O conceito de pobre para Francisco: o sacramento de Cristo
Embora a realidade vivida e experimentada do pobre seja basicamente a mesma em todos os tempos, o conceito atual de pobre tem uma carga significativa que o do século XIII não tinha. Trata-se, portanto, de dois conceitos diferentes, de dois modos distintos de perceber o pobre. Nesta percepção, por exemplo, Francisco não dispunha da leitura sociológica nem tinha acesso ao instrumental de Marx para a análise da realidade. Seria anacronismo pretender ver em
Francisco de Assis uma leitura sociológica e marxista da realidade dos pobres. No século XIII, a filosofia e a teologia eram os instrumentais de reflexão sobre a realidade. Isto é, toda a realidade tinha Deus como ponto de referência.
Francisco, evidentemente, só podia usar esse instrumental de sua época. Ele tinha um olhar teológico sobre a realidade, isto é, em tudo (acontecimentos, instituições, coisas, pessoas, situações) ele procurava ver a presença fundante do theos. Era o theos que dava sentido (logos) a tudo.
Pode-se argumentar com a afirmação de que Francisco não era um teólogo, no sentido estrito da palavra. Mas esta maneira de ver a realidade não era algo próprio dos teólogos formados nas universidades ou de pessoas letradas. Era o modo de conceber a realidade comum a todo o povo. Estava como que arraigado no inconsciente das pessoas, da mesma maneira que hoje um modo de pensar técnico faz parte do inconsciente do homem moderno. Em outras palavras, mesmo o homem simples, sem nenhuma escolaridade, tinha este modo de pensar a realidade. Era simplesmente o modo de pensar, fazia parte do ideário da Idade Média.
Dentro deste modo de colocar-se diante da realidade, Francisco tem uma visão sacramental das coisas e dos acontecimentos. Se Deus está presente em tudo e é seu ponto fundante de referência, por conseguinte, tudo passa a ser um sacramento visível da presença de Deus.
A nosso entender, trata-se de visão sacramental e não tanto de visão alegórica da realidade. Onde se situa a distinção entre alegoria e sacramento? Na alegoria se constata uma semelhança; no sacramento se constata uma presença. A semelhança remete a memória (faz lembrar) a outra realidade; o sacramento não apenas faz lembrar, mas torna a outra realidade, de certo modo, visível e presente.
Os biógrafos de Francisco interpretam-no dentro de uma visão preferentemente alegorizante, embora a sacramental também seja constatável. Na interpretação alegorizante, a criatura não é vista como um sacramento, mas apenas faz lembrar, de algum modo, outra realidade que a transcende, como por exemplo, ao contemplar um cordeiro, Francisco se lembrava de Cristo, “pelo fato de que a humildade de Nosso Senhor Jesus Cristo nas Sagradas Escrituras é freqüentemente comparada e mais adaptada ao cordeiro. Assim também, abraçava mais carinhosamente e via mais prazerosamente todos aqueles [animais] nos quais principalmente pudesse ser encontrada alguma semelhança alegórica com o Filho de Deus” 9. “Inflama-se em excessivo amor até para com os vermezinhos, porque havia lido o que foi dito sobre o Salvador: Eu sou um verme e não um homem (Sl 21,7)” 10.
Segundo nosso modo de interpretar, Francisco não apenas se lembrava de Cristo, mas via-o sacramentalmente presente na mansidão do cordeiro e na humilde pequenez e fragilidade do verme. Mas o mesmo biógrafo apresenta também o que consideramos uma visão sacramental: “Quem seria capaz de narrar a doçura que fruía ao contemplar nas criaturas a sabedoria, o poder e a bondade do Criador?” 11. Ou em outro lugar: “Como outrora os três jovens colocados na fornalha de fogo ardente..., assim também este homem, repleto do Espírito de Deus, não cessava de glorificar, louvar e bendizer em todos os elementos e criaturas o Criador e governador de todas as coisas” 12.
Boaventura, mais tarde, embora mantenha na LM as interpretações alegorizantes que se encontram em Tomás de Celano 13, em seus escritos teológicos elabora uma interpretação que, a nosso entender, se aproxima da percepção sacramental de Francisco. A expressão “contemplar nas criaturas a bondade, sabedoria e poder do Criador”, usada por Celano, encontra-se repetidas vezes nas obras teológicas de Boaventura 14.
O grande teólogo franciscano, intitulado Doctor Seraphicus, usando o termo “vestígio”15, colhido de Tomás de Celano, elabora uma concepção diferente da alegórica. Especialmente no Itinerarium mentis in Deum ele elabora com mais precisão sua interpretação sacramental: “No que concerne ao espelho do mundo sensível, podemos contemplar a Deus não somente por meio das coisas, como através dos vestígios, mas também nas coisas mesmas, à medida que ele está nelas com a sua essência, poder e presença” 16.
Em outra passagem, Boaventura torna-se mais explícito ainda: “As criaturas do mundo sensível são sinais das perfeições invisíveis de Deus, em parte porque Deus é a causa, o modelo e o termo delas, e cada efeito é sinal da causa, o modelado é sinal do modelo e a via é sinal do termo ao qual conduz” 17.
Percebe-se de imediato toda uma linguagem sacramental: vestígio, espelho, sinal. Boaventura, embora tenha consciência desta concepção de sacramentalidade, no entanto, não ousa aplicá-la às criaturas, reservando-a unicamente para os Sacramentos: “Deus quis instituir de modo especial algumas coisas para que fossem sinais, não sinais segundo o significado comum da palavra, mas um sinal que é também Sacramento”18. A leitura que Francisco faz das criaturas, então, não é alegorizante, mas sacramental; ele vê, contempla, reconhece nas criaturas a presença de Deus, o theos que é o ponto referencial de todo ser criado.
É, portanto, dentro desta ótica sacramental que Francisco vê também o pobre. O testemunho do primeiro biógrafo soa de forma nítida: “Desagradava-lhe muitíssimo, quando via que algum pobre era repreendido ou quando ouvia que uma palavra de maldição era proferida contra qualquer criatura. Donde, aconteceu que um dia um irmão dirigiu uma palavra de insulto a um pobre que pedia esmola, dizendo: ‘Vê, talvez sejas rico e simules pobreza’.Ouvindo isto, São Francisco, o pai dos pobres, lamentou profundamente e repreendeu com dureza o irmão que proferia tais coisas e ordenou-lhe que se despisse diante do pobre e, beijando-lhe os pés, lhe pedisse perdão. Dizia, pois: ‘Quem amaldiçoa um pobre comete injúria contra Cristo, de quem ele traz o nobre sinal, o qual por nós se fez pobre neste mundo’”19.
Igualmente, o enfermo era considerado sacramento de Cristo. As enfermidades (= sofrimentos da pessoa enferma) tornavam presentes aos olhos de Francisco os sofrimentos de Cristo 20.
Dentre os pobres e enfermos, Francisco dedicou especial atenção aos leprosos. Banidos do convívio da sociedade como pessoas amaldiçoadas por Deus, eles se tornam para Francisco o lugar da manifestação do theos. Se antes ele sentia horror à simples vista de leprosos, agora ele lhes presta serviços, lavando-lhes a podridão das feridas 21, fazendo misericórdia para com eles, como diz em seu Testamento 22. Mas a característica de Francisco no trato com os leprosos não é seu serviço, mas sua relação com eles. Ele estabelece novo relacionamento, não de pessoas excluídas, mas de irmãos. Se o mais importante fosse o serviço, Francisco teria estabelecido como finalidade da Ordem o cuidado dos leprosos. Já existiam instituições na Igreja com esta finalidade, como, por exemplo, a instituição de Santo Antão 23. Dentro de sua ótica, Francisco contempla no leproso o sacramento do Cristo, a presença do próprio Cristo enfermo, ou melhor, do Cristo que assumiu as nossas enfermidades em seu contínuo processo kenótico. Igualmente Francisco não pensa em termos de promoção humana. Evidentemente, ele dá esmolas aos pobres, preocupa-se com as necessidades dos leprosos.
No entanto, a idéia motriz não é a promoção humana, mas o cuidado com o irmão, o servir a Cristo na pessoa do irmão: “o que fizestes ao menor de meus irmãos é a mim que o fizestes” (Mt 25,40). O leproso é manifestação ou sacramento do Cristo rejeitado, banido e excluído.
Se na época de Francisco era difícil ver no leproso o sinal ou o sacramento de Cristo, mais difícil ainda era ver este sinal nos ladrões e assaltantes. Este tipo de marginalidade e de exclusão continua oferecendo dificuldades até o dia de hoje. Francisco tinha uma fina percepção. Mesmo nos ladrões ele era capaz de ver de alguma forma a presença do theos.
Não é sem sentido sua admoestação na Regra não Bulada: “E quem vier procurá-los, amigo ou adversário, ladrão ou assaltante, seja recebido benignamente”24. Não se trata apenas de uma estratégia de boa convivência ou de boas maneiras, mas de uma concepção teológica da alteridade. Mais ainda, Francisco seguia o exemplo de Cristo que era acusado de conviver com gente de má vida (cf. Mt 9,11; Mc 2, 16; Lc 5, 30; 19,7. O outro, mesmo ladrão ou assaltante, em sua essência, nunca deixa de ser lugar da manifestação do theos, e para ele sempre há possibilidade de conversão, como se pode ver no episódio dos ladrões convertidos em Monte Casale 25.
Nenhum comentário:
Postar um comentário