5 de março de 2012

São Francisco de Assis e a Opção pelos Pobres. (Parte 1)

O conceito de opção pelos pobres começou a ganhar corpo, conteúdo e contornos mais precisos a partir da Teologia da Libertação, desenvolvida especialmente e de maneira original na América Latina no último quarto do século XX. Foi a Teologia da Libertação que alertou a Igreja latino-americana para uma nova leitura da Teologia a partir do lugar e da ótica dos povos oprimidos e empobrecidos. É, portanto, dentro deste contexto geográfico, sociológico e teológico que adquire melhor compreensão o conceito de opção pelos pobres, conceito que naturalmente passou a integrar a linguagem comum da Igreja latino-americana não somente em sua pregação, mas também em seus documentos oficiais (destacando-se, entre estes, o de Medellín, o de Puebla e o de Santo Domingo) e nos diversos planos pastorais das diferentes Conferências Episcopais da América Latina.

A opção pelos pobres levou a Igreja da América Latina a questionar e a reformular suas práticas e métodos pastorais, impulsionando, ao mesmo tempo, os religiosos a repensarem seu voto de pobreza.

Também entre os franciscanos se tenta, a partir de então, uma releitura da pobreza, sem dúvida uma marca forte da espiritualidade franciscana, na busca de adequar a proposta de Francisco de Assis ao contexto sócio-teológico da América Latina (cf. CPO da Bahia, 1983, CCGG, EEGG, etc.).

No nível prático, vem-se buscando – desde a década de 70, de maneira tímida, mas intensificando-se na década de 80 – uma maior inserção das fraternidades franciscanas em meios populares pobres, em bairros de operários, em favelas, nas periferias das cidades, como resposta a um apelo do carisma franciscano e concretização da opção pelos pobres.

Jovens em formação deslocaram-se dos grandes conventos para pequenas residências onde a convivência com o povo pobre e com seus problemas também tem seu papel altamente formativo.

Em nível de reflexão teórica, ainda em processo de releitura do próprio carisma por parte dos franciscanos, são formuladas perguntas de grande relevo: São Francisco fez a opção pelos pobres? A opção pelos pobres, supostamente feita por Francisco, teria tido influência sobre a opção pelos pobres do final do século XX? Embora a resposta mais comum tenha sido afirmativa, no entanto, ela não pode limitar-se a um categórico “sim”; semelhantemente não pode contentar-se com um definitivo “não”. Segundo nosso parecer, uma resposta que respeitasse as nuanças do problema e não eliminasse possíveis discrepâncias seria desejável. É forte, de fato, a tentação de se projetar em Francisco um conceito da atualidade e vice-versa. Sem dúvida que se pode falar de opção pelos pobres em Francisco, mas dentro de outra compreensão, não precisamente como a entende a pósmodernidade.

De outro lado, é possível a aproximação dos dois conceitos, caso contrário seria declarar impossível a encarnação da espiritualidade franciscana (a fortiori, a evangélica) nos dias hoje. Assim, a compreensão de Francisco pode trazer ao mundo pósmoderno a sua contribuição para uma mais profunda compreensão do tema.


Esta pequena reflexão tem por objetivo precisar o conceito de opção pelos pobres, como é compreendido hoje (evidentemente sem a pretensão de sermos exaustivo), analisar o conceito e a práxis de Francisco, com o intuito de ver até que ponto se pode atribuir a Francisco o atual conceito de opção pelos pobres, para finalmente apontar algumas pistas que se devem viabilizar para uma práxis mais coerente da vida franciscana hoje.

Parte I: O conceito de opção pelos pobres

Partimos do pressuposto de que a linguagem da Idade Média é diferente da linguagem de hoje. Os instrumentos de reflexão também são diferentes. Na Idade média prevalecem a filosofia e a teologia como instrumentais de reflexão da realidade. Na pós-modernidade, a sociologia torna-se o instrumento de reflexão por excelência, com as análises das causas e dos processos das relações sociais.

Deste modo, a leitura atual investiga as causas da pobreza e percebe-a como fenômeno resultante de estruturas de poder e de domínio, estruturas geradoras de abismo entre as classes sociais. Pobreza na Idade Média era vista como um estado ou situação; hoje é vista preferentemente como processo. Constata-se, de fato, um progressivo jogo de forças entre as classes sociais. Resultado desse jogo é que poucos saem enriquecidos, e muitos empobrecidos. As leis são produzidas pelos que dominam, a desigualdade recrudesce; não há propriamente pobres, mas empobrecidos, pois, a estrutura não lhes dá chances, tritura-os em suas aspirações humanas mais elementares, reduzindo-os à situação de pobreza crescente, a uma “miserabilização” da vida humana.

Este esquema se dá nas relações dentro de cada país. Mas se repete também nas relações entre os países. Os países ricos dominam os países pobres e mantêm-nos na pobreza, ou melhor, num processo de empobrecimento contínuo, não lhes permitindo um maior desenvolvimento, uma maior humanização. São capazes de dar-lhes esmolas, mas nunca se propõem mudar as regras do jogo de maneira a permitir que os países pobres participem um pouco de suas riquezas e conquistas tecnológicas. Criam leis protecionistas para impedir que os produtos dos países pobres (fruto de seu trabalho) atinjam seus mercados. São os países ricos que impõem os preços dos produtos dos países pobres. Criam slogans falsos para justificar por que são ricos e por que os outros são pobres: “nós trabalhamos, eles são preguiçosos”. Esquecem-se de que a mão de obra barata dos operários dos países pobres permite um salário maior dos operários dos países ricos, pois os lucros das empresas multinacionais situadas nos países pobres são transferidos para as matrizes nos países ricos.

Isto é apenas uma ponta de agulha para indicar como hoje não se pode falar de pobreza, mas antes de um processo de empobrecimento. Sem falar nas dívidas externas dos países do terceiro mundo, processo iníquo, através do qual os países ricos sugam dos países pobres todas as suas forças e potencialidades de desenvolvimento.

A Conferência Episcopal Latino-americana, reunida em Medellín em 1968, fez uma ampla análise desta realidade. Nessa análise, já denunciava o “empobrecimento global” dos países latino-americanos, apontando alguns fatores: distorção crescente do comércio internacional, fuga de capitais, evasão de impostos, endividamento externo, monopólios internacionais e imperialismo internacional do dinheiro1. A partir daí, a Conferência propõe algumas linhas pastorais, entre as quais destacamos: Despertar nos homens e nos povos, principalmente com os meios de comunicação social, una viva consciência de justiça, infundindo-lhes um sentido dinâmico de responsabilidade e de solidariedade; defender, segundo o mandato evangélico, os direitos dos pobres e oprimidos, urgindo a nossos governos e classes dirigentes para que eliminem tudo quanto destrua a paz social: injustiças, inércia, insensibilidade; denunciar energicamente os abusos e as injustas conseqüências das desigualdades excessivas entre ricos e pobres, entre poderosos e fracos, favorecendo a integração; alentar e favorecer todos os esforços do povo por criar e desenvolver suas próprias organizações de base, pela reivindicação e consolidação de seus direitos e pela busca de uma verdadeira justiça; denunciar a ação injusta que, na ordem mundial, nações poderosas realizam contra a autodeterminação de povos fracos, que têm que sofrer os efeitos sangrentos da guerra e da invasão, pedindo aos organismos internacionais competentes medidas decididas e eficazes 2.

No entanto, é na Conferência de Puebla (1979) que a expressão “opção pelos pobres” aparecerá com força e clareza3, e a Conferência de Santo Domingo (1992) a empregará amplamente, colocando-se nitidamente na linha das duas anteriores: “Em continuidade com as Conferências de Medellín e de Puebla, a Igreja reafirma a opção preferencial em favor dos pobres”4. Esta opção é assumida de maneira incontestável como linha pastoral para a Igreja latino-americana 5. É reconhecida como a prática de Jesus Cristo a ser imitada 6.

No documento de Santo Domingo, chama-nos especialmente a atenção a ligação entre a opção preferencial pelos pobres e a promoção humana7. A finalidade da opção pelos pobres é “para que os pobres saiam de sua miséria”8. A miséria, de fato, desumaniza as pessoas, tira-lhes a dignidade humana, iguala-os aos animais. E muitos seres humanos hoje lutam não tanto por seus direitos humanos, mas gostariam de ter os direitos animais: poder comer, beber, abrigar-se.

Nos documentos das Conferências latino-americanas, a concepção de promoção humana não comporta mais aquela relação assistencialista de décadas anteriores. Ela é compreendida como relação de apoio e de solidariedade com os movimentos dos pobres para que eles sejam os sujeitos, os protagonistas de transformações sociais. Promoção humana é, então, permitir que o pobre tome sua história nas mãos e construa sua vida.


Muitas vezes se pensa que apoiar é dar dinheiro. No entanto, apoiar é antes dar espaço (o apoio do franciscano, a nosso ver, seria iluminar as iniciativas dos pobres com uma mística, com o evangelho). Muitas vezes se pensa que promover as pessoas é fazer com que elas se tornem ricas, que entrem a fazer parte do sistema que criticamos como mau. Esta postura, no fundo, é uma introjeção do capitalismo (a tentação da teologia da prosperidade, própria de certos setores das seitas evangélicas). Mas a finalidade da promoção humana não é incluir o pobre no sistema capitalista; é dar-lhe oportunidade de participação na conquista e no uso dos benefícios da sociedade, é dar-lhe chance da construção de seu próprio destino.

Isto ninguém pode fazer por ele. Promover é deixar o pobre fazer a sua história. A opção pelos pobres, tal como foi formulada pelas conferências episcopais latinoamericanas, não deixou de influenciar a Ordem Franciscana. Baste-nos citar o Conselho Plenário celebrado na Bahia, em 1983. E foi tão incisiva que entrou nas CCGG e nos EEGG da Ordem, bem como em outros documentos de não menor importância (por exemplo, Ratio Formationis, Ratio Evangelizationis).


Texto de Frei Celso Márcio Teixeira, ofm.

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