Frei Orlando Bernardi
O capítulo VI da Regra de Santa Clara não é apenas o coração da Regra como tal, mas é também o coração de Clara. Encontra-se aí não apenas o seu projeto como discípula e plantinha de Francisco, mas aí está a Clara por inteiro com o projeto, com o privilégio da pobreza e com a espiritualidade proveniente do abraçar a Cristo pobre e crucificado para, numa resposta de amor, devolver-se a Cristo “que todo se entregou por amor” (3ªCt 15). Esse capítulo nada tem de jurídico, mas tem muito de autobiográfico ao descrever o início dessa caminhada espiritual. Tudo começa com um chamamento para a conversão, para o encontro e para a união nupcial definitiva. Porque “não temiam nenhuma pobreza, trabalho, tribulação, humilhação e desprezo do mundo” Francisco, por sua vez, se compromete com elas: “quero e prometo … ter sempre por vós diligente cuidado e especial solicitude como tenho pelos frades” (RSC 6,4). O Poverello chega a esse comprometimento porque percebera que tanto Clara como suas irmãs, por inspiração divina, se fizeram filhas e servas do altíssimo e sumo Rei, o Pai celeste, e haviam desposado o Espírito Santo, ao escolher viver segundo a perfeição do santo Evangelho (RSC 6,3). Essa afirmação sintetiza uma das formas de vida que deram origem a um novo modelo espiritual e de comportamento que marcou, sem dúvida, a Idade Média desse período. Essa forma de vida é em tudo semelhante à dos frades, discípulos do mesmo Francisco, diferenciando-se apenas na formulação, quem sabe, para caracterizar o estilo itinerante deles e o estilo contemplativo delas. Aqui não se fala de pobreza, mas, simplesmente, se afirma em seguir a forma do santo evangelho para eles e seguir a perfeição do santo evangelho para elas.
No dia-a-dia de ambos, Francisco e Clara, esse evangelho foi sendo assumido, meditado e ruminado até se tornar estilo vivente e transformador. A pobreza aparece e se transforma em vida porque a vida pobre de Cristo a manifesta em todos os momentos. Em dia nenhum seus olhares perdem de vista a inteira vida de Jesus, tal como é apresentada no evangelho: a humildade, as fadigas, os sofrimentos demonstram a pobreza assumida pelo Verbo. Daí que a forma e a perfeição do evangelho indicam, em concreto, o modelo de vida escolhido por eles: seguir em tudo o Cristo pobre e crucificado. Por isso Clara acrescenta ainda com destaque o outro texto de Francisco que ela transcreve nesse capítulo: “Eu, Frei Francisco, pequenino, quero seguir a vida e a pobreza de nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua Mãe santíssima e perseverar nela até o fim; e rogo-vos, senhoras minhas, e dou-vos conselho para que vivais sempre nesta santíssima vida e pobreza. E estai muito atentas para, de maneira alguma, vos afastardes dela por doutrina ou conselho de alguém” (RSC 6,7-9).
Para se entender com exatidão o significado do compromisso de Francisco e Clara de seguir a forma e a perfeição do santo evangelho, é preciso não esquecer que se trata de dois leigos, com estudos medianos, que optam por um modelo de vida totalmente fora dos padrões vividos então. Há quem encontre em seus textos referências à Escritura Sagrada, porém, há também textos como o Testamento que não possuem referências bíblicas, contudo transpiram evangelho. O empenho de ambos em serem fiéis ao modelo do evangelho não provém dos estudos, mas da oração e da meditação transformadas em vida. Se Francisco afirma que ninguém lhe revelou o modelo, mas que foi inspirado pelo Altíssimo, isso significa que não foi assumido sem antes tê-lo descoberto, tê-lo meditado e tê-lo transformado em vida. A originalidade não está na escolha do evangelho como modelo, mas em tê-lo transformado em ações concretas ou em vida. Daí que seguir os passos de Jesus não é consequência, mas escolha diária e entrega constante. A lógica que passa, então, a dominar suas vidas não é a dos critérios que se apresentam no cotidiano da vida social, mas os do “altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua mãe santíssima” (RSC 6,7). É por isso que alguém sem titubear escreve “que a experiência do evangelho proposta por Francisco (e Clara), sua reflexão e consequente prática, permanecem como um unicum no panorama da história religiosa do Ocidente cristão” (MICCOLI, G., in Storia d’Italia, Dalla caduta dell’Impero romano al secolo XVIII, p. 738). Quando o autor do Sacrum Commercium apresenta Francisco em busca da Dama pobreza, não significa que não a tenha encontrado, mas ele está em busca dela para estabelecer com ela morada, intimidade, fraternidade e convivialidade. Está, portanto, em busca de um mais e de um acréscimo. Tudo isso é o que respira esse capítulo VI da Regra de Santa Clara.
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