2 de agosto de 2013

“Aquele que deseja matar nossa sede”,


Será que existe sede de Deus no mundo?

Por Frei Almir Guimarães

Eles me abandonaram, a fonte de água viva para cavar para si cisternas, cisternas rachadas que não podem reter água (Jr 2, 13). 

1. Não é tão evidente que tenhamos sede de Deus, do Absoluto, do Transcendente.  Jesus, com seu coração aberto do qual emana água, suplica o olhar dos sedentos. No alto da cruz, ele tinha sede da resposta amorosa dos homens. Será que nosso tempo tem sede de Deus? Olha com ternura para o Coração aberto do Redentor? Há os que buscam satisfazer essa sede de felicidade que nos habita  bebendo água de fontes que estão mais a seu alcance, que estão mais na moda. Nossa sociedade de mercado apresenta mil alternativas. Há os que dizem que buscar a Deus e seu  Cristo é postura alienante e acrítica. Os que foram formados numa sociedade racionalista dão a impressão de dispensar a ideia e a realidade de um Deus. Seriam capazes de compreender o amor de Deus manifestado em  Jesus, sobretudo em sua paixão, morte e ressurreição?

2. A ideia de Deus ficou no imaginário como alguma coisa anterior ao Vaticano II: um Deus todo poderoso,  juiz  que premia os bons e castiga os maus, um Deus barbudo e meio com jeito de policial a espreitar nossos mínimos deslizes. Há os que abandonaram a busca do Altíssimo  porque na catequese lhes foram apresentadas caricaturas de Deus. A Igreja  hierárquica, para não poucos,  está longe da vida real e dos verdadeiros problemas das pessoas e assim perdeu sua credibilidade. Muitos acreditam que ela não ajuda a buscar, de fato, esse que nos transcende.

3. Vivemos numa sociedade agnóstica, mesmo indiferente. Muitos questionam o mal perante o qual Deus parece ser indiferente, bem como o sofrimento dos inocentes e a injustiça estrutural.  Assim, muitos pensam que não valha a pena buscar um Deus. Afirmam haver uma contradição entre a realidade do mal e a existência de um Deus bom.

4. Nossa sociedade é individualista e fragmentada, típica do sistema  cultural e econômico que se globalizou, o neoliberalismo, que se caracteriza pelo consumo extremo apoiado nos meios de comunicação. Estamos sempre sendo bombardeados com muitas imagens e sensações. Sentimo-nos aturdidos. A vida se passa com velocidade. O que nos move é a busca de resultados imediatos. Alcançados alguns objetivos, logo surgem outros. Estamos sempre  com a sensação de  estarmos saciados. Buscamos alguma coisa nova que nos  faça sentir bem: sucesso, prazer, diversão,  quase sempre num estado de  fuga.

5. Isto nos faz  seres dispersos,  identificados com tantas coisas, sempre  muito entretidos… Recebemos muitas informações e impactos sem nos darmos conta. Tudo isso vai se apoderando de nossa sensibilidade, de nossos sentimentos e de nossa liberdade. Somos navegantes que nos deixamos levar pelas ondas…  Não temos capacidade de decidir. Damos a impressão de estarmos tão ocupados que não nos sobra tempo para  nos preocuparmos com a  busca do sentido da vida.

6. Também dificulta o surgimento dessa sede de Deus,  uma cultura que foi se instalando em nossos dias com a total falta de ideais e sem utopia, cultura egocêntrica e narcisista, sem interesse pelo passado e sem planos plano para o futuro. O grande valor que ela defende é a liberdade no sentido de cada um fazer o que bem lhe apetece, sem limites, sem levar em conta o bem comum.  Cultura que não percebe que o coração do homem foi feito para transcender-se a si mesmo. As pessoas se instalam nas pequenas coisas, tornam-se prisioneiras das coisas debaixo. Algumas  podem ser despertadas no momento de uma grave enfermidade ou de um revés completamente inesperado.  Nessas circunstâncias, por vezes muito doloridas, acordam do torpor.

7. E, no entanto, ai está  Jesus, com seu Amor até o fim, com o coração aberto manifestando amor sem limites e  convidando-nos para entrarmos em sua intimidade pela brecha do peito aberto.  Como na  verdade  experimentar sede de Deus?  A maioria das pessoas, mais cedo ou mais tarde, faz experiências religiosas,  percebe o brilho de centelhas de eternidade  em coisas que fascinam e iluminam.  Há experiências de amor, de autenticidade, de liberdade, de beleza e de bondade. Por vezes, o transcendente aparece na experiência de amar e de ser amado. No coração de tais experiências há setas apontando para o Transcendente,  este que se aproxima de nós no Coração aberto do Redentor.

8. Mesmo a experiência do amor humano, por mais densa e preciosa  que possa ser, não acalma totalmente  nossa sede.  Esta experiência convive com uma sensação de solidão nunca satisfeita porque temos uma capacidade de relação infinita que só o mistério de alguma coisa transcende é capaz de satisfazer.

9. Nós, cristãos, cremos que no fundo da realidade há um mistério último que é o amor. Foi o que nos revelou  Jesus,  um Deus Pai,  Filho e Espírito que cria por amor com a única finalidade do bem de suas criaturas, tendo como único limite sua inevitável finitude.  Toda a realidade tão complexa não é fruto do acaso nem está destinada a desaparecer, mas é habitada por uma energia que a cria e a sustenta.  Além disso, o  Senhor atua em suas criaturas e conta conosco para que seu projeto se torne  realidade no  mundo.

10. Para poder transmitir esta presença, para que se torne palpável, temos que experimentar  Deus como Pai, sentir sua  bondade, sua compaixão, experimentar a confiança total em sua misericórdia, encher-nos de sua oferta de amor para refletir em nossa própria vida  o rosto desse Deus  no qual se pode colocar nossa esperança última.

11. Os tempos mudaram e a Igreja precisa de outra linguagem que manifeste esse Amor que está simbolizado no peito aberto de Jesus. “Necessitamos apresentar outras imagens  (de Deus), outras figuras alternativas que motivem para se buscar uma vida mais autêntica  e que possa inspirar uma felicidade profunda.  Vida de gente digna de crédito no contexto atual. Necessitamos de cristãos  bem formados, capazes de resistir ao embate da sedução  dos valores em voga com uma interioridade forjada, fruto da contemplação. Homens e mulheres que mostrem com suas vidas, com sua proximidade, por meio de valores como a solidariedade e gratuidade, pequenos sinais concretos de esperança  de que um outro mundo é possível e que há outros  caminhos alternativos  para alcançar a sonhada  “felicidade”.  Saber que há a esperança do sentido.  Homens e mulheres cuja presença e cuja vida sejam uma mola  que façam vir à tona as perguntas que  carregamos no coração”  (Maria José  Cancelo Baquero, La sed de Dios, in Sal Terrae 76 (1998), p. 455).

12. Talvez de tanto jogar lixo no Manancial  tenha desaparecido de nossa consciência esta sensação que tão bem descreveu  Santo Agostinho:  Senhor nos criaste para ti, e nossa alma estará inquieta enquanto não descansar em ti.  Ele que nos criou com tanto amor, que em Jesus, no alto da cruz  nos amou até o fim, anda inquieto até o deixemos habitar em nosso interior. Voltemos a Maria José  Cancelo  Baquero:  “Ele sempre estará ao nosso lado, batendo à nossa porta, provocando encontros  pelos nossos caminhos.  Ele  sim parece estar  como que sedento de nosso amor, até que por fim  nos deixemos refazer, recriar, renovar em seu amor livre e gratuito, de tal modo que só valha a pena viver  respondendo-lhe com amor generoso,  amor esse que ele mesmo colocou em nossos corações, vivendo uma vida entregue por amor a todas as criaturas” (p.457).  Ora, esse é a missão do devoto do Coração  do Senhor:  pela vida anunciar amor do Amado.

Frei Almir Ribeiro Guimarães, Ofm

Extraído de: http://www.franciscanos.org.br/

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