7 de agosto de 2011

Páginas Franciscanas

TEMPESTADE DE VIDA
O coração de quem não tem coração

O autor deste texto é o frade francês Eloi Leclerc. Não estamos propriamente diante de uma página franciscana, mas de uma página de um franciscano. Leclerc certamente ensopado de Francisco, escreve franciscanamente. O texto é tirado de seu livro “O povo de Deus no meio da noite” (Braga). Escreve sobre a crise do exílio da Babilônia e da crise de nossos tempos. Esta é uma profunda leitura espiritual que aconselho para ser usada num retiro espiritual. A tradução tem o sabor do português de Portugal (p. 83-90).

Nada poderia simbolizar melhor a extensão da ruína dum “coração contrito”, que a planície a que o profeta Ezequiel se viu transportado pelo poder de Javé (Ez 37, 1ss). O profeta pôde palmilhar esta planície em todos os sentidos. Nenhum ser vivo. Apenas encontrou esqueletos desconjuntados. A perder de vista, sobre a terra, somente ossadas ressequidas. Espetáculo de desolação, mas também campo aberto à irrupção do Espírito. Toda resistência cessou, toda rigidez desapareceu. O limite também. O homem confunde-se de novo com a terra mãe. Tornou-se a ser “filho do homem” : um mortal. Agora pode acreditar, como Abraão, no Deus que dá vida aos mortos.

Nada deterá o Espirito desde agora. Este pode soprar dos quatro ventos, em toda a sua plenitude. A força de renovação pode desencadear-se: “Filho do homem, diz ao Espírito: Assim fala o Senhor Javé: Vem Espírito, vem dos quatro ventos! Sopra sobre estes mortos, para que revivam!” (Ez 37,9). O profete repete a todos os ecos o que lhe disseram. E o furacão de vida cai sobre as ossadas. Ouve-se então por toda a planície o grande remexer de ossos, que se entrechocam, cada um à procura de sua articulação. E eis que os mortos se levantam! Vivos, estão vivos! Grande e imenso exército! (Ez 37,10).

Quando o espírito humano se vê a contas com experiências destas, necessita de tempo para lhe encontrar o sentido profundo. “Estas ossadas, disse Javé, são todo o povo de Israel...” (Ez 37,11). Vou abrir os vossos túmulos (Ez 37,12), meter em vós o meu Espírito, para vos restituir à vida...”(Ez 37,14). Pouco a pouco faz-se luz no espírito do profeta. A visão descobre a sua verdadeira dimensão profética. Ezequiel compreende que se trata de linguagem simbólica, que exprime a renovação profunda do coração do homem. Penetra no sentido interior da visão. E pode ouvir Javé dizer-lhe: “Dar-vos-ei um coração novo, introduzirei em vós um espírito novo; arrancarei do vosso peito o coração de pedra; dentro de vós, meterei o meu Espírito...” (Ez 36, 26-27; cf. versos 11 . 19).

Que caminho percorrido! Ainda há pouco Ezequiel dizia aos companheiros de exílio, em nome de Javé: “Preparai um coração novo e um espírito novo” (Ez 18,31). Era fácil dizê-lo. Mas como realizá-lo? O que é um coração novo e um espírito novo? E agora é o próprio Javé a tomar a iniciativa de renovar a sua criatura. Trata-se de uma metamorfose maravilhosa. O coração de pedra que todos possuímos e a que estamos tão habituados que nem lhe percebemos a dureza, Deus o retirará, substituindo-o por um coração de carne. Que tal será o novo coração: coração de carne! Quanto ao Espírito novo, será o próprio Espírito de Deus no coração da sua criatura: “dentro de vós meterei o meu Espírito”.

O mais surpreendente, o mais maravilhoso nesta renovação do homem é que o Espírito de Javé se encontre estreitamente associado ao coração de carne. Um não existirá sem o outro: um é dado com o outro. A mais importante experiência espiritual, a mais despojada, é aquela que restitui ao homem a sua verdadeira profundeza carnal. A participação do homem no Espirito de Deus está ligada a este aprofundamento que o leva a reencontrar, no mais íntimo de si mesmo as fontes vivas da ternura e da comunhão. Abrir-se ao Espírito patético de Javé é, portanto, nascer também para uma humanidade plena e profunda. Quando o homem se deixa prender pelo Espírito, este não descansa enquanto não o penetra e o atinge até nos seus fundamentos mais obscuros; e ali ele renova o Eden da antiga ternura esquecida”.

Sabe-se bem que, com lutas de interesses, as ambições, apreensões e a vontade de triunfar e dominar, a vida pode endurecer o coração do homem e nele acumular agressividade e ressentimento. As primeiras forças de admiração e comunhão depressa são sufocadas. E a pior dureza não é a dos sentimentos. É a dureza seca, fria e metálica da inteligência: a dureza de uma razão medíocre e abstrata que, em nome da verdade, ignora todo o sentimento. O coração de quem não tem coração, eis a dureza da pedra!

Deus conhece essa pedra que o homem pode trazer consigo. Pedra sobre a qual estão sepultadas as camadas profundas da alma. É preciso que o rochedo se quebre para que jorre de novo a água viva. Só o “coração contrito” que pelo Espirito se deixou despojar de sua suficiência e desejo de poder pode reencontrar as fontes ocultas. E é o Espírito que lhe possibilita descobri-las. O Espirito de Javé tem necessidade, para nascer em nós, de todas as fibras de nosso coração. A parte de nós mesmos que julgávamos extinta para sempre, Ele chama novamente à vida. Com ela renascemos; somos novas criaturas, restituídas à comunhão com todos os seres vivos.

Reconciliar em si a pureza e a ternura, a inocência e o fervor não é a menor novidade do “coração de carne”. “Pureza e ternura, por que estais separadas?”, perguntava François Mauriac. O ser puro – ou o que se deseja tal – é muitas vezes altivo e duro, como se o homem não pudesse escolher senão a pureza que o torna de gelo ou o amor que o devora, aviltando-o. Ora, a própria Palavra divina promete aos exilados um coração de carne e uma pureza comparável à transparência das fontes: “Lançarei sobre vós uma água pura e sereis purificados” (Ez 36,25). Purificados, mas não desencarnados. No coração de carne, criado pelo sopro de Javé, tudo existe, tudo se reencontra, límpido e luminoso. Tudo, até o Eros.

Esta água pura, que penetra até o coração e o liberta de suas cargas e de suas manchas, nada tem a ver com a água as purificações legais. É a irmã daquela água “humilde, preciosa e casta”, cantada por Francisco de Assis. É uma realidade intima e original, Inseparável do sopro do Espírito, tem os germes da vida.

Água e Espírito! Não é o binário primitivo que, nos inícios do Gênesis é prelúdio de toda a criação? (Gn 1,1). Quando se unem o Espírito e a água, está para nascer um mundo novo. A noite do exílio torna-se a dos grandes começos. Noite de natividade.

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