22 de janeiro de 2014
Franciscos: coerência entre inspirador e inspirado
Frei Gustavo Medella, OFM
Desde o momento em que foi apresentado como Papa, Francisco tem transmitido, por palavras e ações, as mais belas e revolucionárias intuições do Santo de Assis encarnadas nos tempos atuais. É presença terna e acolhedora: nunca ingênua. Assim como seu inspirador de Assis, o Francisco de Roma tem influenciado a Igreja a partir de dentro, apresentando ao mundo o caminho do diálogo, do respeito, do amor a Deus e às pessoas e, assim como Poverello, tem despertado a admiração de muitos, para além dos limites de crença, nacionalidade, visão de mundo e valores. Não se pode negar que também desperta desconfiança e antipatia de alguns – poucos, porém poderosos –, tanto no âmbito interno quanto para além dos muros da Igreja, por balançar os alicerces de uma religiosidade alienada e de um sistema econômico excludente e desumano.
A título de ilustração, seguem exemplos de algumas posturas e atitudes que aproximam Francisco de Roma ao Francisco de Assis:
• Reconhecimento das próprias fraquezas e postura penitencial
Ao enxergar-se como pecador, São Francisco não desejava nutrir uma postura de baixa autoestima ou cultivar um sentimento de azedume em relação a si mesmo. Apenas ficava maravilhado pelo modo como Deus, o Sumo Bem, em seu amor infinito, teria sido capaz de se tornar tão próximo do ser humano, cheio de lutas, imperfeições e fracassos, marcado pela finitude. É este o Espírito que perpassa a importante oração que brotou no mais profundo de sua alma: “Senhor, quem sois vós? E quem sou eu? Vós, o Altíssimo Senhor do céu e da terra, e eu, um vermezinho, vosso ínfimo servo”, e muitas outras considerações a ele atribuídas. Converter-se, viver a penitência, para Francisco, é, portanto, voltar-se por inteiro para Deus todo-bondade.
A mesma consciência diante da Infinita Bondade apresenta o Papa Francisco ao afirmar, em entrevista publicada pelos jesuítas: “Eu sou um pecador. Esta é a melhor definição. E não é um modo de dizer, uma figura de linguagem. Sou um pecador. Sou um pecador para quem o Senhor olhou. Sou alguém que é olhado pelo Senhor”. Ou, ainda, logo depois de ter sido eleito Papa, a seus irmãos cardeais: “Sou pecador, mas confiante na misericórdia e na paciência infinitas de Nosso Senhor Jesus Cristo, confundido e em espírito de penitência, aceito”. O espírito de penitência e a busca de voltar-se inteiramente para o Senhor, abraçadas pelo Santo de Assis, também povoaram o coração do cardeal argentino ao aceitar a missão que Cristo a ele confiava.
• Disposição para vencer a si mesmo, abraçar o leproso e reconhecer nesta figura o Filho de Deus
O germe da vida penitencial movimentava o coração de Francisco de Assis. Tanto que, no Testamento, um de seus últimos textos, ele evoca o encontro com o leproso, figura abjeta e desprezada da época, da qual todos queriam o máximo de distância: “Como estivesse em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para leprosos. E o Senhor me conduziu para o meio deles e eu tive misericórdia com eles. E enquanto me retirava deles, justamente o que antes me parecia amargo se me converteu em doçura da alma e do corpo”. A conversão do olhar e do coração levaram o Santo de Assis a nutrir esta reverência e este desejo de estar junto àqueles que eram os últimos, alijados completamente da vida em sociedade.
E também com estes o Papa Francisco deseja ardentemente estar: com os refugiados de Lampedusa, com os pobres da Comunidade da Varginha, no Complexo da Maré, no Rio, com os menores em conflito com a lei, com quem fez questão de celebrar a Santa Missa, com os doentes, crianças e idosos a quem vive procurando em meio às multidões, com os moradores de rua de Roma, com quem tomou café da manhã no dia de seu aniversário. Francisco quer lançar luz, voltar os olhos da sociedade para aqueles a quem se evita ao máximo olhar.
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• Abertura ao diálogo e ao encontro com o diferente
Ficou célebre na história o encontro entre São Francisco e o Sultão do Egito (Melek-el-Kamel), por volta do ano de 1219. O santo enfrentou muitas dificuldades para chegar diante do sultão, mas, ocorrido o encontro, contam os biógrafos que o líder político e religioso ficara impressionado e profundamente comovido com o espírito e a postura de Francisco de Assis.
A amizade de longa data entre o Cardeal Bergoglio e o Rabino argentino Abraham Skorka, desde o tempo em que era arcebispo de Buenos Aires, gerou, e tem gerado, muitos frutos de diálogo e aproximação entre Cristianismo e Judaísmo. Como Papa, Francisco fez questão de evidenciar esta amizade e, através dela, acenar para o mundo sua abertura ao diálogo inter-religioso e ao ecumenismo, tanto que Skorka foi um dos primeiros convidados a quem Francisco recebeu depois de ter sido escolhido como Sumo Pontífice. Ainda no mesmo intuito, o Papa recebeu uma comitiva de líderes judaicos da Argentina para um encontro seguido de almoço em Roma e também anunciou há poucos dias sua visita à Terra Santa para o mês de maio deste ano.
Sob a influência do Papa, outras importantes lideranças católicas têm realizado gestos emblemáticos que revelam esta postura de cultivo de profundos laços de fraternidade. Em encontro ecumênico realizado em uma Igreja Evangélica dos Estados Unidos, o cardeal de Boston, Dom Frei Sean O’Malley, OFMCap (franciscano capuchinho), pediu à Reverenda Anne Robertson, pastora da Igreja Metodista Unida, que ungisse sua fronte com óleo e o abençoasse, imagem que correu o mundo pela internet e provocou grande repercussão.
• Despojamento e austeridade em relação aos bens materiais
Na época de Francisco de Assis, a burguesia emergente apostava na posse de bens e riquezas como um trampolim para alçar voos em direção ao poderio até então reservado exclusivamente aos nobres. E Pedro Bernardone, pai do santo, pertencia a este efervescente grupo, transmitindo também ao filho os sonhos ambiciosos de se tornar “alguém na vida”. Imbuído de tais sonhos, Francisco buscou empenhadamente galgar sucesso percorrendo o caminho proposto por seu genitor. No entanto, após seguidos fracassos, interpretados post factum como ação da Providência Divina, o jovem assisense virou as costas para este projeto “mundano” e passou a perseguir a “santíssima pobreza”, aquela que o tornava mais parecido com o Filho de Deus, que se fez pobre, com sua mãe pobrezinha, neste mundo.
E Francisco, o Papa, também ama o despojamento e manifesta tal opção em diversos sinais: escolhe não usar todos os paramentos a que teria direito enquanto papa, especialmente aqueles que seriam símbolos de ostentação de um poder imperial que pouco ou nada diz da simplicidade de Cristo; prefere morar como mais um hóspede da Casa Santa Marta, em vez de ocupar, solitariamente, a solenidade e a vasta dimensão dos aposentos papais; assume postura rigorosa e exigente no que diz respeito à administração do Banco do Vaticano; pede aos religiosos que coloquem suas casas e estruturas, muitas delas subutilizadas, a serviço dos pobres; denuncia a ganância e exploração que marcam a busca desenfreada e desumana da acumulação de dinheiro por parte de poucos; Convida à partilha e ao trabalho em prol do bem comum.
Em Assis, ao se encontrar com os pobres assistidos pela Cáritas, disse: “O despojamento de são Francisco diz-nos simplesmente o que o Evangelho ensina: seguir Jesus significa pô-lo em primeiro lugar, despojar-nos de tantas coisas que possuímos e que sufocam o nosso coração, renunciar a nós mesmos, tomar a cruz e carregá-la com Jesus. Despojar-se do eu orgulhoso e desapegar-se do desejo do ter, do dinheiro, que é um ídolo que possui. Todos estamos chamados a ser pobres, a despojar-nos de nós mesmos; e por isso devemos aprender a estar com os pobres, partilhar com quem não tem o necessário, tocar a carne de Cristo! O cristão não é alguém que enche a boca com pobres, não! É alguém que se encontra com eles, que olha para eles de frente, que toca neles. Estou aqui não para ‘ser notícia’, mas para indicar que este é o caminho cristão, o que percorreu são Francisco. São Boaventura, falando do despojamento de são Francisco, escreve: ‘Assim, portanto, o servo do Rei altíssimo foi deixado nu, para que seguisse o Senhor nu crucificado, objecto do seu amor’. E acrescenta que assim Francisco se salvou do ‘naufrágio do mundo’” (FF, 1043).
• Postura profética, autocrítica e propositiva
Francisco de Assis não se furtava em advertir seus irmãos quando percebia que a postura deles punha em risco não a instituição, a Ordem dos Frades Menores, mas a fidelidade evangélica que um dia escolheram abraçar. Por isso alertava em relação aos perigos da vaidade, da ambição, do orgulho, da autossuficiência, do comodismo, do desânimo, do apego a cargos. Admoestava com caridade, mas também com firmeza.
O Papa Francisco assume a mesma linha, às vezes usando expressões duras ou até jocosas: pediu aos consagrados e consagradas que não se comportassem como “solteirões e solteironas”, mas assumissem a postura de fecundos “pais e mães espirituais”; vive conclamando aos padres para deixarem a acomodação e irem ao encontro do rebanho, sem ficar tosquiando e explorando sempre as mesmas ovelhas; declarou que padres corruptos não oferecem aos fiéis o pão da vida, mas servem às ovelhas um “pasto envenenado”; recordou que padres apegados a dinheiro e a bens materiais, como carros, por exemplo, ferem profundamente o coração do povo e muitas outras “tiradas” que revelam um profundo senso de autocrítica e conhecimento da realidade.
Fiel à escolha do nome, o Papa Francisco tem sido uma voz profunda e necessária a ecoar no seio da Igreja e do mundo, chamando a atenção para verdades e urgências que não podem ser mais desconsideradas. Que o “Efeito Papa Francisco” permaneça vigoroso, provocando, despertando o coração dos seguidores de Cristo rumo à transformação da humanidade.
Texto extraído de : http://www.franciscanos.org.br/?p=51449
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