. Assim como Zacarias, Maria duvida. Deus promete o seu Espírito. Bem como Zacarias, Maria teria a obrigação de colocar um nome em seu filho.
II. COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Lucas 1, 57-66.80): João, ao ser circuncidado, recebe o nome predito e a missão de profeta e precursor
O evangelho inicia dizendo que chegara o tempo de Isabel dar à luz. Parentes e vizinhos se alegram ao ouviram dizer que Deus a havia cumulado de misericórdia. Para Deus nada é impossível (Lc 1, 36-37). Em tempos bíblicos, a esterilidade era considerada uma desonra e um castigo (Gn 30,23; 1Sm 1,5-8; 2Sm 6,23). Várias mulheres estéreis dão à luz para demonstrar que Deus “abriu a sua madre”, de modo que ela voltasse a ser fecunda, assim como a terra que faz germinar a semente. Isabel é uma dessas mulheres, tal como Sara, a esposa de Abraão (Gn 21,6), que riu ao receber o anúncio divino e gerou um filho, Isaac, que significa “aquele que ri’.
Oito dias após o seu nascimento, João teria de ser circuncidado. A comunidade de Lucas valoriza muito o rito da circuncisão de João. Em relação a Jesus, ele apenas diz que foi circuncidado e recebeu o nome de Jesus (Lc 1,21), pois o mais importante seria ressaltar o seu nascimento em Belém (Lc 2, 1-20). Já em relação a João, é relatada a dificuldade em decidir pelo nome do menino. Muitos queriam que ele recebesse o nome do pai, Zacarias – Deus se lembrou – , pois esse já era velho e não haveria motivo de confusão das pessoas. Nesse momento, sem saber, o anjo já havia revelado o nome do menino para seu marido, Isabel toma a palavra e diz que o seu filho se chamaria João, Yohanan, que significa: Deus (Y de Yavé) tem misericórdia (hanan). A bem da verdade, Deus teve misericórdia com o velho casal e lhe deu um dom, um presente, chamado João.
O nome significava a essência e a missão da pessoa. Ele até podia mudar. Abrão (pai elevado) torna-se Abraão (pai de muitos). Não por menos, ao nome de João foi acrescentado Batista, aquele que batiza. João batizou Jesus, que mais tarde também se chamaria Cristo, o ungido. João, mais tarde, seria testemunha da misericórdia de Deus, ao chamar o seu povo para a conversão, de modo que Deus pudesse agir com misericórdia. Misericórdia não teve, no entanto, o impiedoso Herodes Antipas que mandou decapitá-lo (Mc 6, 17-29).
O episódio do nome termina com Zacarias dando a palavra final, escrevendo em uma tabuleta: “seu nome é João”. Logo em seguida, Zacarias voltou a falar e todos se maravilhavam com o ocorrido. Da boca de Zacarias veio o anúncio da ação de Deus em João, o protegido e símbolo da gratuidade de Deus para com seu povo, por meio de um canto de ação de graças chamado de “Benedictus” (v.68-79). Como a jovem Maria que, inspirando-se no canto de Ana (1Sm 2,1-10), louva a Deus, o velho Zacarias rende louvores a Deus pelo nascimento de seu filho, e acrescenta: “E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo; pois irás à frente do Senhor, para preparar-lhe os caminhos, para transmitir ao seu povo o conhecimento da salvação, pela remissão de seus pecados” (vv. 76-77). O canto, parte final de nosso evangelho de hoje, termina dizendo que o menino, fazendo forte alusão a outro menino, Jesus, crescia e se fortalecia em espírito. Além disso, ele moraria no deserto até o dia em que se manifestou a Israel (v.80).
Essa manifestação, como cumprimento da profecia, aconteceu por volta do ano 20 E.C., no chamado movimento batista, que ele mesmo começou no deserto da Judeia e à beira do rio Jordão. João anunciava o batismo e a conversão dos pecados para obter o perdão. O batismo na água colocava as pessoas em relação direta com Deus. Não eram mais necessárias as práticas rituais do templo de Jerusalém. Assim, os batistas se tornaram perigosos para a ordem judaica estabelecida a partir do templo. João conclamava o povo a ir ao deserto, o que, simbolicamente, retomava a figura de Moisés e o êxodo. E do deserto, de novo, o povo entraria na terra da promessa, perdoados e batizados, para destruir o império romano. Assim, o movimento de João Batista tornou-se perigoso também para o império romano. A destruição romana viria por mãos de Deus, Aquele que vem. Herodes Antipas, prevendo uma rebelião de João contra Roma, mandou decapitá-lo. João foi um crítico do poder e por isso foi assassinado, não necessariamente por questões morais, ao criticar o relacionamento amoroso de Herodes Antipas e Herodíades, a mulher de seu irmão Filipe (Mc 6, 17-29).
2. I leitura (Is 49,1-6): João é a luz que aponta a luz definitiva, Jesus
A primeira leitura de hoje, tirada do livro do profeta Isaías, ou melhor, o segundo Isaías, que escreve no fim o exílio babilônico (587-536 a.E.C.), propondo aos deportados um projeto de vida nova, baseado em uma releitura, no presente, dos valores antigos. Israel se tornaria luz para os estrangeiros. Chamemos a esse projeto de “Luz das Nações” (Is 49,6), o qual teve o seu apogeu entre os anos520 a445 a.E.C..
A nossa primeira leitura fala também de um servo escolhido por Deus, desde o ventre materno, para ser luz e guia do povo de Israel e de todas as noções. E é neste sentido que podemos aplicar o espírito do texto a João, de quem celebramos o nascimento. Ele foi escolhido para ser luz e apontar a luz definitiva para todos, o Salvador e messias Jesus.
2. II leitura (At 13,22-26): João é o precursor do messias
Nesta leitura, Paulo, pregando para os judeus, relembra a figura de João Batista, como proclamador de um batismo de arrependimento, em preparação à vinda do messias. Paulo lembra que João não se deixa ser confundido com o messias. Ele virá, afirma, “de quem não sou digno de desatar a correia da sandália” (v. 25; Jo 1,27). João aqui é o precursor do messias.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
1. Demonstrar que o nascimento de João Batista significa um novo tempo de fecundidade para a comunidade de Lucas e para nós, hoje. Não há mais como ficarmos estéreis, surdos e mudos. Chegou o tempo do anúncio da palavra de misericórdia e de libertação de Deus.
2. Deixar claro que, ainda hoje, “os caminhos do Senhor devem ser abertos” por todos nós, quais outros Joões Batistas, que nascem para anunciar a vida nova. Para que isso se concretize, só nos resta a constante conversão, o rompimento com o erro, de modo que possamos renascer e aderir ao projeto de Jesus.
3. João somos todos nós quando nascemos para o reino. Somente assim tem sentido celebrar a natividade de João, o nascimento de uma igreja voltada para a justiça social.
Frei Jacir de Freitas Faria, OFM é Padre franciscano, escritor, mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico, de Roma, especialista em evangelhos apócrifos, professor de exegese bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA, em Belo Horizonte e em cursos de Teologia para leigos. Autor de uma centena de artigos. Autor e coautor de quinze livros, sendo o último: Infância apócrifa do menino Jesus. Histórias de ternura e travessura. Petrópolis: Vozes, 2010. Diretor Geral e Pedagógico dos Colégios Santo Antônio e Frei Orlando, ambos em Belo Horizonte. Veja mais: www.bibliaeapocrifos.com.br |
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